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2 ENGENHARIA POPULAR construção e gestão de projetos de tecnologia e inovação social Parte 1: A Engenharia Popular 3 ENGENHARIA POPULAR construção e gestão de projetos de tecnologia e inovação social Organização SANDRA RUFINO FERNANDA DEISTER MOREIRA 4 Ebook Engenharia Popular ENGENHARIA POPULAR construção e gestão de projetos de tecnologia e inovação social Parte 1: A Engenharia Popular 5 ENGENHARIA POPULAR construção e gestão de projetos de tecnologia e inovação social Organização SANDRA RUFINO FERNANDA DEISTER MOREIRA Autores ADALBERTO T. DOS SANTOS ALICIANE DE S. PEIXOTO ANA CLAUDIA A. ROSA ANDRÉ S. KENEZ BIANCA PARTICHELI BRUNA VASCONCELLOS CAMILA R. LARICCHIA CAMILA S. DE A. CORREIA CARLA MÂNCIO CAROLINA V. P. COSTA CELSO ALVEAR CINTHIA V. S. VARELLA CRISTIANO CRUZ DÊNIS PACHECO FERNANDA DE SOUZA CARDOSO FERNANDA DEISTER MOREIRA FRANCISCO DE P. A. LIMA GABRIEL S. CHIELE GUILHERME S. C. MACHADO GUSTAVO F. MORAES HUGO SOSINHO DA CUNHA ISABELA F. ALI JÚLIA ANTUNES JULIANA J. STEK LAIS FRAGA LIGIA M. SILVA LUANA CRISTINA O. PRADO LUCCA P. POMPEU LUCILA A. FERNANDES LUISA DA S. MADEIRA MABELI CAETANO MARCELO DE S. F. C. SILVA MARIANA M. GOMES MARIANA V. FILGUEIRAS MATHEUS SCAGLIA MAINARDI NATÁLIA T. MARGARIDO PAULIANA DA S. ARAÚJO PEDRO H. S. THEBIT PRISCILA B. CAUDURO RAFAEL M. PRIVATO RENÊ DE CASTRO RODRIGO E. OLIVEIRA RODRIGO EDSON CASTRO AVILA SANDRA RUFINO SUED TRAJANO DE OLIVEIRA VICTÓRIA ABRAHÃO F. E SILVA VINICIUS K. MUNIZ VITOR HUGO DOS R. APARECIDA VITOR T. CHAVES 6 ENGENHARIA POPULAR: construção e gestão de projetos de tecnologia e inovação social Copyright @2020 dos autores Realização Associação Engenheiros Sem Fronteiras-Brasil (ESF-Brasil) Presidente Cleuller Camilo da Costa Vieira Silva Vice Presidente de Desenvolvimento Nina Junqueira Ferracioli Vice Presidente de Acompanhamento Adalberto Teodoro dos Santos Vice Presidente de Comunicação Kamilla Suellen Teixeira Campos Vice Presidente Técnico Pedro Capalbo Becalette Patrocínio Conselho Federal de Engenharia e Agronomia (CONFEA) Capa Maria Clara Pagotto de Freitas Diagramação Sandra Rufino Projeto Gráfico Sandra Rufino Maria Clara Pagotto de Freitas Revisão de Textos Fernanda Deister Moreira Sandra Rufino Victória Abrahão Fonseca e Silva Organização Sandra Rufino Fernanda Deister Moreira ENGENHARIA POPULAR construção e gestão de projetos de tecnologia e inovação social Parte 1: A Engenharia Popular 7 A Associação Engenheiros sem Fronteiras Brasil (ESF-Brasil) é parte de um movimento internacional que surgiu nos anos 1980 na França. Nossa rede internacional, chamada de Engineers Without Borders International (EWB-I), em busca de uma engenharia voltada para a comunidade, está presente em mais de 65 países. No Brasil desde 2010, o ESF-Brasil está presente em mais de 70 cidades do país através de seus núcleos os quais são os responsáveis por fazer projetos sociais de engenharia na comunidade em que estão inseridos. Todos os núcleos tem estreita parceria com as Instituições de Ensino Superior a partir de ações e projetos de extensão universitária. Mais de 500 projetos já foram finalizados e constantemente temos projetos em andamento nos eixos: infraestrutura, sustentabilidade, educação e empreendedorismo e gestão social. Somos mais de 2000 voluntários espalhados pelo país colocando a mão na massa e transformando vidas! Em 2019, fomos contemplados com prêmios importantes do Terceiro Setor: Prêmio ENATS de Boas Práticas de Gestão no 3º Setor, Prêmio 100 Melhores ONGs do Brasil e Prêmio Melhor ONG de Desenvolvimento Local. Além de termos recebido certificado de ONG transparente do Instituto DOAR e o certificado internacional de transparência e boas práticas sociais internacionais da PHOMENTA. Além disso, fazemos parte de 12 coalizões e pactos de atuação em busca de fortalecer nossos compromissos com o desenvolvimento sustentável e justiça social. Para conhecer mais sobre o nosso trabalho e saber formas de se envolver com nossos projetos, acesse esf.org.br 8 Instituído em 1933, o Sistema Confea/Crea atua norteado pelos objetivos que motivaram a sua criação: valorizar os profissionais; participar ativamente do desenvolvimento do país; integrar equipes técnicas, esferas de governo; e colaborar com a definição de políticas públicas. Representado nos 26 estados e no Distrito Federal pelos Conselhos Regionais de Engenharia e Agronomia, os Creas, e, em diversas localidades, por 575 inspetorias, o Sistema tem registrados, aproximadamente, um milhão de profissionais e 265 mil empresas. Em sua atuação, dinamiza a participação em diversos setores da sociedade. Junto ao Poder Legislativo, o Confea mantém uma agenda parlamentar que defende projetos de lei de interesse dos profissionais e da sociedade. Junto ao Poder Executivo, participa de representações nacionais no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, e Ministério de Minas e Energia, por exemplo. A aproximação com instituições de ensino e associações é item permanente da pauta de atividades. No campo das relações internacionais, o Conselho tem o acordo de reciprocidade assinado com a Ordem dos Engenheiros de Portugal e integra a Federação Mundial de Organizações de Engenheiros. Entre as autarquias de regulamentação e fiscalização mais antigas do país, o Sistema Confea/Crea mantém a tradição de decisões colegiadas, tomadas a partir das discussões feitas pelos diversos fóruns consutivos que sustentam suas atividades: Colégio de Presidentes de Creas, Colégio de Entidades Nacionais, Câmaras Especializadas, Comissões Temáticas e Permanentes, e oficializadas pelo plenário composto por 18 conselheiros federais. ENGENHARIA POPULAR construção e gestão de projetos de tecnologia e inovação social Parte 1: A Engenharia Popular 9 Prefácio Desde sempre, a engenharia é considerada alavanca de desenvolvimento em função mesmo de sua essência: reunir atividades que se transformam em bem social para a humanidade. Área diretamente vinculada à economia, a engenharia em suas múltiplas modalidades depende de investimentos público e privado para mostrar seu potencial de transformação interferindo e fazendo girar as engrenagens que sustentam todas as atividades da sociedade moderna. Uma transformação que, muitas vezes, ao contrário do que seria lógico e esperado, aprofunda desigualdades sociais. Em maior ou menor grau, todas as economias, da mais rica à mais pobre, revelam descuidos e desrespeitos com relação ao cidadão comum no que se refere à qualidade da habitação popular, saúde, educação e segurança pública, setores em que a engenharia é a ciência base para o desenvolvimento social e econômico. É nesse contexto que ganha maior importância a parceria assumida pelo Conselho Federal de Engenharia e Agronomia (Confea) com a Associação Engenheiros Sem Fronteiras – Brasil (ESF-Brasil) para a publicação do livro “Engenharia Popular: construção e gestão de tecnologia e inovação social”. Valiosa, a publicação é assinada por 50 autores – docentes, pesquisadores, estudantes, profissionais e membros de organizações sociais – fiéis aos objetivos revelados na contracapa do livro: debater a engenharia como instrumento do desenvolvimento social e ambiental. Nessa empreitada, o Confea é mão de obra útil para ajudar a reduzir desigualdades, reparar falhas e aproximar a engenharia da base social, formada por um numeroso contingente de cidadãos que através de gerações aplicam os conhecimentos adquiridos de engenharia projetada a partir da realidade de cada pedaço de chão, proposta da engenharia popular. No Brasil,a Lei nº 11.888, sancionada em 2008, mais conhecida como Lei da Engenharia Pública, pode ser um 10 instrumento a auxiliar a ESF-Brasil a realizar a sua missão. Baseada em experiências populares bem sucedidas, realizadas pelos Conselhos Regionais de Engenharia e Agronomia (Creas) do Paraná e do Rio Grande do Norte, por exemplo, a legislação assegura o direito das famílias de baixa renda, residentes em áreas urbanas ou rurais, à assistência técnica pública e gratuita para o projeto e a construção de habitação de interesse social, com até 60 m², para sua própria moradia, como parte integrante do direito social previsto na Constituição de 1988. A assistência técnica definida na lei – cuja aprovação o Confea defendeu no Congresso Nacional – alcança, inclusive, a regularização fundiária da habitação ajudando a evitar a ocupação de áreas de risco e de interesse ambiental. O outro aspecto é o estímulo às prefeituras, aos governos estaduais e ao federal a recompor suas equipes técnicas, desmanteladas ao longo dos últimos 30 anos. Ao estimular o mercado de trabalho, a legislação garante uma assistência técnica de qualidade a quem mais precisa. É hora de participar. É hora de os engenheiros assumirem o papel de educadores no que se refere à sustentabilidade ambiental, fortalecer a importância da ecologia, debater novas alternativas, novas possibilidades, refletir sobre práticas utilizadas, rever os velhos e criar novos conceitos. Agora parceiros, o Confea e a Associação Engenheiros Sem Fronteiras – Brasil somam objetivos, esforços e compartilham conhecimentos visando a uma sociedade menos desigual, mais solidária e mais promissora para as gerações futuras. Eng. civ. Osmar Barros Júnior Presidente em exercício do Confea ENGENHARIA POPULAR construção e gestão de projetos de tecnologia e inovação social Parte 1: A Engenharia Popular 11 Sumário Parte 1: Engenharia Popular ---------------------- 11 Princípios norteadores da engenharia popular ---------- 13 Engenharia e transformação social ------------------------- 25 Construir alternativas tecnológicas com as classes populares: engenharia, educação popular e extensão universitária ------------------------------------------------------ 37 Autogestão, sustentabilidade e replicabilidade de projetos sociais na engenharia ------------------------------ 47 Os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável para a Engenharia -------------------------------------------------------- 57 Parte 2: Gestão de Projetos de Tecnologia e Inovação Social --------------------------------------- 71 Definindo o escopo do projeto com a comunidade ---- 73 Mobilização de recursos e parceiros ----------------------- 83 Relação da organização e seus beneficiários em projetos sociais -------------------------------------------------------------- 93 Execução do projeto ------------------------------------------- 99 Prestação de contas e divulgação dos resultados ----- 107 Avaliação do projeto ----------------------------------------- 115 12 Parte 3: Experiências e Vivências --------------- 123 Projetos de engenharia popular na prática: o que podemos aprender com eles? ----------------------------- 125 Integrando as etapas da gestão de projetos de educação ambiental ------------------------------------------------------- 137 Projeto Amenizar: mantas térmicas sustentáveis ----- 147 Programa de capacitação e aperfeiçoamento profissional ----------------------------------------------------- 157 Captação de água de chuva -------------------------------- 165 Cooperação além das fronteiras -------------------------- 177 Sapiência Ambiental ------------------------------------------ 187 Habitat para a Humanidade Brasil: o programa de melhorias habitacionais ------------------------------------- 197 Eventos em engenharia popular -------------------------- 207 Quem são os autores? ----------------------------- 217 Fotos dos Núcleos ESF -------------------------------- 1 11 Parte 1: A Engenharia Popular 11 Parte 1: Engenharia Popular 12 Nesta parte serão discutidas questões conceituais sobre a engenharia popular, para quem é, quem faz e discussões relacionadas ao desenvolvimento sustentável, à extensão universitária, autogestão e a educação popular. Essa parte do livro foi desenvolvida por profissionais e docentes com experiência em engenharia popular convidados pelo ESF-Brasil pois acreditamos na engenharia popular como uma das formas de alcançar o desenvolvimento local. Atualmente, o ESF-Brasil trabalha com alguns dos princípios da engenharia popular e sabemos que para alcançá-la plenamente existe uma longa jornada. Estamos certos de que a engenharia engajada, as tecnologias sociais e o objetivos do desenvolvimento sustentável são ferramentas importantes para alcançar nossa missão. ENGENHARIA POPULAR construção e gestão de projetos de tecnologia e inovação social Parte 1: A Engenharia Popular 13 Princípios norteadores da engenharia popular Celso Alvear, UFRJ, REPOS Bruna Vasconcellos, UFABC, REPOS Cristiano Cruz, ITA, REPOS Lais Fraga, Unicamp, REPOS A engenharia historicamente trouxe grandes avanços tecnológicos para a humanidade, mas também foi uma disciplina que ajudou a aprofundar desigualdades sociais. Dentre os motivos, podemos apontar que ela foi feita por e para as elites. Além disso, surgiu dentro de uma perspectiva militar. Posteriormente, foi majoritariamente financiada pelo grande capital para resolver seus problemas. E em seu processo de tecnificação, ficou cada vez mais isolada dos problemas da sociedade como um todo (BAZZO, 2015; DAGNINO; NOVAES, 2008; RILEY, 2008). É importante ressaltar que, apesar de esse problema ficar mais evidente nos países do sul, é apenas na aparência que no norte a engenharia e suas tecnologias não geram desigualdades. Um bom exemplo seria pensar o sistema tecnológico dos telefones móveis. Enquanto temos ambientes de trabalho que parecem maravilhosos na Google, nos EUA, ou na Nokia, na Finlândia, essas tecnologias só são viáveis, porque em sua produção material tem as fábricas na China, com trabalhos degradantes, ou a energia que permite os datacenters geradas por belomontes, ou por geradores que se utilizam do petróleo que causa as guerras no Oriente Médio, ou pior ainda, da matéria- prima coltan dos processadores, extraída à custa do sangue de muitos africanos, de estupros e de muita violência. Esse processo da relação entre o desenvolvimento e o subdesenvolvimento, que é inerente ao capitalismo, já explicado por autores como o economista Celso Furtado. Embora a construção tecnológica e a engenharia estejam intimamente relacionadas a esses processos de constituição de desigualdades, essa é uma face recorrentemente – ou propositalmente – escondida do fazer tecnológico. A engenharia é Princípios norteadores da engenharia popular 14 fetichizada como instrumento mágico que poderia livrar a humanidade de todos os seus problemas, e, portanto, como algo inerentemente bom, que não precisa se ocupar de refletir sobre a realidade onde está imersa. Uma das consequências disso é que frequentemente nos cursos de engenharia estudantes se queixam da falta de elementos que os conectem com a prática nas salas de aula. Disciplinas e mais disciplinas teóricas da física, matemática, química, entre outras, os mantêm distantes de uma compreensão da ‘aplicabilidade’ de todo aquele conteúdo e das possibilidades de sua atuação profissional. É nesse contexto que, na América Latina, e especialmente, no nosso caso, no Brasil, surgem diversas iniciativas, inicialmente desarticuladas, de buscar repensar a engenharia a partir de nossa realidade, de nossos problemas. Poderíamos dizer que essas iniciativas buscam apenas cumprir o juramento da engenharia: Prometo que, no cumprimento do meu dever deEngenheiro não me deixarei cegar pelo brilho excessivo da tecnologia, de forma a não me esquecer de que trabalho para o bem do Homem e não da máquina. Respeitarei a natureza, evitando projetar ou construir equipamentos que destruam o equilíbrio ecológico ou poluam, além de colocar todo o meu conhecimento científico a serviço do conforto e desenvolvimento da humanidade. Assim sendo, estarei em paz Comigo e com Deus (BITENCOURT, 2016, p. 65). Ou seu código de ética: Do objetivo da profissão: I) A profissão é bem social da humanidade e o profissional é o agente capaz de exercê-la, tendo como objetivos maiores a preservação e o desenvolvimento harmônico do ser humano, de seu ambiente e de seus valores (CONFEA, 2019, p. 30) Assim, mesmo os manuais de ética e conduta da engenharia sendo permeados de perspectivas que humanizam sua atuação, a realidade de sua prática é muito distante disso. Via de regra os grandes projetos de engenharia têm, não só contribuído para o catastrófico cenário de degradação ambiental em que vivemos, mas também para firmar grandes desigualdades sociais. A ENGENHARIA POPULAR Buscando tensionar esse papel historicamente cumprido pelas engenharias e alimentar outras possibilidades para o fazer ENGENHARIA POPULAR construção e gestão de projetos de tecnologia e inovação social Parte 1: A Engenharia Popular 15 tecnológico, surgem iniciativas que, enfrentando essa ordem colocada, advogam pela construção de engenharias engajadas com a construção de um mundo menos desigual e mais justo para a humanidade como um todo. É nesse cenário que surge a Engenharia Popular (EP). A EP se enquadra em uma luta anticapitalista, pois está claro que o capitalismo não conseguiu construir uma sociedade mais justa, pelo contrário, avançamos cada vez mais para a barbárie (PIKETTY, 2014; COUGHLAN, 2019). Mas também não temos claro qual seria o caminho a seguir. Assim, dentro do que chamamos engenharia popular, existem grupos com diversas perspectivas. E talvez esse seja um elemento importante, pois percebemos que não tem como existir um modelo só de desenvolvimento, que o mundo é diverso, existem diferentes culturas, formas de ver a realidade, e que temos que pensar em soluções plurais, mas articuladas globalmente, para enfrentar a crise global em que estamos vivendo. Dessa forma, escolhemos apresentar a engenharia popular a partir de princípios que consideramos fundamentais nessa luta. Princípios estes que foram construídos a partir de debates coletivos dentro da Rede de Engenharia Popular Oswaldo Sevá (REPOS) (www.repos.net.br). A REPOS é uma rede que foi criada em 2014, pela articulação de uma série de estudantes, docentes e técnicos administrativos (de universidades), das engenharias, que desde 2004 foram constituindo vínculos através da organização dos encontros de Engenharia e Desenvolvimento Social (www.eneds.org.br), e cujos(as) integrantes foram mobilizados(as) ao longo desse período por diferentes práticas de extensão tecnológica (ALVEAR; CRUZ; MIRANDA, 2017). A REPOS (2020, sp) tem como objetivo: articular a engenharia para dialogar com as lutas dos movimentos sociais, grupos populares e trabalhadores(as) organizados(as). Dessa forma, partindo de nossos princípios, pretendemos auxiliar esses movimentos no desenvolvimento e readequação de processos e tecnologias de produção e comunicação, a partir do conhecimento da engenharia contextualizado com as questões sociais, Princípios norteadores da engenharia popular 16 políticas, culturais, ambientais e econômicas específicas de suas realidades. Assim, a rede busca reconhecer que o processo tecnológico não é propriedade ou exclusivo das engenharias. Necessita de outros conhecimentos acadêmicos, e principalmente de outras formas de conhecimento que historicamente são excluídas pela modernidade, como os saberes ancestrais, tradicionais: Temos clareza que as tecnologias não são neutras, pois foram concebidas dentro do sistema capitalista e trazem seus valores em sua concepção. Assim, para que as tecnologias possam caminhar junto com a luta desses movimentos, devem ser concebidas a partir dos valores, crenças, expressões culturais, formas de organização e cultura política desses movimentos, sempre com o cuidado à vida e respeito ao meio ambiente (REPOS, 2020, sp). A seguir, apresentaremos aqueles que consideramos os princípios norteadores da prática da EP: educação popular; autogestão; justiça social e ambiental; feminismo, antirracismo e contra LGBTfobia; cuidado com a vida; valorização da cultura em sua diversidade; reconhecimento e diálogo entre os diversos saberes (populares, tradicionais e acadêmicos). EDUCAÇÃO POPULAR A Educação Popular, como entendida no trabalho de Paulo Freire, é norteadora da atuação da EP. Não apenas porque entendemos a educação como elemento central nos processos de transformação, e assim assumimos que como engenheiros(as) somos também educadores(as), mediadores(as) no processo de definição e construção coletiva da organização produtiva e das tecnologias, mas principalmente porque compartilhamos da compreensão de que as bases populares, marginalizadas pelo sistema socioeconômico, constituem o lugar a partir do qual – e para o qual – é possível transformar a realidade atual (FRAGA; SILVEIRA; VASCONCELLOS, 2011). Assim, a construção de uma consciência política compartilhada e o desenho coletivo de outras possibilidades de ser/estar no mundo são processos entendidos como necessariamente dialógicos, e sobretudo, concretos. E como engenheiros(as) educadores(as) nos cabe o trabalho de nos ENGENHARIA POPULAR construção e gestão de projetos de tecnologia e inovação social Parte 1: A Engenharia Popular 17 colocar à disposição da construção coletiva de apostas tecnológicas contra-hegemônicas, descendo do pretenso pedestal usualmente designado aos conhecedores das técnicas, e nos colocando lado a lado, ombro a ombro, com quem queremos construir novos mundos. Tendo clareza que nosso saber é um, e apenas um, diante de tantos saberes possíveis. AUTOGESTÃO O substrato a partir do qual tem sido possível construir essa noção de EP, ao longo do processo de constituição da REPOS, tem sido, em grande medida, as associações e cooperativas de Economia Solidária. São lugares concretos a partir dos quais tem sido experienciamos essas construções coletivas compartilhadas, de consciência e atuação política, de modos de organização do trabalho e da vida, assim como de outras possibilidades para a tecnologia e a engenharia. Em especial, a autogestão, como princípio de organização não-hierarquizada das relações, sobretudo no ambiente de trabalho, mas também no ambiente da vida comunitária, tem sido peça-chave como instrumento concreto e utópico para repensar a engenharia (FRAGA, 2011). A autogestão, como norte político, nos ajuda a refletir e buscar caminhos de atuação pautado em um constante processo de desconstrução de relações hierarquizadas, e consequentemente, desiguais, não apenas no trabalho, mas também na nossa vida cotidiana, na educação, nas casas, na política etc (WIRTH; FRAGA; NOVAES, 2013). Repensar essas hierarquias nos coloca diante do desafio de reconstruir as formas como organizamos o trabalho, nas cooperativas e associações, por exemplo, assim como as tecnologias que ocupam lugar central na organização desses lugares e suas relações. Usar uma esteira ou uma mesa, usar agrotóxico ou adubação verde, produzir em linha ou em círculo, ter ou não cozinha na cooperativa, tudo isso são decisões que passam necessariamente por uma profunda reflexão sobre quais relações de trabalho queremos fomentar. Buscar a construção da autogestão é, nesse sentido, um guia para que, no cotidiano de nosso trabalho e de nossas vidas, as decisões sejam tomadas na tentativa de des-hierarquizar as relações sociais, e Princípios norteadores da engenharia popular18 assim dar passos concretos na tentativa de construir um mundo mais justo. O princípio de autogestão da EP é discutido em maior profundidade nos capítulos Autogestão, sustentabilidade e replicabilidade de projetos de projetos sociais na engenharia e Projetos de engenharia popular na prática: o que podemos aprender com eles? JUSTIÇA SOCIAL E AMBIENTAL No mesmo caminho, não é possível conceber uma engenharia engajada com a transformação social que não se ocupe de refletir sobre o cenário ambiental catastrófico que construímos para os nossos tempos, baseado em uma relação extremamente hierarquizada entre humanos e aquilo que definimos como natureza, ou mais marcadamente como ‘recursos naturais’, limitando o mundo natural a recursos à disposição das demandas humanas. As recentes catástrofes ambientais, além de serem fruto do modelo de produção e tecnologia que questionamos por meio da EP, atingem desigualmente a humanidade (ACSELRAD; MELLO; BEZERRA, 2009; PORTO; PACHECO; LEROY, 2013). Estudos recentes mostram como no Brasil, por exemplo, a mineração – uma das grandes causadoras de inúmeros crimes ambientais – atinge desproporcionalmente a população branca e não branca, sendo esta última aquela que sofre os piores impactos desses processos, mostrando que o racismo alcança também as questões ambientais (MILANEZ; LOSEKANN, 2016). É nesse sentido que foi cunhado termo racismo ambiental (PACHECO; FAUSTINO, 2013). Sendo assim, é necessário refletir sobre as inúmeras faces dos desastres ambientais, e sobretudo compreender quem são as pessoas envolvidas, sempre nos perguntando para quê e para quem estamos fazendo engenharia. FEMINISMO, ANTI-RACISMO E CONTRA LGBTFOBIA A engenharia além de ser historicamente elitizada, é território branco, é masculinizada e regida pela heteronormatividade, ou seja, supõem e fomenta que a heterossexualidade seja atributo compulsório de nossa ENGENHARIA POPULAR construção e gestão de projetos de tecnologia e inovação social Parte 1: A Engenharia Popular 19 experiência relacional e sexual. Sendo assim, a engenharia e a tecnologia também têm sido instrumentos de manutenção de relações sexistas, racistas, colonialistas e homofóbicas, e questioná-las passa, portanto, por repensar as hierarquizações de gênero, raça e etnia constitutivas de nossos tempos. A evidência mais óbvia disso é a própria composição dos cursos de engenharia atualmente, que seguem sendo majoritariamente ocupados por homens brancos das elites urbanas, seguidos da presença de mulheres brancas da mesma classe social (LOMBARDI, 2005), e que criam um ambiente extremamente hostil e austero para pessoas que não compartilhem com eles o mesmo lugar social. Além disso, depois de formadas, estas últimas continuam a enfrentar mais dificuldades no ambiente de trabalho hostil (BATISTA, 2018). Por outro lado, embora um aumento do acesso e da diversidade nos cursos seja necessário, apenas essa disputa não é suficiente. A própria estrutura das engenharias precisa ser repensada. Os livros, as disciplinas, as ementas, as linguagens dos(as) professores(as), os sistemas de horários, os critérios para bolsas, as tecnologias usadas e construídas, tudo isso carrega traços das hierarquias em disputa, e para repensar a engenharia, tudo isso precisa ser revisto. O exemplo da webcam desenvolvida pela HP que era capaz de fazer o reconhecimento facial dos(as) usuários(as), mas apenas daqueles(as) com a pele branca, é um daqueles casos icônicos de como a engenharia reproduz os valores, neste caso racistas, da sociedade onde se desenvolve. No entanto, se formos mais a fundo nessa questão, podemos perceber que as rotas do desenvolvimento tecnológico como conhecemos é toda permeada pelos valores hierarquizados que compõem nossa realidade social. CUIDADO COM A VIDA Ao pensar a EP nos propomos também a refletir sobre os desequilíbrios e as desigualdades geradas por uma engenharia voltada a pensar apenas os espaços de produção, e que se cega às demandas para sobrevivência e cuidados de nossa espécie (SILVA, Princípios norteadores da engenharia popular 20 2014; VASCONCELLOS, 2017), disputando para que o cuidado com a vida (ou seja, pensar para além do ambiente de trabalho, como o ambiente doméstico, chamado de ambiente reprodutivo, onde acontece o cuidado da casa, dos filhos, da alimentação etc) tenha lugar central nas apostas políticas que construímos na engenharia. Ou seja, alegamos que a hierarquia entre produção e reprodução da vida, própria do sistema capitalista, seja também tensionada, e repensada, colocando o cuidado com a vida como princípio constitutivo da EP. VALORIZAÇÃO DA CULTURA EM SUA DIVERSIDADE É importante entender que outra separação artificial da modernidade é a separação entre economia e vida (SHIVA, 1995). Isso fica evidente nas populações tradicionais, como indígenas, quilombolas e caiçaras, para as quais a pesca, por exemplo, não é só uma atividade produtiva para gerar renda, mas também é uma forma de vida, associada a festas, danças, forma de se relacionar com outras pessoas etc. Não é incomum, em processos de licenciamento ambiental, quando se vai construir uma grande indústria ou um grande empreendimento que vai afetar uma atividade produtiva, oferecer como contrapartida capacitação / requalificação profissional para que os afetados aprendam uma nova profissão. O que vemos muitas vezes é adoecimento mental, depressão, e inúmeros problemas sociais nas populações afetadas, que se originam do fato de as pessoas que estão propondo soluções aos problemas trazidos pelo empreendimento para esses grupos não entenderem que o empreendimento produz a destruição da cultura desses grupos (BONFIM, 2011; MARQUES, 2018). Assim, projetos de engenharia popular devem buscar reconhecer essas culturas de forma ampla. Mesmo em regiões urbanas. Por exemplo, quando falamos da economia popular, temos que entender que não é possível separar o trabalho da vida, a atividade profissional da vida familiar. Que muitos empreendimentos populares não são simplesmente um negócio, mas são formas de produzir e reproduzir a vida de maneira familiar e comunitária. Não é por nada que, muitas vezes, algumas qualificações de base empreendedora, que pregam a separação ENGENHARIA POPULAR construção e gestão de projetos de tecnologia e inovação social Parte 1: A Engenharia Popular 21 entre o negócio e a família, uma gestão eficiente, a busca pelo crescimento e profissionalização, levam a conflitos e ao fim de diversos desses empreendimentos. RECONHECIMENTO E DIÁLOGO ENTRE OS DIVERSOS SABERES Historicamente, a ciência foi construída em forte diálogo com o colonialismo, num processo de assassinato físico e simbólico dos conhecimentos e culturas daqueles que eram vistos como outros, não-civilizados, bárbaros, sem alma etc. Nesse sentido, Boaventura de Sousa Santos (1994) e Suely Carneiro (2005) usam o termo epistemicídio: o epistemicídio se constituiu e se constitui num dos instrumentos mais eficazes e duradouros da dominação étnica/racial, pela negação que empreende da legitimidade das formas de conhecimento, do conhecimento produzido pelos grupos dominados e, consequentemente, de seus membros enquanto sujeitos de conhecimento (CARNEIRO, 2005, p. 96) Dessa forma, esse é um desafio imenso, pois os engenheiros e engenheiras são muitas vezes formados(as) para se colocarem como experts, com um conhecimento matemático, objetivo, racional, verdadeiro, único, para resolver os problemas da sociedade. Assim, na prática, exemplos interessantes podem ser vistos em processos de assessoria a habitação popular, no qual engenheiros(as) e arquitetos(as) populares pensam o projeto das casas em diálogo com os(as) moradores(as) e os(as) pedreiros(as). Tanto da perspectiva que ninguém melhor do que a pessoa que habitará aquela casa para saber o que precisa nela, mas tambémreconhecendo que os(as) pedreiros(as) e mestres de obra têm um conhecimento prático (que, em parte, não deixa de ser teórico também, pois ninguém faz sem refletir e acumular conhecimento por meio das inúmeras práticas e tentativas) que muitas vezes os(as) engenheiros(as) não têm. Um caso muito interessante a ser buscado é o Coletivo Usina de SP (http://www.usina-ctah.org.br/) e das cooperativas de habitação por ajuda mútua no Uruguai (https://www.fucvam.org.uy/). Princípios norteadores da engenharia popular 22 Outro exemplo interessante é a agroecologia. Esta pode ser entendida com uma ciência construída a partir do diálogo entre o saber tradicional e o conhecimento acadêmico. Por meio do resgate do conhecimento ancestral de como produzir sem o uso de venenos, com pouca maquinaria, mas combinando com conhecimento atuais de biologia, engenharia, geografia etc. para dar conta de novas questões climáticas, novas pragas etc. (NEDER; COSTA, 2014). CONSIDERAÇÕES FINAIS Apresentamos ao longo deste capítulo os princípios que têm norteado a organização da REPOS e da Engenharia Popular que procuramos fomentar e fortalecer a partir dela. O fazemos não com intuito de que isso funcione como um manual prático do ‘como fazer EP’, mas sim que sirva de base inicial de reflexão e crítica, quando nos propomos a fazer engenharia de modo engajado. Assumimos, talvez pretensiosamente, que aquilo que acumulados ao longo desses anos possa ser inspiração para outros grupos que compartilham conosco da utopia de que é possível que a engenharia seja instrumento do necessário processo de transformação radical da nossa sociedade. Falamos aos(às) engenheiros(as) dispostos a construir coletivamente a engenharia popular. Uma engenharia popular que só é possível, se formos capazes de dialogar com o povo e se colocarmos o saber que temos à prova, e ao serviço, das demandas populares por transformação social. REFERÊNCIAS ACSELRAD, H.; MELLO, C. C. A.; BEZERRA, G. N. O que é justiça ambiental? Rio de Janeiro: Garamond, 2009. ALVEAR, C. A. S.; CRUZ, C. C.; MIRANDA, P. B. O campo da engenharia e desenvolvimento social no Brasil a partir da análise dos anais dos ENEDS. Revista Tecnologia e Sociedade, v. 13, n. 27, p. 188-207, jan./abr. 2017. BATISTA, M. da. S.; ARAUJO, F. S.; LARICCHIA, C. R.; NEPOMUCENO, V. A. Aspectos das influências do gênero nas relações de trabalho de engenheiras de produção formadas numa instituição federal. Revista Tecnologia e Sociedade, v. 14, n. 32, p. 173-189, Ed. Especial. 2018. BAZZO, W. A. Ciência, tecnologia e sociedade: o contexto da educação tecnológica. 5a edição. Florianópolis: Editora da UFSC, 2015. ENGENHARIA POPULAR construção e gestão de projetos de tecnologia e inovação social Parte 1: A Engenharia Popular 23 BITENCOURT, S. M. Existe o outro lado do rio? um debate sobre educação, gênero e engenharia. Curitiba: Appris Editora e Livraria Eireli-ME, 2016. BONFIM, T. E. Saúde mental e sofrimento psíquico de indígenas Guarani-Mbyá de São Paulo: um relato de experiência. 2011. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo. CARNEIRO, A. S. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. 2005. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo, São Paulo. 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Neste capítulo, apresentaremos um resumo de alguns dos principais marcos da constituição desses tipos de práticas engajadas da engenharia no Norte e no Sul globais. Ofereceremos também breves explicações de alguns entendimentos importantes que estudiosos da tecnologia desenvolveram a partir da década de 1980. Pelo espaço que temos disponível aqui, essa apresentação será necessariamente introdutória. Para aqueles/as que desejarem se aprofundar nessa reflexão, as REFERÊNCIAS oferecidas são um dos caminhos para isso. PROJETO PARTICIPATIVO, TECNOLOGIA E SOCIEDADE A incorporação ou escuta das pessoas que usarão ou serão afetadas por algum desenvolvimento técnico ao projeto deste é algo relativamente recente. No Norte global, ela emerge no final da década de 1960. Existe um disparador duplo desseprocesso lá: o fim dos anos de ouro de crescimento econômico do pós-II Guerra (que faz as pessoas se tornarem mais criteriosas com respeito ao que comprarão); e a progressiva tomada de consciência de que o desenvolvimento técnico-científico pode produzir morte e devastação (cujo momento emblemático é o lançamento de Silent Spring, de Rachel Carson, em 1962) (DE VRIES, 2009). Engenharia e transformação social 26 Esse movimento pôs em xeque não apenas o modus operandi dominante na indústria, nos laboratórios de pesquisa e desenvolvimento e nas áreas técnicas dos governos, como abalou uma crença grandemente estabelecida então, a de que o desenvolvimento tecnológico derivaria, de forma dedutiva, do desenvolvimento científico; a famosa compreensão que assumia que a engenharia seria ciência aplicada (DE VRIES, 2009). Essa incorporação ou escuta das pessoas que usarão, operarão ou serão afetadas pela tecnologia a ser produzida teve, inicial e majoritariamente, uma intenção econômica: não se investir dinheiro no desenvolvimento de produtos que não teriam êxito comercial. Gradativamente, no entanto, ela possibilitou que práticas projetivas comprometidas com o empoderamento dos trabalhadores, ou, o que seria dizer o mesmo, com a democratização dos espaços de trabalho, surgissem. Esse foi o caso da tradição dos projetos participativos, de origem Escandinava, que surge já na década de 1970. Os projetos participativos vão sendo construídos na perspectiva de, em uma Escandinávia fortemente sindicalizada, proceder ao processo de informatização dos espaços de trabalho, de modo não apenas a incorporar a expertise dos trabalhadores nesse design, mas também de conformar um espaço laboral melhor para eles (em termos ergonômicos e existenciais), e no qual suas opiniões tivessem peso para as decisões a serem tomadas (VELDEN; MÖRTBERG, 2015; ROBERTSON; SIMONSEN, 2013). Atualmente, práticas de projetos participativos ocorrem no mundo inteiro, sendo adotadas em uma grande variedade de projetos técnicos, não apenas naqueles relativos a artefatos ou processos produtivos. De igual modo, várias de suas aplicações perderam o vínculo inicial com o empoderamento dos coprojetistas (i.e., os usuários, operadores e/ou pessoas potencialmente afetadas que são incorporadas ao esforço projetivo), operando em uma perspectiva mercadológica de design de uma solução vendável e aceitável por seus futuros compradores e pela sociedade em geral (VELDEN; MÖRTBERG, 2015; ROBERTSON; SIMONSEN, 2013). ENGENHARIA POPULAR construção e gestão de projetos de tecnologia e inovação social Parte 1: A Engenharia Popular 27 Seja como for, a tradição dos projetos participativos evidencia três aspectos centrais e absolutamente importantes da tecnologia e do processo de seu desenvolvimento. Primeiro, qualquer desafio técnico é passível de ser resolvido de distintas maneiras. A informatização dos espaços de trabalho, por exemplo, pode se dar incorporando os conhecimentos dos trabalhadores e produzindo soluções grandemente amigáveis à operação por essas pessoas, ou pode partir de cima para baixo e exigir um enorme esforço ou reciclagem dos trabalhadores para serem operadas. Isso, que se chama de subdeterminação (FEENBERG, 2019, caps. 1 e 4), pode ser visto em toda parte: no desafio técnico da agricultura (que pode ser resolvido segundo uma perspectiva agroecológica ou do agronegócio); no desafio técnico do transporte urbano (que pode ser resolvido com preferência ao transporte público ou aos carros); no desafio da gestão dos resíduos sólidos urbanos (que pode privilegiar a reciclagem ou a incineração, por exemplo); etc. O segundo aspecto evidenciado pela tradição dos projetos participativos é o de que, para escolhermos, dentre as soluções possíveis, aquela que será implementada, necessariamente lançamos mão de valores ético-políticos (como controle social ou empoderamento, inclusão ou exclusão, justiça social ou desigualdade, harmonização com ou submissão da natureza etc.). A informatização empoderadora dos espaços de trabalho escandinavos não se impõe por ser eficiente, ao passo que a desempoderadora não o seria. Na verdade, ambas as soluções seriam (ou poderiam ser) eficientes, mas se optou pela primeira, em função de a democratização ser um valor inegociável para os atores envolvidos. Inúmeros são os exemplos históricos desse tipo de coisa, desde o design das bicicletas (PINCH; BIJKER, 1986), da infraestrutura urbana acessível a cadeirantes (WINNER, 2017), de viadutos propositalmente baixos (idem), do trabalho infantil nas tecelagens inglesas e do projeto de caldeiras mais seguras nos Estados Unidos (FEENBERG, 2019), até tecnologias menos ou mais Engenharia e transformação social 28 sustentáveis ecologicamente (FEENBERG, 2019) e procedimentos de teste clínico de medicamentos (COLINS; PINCH, 1998, cap. 7). Ou seja, o desenvolvimento tecnológico em geral, e a prática da engenharia, em particular, são necessariamente conformados pelos valores ético-políticos dos atores com poder de decisão nesses processos. A sociedade, nesse sentido, conforma ou determina, em certo grau, a tecnologia que produzimos. E isso não é algo negociável. Sem valores ético-políticos balizadores, simplesmente não teríamos como escolher dentre as várias soluções técnicas possíveis para um mesmo desafio (p.e., uma tecnologia mais poluidora e uma menos). Por fim, o terceiro aspecto que os projetos participativos evidenciam é que a tecnologia, de sua parte, também conforma a sociedade. Com efeito, as soluções de informática produzidas na Escandinávia dos anos 1970 geravam, a partir da sua mera utilização, um espaço de trabalho no qual o conhecimento e as opiniões dos trabalhadores tinham lugar central. De igual modo, cidades sem rampas de acesso para cadeirantes interditam a circulação deles por elas; viadutos que não permitem a passagem de ônibus impedem que os usuários destes acessem certos espaços; tecnologias menos sustentáveis ecologicamente produzem degradação ambiental; linhas de montagem produzem desqualificação profissional e desempoderamento dos trabalhadores etc. Ou seja, tecnologia e sociedade se conformam mutuamente em certo grau. Elas, na prática, constituem os dois lados de uma realidade indissociável; uma realidade que não é social e técnica separadamente, mas que é sociotécnica. Por essa razão, qualquer luta política para se transformar o modo como vivemos em termos coletivos (e mesmo as possibilidades de subjetivação, de construção de sentido e identidade pessoais) precisam ser também lutas por se transformar a base tecnológica disponível. Ou seja, qualquer outro mundo possível requererá uma tecnologia diferente da convencional ou dominante hoje, que é aquela que reforça ou emula, por sua mera operação, os valores hegemônicos que a conformam e selecionam. ENGENHARIA POPULAR construção e gestão de projetos de tecnologia e inovação social Parte 1: A Engenharia Popular 29 No Norte global, os projetos participativos são um modo de se buscar dar esses passos transformadores. O que o Sul global oferece para esse mesmo fim? É a isso que nos voltamos agora. TECNOLOGIA APROPRIADA, TECNOLOGIA SOCIAL E ENGENHARIA ENGAJADA Na América Latina, assim como em boa parte dos países periféricos, práticas questionadoras do status quo e que contribuem com o empoderamento dos coprojetistas ganham força sobretudo a partir do final da década de 1990. Para além da importação e adaptação de práticas equivalentes às do Norte global (como a dos projetos participativos), há também poderosas abordagens locais, várias das quais emergem como desdobramento crítico daquilo que ficou conhecido como movimento da tecnologia apropriada. Em linhas muito gerais, o movimento da tecnologia apropriada (TA) se inicia ou se inspira no resgate do uso da roca tradicional, por Gandhi, na Índia dos anos 1920. Emmeio à luta não violenta encabeçada por Gandhi contra a dominação inglesa sobre seu país, a Charkha, uma tecnologia de fácil uso, baixo custo de implementação e familiar à cultura indiana possibilitava uma forma de o povo fazer frente à metrópole europeia, deixando de consumir os produtos da poderosa indústria têxtil que os ingleses mantinham no país (DAGNINO et al., 2004). A TA se desenvolve primeiro na Índia e na China, vindo, apenas na década de 1960, a se expandir pela América Latina (THOMAS, 2009; SMITH et al., 2017). Diferentemente da roca de Gandhi, uma tecnologia tradicional na Índia, o movimento se caracterizou, grosso modo, pela transferência de soluções tecnológicas maduras nos países centrais para os países da periferia, aos quais elas eram oferecidas em uma versão simplificada, de baixo custo e de fácil operação (e, em muitos casos, também de fácil construção e/ou manutenção) pela população local (THOMAS, 2009). Constituíram exemplos desse movimento tecnologias de construção civil (com processos de construção de casas, sistemas de irrigação, estradas, saneamento básico etc.), de geração de Engenharia e transformação social 30 energia (como os biodigestores e soluções de energia solar) e de produção agrícola (como as primeiras práticas agroecológicas) (THOMAS, 2009; SMITH et al., 2017). Ainda que, em várias situações, essas transferências se processaram de cima para baixo, sem diálogo com os grupos locais, nem adaptações a algumas das especificidades de seus territórios, valores e cosmovisões, em outras, a assistência técnica provida operou quase como pretexto para a organização e a articulação política das comunidades, em um tempo no qual boa parte da América Latina vivia sob ditaduras militares (SMITH et al., 2017). A TA, de todo modo, era majoritariamente financiada por organismos internacionais, como o Banco Internacional de Desenvolvimento (BID) e o USAID. Com isso, com a virada neoliberal que o mundo experimenta, capitaneada por Ronald Regan (EUA) e Margareth Thatcher (Inglaterra), a partir da década de 1980, essas iniciativas param de receber verbas e, gradativamente, vão desaparecendo (exceto na Índia e na China) (THOMAS, 2009; SMITH et al., 2017). Como, porém, fome e miséria não desaparecem do mundo, a segunda metade da década de 1990 testemunhará um ressurgimento de iniciativas voltadas à mitigação desses problemas e à transformação social. É no bojo desse processo que eclode, na América Latina, a tecnologia social (THOMAS, 2009). A tecnologia social (TS) pode ser descrita como “conjunto de técnicas e metodologias transformadoras, desenvolvidas e/ou aplicadas na interação com a população e apropriadas por ela, que representam soluções para inclusão social e melhoria das condições de vida” (ITS, 2004, p. 26). Como critérios inegociáveis para a TS estão o controle democrático sobre a técnica, a autogestão e o empoderamento de trabalhadores e usuários (DAGNINO, 2009). Em relação à tecnologia apropriada, a TS assume explicitamente a crítica à tecnologia convencional e à visão de mundo e valores (tecnocrático-capitalistas) que a conformam e são por ela reforçados sociotecnicamente, assim como o compromisso com o empoderamento dos grupos com os quais ela é co-construída. ENGENHARIA POPULAR construção e gestão de projetos de tecnologia e inovação social Parte 1: A Engenharia Popular 31 Um modo específico de se produzir TS é aquele engendrado pela engenharia popular (EP), apresentada no capítulo anterior Princípios norteadores da engenharia popular. Ao lado da TS e da EP, múltiplas outras abordagens técnicas, no Sul e no Norte globais, têm pretensões em algum grau transformadoras do status quo. Esse é o caso, por exemplo, da indiana Honey Bee Network (SMITH et al., 2017, cap. 8), do movimento maker e hacker (idem, cap. 6), da engenharia humanitária (do tipo desenvolvido pelos Engenheiros sem Fronteiras e pelo Teto ou Habitat para a Humanidade, por exemplo) e do empreendedorismo social (do tipo promovido, por exemplo, pela Enactus). Em comum, todas essas práticas assumem um compromisso com a responsabilidade social, com a melhoria das condições de vida das pessoas, prioritariamente, das mais vulneráveis. É por isso que se convencionou englobá-las todas sob o rótulo de engenharia engajada (KLEBA, 2017). Há, entretanto, importantes diferenças entre as distintas práticas de engenharia engajada. Isso tem a ver, por exemplo, com o grande horizonte ou objetivo buscado com tais iniciativas, que vai desde prover acesso a bens e serviços a sonhar e construir outro mundo possível, passando por aprimorar a ordem sociotécnica a partir da cosmovisão hegemônica estabelecida (KLEBA, 2017). Além disso, e como reflexo ou desdobramento do horizonte assumido, o grau ou tipo de crítica à tecnologia convencional, ao modo hegemônico de se praticar e ensinar engenharia, a políticas públicas de ciência e tecnologia, às cosmovisões e sonhos de mundo vigentes etc. pode variar grandemente de uma prática engajada para outra. Para algumas dessas práticas, inclusive, a estreita relação entre tecnologia e sociedade (que, como vimos, conformam-se mutuamente em certo grau) passa despercebida ou não problematizada, o que traz impactos evidentes aos tipos ou graus de transformação social que elas podem de fato promover. Engenharia e transformação social 32 ENGENHARIA POPULAR No que concerne especificamente à engenharia popular, a atuação técnica, como vimos no capítulo anterior, não tem apenas a pretensão de colaborar com o grupo popular, na construção de uma solução que responda às suas necessidades, incorpore os seus saberes e valores e contribua com o seu empoderamento. Em paralelo e como condição para tudo isso, a EP tem um compromisso inegociável com a educação popular, entendida como processo não apenas de ganho de consciência crítica com relação à ordem sociotécnica instituída, mas também de sonho e gestação de outra ordem possível. Dessa forma, as práticas da EP, seja junto a empresas recuperadas por trabalhadores, cooperativas de catadores, empreendimentos agroecológicos populares, iniciativas de economia solidária etc., têm a pretensão de se oferecer como um experimento de utopia, como a antecipação e a materialização sociotécnica, ainda que em certa medida precária, desse outro mundo possível. Em termos históricos, a engenharia popular começa a se constituir no início dos anos 2000, sendo a articulação de três frentes que foram incentivadas ao longo dos governos Lula e Dilma: economia solidária; tecnologia social; e extensão universitária (FRAGA et al., 2020). O movimento da economia solidária surge, no Brasil, no início dos anos 1990, no contexto das altas taxas de desemprego, fome e pobreza de então. Sua primeira iniciativa concreta foi a Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e pela Vida, lançada em março de 1993 por Hebert de Souza, o Betinho. Em 1994, a Ação lança a campanha Natal Sem Fome. Em 1995, é lançada a Ação pelo Emprego e o Desenvolvimento. Contudo, é apenas 2001, com a primeira edição do Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, que as diferentes forças e iniciativas desse campo encontram fórum adequado para construir uma unidade. A partir disso, a economia solidária será gradativamente identificada com iniciativas produtivas coletivas (cooperativas, associações e grupos informais) que operam de acordo com os princípios de autogestão, cooperação e solidariedade (FRAGA et al., 2020). ENGENHARIA POPULAR construção e gestão de projetos de tecnologia e inovação social Parte 1: A Engenharia Popular 33 Em 2003, no primeiro ano do primeiro governo Lula, é criado o Programa Nacional de Incubadoras (Proninc), que tinha como um de seus objetivos prover assistência técnica a empreendimentos de economia solidária, por meio da extensão universitária. Nesses termos, o Programa atuava em sintonia coma Secretaria Nacional de Economia Solidária, que foi criada nesse mesmo ano. Ao mesmo tempo, o Proninc oferecia um âmbito para a atuação da extensão universitária que satisfazia as orientações por enraizamento da extensão no entorno das instituições de ensino superior e pela descentralização dos processos de concepção e execução das atividades extensionistas, conforme preconizava o Programa de Extensão Universitária, que foi reativado também em 2003 (FRAGA et al., 2020). A engenharia popular, no modo como seus primeiros praticantes a realizarão, será uma atividade executada a partir da extensão universitária, tendo como objetivo a co-construção, junto a grupos populares, de tecnologias sociais, e tendo como horizonte ou ideal um outro mundo possível, norteado pelos princípios da economia solidária. [Em si, o desenvolvimento de tecnologia social será incentivado pela Secretaria Nacional de Ciência e Tecnologia para o Desenvolvimento Social, criada no primeiro governo Lula (FRAGA et al., 2020)]. A EP, de todo modo, não emerge pronta. Seu processo de constituição, que segue sendo (re)feito, estará intimamente atrelado aos Encontros Nacionais de Engenharia e Desenvolvimento Social (ENEDS), que acontecem anualmente desde 2004, e às versões regionais do encontro (EREDS), que acontecem desde 2011. Esses eventos, que são abordados com mais profundidade no capítulo Eventos em Engenharia Popular, serão o equivalente, para a EP, do Fórum Social Mundial, para a economia solidária. Neles: diversos núcleos e projetos de extensão afinados com uma busca comum por outra ordem sociotécnica encontrarão espaço para trocarem experiência, aprimorarem suas práticas e construírem uma identidade comum; pesquisas acadêmicas relativas a temas caros à EP encontrarão audiência crítica interessada; estudantes simpáticos ao ideário da Engenharia e transformação social 34 EP, mas desconhecedores dela, terão oportunidade de conhecê-la um pouco; e, talvez sobretudo, todos poderão nutrir e (re)acender, em si e uns nos outros, a chama da união, solidariedade e compromisso com esse outro mundo possível (FRAGA et al., 2020). Em 2014, e como desdobramento dos ENEDS/EREDS, constitui-se a Rede de Engenharia Popular Oswaldo Sevá (REPOS), que congrega todos os núcleos que se auto identificam como de engenharia popular. CONSIDERAÇÕES FINAIS Como vimos, múltiplos são os caminhos de, partindo-se da prática da engenharia, contribuir-se com a transformação da realidade sociotécnica em que vivemos. Cada um deles tem potenciais e limites específicos, boa parte dos quais atrelada ao objetivo de fundo que assumem (prover acesso a bens e serviços, oferecer melhorias à ordem instituída ou colaborar com a construção de outro mundo possível). No que concerne à engenharia popular, cuja prática é analisada em maior detalhe ao longo dos capítulos Princípios norteadores da engenharia popular e Construir alternativas tecnológicas com as classes populares: engenharia, educação popular e extensão universitária, o experimento de utopias é inegociável. Isso marca profundamente as abordagens que ela desenvolve. 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Engenharia e transformação social 36 ENGENHARIA POPULAR construção e gestão de projetos de tecnologia e inovação social Parte 1: A Engenharia Popular 37 Construir alternativas tecnológicas com as classes populares: engenharia, educação popular e extensão universitária Lais Fraga, Unicamp, REPOS Bruna Vasconcellos, UFABC, REPOS Desde o início dos anos 2000 temos ouvido falar com frequência de tecnologia social (FBB, 2004). Ainda que não seja um tema que tenha destaque na grande mídia, existem diversas experiências, encontros acadêmicos e não acadêmicos, uma significativa produção bibliográfica (livros, revistas, artigos, teses e dissertações), políticas públicas de ciência e tecnologia para inclusão social (como a Secretaria Nacional de Ciência e Tecnologia para a Inclusão Social – SECIS), o banco e o prêmio de tecnologias sociais organizados pela Fundação Banco do Brasil entre outras diversas iniciativas. Desde então, nossa perspectiva sobre o tema é de crítica e autocrítica daquilo que já realizamos e do que podemos realizar a partir da relação entre universidade e sociedade, mais especificamente da atuação com grupos populares e movimentos sociais. Temos também insistido na necessidade de conectar essas iniciativas com a formação e atuação de engenheiros e engenheiras para que os processos já existentes ganhassem em qualidade e complexidade e para que os/as profissionais dessa área conhecessem uma possibilidade alternativa de atuação para além da grande empresa privada. Nesta perspectiva, apresentamos reflexões a partir do nosso envolvimento tanto com a Tecnologia Social quanto com a Engenharia Popular, para pensar as possibilidades de atuação a partir da extensão e da Educação Popular. Essa escolha nos permite compartilhar alguns acúmulos, na esperança de que esses processos possam ser continuados, criticados e melhorados. Almejamos contribuir para o fortalecimento dos processos de construção de uma alternativa tecnológica baseada em valoresConstruir alternativas tecnológicas com as classes populares 38 como a solidariedade, a justiça social, a igualdade de gênero, o combate ao racismo, o cuidado com a vida. Esse texto está organizado em três partes, além dessa introdução e das considerações finais. Na primeira resgatamos a ideia de alternativa tecnológica e como isso aparece em alguns momentos de nossa história. Na segunda, abordamos a temática da extensão e atuação da engenharia a partir dela. Por fim, abordamos a educação popular como perspectiva necessária para pensarmos nossa atuação como engenheiros/as a partir da extensão universitária. As reflexões apresentadas tratam especialmente do livro Extensão ou comunicação? de Paulo Freire, que acreditamos ser um bom ponto de partida para coletivos de engenharia popular refletir sobre suas práticas. Um exemplo do engajamento do que propomos neste capítulo é apresentado no capítulo Projetos de engenharia popular na prática: o que podemos aprender com eles? que traz uma perspectiva dialógica da relação entre engenheiros/as e classes populares. O PONTO DE PARTIDA: A CONSTRUÇÃO DE ALTERNATIVAS TECNOLÓGICAS A ideia de construção de alternativas tecnológicas, ou seja, do desenvolvimento de sistemas sociotécnicos que se contraponham à tecnologia convencional, não é uma novidade. A tecnologia moderna, essa que conhecemos e que foi disseminada pelo mundo a partir da primeira Revolução Industrial, enfrentou historicamente inúmeros processos de resistência contra sua implementação. Temos o clássico exemplo dos ludistas que destruíam as máquinas nos seus lugares de trabalho na Grã- Bretanha de final do século XVIII; e nos mais diversos territórios onde se impunham violentamente esses processos produtivos – através das invasões coloniais – haviam populações que se organizavam para manter e melhorar sistemas tradicionais de produção e desenvolvimento tecnológico. Os quilombos no Brasil, e a resistência indígena em território latino americano podem ser exemplos desses casos. Segundo os registros mais recorrentes sobre o tema, a ideia de tecnologia social emerge na América Latina inspirada no ENGENHARIA POPULAR construção e gestão de projetos de tecnologia e inovação social Parte 1: A Engenharia Popular 39 movimento da tecnologia apropriada (TA) dos anos 1960-1970 (VASCONCELLOS, 2017). Um movimento que, em linhas gerais, construía caminhos para a implementação de tecnologias mais adequadas à realidade das zonas empobrecidas nos continentes africano e asiático, sobretudo na área rural. Nesse sentido, ações e programas internacionais de desenvolvimento eram desenhados para que os países do norte ampliassem o leque de oferta tecnológica considerada adequada aos países do sul, visando minimizar as precárias condições socioeconômicas desses territórios (VASCONCELLOS; DIAS; FRAGA, 2017). Esse movimento, por sua vez, surge inspirado na atuação de Gandhi no movimento nacionalista indiano de começo do século XX, que toma uma roca de fiar, a charkha, como principal símbolo de resistência ao Império Britânico. Ao disseminar uma tecnologia como forma de resistência socioeconômica ao Império, o movimento indiano teria difundido aquela que seria a primeira tecnologia apropriada (HERRERA, 2010). No Brasil dos anos 2000, parte dessa crítica ao modelo hegemônico de desenvolvimento tecnológico se organiza ao redor do conceito de Tecnologia Social. Esse movimento que se consolida no país especialmente ao final dos anos 1990, começo dos anos 2000, se inspira em outras experiências históricas que de modo semelhante se organizaram para evidenciar a necessidade da construção de alternativas tecnológicas. A ideia de Tecnologia Social surge, por sua vez, inspirado nessas experiências históricas, nas noções construtivistas da tecnologia que ganham espaço no meio acadêmico do país, do Pensamento Latino Americano em Ciência, Tecnologia e Sociedade e também respaldadas pelas ações concretas com grupos populares auto-organizados (DAGNINO; BRANDÃO; NOVAES, 2004). Assim, embora o conceito possa ter muitas definições, destacamos aqui seu caráter crítico ao sistema tecnológico hegemônico, e sua importância ao longo das duas últimas décadas na disputa por políticas de construção de tecnologias adequadas às necessidades da auto-organização popular e seu olhar atento às resistências sociotécnicas Construir alternativas tecnológicas com as classes populares 40 construídas pelos movimentos sociais. Não menos importante são as leituras mais recentes que trazem abordagens feministas e anti- racistas como parte integrante dessas críticas. Concebemos, vale destacar, a ideia de alternativa tecnológica, ou alternativa sociotécnica, como propõe Vasconcellos (2017), compreendida como um fenômeno amplo de busca por alternativas à tecnologia moderna, hegemônica desde as revoluções industriais. Nessa chave de leitura, Tecnologia Social, Tecnologia Apropriada, resistência tecnológica, desobediência tecnológica são fenômenos mais restritos e a ideia de alternativa tecnológica contém essas experiências. Para nós, a Engenharia Popular deve estar engajada na construção de alternativas tecnológicas. Essa afirmação tem como ponto de partida a ideia de que existem trajetórias tecnológicas distintas (e muitas vezes concorrentes) que precisam ser estudadas, compreendidas e apresentadas aos grupos populares com os quais trabalhamos. E esta não é uma afirmação simples, uma vez que escolher entre as diferentes trajetórias é uma ação técnica e política e demanda uma relação dialógica com os grupos populares e movimentos sociais. Mas a mudança tecnológica não é orientada apenas pela eficiência, isto é, pela melhor maneira de resolver um problema? Não seria apenas resolver um problema social ou ambiental da melhor maneira? A ideia de Tecnologia Social parte da negação dessa perspectiva. É exatamente por isso que se propõe uma outra forma de desenvolver tecnologia, uma alternativa tecnológica. Quando olhamos para propostas opostas de desenvolvimento tecnológico como o agronegócio e agroecologia, o software proprietário e o software livre, coleta seletiva solidária e incineração, entre tantos outros exemplos, fica mais clara a ideia de rotas ou trajetórias tecnológicas concorrentes (FRAGA, 2017). E é aí que entra a importância de compreender a tecnologia para além da perspectiva da engenharia (pelo menos da engenharia convencional). Existem muitos outros fatores que influenciam o desenvolvimento de uma tecnologia como aspectos ENGENHARIA POPULAR construção e gestão de projetos de tecnologia e inovação social Parte 1: A Engenharia Popular 41 sociais, ambientais, éticos, estéticos, etc para além de aspectos considerados puramente técnicos. EXTENSÃO: ATUAR A PARTIR DA UNIVERSIDADE Muitos dos coletivos de engenharia ou multidisciplinares que atuam no desenvolvimento de Tecnologia Social são coletivos compostos por estudantes universitários. Geralmente são grupos que desenvolvem atividades de extensão universitária, isto é, de interação da universidade com a comunidade. Atuar a partir da universidade traz alguns limitantes, mas também algumas potencialidades. A missão de formar pessoas da universidade nos possibilita experimentar diversas maneiras de atuação, como, por exemplo, a atuação da engenharia com grupos populares e movimentos sociais. Mas vamos nos ater a uma segunda missão da universidade que é produzir conhecimento. Quando atuamos na extensão estamos envolvidos com outros modos de conhecimento que não apenas o científico. O conhecimento tradicional, popular, das mulheres, dos quilombos, dos indígenas, dos/as catadores/as, dos/as agricultores/as, do sujeito periférico se faz presente e transforma aquilo que fazemos na universidade. O livro Extensão ou comunicação? de Paulo Freire é um marco no debate sobre extensão. O educador foi também um extensionistae já no exílio critica duramente a ideia de estender o conhecimento à sociedade. Freire (1983) afirma que o termo extensão se encontra em relação significativa com transmissão, entrega, doação, messianismo, mecanicismo, superioridade (do conteúdo de quem entrega), inferioridade (dos que recebem), invasão cultural, etc. A invasão cultural se dá “através do conteúdo levado, que reflete a visão do mundo daqueles que levam, que se superpõe à daqueles que passivamente recebem” (FREIRE, 1983, p. 13). Por isso, Paulo Freire qualifica a ação de um extensionista que transfere conhecimento como uma ação que nega o outro como ser de transformação do mundo, isto é, como alguém incapaz de transformar sua própria realidade. Construir alternativas tecnológicas com as classes populares 42 Destacamos duas ideias centrais para nossa argumentação: a invasão cultural e a passividade do sujeito que recebe o conhecimento. A partir da primeira, decorrem dois argumentos fundantes da transferência de conhecimento: a) a ação de estender conhecimentos estende também normas e valores, isto é, visão de mundo; e b) considera-se que tanto conhecimento quanto a visão de mundo de quem transfere são superiores aos de quem recebe. A segunda ideia, a passividade do sujeito, decorre da negação do outro enquanto sujeito de transformação da sociedade (FRAGA, 2012). Thiollent (1984) amplia o debate para a transferência de tecnologia e, refletindo especificamente sobre difusão tecnológica no trabalho com produtores rurais, afirma que a concepção prevalecente da difusão é essencialmente recepcionista. Os usuários são simples receptores de informação acerca das técnicas e estão mais ou menos dispostos a aceitá-las. Não se imagina um esforço de criação de técnicas e de mobilização coletiva em torno de práticas adequadas à situação dos produtores. Pressupõe-se que a técnica é sempre importada pelo grupo receptor. Não há interesse particular na geração interna de ideias, técnicas ou em modos de difusão dotados de relativos graus de autonomia (THIOLLENT, 1984, p. 45). Um ponto que merece atenção e que é pouco explorado pelas diferentes formas de engenharia engajada (KLEBA, 2017) é que o texto de Paulo Freire (originalmente escrito em 1969) se refere à atuação do agrônomo e, por isso, é também sobre a atuação técnica. Com algumas considerações, podemos considerá-lo como uma das primeiras contribuições sobre esse engajamento das áreas técnicas com as classes populares. Nele o autor fala em agrônomo educador e foi de onde tiramos nossa inspiração para escrever o texto “Engenheiro Educador” no qual nos demos conta que havia uma atuação convencional da engenharia e outra possibilidade de atuação a partir da Educação Popular e da Tecnologia Social (FRAGA; SILVEIRA; VASCONCELLOS, 2011). Hoje nos entendemos como educadores/as populares, como engenheiros/as educadores/as e engenheiros/as populares. Não nos entendemos como detentores/as de um saber único e ENGENHARIA POPULAR construção e gestão de projetos de tecnologia e inovação social Parte 1: A Engenharia Popular 43 superior a ser estendido, transferido, aos grupos. Nos vemos como uma das partes em um processo coletivo de redefinição das tecnologias, para que estas fortaleçam projetos políticos de transformação social que sonhamos. Depois de dez anos dessa descoberta, encontramos muitos pares para essa reflexão e atuação na Rede de Engenharia Popular Oswaldo Sevá (REPOS). EDUCAÇÃO POPULAR: UMA PERSPECTIVA PARA A AÇÃO Este capítulo nos permite apenas uma breve aproximação com os temas abordados. E acreditamos que a Educação Popular merece mais atenção nas nossas discussões sobre a Engenharia Popular. Em outras áreas, como na educação e na saúde, há um espaço significativo para o tema nas reflexões acadêmicas e na atuação com as classes populares. Um bom ponto de partida é o livro de Paulo Freire, anteriormente citado, ela nos dá pistas, instala dúvidas nas nossas certezas e promove a autocrítica nas nossas ações. Será que, a partir da engenharia, estamos sendo autoritários? Estamos impondo aos grupos populares com os quais trabalhamos soluções tecnológicas, imaginando que os mesmos ‘não tem condições de opinar’ em assuntos técnicos? Discutimos qual é o nossa perspectiva teórico-metodológica para planejar nossas ações? Estamos estabelecendo diálogos verdadeiros com os grupos populares potencializando suas capacidades para resolver os problemas que enfrentam? Sabemos das nossas limitações como engenheiros/as para atuação com grupos populares? Quais as metodologias que temos utilizado para: a) Diagnosticar problemas ou necessidades técnicas dos grupos populares; b) Socializar diferentes modos de conhecimento entre os envolvidos nas experiências de extensão universitária; c) Promover a decisão coletiva entre engenheiros/as e os grupos populares para escolha das soluções técnicas adotadas; d) Avaliar as soluções escolhidas e implementadas? Construir alternativas tecnológicas com as classes populares 44 É porque a Educação Popular considera as classes populares sujeito da sua própria história, portadora de conhecimentos válidos e necessários para mudar a realidade que ela é tão aderente a ideia de construção de alternativas tecnológicas. Ela nos ajuda a entender com profundidade a maneira pelas quais, mesmo sem querer, podemos estar sendo autoritários e silenciando os grupos populares. Por isso, acreditamos que através de uma constante interação dialógica entre engenheiros/as e os grupos populares é que se desenvolveriam alternativas tecnológicas. O/A engenheiro/a teria o papel de mediar diagnósticos participativos para elencar quais seriam os principais problemas tecnológicos enfrentados pelos grupos populares e, a partir disso, buscar soluções para esses problemas e conceber tecnologias sociais adequadas para essa realidade com esses grupos e não para esses grupos. Dizer que o/a engenheiro/a seria um/a mediador/a significa dizer que seria responsável por transitar entre os diferentes modos de conhecimento para mediar a construção coletiva de tecnologias. Por outro lado, caberia ao/à engenheiro/a promover processos educativos para que os grupos populares pudessem também transitar entre os diferentes modos de conhecimento. Para atingir esses objetivos, a engenharia deveria necessariamente estar comprometida com processos dialógicos e, por isso, deveriam ser não só engenheiros/as mas também educadores/as populares. A esse/a engenheiro/a chamamos Engenheiro/a Educador/a (FRAGA; SILVEIRA; VASCONCELLOS, 2011). CONSIDERAÇÕES FINAIS A extensão universitária tem sido ao longo das últimas décadas uma das vias mobilizadas na organização de políticas, ações, pesquisa e produção de conhecimento e alternativas tecnológicas. Inspiradas na perspectiva de Educação Popular de Paulo Freire. Procuramos destacar a necessidade de refletir criticamente sobre nossa atuação como engenheiros/as populares em processos coletivos de construção de tecnologias. ENGENHARIA POPULAR construção e gestão de projetos de tecnologia e inovação social Parte 1: A Engenharia Popular 45 Tendo a extensão e a Educação Popular como pano de fundo, sugerimos especial atenção para não reproduzirmos uma lógica hierarquizada das relações entre diferentes modos de conhecimento e diferentes sujeitos. Alegamos que para essa perspectiva se faz necessária uma atuação de Engenheiros/as Educadores/as que se coloquem ao lado das classes populares para a construção coletiva de alternativas tecnológicas. Como sugestão para coletivos de engenharia popular, indicamos que iniciem (ou continuem) a reflexão sobre suas práticas a partir do livro clássico de Paulo Freire Extensão ou comunicação? Acreditamos ser um bom ponto de partida para pensarmos se, de alguma maneira, continuamos perpetuando as desigualdades e violências às quais as classes populares estão
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