Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Autora: Profa. Marília Tavares Coutinho da Costa Patrão Colaboradores: Prof. Flávio Buratti Gonçalves Prof. Luiz Henrique Cruz de Mello Biomedicina Integrada Professora conteudista: Marília Tavares Coutinho da Costa Patrão Doutora (2009) e mestra (2005) em ciências, com ênfase em Farmacologia, pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e licenciada em Química pelas Faculdades Oswaldo Cruz (2011). Graduada em 2002, pela Unifesp, em ciências biológicas – modalidade médica. É professora titular da Universidade Paulista (UNIP) desde 2010 nos cursos de Biomedicina, Enfermagem e Nutrição. Também ministrou Farmacologia para o curso de Medicina do Centro Universitário São Camilo (2010-2011). Atua como coordenadora-auxiliar do curso de Biomedicina da UNIP desde 2011. Na mesma instituição, foi membro do Comitê de Ética no período de 2011 a 2017 e, desde 2012, atua na Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos (CQA). © Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Universidade Paulista. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) P314b Patrão, Marília Tavares Coutinho da Costa. Biomedicina Integrada / Marília Tavares Coutinho da Costa Patrão. – São Paulo: Editora Sol, 2022. 136 p., il. Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e Pesquisas da UNIP, Série Didática, ISSN 1517-9230. 1. Hematologia. 2. Microbiota. 3. Nanobiotecnologia. I. Título. CDU 61 U514.18 – 22 Prof. Dr. João Carlos Di Genio Reitor Profa. Sandra Miessa Reitora em Exercício Profa. Dra. Marilia Ancona Lopez Vice-Reitora de Graduação Profa. Dra. Marina Ancona Lopez Soligo Vice-Reitora de Pós-Graduação e Pesquisa Profa. Dra. Claudia Meucci Andreatini Vice-Reitora de Administração Prof. Dr. Paschoal Laercio Armonia Vice-Reitor de Extensão Prof. Fábio Romeu de Carvalho Vice-Reitor de Planejamento e Finanças Profa. Melânia Dalla Torre Vice-Reitora de Unidades do Interior Unip Interativa Profa. Elisabete Brihy Prof. Marcelo Vannini Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar Prof. Ivan Daliberto Frugoli Material Didático Comissão editorial: Profa. Dra. Christiane Mazur Doi Profa. Dra. Angélica L. Carlini Profa. Dra. Ronilda Ribeiro Apoio: Profa. Cláudia Regina Baptista Profa. Deise Alcantara Carreiro Projeto gráfico: Prof. Alexandre Ponzetto Revisão: Kleber Souza Aline Ricciardi Sumário Biomedicina Integrada APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................................................9 INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................................9 Unidade I 1 MALDI-TOF-MS (MATRIX-ASSISTED LASER DESORPTION/IONIZATION TIME-OF-FLIGHT MASS SPECTROMETRY) .................................................................................................. 11 1.1 Métodos clássicos de identificação de microrganismos ...................................................... 12 1.2 Fundamentos da técnica de Maldi-Tof ........................................................................................ 16 1.2.1 Adição da amostra ao equipamento e irradiação ..................................................................... 18 1.2.2 Aceleração e passagem pelo tubo de voo .................................................................................... 19 1.2.3 Obtenção do espectro de massas ..................................................................................................... 19 1.2.4 Determinação da susceptibilidade a antimicrobianos por Maldi-Tof ............................... 20 1.3 O uso do Maldi-Tof na identificação de partículas virais .................................................... 21 1.4 Outros usos do Maldi-Tof ................................................................................................................. 22 2 NOVAS TECNOLOGIAS EM HEMATOLOGIA E HEMOTERAPIA ......................................................... 23 2.1 Rotina do setor de hematologia clínica ...................................................................................... 24 2.2 Avanços no setor de hematologia clínica .................................................................................. 26 2.2.1 Citometria de fluxo ................................................................................................................................ 26 2.2.2 Laboratório modular de hematologia ............................................................................................ 28 2.3 Novos parâmetros hematológicos ................................................................................................ 30 2.3.1 Contagem automatizada de granulócitos imaturos (IG) ........................................................ 30 2.3.2 Contagem de plaquetas reticuladas (IPF) ..................................................................................... 32 2.3.3 Conteúdo de hemoglobina dos reticulócitos (RET-He) ........................................................... 33 2.4 Técnicas de biologia molecular aplicadas ao diagnóstico das hemoglobinopatias ............................................................................................................................. 34 3 MICROARRANJOS DE DNA (MICROARRAYS) ....................................................................................... 35 3.1 Fundamentos dos ensaios com microarranjos de DNA ........................................................ 36 3.1.1 Fabricação das sondas de DNA ......................................................................................................... 37 3.1.2 Processamento da amostra biológica ............................................................................................. 38 3.1.3 Hibridização do cDNA às sondas ...................................................................................................... 39 3.1.4 Análise e interpretação dos resultados .......................................................................................... 39 3.2 Tipos de microarranjos ....................................................................................................................... 40 3.3 Aplicação dos ensaios com microarranjos na pesquisa e no diagnóstico .................... 42 3.3.1 Uso dos microarranjos de DNA na pesquisa ................................................................................ 43 3.3.2 Uso dos microarranjos de DNA no diagnóstico .......................................................................... 44 4 O SISTEMA CRISPR/CAS9 ............................................................................................................................. 46 4.1 Fundamentos do uso do sistema Crispr/Cas9 na edição do DNA .................................... 47 4.1.1 O sistema Crispr em bactérias ........................................................................................................... 47 4.1.2 Sistema Crispr/Cas9 aplicado à edição do DNA de células eucarióticas .......................... 51 4.2 Potenciais usos do sistema Crispr/Cas9 ...................................................................................... 53 4.3 Aspectos éticos relacionados ao uso do sistema Crispr/Cas9 como ferramenta de edição do DNA ................................................................................................................ 56 Unidade II 5 CIÊNCIAS ÔMICAS: EXOMA E METABOLOMA ...................................................................................... 66 5.1 Exoma ........................................................................................................................................................ 67 5.1.1 Estrutura básica dogene ..................................................................................................................... 67 5.1.2 Métodos de investigação do exoma e indicações do exame ................................................ 69 5.2 Metaboloma ........................................................................................................................................... 71 5.2.1 Vias metabólicas ...................................................................................................................................... 71 5.2.2 Métodos de investigação do metaboloma ................................................................................... 73 5.2.3 Aplicações da metabolômica ............................................................................................................. 75 6 MICROBIOMA ................................................................................................................................................... 76 6.1 Principais espécies de bactérias que colonizam o intestino humano e suas funções ............................................................................................................................................... 77 6.1.1 Desenvolvimento da microbiota humana .................................................................................... 78 6.1.2 Principais espécies de bactérias presentes na microbiota intestinal ................................. 78 6.1.3 Ácidos graxos de cadeia curta ........................................................................................................... 79 6.2 A disbiose e o desenvolvimento de doenças ............................................................................. 80 6.2.1 A microbiota e as doenças intestinais ............................................................................................ 81 6.2.2 A microbiota e as alergias ................................................................................................................... 81 6.2.3 A microbiota e a diabetes mellitus tipo 2 ..................................................................................... 83 6.2.4 A microbiota e o câncer ....................................................................................................................... 84 6.2.5 A microbiota e os transtornos do sistema nervoso central ................................................... 84 6.2.6 A microbiota e a Covid-19 .................................................................................................................. 88 6.2.7 Estratégias para correção da microbiota....................................................................................... 89 6.3 Métodos de estudo do microbioma humano ........................................................................... 91 6.3.1 Metagenoma ............................................................................................................................................ 92 6.3.2 Metatranscriptoma, metaproteoma e metaboloma ................................................................. 93 7 NANOBIOTECNOLOGIA .................................................................................................................................. 95 7.1 Processos de produção e tipos de nanomateriais ................................................................... 97 7.2 Aplicações da nanobiotecnologia ................................................................................................101 7.2.1 Nanocosméticos ....................................................................................................................................101 7.2.2 Nanomedicina ........................................................................................................................................102 7.2.3 Nanofármacos ........................................................................................................................................102 7.2.4 Nanotecnologia aplicada à microscopia .....................................................................................103 7.2.5 Nanopartículas de prata ....................................................................................................................104 7.3 Nanotoxicologia ..................................................................................................................................105 8 IMUNOTERAPIA CONTRA O CÂNCER .....................................................................................................106 8.1 História da imunoterapia ................................................................................................................106 8.2 Resposta imune contra os tumores ............................................................................................108 8.3 Principais fármacos utilizados na imunoterapia contra o câncer ..................................112 8.3.1 Terapias baseadas em anticorpos ...................................................................................................112 8.3.2 Interleucina-2, interferons e outras citocinas .......................................................................... 114 8.3.3 Vacinas contra o câncer ..................................................................................................................... 114 8.3.4 Terapia de células CAR-T ....................................................................................................................115 8.3.5 Vírus oncolíticos ....................................................................................................................................117 8 9 APRESENTAÇÃO A evolução das sociedades humanas sempre esteve intimamente ligada ao desenvolvimento de novas tecnologias. No mundo moderno, essas tecnologias são obtidas a partir da observação, identificação, pesquisa e explicação metódica e racional dos fenômenos e fatos, ou seja, a partir da ciência. Entender o avanço da ciência é, portanto, essencial para compreendermos como utilizar diferentes ferramentas em prol da melhoria da qualidade de vida da população. Nesse contexto, a disciplina de Biomedicina Integrada tem como objetivo apresentar os principais avanços tecnológicos na área da saúde. Ao longo do livro-texto, vamos apresentar novas técnicas laboratoriais utilizadas nos campos da biologia molecular, microbiologia, imunologia, farmacologia e hematologia. Antes da exibição de cada técnica, será feita uma breve revisão dos conteúdos trabalhados durante o curso de Biomedicina. Em seguida, vamos discutir suas principais vantagens e desvantagens. Esperamos que, a partir dos conhecimentos adquiridos com a leitura deste livro-texto, você se sinta motivado a buscar atualização contínua sobre os temas de relevância para sua atuação profissional. Bons estudos! INTRODUÇÃO Este livro-texto é dividido em duas unidades. Em cada uma delas, são apresentados quatro temas principais, que versam sobre as mais recentes evoluções no campo das análises clínicas, da biologia molecular, das ciências ômicas, da nanobiotecnologia e do tratamento do câncer. Esses temas estão distribuídos da seguinte maneira: Na unidade I, são abordados os assuntos relacionados ao diagnóstico clínico e molecular de diferentes patologias, além de uma nova técnica, ainda experimental, de edição do DNA, conforme detalhado a seguir. • Tópico 1: avanços no diagnóstico microbiológico proporcionado pela técnica de Maldi-Tof. • Tópico 2: novas técnicas associadas aos laboratórios de hematologia clínica e hemoterapia. • Tópico 3: uso dos microarranjos de DNA no diagnóstico de doenças genéticas e do câncer. • Tópico 4: avaliação crítica do uso do sistema Crispr/Cas9 na edição do DNA. Na unidade II, a aplicação prática de diferentes tecnologias é discutida. O uso das ciências ômicas, da nanobiotecnologia e da imunoterapia na promoção da saúde é a principal tônica. 10 • Tópico 5: importânciada avaliação do metaboloma e do exoma para entendimento dos diferentes aspectos do processo saúde-doença. • Tópico 6: importância do microbioma na manutenção da homeostase. • Tópico 7: principais produtos da nanobiotecnologia e seu uso em diferentes áreas. • Tópico 8: novos agentes utilizados no contexto da imunoterapia contra o câncer. É importante complementar sua formação com a leitura de artigos científicos sobre o tema. Vários desses artigos são apresentados ao final do livro e estão disponíveis para download. Vamos iniciar nossa jornada? 11 BIOMEDICINA INTEGRADA Unidade I 1 MALDI-TOF-MS (MATRIX-ASSISTED LASER DESORPTION/IONIZATION TIME-OF-FLIGHT MASS SPECTROMETRY) O Maldi-Tof-MS, ou simplesmente Maldi-Tof, é uma técnica de análise proteômica que possibilita diferenciar as espécies de microrganismos contidas em uma amostra. Observação Conforme Morales (2020), a tradução de matrix-assisted laser desorption/ionization time-of-flight mass espectrometry (Maldi-Tof-MS) para o português é ionização/dessorção a laser assistida por matriz acoplada à espectrometria de massa por tempo de voo. Ele foi criado para reconhecer moléculas no âmbito da química, mas, a partir de 1975, também passou a ser utilizada para identificar diferentes espécies de bactérias no campo da pesquisa básica (ANHALT; FENESLAU, 1975). Nos últimos anos, diversos protocolos foram padronizados para viabilizar seu uso na rotina do laboratório clínico de microbiologia. Nesse contexto, o Maldi-Tof mostrou ser uma ferramenta capaz de otimizar o diagnóstico de doenças causadas por microrganismos. Vamos entender qual a importância dessa técnica e por que ela veio revolucionar o diagnóstico das doenças infecciosas? O setor de microbiologia do laboratório de análises clínicas baseia-se na identificação dos microrganismos contidos em amostras biológicas e na avaliação do seu perfil de susceptibilidade aos antibióticos. Em geral, os ensaios laboratoriais classicamente realizados são: • A determinação do perfil metabólico do microrganismo, a partir do cultivo do material biológico infectado em diferentes meios seletivos e da realização de provas complementares. • A identificação direta, ao microscópio, após colorações específicas, como, por exemplo, a coloração de Gram. • O antibiograma, que é a análise do crescimento de colônias de microrganismos em meios de cultura na presença de antibióticos. 12 Unidade I • Os ensaios moleculares, como a reação em cadeia da polimerase (PCR), que visam a identificação de genes que auxiliam na classificação do microrganismo, na determinação do seu perfil metabólico e na detecção dos mecanismos de resistência microbiana. Tais técnicas são, no geral, efetivas, mas também trabalhosas e demoradas. Alguns protocolos demoram dias ou até semanas para serem finalizados! É nesse contexto que entendemos o porquê de o Maldi-Tof ter se mostrado uma ferramenta valiosa no diagnóstico das infecções bacterianas e fúngicas. Além de apresentar alta sensibilidade e especificidade, a técnica possibilita a diminuição das etapas experimentais, o que se traduz em resultados mais rápidos e confiáveis. Afinal, a partir do início do ensaio, os resultados são disponibilizados em minutos. Saiba mais O primeiro caso do fungo Candida auris no Brasil foi identificado pela técnica de Maldi-Tof, em 2021. Entenda melhor por meio da seguinte leitura: ALMEIDA JÚNIOR, J. N. et al. Emergence of Candida auris in Brazil in a Covid-19 Intensive Care Unit. Journal of Fungi, v. 7, n. 3, art. 220, 2021. Disponível em: https://bit.ly/3cuMZKz. Acesso em: 18 nov. 2021. Nas próximas páginas, vamos entender como funciona essa técnica relativamente nova e discutir suas potencialidades e perspectivas de uso. Para facilitar a leitura, o texto será dividido em quatro partes, conforme segue. • Tópico 1.1: quais são as técnicas classicamente utilizadas no laboratório de microbiologia clínica para identificar bactérias e fungos. • Tópico 1.2: uso do Maldi-Tof nas análises microbiológicas e conhecimento de suas etapas experimentais, para que possamos entender as vantagens dessa técnica em comparação aos métodos clássicos. • Tópico 1.3: utilização na identificação de vírus, com ênfase na pesquisa das características funcionais do Sars-Cov-2, causador da Covid-19. • Tópico 1.4: outros usos do Maldi-Tof, além da microbiologia clínica. 1.1 Métodos clássicos de identificação de microrganismos Nós já sabemos que os métodos clássicos de identificação microbiana envolvem várias etapas e, portanto, são custosos e demorados. Isso ocorre porque um único ensaio não é suficiente para determinar o número de propriedades capazes de identificar a espécie de bactéria ou de fungo envolvido na infecção. 13 BIOMEDICINA INTEGRADA Tudo começa com a coleta do material biológico infectado. Após essa etapa, o material é processado e observado ao microscópio óptico. A análise da amostra ao microscópio muitas vezes envolve o tratamento com corantes específicos, que permitem diferenciar as características morfológicas das espécies envolvidas na infecção. A coloração de Gram, por exemplo, permite classificar as bactérias em Gram-positivas ou Gram-negativas. A coloração de PAS, por sua vez, é muito utilizada na identificação de fungos, pois cora os polissacarídeos de suas paredes celulares. Se necessário, o material é então cultivado em meio apropriado, para que haja proliferação e crescimento dos microrganismos. O cultivo envolve a seleção do meio de cultura, de acordo com a suspeita clínica e as características metabólicas do microrganismo que se espera encontrar na amostra. O material biológico pode ser adicionado a meio líquido ou sólido, neste último, observa-se, após o cultivo, algumas colônias, que são agregadas de milhões de clones de um mesmo microrganismo. Observação As bactérias e alguns fungos proliferam por fissão binária. Durante esse processo, uma célula-mãe divide-se em duas células-filhas idênticas entre si e idênticas à célula que as originou. É assim que se formam os clones constituintes de uma colônia. O ágar chocolate e o ágar Sabouraud Dextrose são meios que permitem crescimento, respectivamente, da maioria das bactérias e dos fungos. Por não serem seletivos, são utilizados no início da triagem. Caso haja necessidade, o meio de cultura pode ser suplementado, a fim de fornecer os substratos necessários para a replicação in vitro do microrganismo ou de elucidar alguma característica metabólica. Esses meios são, portanto, seletivos. Isso é importante, pois a visualização ao microscópio, na maioria das vezes, não é suficiente para determinar a espécie de microrganismo responsável pela infecção. Alguns exemplos de meios seletivos para bactérias são o ágar MacConkey, que permite o crescimento somente de bactérias Gram-negativas; o ágar eosina azul de metileno, que indica se uma bactéria Gram-negativa é fermentadora de lactose; e o ágar manitol salgado, que permite diferenciar se as espécies de estafilococos expressam ou não a enzima coagulase. Com relação aos fungos, o meio enriquecido com ágar de infusão cérebro-coração e sangue de carneiro possibilita identificar as espécies dimórficas de crescimento lento; e a suplementação do meio com diferentes substâncias (fontes de carbono e de nitrogênio, carboidratos ou até mesmo lipídios) permitem analisar o perfil metabólico do fungo. 14 Unidade I Figura 1 – Meio de cultura manitol salgado contendo diversas colônias de estafilococos. Cada uma delas é um conjunto de milhões de clones de uma mesma bactéria inicial Disponível em: https://bit.ly/3oHa4zl. Acesso em: 18 nov. 2021. Algumas provas bioquímicas também podem ser realizadas para elucidar as características metabólicas da bactéria de interesse. A prova da catalase, por exemplo, consiste em adicionar peróxido de hidrogênio a 3% sobre as bactérias isoladas de uma colônia. Caso haja formação de bolhas, significa que elas são positivas para a catalase. Esse testepermite identificar os estreptococos que não expressam a enzima catalase e separá-los de outros cocos Gram-positivos que o fazem, como, por exemplo, os estafilococos. Além desses testes, que caracterizam o perfil fenotípico do microrganismo, é muito importante determinar seu perfil de susceptibilidade aos agentes antimicrobianos. Para isso, é realizado o antibiograma. O antibiograma por difusão em ágar é o ensaio mais utilizado para determinar a sensibilidade das bactérias e dos fungos aos agentes antimicrobianos. A técnica consiste em cultivar o microrganismo de interesse em meio sólido, ao qual são adicionados pequenos discos de papel embebidos, cada um, em um antibiótico diferente. Observação O termo antibiótico é usado para se referir aos antibacterianos (usados para combater bactérias) e aos antifúngicos (usados para combater fungos). A escolha depende da caracterização do microrganismo na amostra inicial. 15 BIOMEDICINA INTEGRADA Se houver crescimento do microrganismo ao redor do disco, ele é considerado suscetível ao antibiótico. Se, por outro lado, for observado um halo ao seu redor, o microrganismo é resistente. Quanto maior o halo, maior a resistência. Figura 2 – Exemplo de antibiograma Disponível em: https://bit.ly/3kOzABM. Acesso em: 11 nov. 2021. Todos os métodos citados até agora (observação direta ao microscópio após coloração, cultivo em meios seletivos e não seletivos, provas bioquímicas e antibiograma) são considerados fenotípicos de tipagem, pois se baseiam na identificação das características morfológicas e funcionais dos microrganismos. Por esse motivo, os resultados obtidos dependem fortemente das condições ambientais e são aplicáveis apenas na tipagem de algumas espécies. Os métodos genotípicos, por sua vez, baseiam-se na identificação de fragmentos dos genes dos microrganismos e na detecção de polimorfismos. Como resultado, é possível classificar as bactérias e os fungos não somente em espécies, mas em subespécies. As abordagens mais importantes de tipagem molecular são a análise dos fragmentos de restrição do DNA genômico e as técnicas de tipagem baseadas na reação em cadeia da polimerase (PCR). Em qualquer uma delas, o que se obtém é um padrão de fragmentos de DNA específico para cada subespécie, o que permite sua identificação. 16 Unidade I 1.2 Fundamentos da técnica de Maldi-Tof Boa parte das etapas anteriormente descritas pode ser descartada com o uso do Maldi-Tof. Ao submeter o microrganismo de interesse a essa metodologia, temos, ao final de um único ensaio, sua “impressão digital”, o que possibilita o estabelecimento do tratamento mais adequado. Essa técnica também pode ser utilizada para determinar a susceptibilidade do microrganismo a alguns antibióticos, conforme será abordado ao longo do texto. No entanto, embora o Maldi-Tof constitua uma técnica excelente de identificação fenotípica dos microrganismos, seu uso não prescinde a realização da genotipagem, pois a análise de proteínas, ao contrário do estudo do genoma, também depende das condições ambientais às quais a cultura de microrganismos foi submetida. O equipamento de Maldi-Tof é composto de uma matriz polimérica, uma fonte de laser e um tubo a vácuo acoplado a um espectrômetro de massa. A técnica permite a obtenção do espectro de massas das proteínas presentes na amostra analisada. O espectrômetro de massas é um equipamento que possibilita identificar moléculas e compostos desconhecidos, quantificá-los e prever suas propriedades. Na espectrometria de massas, as moléculas são ionizadas, ou seja, convertidas em íons, e separadas a partir da passagem por um campo. As diferenças no padrão de migração das moléculas pelo campo, como consequência de valores de massa e de carga, são detectadas pelo equipamento. Outras abordagens experimentais também são baseadas na detecção final de diferentes categorias de moléculas pelo espectrômetro de massa. No caso do Maldi-Tof, o principal alvo da detecção são as proteínas. A análise proteômica dos microrganismos por Maldi-Tof envolve as seguintes etapas: • Isolamento da amostra biológica infectada. • Cultivo dos microrganismos contidos na amostra biológica. • Deposição do material cultivado em uma placa e adição de uma matriz polimérica. • Irradiação do material com feixes de laser, o que faz com que as proteínas que compõem os microrganismos presentes nele sofram dessorção (vaporização) e ionização. • Aceleração dos vapores e passagem por um tubo a vácuo, denominado tubo de voo, que separa as diferentes proteínas e as direciona para um detector. • Determinação do tempo de voo de cada proteína, que corresponde ao tempo que cada uma delas demora para alcançar o detector. 17 BIOMEDICINA INTEGRADA • Aquisição do espectro de massas, que é um registro constituído por uma série de picos. Esses picos são analisados por um software, que compara o padrão gerado com um banco de dados contendo o perfil proteico de outros microrganismos. • Uma vez que cada microrganismo apresenta um conjunto de proteínas específico, o padrão de picos gerado pelo espectrômetro de massa também o é. Isso permite a correta identificação da espécie contida na amostra. As etapas experimentais descritas são apresentadas nas figuras a seguir. A) B) C) D) Figura 3 – Etapas do Maldi-Tof: A) o material biológico é cultivado em meios de cultura apropriados; B) os cultivos são adicionados a uma placa que contém uma matriz polimérica; C) a placa é adicionada ao equipamento de Maldi-Tof, onde é processada e analisada; D) obtém-se o espectro de massas, que corresponde ao perfil proteico dos microrganismos cultivados no item (A) Adaptada de: Patel (2019). Resultado (espectro) Componente Etapa DetecçãoDetector AceleraçãoLaser assistida Separação; análise do tempo de voo Tudo de voo Dessorção/ionização por laser assistida em matriz (MALDI) Amostra biológica adicionada à matriz Figura 4 – Dentro do equipamento de Maldi-Tof ocorrem as etapas de dessorção/ionização, aceleração, separação e análise do tempo de voo e detecção Adaptada de: https://bit.ly/3kRx25F. Acesso em: 11 nov. 2021. 18 Unidade I A seguir, consta uma descrição de todas as etapas da técnica de Maldi-Tof, desde a adição do material biológico ao equipamento até a interpretação do espectro de massas. 1.2.1 Adição da amostra ao equipamento e irradiação Em geral, o material coletado do paciente não é depositado diretamente no equipamento de Maldi-Tof. Antes é necessário cultivar os microrganismos em meio de cultura apropriado. Isso permite que o número de microrganismos presentes na amostra aumente exponencialmente, o que resulta em material suficiente para que o ensaio ocorra. Dependendo do meio de cultura utilizado, prioriza-se o crescimento de bactérias, de fungos ou até mesmo de outras células – hoje, vários pesquisadores estudam o uso do Maldi-Tof para determinar o perfil proteico de células neoplásicas, por exemplo. Por ora, vamos focar na utilização do Maldi-Tof nos laboratórios de microbiologia clínica. Após o cultivo, o conteúdo de uma colônia é transferido para uma placa de aço inoxidável com o auxílio de um palito. A ideia é que somente clones de uma mesma colônia sejam depositados nela. Em seguida, a placa é coberta com uma matriz polimérica, responsável por aumentar a taxa de ionização das proteínas ou dos peptídeos presentes na amostra. Alguns exemplos de matrizes poliméricas são as compostas por ácido cafeico, ácido ferúlico, ou ácido alfa-ciano-4-hidroxicinâmico (HCCA). No interior do equipamento, pulsos de laser de nitrogênio, cujo comprimento de onda encontra-se no espectro do ultravioleta, atingem a amostra e ocasionam uma rápida dessorção das proteínas presentes na superfície dos microrganismos. Em outras palavras, as proteínas são desprendidas da matriz e vaporizam. Ocorre também sua ionização, graças à doação de prótons (H+) pela matriz que foi atingida pelo laser. Podemos entender como isso ocorre ao observar aestrutura da molécula de HCCA. Ao ser atingida pela radiação ultravioleta, ela libera íons H+ (prótons) de seus radicais hidroxila (-OH). Esses prótons ligam-se às proteínas da amostra, que se tornam ionizadas. HO N OH O Figura 5 – Representação esquemática do ácido alfa-ciano-4-hidroxicinâmico Disponível em: https://bit.ly/3oDKKKt. Acesso em: 18 nov. 2021. 19 BIOMEDICINA INTEGRADA 1.2.2 Aceleração e passagem pelo tubo de voo As proteínas dessorvidas (vaporizadas) e ionizadas seguem em direção ao analisador Tof (time of flight). Ele é constituído de um tubo metálico, denominado tubo de voo. Esse tubo é mantido a vácuo e submetido a um campo elétrico, que orienta as proteínas em direção ao detector. Por ação do campo elétrico, as diferentes proteínas são separadas de acordo com sua relação massa/ carga (relação m/z) e chegam ao detector em tempos distintos. Observação A relação massa/carga de uma proteína é a razão entre a massa molecular e o total de cargas elétricas. 1.2.3 Obtenção do espectro de massas O espectro de massas é um gráfico bidimensional, cujo eixo x representa a razão m/z, e o eixo y, a proporção de íons, em relação ao íon mais intenso do espectro (íon base). A figura a seguir mostra o espectro de massas da bactéria Escherichia coli. 12000 10 30 0 97 42 90 6683 2777 08 71 58 62 55 53 81 50 9648 72 43 6541 66 1100010000900080007000 m/z 6000500040003000 In te ns id ad e 2000 8 7 6 5 4 3 2 1 0 Figura 6 – Espectro de massas da Escherichia coli Adaptada de: Yu et al. (2018). Cada pico corresponde a uma proteína, e o conjunto apresentado delas é específico dessa bactéria. Na literatura, tal perfil é descrito como uma impressão digital do microrganismo. Compare o espectro de massas da E. coli, exibido na figura anterior, com o espectro de massas de outra espécie de bactéria, a Shigella flexneri, apresentado a seguir. Podemos perceber claramente que o perfil de picos é diferente em ambos. 20 Unidade I 12000 10 30 0 97 42 90 66 83 27 77 08 71 58 62 5553 81 50 96 48 72 43 65 41 66 1100010000900080007000 m/z 6000500040003000 In te ns id ad e 2000 14 12 10 8 6 4 2 0 Figura 7 – Espectro de massas da Shigella flexneri Adaptada de: Yu et al. (2018). A maioria dos espectros de massas não é de interpretação fácil sem informações adicionais e, portanto, é necessário comparar o gráfico obtido no ensaio de Maldi-Tof com uma base de dados que contém os espectros dos diferentes microrganismos. Alguns de seus exemplos são o Biotyper software (Bruker Daltonics) e o Spectral Archive and Microbial Identification System (SARAMIS – AnagnosTec GmbH). Saiba mais Leia mais a respeito da técnica de Maldi-Tof em: PASTERNAK, J. Novas metodologias de identificação de microrganismos: MALDI-TOF. Einstein, v. 10, n. 1, p. 118-119, 2012. Disponível em: https://bit.ly/3oWH7PR. Acesso em: 18 nov. 2021. 1.2.4 Determinação da susceptibilidade a antimicrobianos por Maldi-Tof Várias adaptações do Maldi-Tof têm sido propostas para a detecção rápida da resistência bacteriana aos antibióticos. As principais delas envolvem a avaliação da atividade da enzima betalactamase, responsável por inativar os antibióticos betalactâmicos; a análise dos biomarcadores associados aos mecanismos de resistência; e a comparação dos perfis proteicos de bactérias incubadas ou não com diferentes antibióticos. Os ensaios realizados até o momento permitiram a determinação do perfil de susceptibilidade de bactérias de interesse clínico – por exemplo, enterobactérias, bactérias Gram-negativas não fermentadoras, cocos Gram-positivos, bactérias anaeróbias e micobactérias – o que demonstra o potencial da técnica. Como os resultados são obtidos muito mais rapidamente do que com a realização do antibiograma, o tratamento pode ser estabelecido de maneira precoce e mais efetiva. 21 BIOMEDICINA INTEGRADA Um exemplo do uso do Maldi-Tof para esse fim é a determinação da atividade da betalactamase. O gene que codifica essa enzima está contido em plasmídeos que podem ser transmitidos de uma bactéria a outra. Quando expressa, a enzima é responsável pela quebra do anel lactâmico de uma série de antibióticos, como, por exemplo, as penicilinas. Nos ensaios de Maldi-Tof, o alvo da identificação não é a betalactamase, mas o produto da ação dessa enzima sobre os antibióticos betalactâmicos. Para isso, adiciona-se o antibiótico à cultura de bactérias que se deseja testar e, após o período de incubação, a amostra é centrifugada e o sobrenadante, livre de bactérias, é depositado no equipamento de Maldi-Tof. A presença de um único pico no espectro de massas indica que o antibiótico não foi degradado, já a ocorrência de dois picos significa que houve quebra do anel lactâmico e que, portanto, as bactérias são resistentes. Antibiótico betalactâmico + bactérias Incubação (1,5-3 h, 37 ºC) Análise do sobrenadante no equipamento de Maldi-Tof Produtos da hidrólise do antibiótico pela betalactamase Antibiótico betalactâmico intacto Bactéria resistente Bactéria suscetível Centrifugação Figura 8 – Identificação da resistência aos betalactâmicos pela técnica de Maldi-Tof Adaptada de: Florio et al. (2020). 1.3 O uso do Maldi-Tof na identificação de partículas virais O perfil proteico dos vírus também pode ser determinado pela técnica de Maldi-Tof. Um exemplo é o desenvolvimento de ensaios para a identificação do Sars-Cov-2 (ILES et al., 2020; ROCCA et al., 2020; MAHMUD; GARRETT, 2020; TRAN et al., 2021). A fim de executar esses ensaios, a secreção nasofaríngea ou a saliva dos pacientes infectados pelo vírus foi coletada e processada para a análise das glicoproteínas do envelope viral, incluindo os fragmentos da proteína spike (responsável pela entrada do vírus no organismo) e a avaliação da resposta imune associada à infecção (caracterizada pelo aumento da intensidade dos picos relacionados à cadeia leve das imunoglobulinas e à cadeia pesada da imunoglobulina A (IgA)). 22 Unidade I A figura a seguir mostra a comparação entre os espectros de massas das amostras de pacientes positivos para a Covid-19, em preto; e de pacientes negativos, em vermelho. 3442 3488 3465 3500m/z In te ns id ad e 0 1 2 3 4 5 3372 Figura 9 – Espectro de massas de amostras de pacientes positivos (preto) e negativos (vermelho) para a Covid-19 Fonte: Rocca et al. (2020, p. 5). 1.4 Outros usos do Maldi-Tof Além do uso na microbiologia clínica, a técnica de Maldi-Tof tem sido utilizada para avaliar a expressão de proteínas em outros tipos celulares. Por exemplo, é possível verificar os produtos de genes com polimorfismos; as consequências, em nível proteico, das modificações pós-transcricionais no RNA; e também a presença de imunoglobulinas específicas no soro do paciente. Ademais, várias outras abordagens vêm sendo desenvolvidas para atender à necessidade de diagnóstico rápido e preciso para diversas doenças. Um exemplo é a técnica de Maldi-IMS, usada experimentalmente para detectar marcadores tumorais expressos em diferentes tipos de câncer (mama, próstata, intestino, ovário, boca, cérebro e linfomas). Uma vez que eles estão presentes somente nas células tumorais, sua detecção pela técnica de Maldi-Tof pode resultar no diagnóstico precoce do câncer. No Maldi-IMS, a matriz polimérica é adicionada diretamente ao fragmento biopsiado, o que permite a correlação do espectro de massas obtido com a região do tecido que o expressa. Para isso, o tecido é seccionado em fatias com micrômetros de espessura, revestido com a matriz polimérica e submetido ao equipamento. A análise por espectrometria é realizada em uma área predefinida, o que possibilita identificar e visualizar a distribuição das massas de compostos de interesse dentro do seu contexto morfológico. 23 BIOMEDICINA INTEGRADA Na imagem a seguir, podemos observar que uma região específica do tecido é submetida ao laser, o que resulta no espectro de massas das célulasdaquela área. Ao processar e corar a secção de tecido para visualização ao microscópio, é possível visualizar a região que corresponde ao espectro obtido. Espectro de massas Secção do tecido revestido pela matriz Marcação com Hematoxilina e Eosina Laser MALDI-IMS Figura 10 – Representação esquemática da técnica de Maldi-IMS Adaptada de: Balluff et al. (2011). Observação Com a popularização do Maldi-Tof, é importante que o biomédico que atua nas análises clínicas se atualize sobre essa técnica. Afinal, no futuro, a tendência é que ela seja incorporada na maioria dos laboratórios. 2 NOVAS TECNOLOGIAS EM HEMATOLOGIA E HEMOTERAPIA A hematologia clínica e a hemoterapia são as áreas do conhecimento que se ocupam, respectivamente, do diagnóstico das doenças do sangue e do uso terapêutico do sangue e de seus derivados. Muitos avanços surgiram nos últimos anos nas práticas realizadas nessas áreas. Técnicas não automatizadas, que requerem analistas experientes e bem treinados, vêm sendo substituídas por métodos automatizados e ensaios de biologia molecular, mais sensíveis e específicos. Além disso, novos parâmetros hematológicos têm auxiliado no diagnóstico de diferentes doenças. Vamos, a partir de agora, relembrar como funcionam esses laboratórios e conhecer os principais avanços na área. 24 Unidade I • Tópico 2.1: técnicas classicamente utilizadas nos laboratórios de hematologia clínica. • Tópico 2.2: comparação entre as técnicas e os avanços que surgiram nos últimos anos. • Tópico 2.3: novos parâmetros hematológicos e sua importância no diagnóstico de doenças. • Tópico 2.4: abordagem das técnicas de biologia molecular aplicadas ao diagnóstico das hemoglobinopatias. 2.1 Rotina do setor de hematologia clínica A hematologia laboratorial visa à análise pormenorizada dos componentes do sangue, a fim de detectar alterações na composição desse tecido. Entre as doenças que podem ser detectadas pelos procedimentos realizados no setor de hematologia, estão anemias, policitemia, leucemias, processos infecciosos, hemoglobinopatias, linfomas e mielofibrose. O principal exame de rotina realizado no setor de hematologia clínica é o hemograma. Ele permite uma avaliação inicial das três linhagens celulares que compõem o sangue: a linhagem eritromieloide (hemácias e granulócitos), a linhagem linfoide (linfócitos) e a linhagem megacarioblástica (plaquetas). Acompanhe, na figura a seguir, um laudo de hemograma e observe os principais parâmetros avaliados. Figura 11 – Hemograma 25 BIOMEDICINA INTEGRADA Saiba mais A fim de revisar o significado dos parâmetros do hemograma, acesse: NAOUM, P. C.; NAOUM, F. A. Interpretação laboratorial do hemograma. Academia de Ciência e Tecnologia, 2019. Disponível em: https://bit.ly/3cHw0Vn. Acesso em: 18 nov. 2021. Em laboratórios com fluxo baixo de exames, é possível obter todos os parâmetros citados a partir de metodologia manual, ou seja, não automatizada. Para isso, são necessários uma centrífuga, um espectrofotômetro e um microscópio. Vamos entender para que esses equipamentos são empregados, com base na sua utilização, a fim de determinar as características da série vermelha. • A centrífuga é utilizada para estimar o hematócrito, ou seja, a proporção relativa das hemácias na amostra de sangue. • O espectrofotômetro é importante para dosar a hemoglobina, que dá ao sangue a coloração vermelha, além de ser a macromolécula responsável pelo transporte de oxigênio. • O microscópio permite a contagem das hemácias e a observação das variações de tamanho e de coloração, as alterações morfológicas etc. Observação O espectrofotômetro determina a concentração do analito em uma amostra a partir da avaliação da absorção da luz em um dado comprimento de onda desse analito. A análise semiautomatizada refere-se à submissão da amostra de sangue a equipamentos que se encarregam de avaliar os parâmetros, sem a necessidade da intervenção direta do analista em todas as etapas. Ela é realizada por um contador hematológico, que permite a contagem e a determinação do diâmetro das células a partir da sua passagem por uma corrente elétrica. Diferentes intensidades de corrente elétrica, ou seja, impedâncias distintas, possibilitam diferenciar os tipos celulares do sangue. 26 Unidade I Figura 12 – Contador hematológico Disponível em: https://bit.ly/3x3apjy. Acesso em: 18 nov. 2021. Além do hemograma, no setor de hematologia, são realizados coagulograma, tipagem sanguínea, provas de Coombs direto e indireto, contagem de reticulócitos, curva de resistência osmótica, prova de falcização e eletroforese de hemoglobina, entre outros protocolos. 2.2 Avanços no setor de hematologia clínica O setor de hematologia tem se beneficiado, nas últimas décadas, de novas tecnologias, com alta sensibilidade e especificidade, para a análise automatizada do sangue. Vamos, a partir de agora, conhecer melhor essas tecnologias. 2.2.1 Citometria de fluxo A citometria de fluxo já constitui, atualmente, a principal metodologia de análise do sangue nos laboratórios de hematologia de grande porte. Existem modelos que, inclusive, têm acoplado o contador hematológico tradicional ao equipamento. São inúmeras as vantagens do uso do citômetro de fluxo nas análises hematológicas. Além da contagem e da identificação das células, a técnica permite a identificação das moléculas em sua superfície, entre outros parâmetros. Por esse motivo, ele é considerado um equipamento de análise multiparamétrica. 27 BIOMEDICINA INTEGRADA Os principais usos do citômetro de fluxo na hematologia são: • A determinação de parâmetros hematológicos que constam do hemograma, principalmente em análises realizadas em laboratórios de grande porte. • A contagem de reticulócitos. • O diagnóstico das leucemias e da hemoglobinúria paroxística noturna. • A definição do perfil funcional e do estágio de maturação dos diferentes subtipos de leucócitos. • A identificação de subpopulações de células malignas no sangue. • A avaliação dos linfócitos T CD4+ e CD8+ em sangue de indivíduos HIV positivos. Na citometria de fluxo, um feixe de laser é direcionado à amostra, que se encontra em fluxo laminar em um meio líquido condutor de eletricidade. Cada partícula suspensa nesse meio – no caso, as células sanguíneas presentes na amostra – dispersa a luz de uma maneira diferente, ao ser atingida pelo laser. A luz dispersa é captada por detectores posicionados na linha do laser e perpendiculares a ele (forward scatter e side scatter, respectivamente), o que permite a avaliação de parâmetros físicos e químicos das células contidas na amostra. Esses equipamentos também possuem detectores de fluorescência, o que possibilita a adição, à amostra, de fluorocromos ou de anticorpos monoclonais acoplados a fluoróforos para a avaliação de parâmetros específicos, importantes no diagnóstico de algumas condições. A imunofenotipagem, por exemplo, usa de anticorpos monoclonais que reconhecem especificamente antígenos presentes em células neoplásicas ou em alguma subpopulação de leucócitos. Amostra Laser Fluido envoltório Fotomultiplicadores Digitalização Detectores FL1 FL2 FSC SSC FL3 Figura 13 – Representação esquemática de um citômetro de fluxo Fonte: Martins e Gagliani (2008, p. 8). 28 Unidade I Após a passagem pelos detectores, obtém-se um gráfico no qual cada ponto corresponde a uma célula, posicionada de acordo com sua complexidade (representada pelo valor do side scatter, ou SSC, no eixo x) e com seu tamanho (representado pelo forward scatter, ou FSC, no eixo y). 255 25 5 0 0 SS C- H FSC-H Figura 14 – Gráfico citometria de fluxo de amostra de sangue. Cada subpopulação de células encontra-se em uma posição Disponível em: https://bit.ly/3DL1ZzK. Acesso em: 18 nov. 2021. Observação Nos ensaios de citometria de fluxo, o principal parâmetro que determina a complexidade das células é a presença de grânulos citoplasmáticos (granulosidade). 2.2.2 Laboratóriomodular de hematologia O laboratório modular de hematologia (modular laboratory hematology) é uma plataforma que permite a análise de diversos parâmetros hematológicos e a avaliação do esfregaço sanguíneo, de maneira totalmente automatizada. Essa plataforma integra as etapas pré-analítica, analítica e pós-analítica, com o objetivo de aumentar a precisão dos resultados. A figura a seguir representa a organização básica de uma dessas plataformas. 29 BIOMEDICINA INTEGRADA Enfermarias de hospitais Laboratórios remotos 1. Estação pré-analítica 2. Analisador modular 3. Processador automático de lâminas 4. Analisador de imagens 1 2 22 4 3 Figura 15 – Representação esquemática da plataforma modular de hematologia Fonte: Lippi e Plebani (2018, p. 3). A análise é iniciada com o posicionamento das amostras de sangue, em tubos contendo EDTA, na estação pré-analítica. Em comparação com os métodos não automatizados ou semiautomatizados, o volume de sangue necessário é significativamente menor, o que gera economia de material de coleta e traz maior conforto para o paciente. O sangue, então, percorre os analisadores, que são arranjados em série e, na maioria dos modelos, compostos de um citômetro de fluxo, um contador hematológico e um espectrofotômetro. O analisador Sysmex® XE-2100D, por exemplo, avalia oito parâmetros relacionados às hemácias, treze relacionados aos leucócitos e dois relacionados às plaquetas. A citometria de fluxo é utilizada na contagem total e diferencial dos leucócitos; o contador hematológico realiza a contagem de hemácias e de plaquetas a partir do método da impedância; e a dosagem da hemoglobina é executada no espectrofotômetro pelo método do lauril sulfato de sódio, que envolve a lise das hemácias e a formação de ciano-hemoglobina (MACIEL; COMAR; BELTRAME, 2014). O processador automático de lâminas produz esfregaços para análise por um software que utiliza inteligência artificial. Após a coloração dos esfregaços, que ocorre também de maneira automatizada na plataforma, as imagens são digitalizadas e analisadas por redes neurais artificiais, que se baseiam em bancos de dados de elementos do sangue, para identificar as alterações, se presentes. As imagens digitalizadas podem, ainda, ser transmitidas para outros laboratórios, caso se identifique a necessidade de análises adicionais. Elas apresentam alta definição e, portanto, é possível aumentá-las muitas vezes sem que haja prejuízo na resolução. 30 Unidade I Observação Em microscopia, o termo resolução refere-se à menor distância na qual dois pontos podem ser visualizados como objetos distintos. Embora esse tipo de analisador tenha sido elaborado originalmente para a análise dos leucócitos, ele também é eficaz na avaliação da morfologia das hemácias e, portanto, confirma os resultados obtidos anteriormente. Assim, ao final da análise, além dos laudos de cada equipamento que compõe o sistema modular, será possível visualizar imagens que se correlacionam com quadros de anisocitose, hipocromia, micro e macrocitose, esferocitose etc. Ademais, o software tem sensibilidade suficiente para diagnosticar casos de infecções parasitárias, como, por exemplo, a malária. 2.3 Novos parâmetros hematológicos Com o advento das plataformas modulares automatizadas, tornou-se possível a avaliação de condições de urgência sem a necessidade de interferência na rotina laboratorial. Como resultado, foram desenvolvidos novos parâmetros: a contagem automatizada de granulócitos imaturos (IG), a contagem de plaquetas reticuladas (IPF) e o conteúdo de hemoglobina dos reticulócitos (RET-He). Eles facilitam o diagnóstico da sepse, das trombocitopenias e das anemias, respectivamente. Vamos, a partir de agora, conhecer esses parâmetros? 2.3.1 Contagem automatizada de granulócitos imaturos (IG) A sepse é a presença de bactérias ou de seus produtos tóxicos no sangue, que resulta no surgimento de manifestações clínicas importantes e, por vezes, fatais. Em casos de sepse, o diagnóstico precoce é essencial, pois, quanto mais rapidamente for diagnosticada a condição, melhor o prognóstico. Muitas vezes, a demora de algumas horas na detecção do quadro pode resultar em choque, em falência de órgãos ou até mesmo na morte do paciente. Do ponto de vista clínico, ela é caracterizada pela ocorrência de pelo menos dois dos sintomas a seguir. • Temperatura corporal maior que 38 °C ou menor que 36 °C. • Frequência cardíaca maior que 90 batimentos por minuto. • Frequência respiratória maior que 20 respirações por minuto ou pressão parcial de CO2 menor que 32 mmHg. 31 BIOMEDICINA INTEGRADA • Contagem de leucócitos no sangue periférico maior que 12.000/mm³, menor que 4.000/mm³ ou, ainda, mais de 10% dos leucócitos constituídos de formas jovens, o que indica que a produção dessas células está aumentada na medula óssea. Os neutrófilos são os principais leucócitos que se encontram aumentados, em um primeiro momento, frente a uma infecção bacteriana. Eles são granulócitos, pois apresentam granulações em seu citoplasma, e polimorfonucleares, uma vez que possuem núcleo lobulado, com diferentes formatos. Neutrófilo Eosinófilo Basófilo Figura 16 – Representação esquemática dos granulócitos/polimorfonucleares. Os neutrófilos estão envolvidos no combate às infecções bacterianas, os eosinófilos, às infecções parasitárias e às alergias; e os basófilos liberam histamina em reações de hipersensibilidade imediata Adaptada de: https://bit.ly/3cvuS7i. Acesso em: 18 nov. 2021. Além da ação dos neutrófilos, a resposta imunológica desencadeada pela infecção bacteriana que caracteriza a sepse resulta na produção de inúmeros mediadores, como, por exemplo, as interleucinas IL-1, IL-6, IL-8 e IL-10; o fator de necrose tumoral (TNF); e as proteínas de fase aguda PCR (proteína C reativa) e a procalcitonina. A detecção desses mediadores, principalmente das IL-6, 8 e 10, tem sido usada no diagnóstico precoce da sepse. No entanto, o alto custo desse exame e a meia-vida curta das moléculas são obstáculos para o uso desses marcadores na rotina. Com relação às proteínas de fase aguda, existem várias limitações para seu uso como indicador da sepse: os níveis séricos da proteína C reativa, por exemplo, aumentam durante infecções menores e podem permanecer elevados vários dias após a eliminação do foco infeccioso. No curso de uma infecção, inclusive na sepse, ocorre desvio à esquerda, com aumento na contagem de granulócitos imaturos, em especial os neutrófilos. Nesse contexto, o aparecimento de granulócitos imaturos no sangue periférico é um indicativo precoce do quadro de sepse, pois sinaliza que a medula óssea está produzindo mais células polimorfonucleares, principalmente, os neutrófilos, para combater a infecção. 32 Unidade I Os granulócitos imaturos apresentam, como principal característica, menor grau de segmentação nuclear, o que permite sua detecção ao microscópio óptico (técnica mais demorada e sujeita a erros do analista) ou por contadores automatizados multiparamétricos com citômetro de fluxo acoplado. A citometria de fluxo permite classificar os granulócitos de acordo com seu estágio de maturação (promielócitos, mielócitos, metamielócitos e bastonetes, em ordem crescente de maturação) e apresenta, como principais vantagens, a rapidez e a alta sensibilidade e especificidade. O protocolo envolve a incubação da amostra de sangue com um fluoróforo, normalmente o Fluorocel, seguido da lise seletiva da membrana dos leucócitos maduros. Como resultado, apenas os granulócitos imaturos, em seus diferentes estágios de desenvolvimento, permanecem íntegros e são avaliados quanto a seu tamanho, conteúdo de DNA e RNA, formato do núcleo, presença de granulosidades, entre outros parâmetros, a partir da passagem pelo citômetro de fluxo. 2.3.2 Contagem de plaquetas reticuladas (IPF) A trombocitopenia é uma condição caracterizada pela diminuição da contagem de plaquetas. Ela é resultado da produção insuficiente por parteda medula óssea (hipoprodução medular), da destruição acelerada das células (hiperdestruição periférica) ou do seu acúmulo no baço aumentado. Independentemente da causa, quando o número de plaquetas por microlitro de sangue atinge a marca de 10.000 a 20.000, podem ocorrer hemorragias sem nenhuma lesão reconhecida. No entanto, conhecer a causa da trombocitopenia é importante para direcionar o tratamento. O diagnóstico diferencial das trombocitopenias envolve a observação da morfologia da medula óssea. • Trombocitopenia por hipoprodução medular: é notada aplasia da medula ou proliferação de células anormais. • Quadro de hiperdestruição periférica: a produção de plaquetas é maior do que o normal, como modo de compensar as perdas, e ocorre liberação de formas imaturas para a circulação. As formas imaturas são denominadas plaquetas reticuladas. Elas apresentam volume aumentado, são mais densas e carregam conteúdo residual de RNA em seu citoplasma, o que as tornam adequadas para a detecção por sistema automatizado. O aumento da proporção relativa dessas células no plasma é indicativo de hiperdestruição periférica, conforme citado anteriormente. Sistemas automatizados multiparamétricos permitem a contagem das plaquetas pelo método da impedância. A classificação dessas células de acordo com seu estágio de maturação também pode ser realizada por citometria de fluxo, com a utilização de um fluoróforo que se liga especificamente às plaquetas reticuladas. Dessa maneira, é possível avaliar sua proporção em relação ao total de plaquetas, o que complementa, ou até substitui, o mielograma. 33 BIOMEDICINA INTEGRADA Observação Mielograma é a avaliação das células da medula óssea a partir da punção de um osso longo. Trata-se de um procedimento doloroso e, portanto, contraindicado em uma série de condições. 2.3.3 Conteúdo de hemoglobina dos reticulócitos (RET-He) A anemia é caracterizada pela diminuição da massa das hemácias e do seu conteúdo de hemoglobina. Como a hemoglobina é a macromolécula responsável pelo transporte de oxigênio dos pulmões para os tecidos, sua diminuição causa diferentes graus de hipóxia tecidual. Existem várias causas distintas de anemias, sendo as principais: diminuição da produção de eritropoietina pelos rins, hemólise intravascular e deficiência de ferro, de ácido fólico e/ou de vitamina B12. Dependendo da causa, as hemácias apresentarão características morfológicas específicas, o que permite sua diferenciação ao microscópio. • Na deficiência de eritropoietina, a contagem de hemácias está diminuída e, geralmente, a anemia é normocítica e normocrômica. • Na deficiência de ferro, a anemia é microcítica e hipocrômica. • Na deficiência de ácido fólico e/ou de vitamina B12, a anemia é macrocítica. Saiba mais Confira os tipos de anemia e suas características em: NAOUM, P. C. Anemias: classificação e diagnóstico diferencial. São Paulo: Universidade Estadual Paulista (Unesp), 2015. Disponível em: https:// bit.ly/3HO6Oe5. Acesso em: 18 nov. 2021. Nesse contexto, a avaliação da quantidade de hemoglobina contida nos reticulócitos, que são precursores das hemácias liberados na circulação sistêmica, possibilita a aferição indireta da quantidade de ferro disponível para a produção da hemoglobina nos últimos dois a quatro dias. Além disso, é possível avaliar a resposta da medula óssea frente à terapia de ferro intravenoso e/ou ao tratamento com eritropoetina recombinante humana. A quantificação da hemoglobina contida nos reticulócitos é realizada a partir da medida do volume dessas células e da determinação da concentração de hemoglobina contida em seu interior. Os resultados são expressos como o valor médio da massa de hemoglobina em cada célula. 34 Unidade I 2.4 Técnicas de biologia molecular aplicadas ao diagnóstico das hemoglobinopatias As hemoglobinopatias são um grupo de doenças, de origem genética, caracterizadas por alterações na estrutura da hemoglobina. As mais comuns são a anemia falciforme e as talassemias. A hemoglobina é uma macromolécula constituída por quatro grupamentos heme, sendo que cada um deles apresenta um átomo de ferro (Fe2+) e dois pares de cadeias de globinas, com um par formado por cadeias do tipo alfa e o outro constituído por cadeias do tipo não alfa. Combinações entre diferentes cadeias de globinas, cada uma codificada por um gene diferente, originam tipos distintos de hemoglobinas, que são produzidas ao longo do desenvolvimento humano desde o período embrionário até a vida adulta. As mutações nos genes que codificam essas globinas dão origem às diversas hemoglobinopatias. O diagnóstico das hemoglobinopatias normalmente é feito pela eletroforese de hemoglobina e pela cromatografia em alta performance (HPLC, high performance liquid chromatography), esta última realizada a partir de amostra de sangue proveniente do teste de triagem neonatal. Devem ser considerados os dados clínicos do paciente, o padrão de herança genética, a distribuição de casos na família, a idade do paciente, o tempo de estocagem e as condições de armazenamento da amostra. O hemograma complementa o diagnóstico, uma vez que permite a avaliação dos parâmetros hematimétricos, que podem estar alterados. Os testes moleculares são uma alternativa rápida e eficaz para diagnosticar as alterações nos genes que codificam as cadeias de globina. Eles são baseados nos ensaios de reação em cadeia da polimerase (PCR, polymerase chain reaction) e em ensaios de RFLP (restriction fragment length polymorphism). Os ensaios de PCR baseiam-se na amplificação de sequências específicas do gene de globina que podem conter a mutação relacionada com a doença que se deseja pesquisar. Observação As hemácias não apresentam DNA e, portanto, o material genético analisado é originário dos leucócitos ou de outros tipos celulares. As sequências amplificadas podem ser sequenciadas, a fim de verificar a presença de mutações, ou submetidas aos estudos de RFLP, que se baseiam na ação de endonucleases, que clivam regiões específicas do DNA. Os ensaios de RFLP permitem observar se existem diferenças no padrão de bandas formadas após a digestão, o que indica que há mutações na sequência analisada. 35 BIOMEDICINA INTEGRADA Como principais vantagens das técnicas moleculares, temos rapidez, elevados parâmetros de sensibilidade e especificidade, além da possibilidade de analisar os genes de todas as globinas. Saiba mais A fim de verificar as etapas da reação em cadeia da polimerase, acesse: OLIVEIRA, M. C. S. Fundamentos teórico-práticos e protocolos de extração e de amplificação de DNA por meio da técnica de reação em cadeia da polimerase. São Carlos: Embrapa Pecuária Sudeste, 2007. Disponível em: https://bit.ly/3FEpwTN. Acesso em: 18 nov. 2021. Observação O biomédico que atua não apenas na hematologia, como em outras áreas, precisa ficar atento para as técnicas de biologia molecular que vêm, cada vez mais, sendo usadas no diagnóstico de doenças. 3 MICROARRANJOS DE DNA (MICROARRAYS) Você conhece alguma técnica que possibilite a avaliação simultânea de vários loci de DNA de modo a proporcionar a verificação do perfil de polimorfismos nos genes de um indivíduo? Uma técnica que, além disso, permita checar o perfil de transcrição da célula a partir da avaliação dos RNAs mensageiros produzidos? Você entende como esse tipo de avaliação é importante para determinarmos os genes envolvidos em diferentes patologias? Essa técnica existe, e se chama microarranjos, ou microarrays, de DNA. As instruções para a fabricação das proteínas pelas nossas células encontram-se nos genes que compõem o nosso DNA. Esses genes não são idênticos em toda a população, eles podem apresentar mutações ao longo de suas sequências, o que resulta em diferentes consequências funcionais. As mutações do DNA incluem os polimorfismos de nucleotídeo único; as inserções e deleções de nucleotídeos individuais ou de sequências de nucleotídeos; e a duplicação ou deleção de genes.Uma das maneiras de detectar e estudar essas mutações é por meio da utilização dos microarranjos de DNA. 36 Unidade I Os microarranjos de DNA, microarrays, ou chips de DNA, são um tipo de análise bidimensional que se baseia na adição do material genético em uma placa que contém vários pontos, cada um com uma sonda de DNA específica. Se, no material adicionado, houver uma sequência de nucleotídeos complementar à sequência de determinada sonda, é gerado um sinal fluorescente. Por ser capaz de identificar a presença de mutações, principalmente aquelas que envolvem pequenos fragmentos do DNA, essa técnica é uma importante ferramenta na análise da farmacogenômica, no diagnóstico de doenças genéticas e até mesmo nas análises forenses. Os ensaios com microarranjos de DNA permitem que várias sequências sejam analisadas ao mesmo tempo, o que possibilita a avaliação do perfil genético do indivíduo em relação a determinada condição – pode-se, por exemplo, verificar sequências gênicas importantes na resposta a um fármaco, ou ainda as mutações em genes relacionados a dado câncer. Vamos, a partir de agora, aprender mais sobre essa metodologia, que vem sendo utilizada desde o final do século passado para diferentes objetivos. • Tópico 3.1: fundamentos da técnica de microarranjos de DNA e descrição de suas etapas experimentais. • Tópico 3.2: conhecimentos dos diferentes tipos de microarranjos disponíveis na atualidade. • Tópico 3.3: discussão acerca das principais aplicações dessa técnica, tanto na pesquisa básica quanto no diagnóstico laboratorial de doenças. 3.1 Fundamentos dos ensaios com microarranjos de DNA Um microarranjo de DNA nada mais é do que uma placa na qual são depositadas sondas de DNA de fita simples em diferentes pontos (spots). Cada uma delas contém vários spots, e cada spot possui milhares de sondas com sequências de DNA idênticas entre si. A análise da expressão gênica por ensaios com microarranjos de DNA envolve as seguintes etapas: • As sondas são fabricadas e adicionadas à placa, formando os microarranjos. • A amostra biológica é coletada e seu mRNA é extraído e submetido à transcrição reversa. • Ao cDNA resultante, é adicionado um fluoróforo. • As moléculas de cDNA marcadas são adicionadas à placa com os microarranjos. • Nos pontos onde houve hibridização do cDNA com a sonda, há geração de um sinal fluorescente. • A placa é escaneada e processada por um software, o que permite determinar quais genes são diferencialmente expressos nas condições analisadas. 37 BIOMEDICINA INTEGRADA Essas etapas estão representadas na figura a seguir. Extração do mRNA Transcrição reversa e adição de fluoróforo ao cDNA Adição do cDNA à placa e hibridização com as sondas Análise dos resultados mRNA cDNA Transcriptase reversa Microarranjo de DNA Remoção de sondas não hibridizadas Célula controle Célula alterada Figura 17 – Representação esquemática dos ensaios com microarranjos de DNA Adaptada de: https://bit.ly/3HFOjbJ. Acesso em: 18 nov. 2021. A seguir, consta a descrição de todas as etapas dos ensaios com microarranjos de DNA, desde o processamento do material biológico até a interpretação final dos resultados. 3.1.1 Fabricação das sondas de DNA As sondas de DNA utilizadas nos microarranjos são sequências de DNA simples feitas de aproximadamente 25 a 80 nucleotídeos. Cada placa de microarranjos pode conter milhares de sondas diferentes, cada uma posicionada em um ponto (spot) específico. Essas sondas são fragmentos de genes relacionados – ou que se desconfia que estejam relacionados – a alguma condição (câncer, doenças genéticas etc.). A ideia é avaliar se existe, na amostra a ser testada, material genético complementar. Assim, o conjunto de sondas utilizadas depende do objetivo do ensaio. Por exemplo, sequências de genes marcadores de neoplasias malignas são usados no estudo de células de câncer; e sequências de um gene com diferentes combinações de polimorfismos, na investigação de uma doença genética. 38 Unidade I 3.1.2 Processamento da amostra biológica Nosso DNA é constituído de vários genes, que são “lidos” por enzimas (RNA polimerases), capazes de produzir uma fita simples de RNA complementar à sequência lida. Esse RNA, após ser processado, passa a se chamar RNA mensageiro (mRNA) e vai para o citoplasma, a fim de fornecer aos ribossomos a informação necessária para que uma determinada proteína seja produzida. Nos ensaios de microarranjos, o mRNA das células de interesse é extraído e submetido a uma reação denominada RT-PCR (reverse transcription – polymerase chain reaction), ou transcrição reversa. Ela é responsável por produzir uma cópia de DNA complementar à sequência do mRNA e, portanto, idêntica à sequência codificadora do gene de origem. Chamamos esse DNA complementar de cDNA. A A A A T T T T A A A A T T T T A A T T A A T T A A T T A A T T A A T T A A T T U U T T A A A A U U T T A A A A U U T T A A A A G G G G C C C C G G G G C C C C G G G G C C C C C C C C G G G G C C C C G G G G C C C C G G G G 5’ 5’ 3’ 3’ (1) (4) (5) (6) 3’ 3’ 5’ 5’ Transcriptase reversa Transcriptase reversa A A A T A T A T A T A T A T U U UG G GC C C 5’ 3’ (2) 3’ 5’ A T A T A T A T A T A T A T A T U A U A U A G C G C G C C G C G C G 5’ dNTPs (3) 3’ 5’ cDNA cDNA Figura 18 – Etapas do RT-PCR: (1) isolamento do RNA molde; (2) adição de oligonucleotídeos iniciadores (primers) complementares ao RNA; (3) adição de nucleotídeos livres (dNTPs) e da transcriptase reversa, que se liga à região dupla fita referente à ligação do primer ao RNA; (4) a transcriptase reversa realiza a extensão da dupla fita a partir da incorporação dos nucleotídeos livres complementares à sequência de RNA; (5) a primeira fita de cDNA ainda é simples fita; (6) essa simples fita de cDNA servirá de molde para a obtenção de cDNA dupla fita Adaptada de: https://bit.ly/3qNDyOK. Acesso em: 18 nov. 2021. Observação Deve-se sintetizar o DNA complementar ao mRNA da amostra antes de realizar o ensaio, pois as moléculas de mRNA são muito instáveis e degradam rapidamente. Portanto, nos ensaios com microarranjos de DNA, analisamos, indiretamente, o conjunto de mRNAs presentes na amostra biológica. Como cada molécula de mRNA carrega a instrução para a produção de uma proteína, essa é uma maneira de avaliar, indiretamente, a expressão proteica das células. Quando o cDNA é produzido, ele é ligado a um fluoróforo, que é uma molécula que emite um sinal fluorescente no momento da sua ligação com a sonda. 39 BIOMEDICINA INTEGRADA 3.1.3 Hibridização do cDNA às sondas Se adicionarmos o cDNA recém-produzido e marcado à placa com microarranjos, o que acontece? Nos pontos onde houver complementariedade entre a sonda e uma sequência de cDNA, ocorre o que chamamos de hibridização, que é marcada pela emissão de um sinal fluorescente. Portanto, toda vez que houver emissão de fluorescência, nós saberemos que a sequência da sonda adicionada àquele ponto da placa estava no conjunto de mRNA da célula estudada. Além disso, quanto mais intensa for a fluorescência, mais cópias de mRNA com aquela sequência existiam na amostra original. 3.1.4 Análise e interpretação dos resultados Após a etapa de hibridização, as placas são lavadas para que as moléculas que não se ligaram sejam eliminadas. Em seguida, uma imagem digitalizada da placa é analisada com o auxílio de um software específico. Uma das aplicações clássicas da técnica de microarranjos de DNA é a comparação entre amostras de células neoplásicas e de células controle (sem neoplasia). Para isso, é necessário usar sondas de cores diferentes em cada amostra – por exemplo, o cDNA correspondente às células neoplásicas, recebe fluoróforo vermelho, enquanto que o cDNA das células controle recebe fluoróforo verde. Quando o sinal em determinado spot for vermelho, significa que aquelasequência está presente somente nas células neoplásicas; quando o sinal for verde, a sequência está associada apenas às células controle; sinais amarelos querem dizer que a sequência está em ambos os grupos de células (controle e neoplásicas). Figura 19 – Exemplo de uma placa de microarranjos de DNA. Cada ponto corresponde a um spot, que contém sondas com sequências específicas. Os pontos coloridos indicam que houve hibridização da sonda com sequências-alvo do DNA Disponível em: https://bit.ly/30DiLCY. Acesso em: 18 nov. 2021. 40 Unidade I Saiba mais O artigo a seguir fala sobre o uso dos microarranjos de DNA no diagnóstico do câncer, ele encontra-se disponível em: COSTA, C. C. P. et al. Aplicação da hibridização genômica comparativa no diagnóstico e prognóstico das doenças oncológicas. Cereus, v. 12, n. 2. Disponível em: https://bit.ly/3FIKbpC. Acesso em: 18 nov. 2021. 3.2 Tipos de microarranjos Existem diferentes configurações de microarranjos, o que torna a técnica muito versátil. Vamos, a partir de agora, conhecê-las. Nos microarranjos de DNA, as sondas são sequências de DNA dupla fita ou simples fita. Elas podem ser impressas em uma superfície de vidro (microarranjo impresso), sintetizadas diretamente em uma superfície sólida (microarranjo de oligonucleotídeo sintetizado in situ), adicionadas a grânulos de sílica (microarranjo de alta densidade) ou depositados na placa por ação de um campo elétrico (microarranjo eletrônico). Todas essas técnicas são bidimensionais, ou seja, planares, por serem realizadas em uma placa. A técnica de microarranjos em suspensão, por sua vez, não é realizada em placa. Nela, as sondas são adicionadas em grânulos suspensos ou em um líquido, o que permite sua análise em citômetro de fluxo após a hibridização. Lembrete Citometria de fluxo é uma técnica utilizada para contar, examinar e classificar partículas microscópicas suspensas em meio líquido em fluxo. Com relação ao material genético, embora a maioria dos ensaios utilize o cDNA sintetizado a partir do mRNA extraído da amostra de interesse, é possível também utilizar fragmentos amplificados, por PCR, diretamente dos genes. Esse tipo de estratégia é utilizado principalmente para detectar mutações ou polimorfismos. Além dos microarranjos de DNA, existem ensaios de microarranjos que são baseados na detecção da interação entre proteínas ou de proteínas com o DNA. Nos microarranjos de proteínas, as “sondas” são proteínas, peptídeos ou anticorpos depositados em pontos específicos de uma placa, à semelhança do procedimento realizado com as sondas de DNA. A interação entre as proteínas fixadas na placa e aquelas da amostra, às quais foram adicionados fluoróforos, resulta na emissão de um sinal fluorescente. 41 BIOMEDICINA INTEGRADA Essa técnica possibilita o rastreamento simultâneo de uma grande quantidade de proteínas, e, consequentemente, resultados rápidos e abrangentes. 1. Adição de proteínas, anticorpos e/ou peptídeos à placa 2. Incubação com a amostra (amostra) 3. Ligação específica 4. Visualização da fluorescência Figura 20 – Representação esquemática de microarranjo de proteínas Adaptada de: Neagu, Bostan e Constantin (2019). Um exemplo desse tipo de ensaio é o estudo realizado por Jiang e colaboradores em 2020. Eles construíram um microarranjo contendo 18 das 28 proteínas presentes no envelope do Sars-Cov-2 e adicionaram o soro de pacientes já infectados com o vírus para determinar quais proteínas servem de antígenos para o estabelecimento de uma resposta imune humoral. Os resultados indicaram que todos os pacientes testados tinham anticorpos contra a proteína N e a proteína S1. Estudos assim auxiliam no desenvolvimento de vacinas e de testes diagnósticos para a Covid-19. Há outro tipo de microarranjo que possibilita a análise da interação entre o DNA e as proteínas. Essa técnica chama-se chIP-on-chip e consiste na imunoprecipitação da cromatina (chIP, chromatin immunoprecipitation) e em microarranjos de DNA (chips de DNA). Ela permite a avaliação de proteínas que atuam no contexto da cromatina, como, por exemplo, as histonas, os fatores de transcrição, os fatores de regulação gênica etc. Nos estudos de chIP-on-chip, o DNA genômico, contendo as proteínas associadas, é isolado, processado e submetido a uma placa com anticorpos que reconhecem especificamente a proteína que se deseja estudar, o que possibilita o isolamento da sequência de DNA associada a ela. A sequência de DNA que se associa à proteína de interesse é então amplificada e adicionada de um fluoróforo. Em seguida, ela é submetida a uma placa de microarranjos com diferentes fragmentos de DNA. A presença de fluorescência indica a localização, na placa, dos fragmentos complementares ao DNA-alvo. 42 Unidade I Observação Os ensaios realizados com anticorpos específicos adsorvidos em uma placa para detecção de proteínas específicas são denominados ensaios de elisa (enzyme-linked immunosorbent assay). A técnica de chIP-on-chip auxilia na compreensão das proteínas que participam da regulação das funções do DNA em diferentes tipos celulares. DNA genômico Processamento do DNA genômico Hibridização Microarranjos de DNA Imunoprecipitação Matriz Anticorpo Purificação, amplificação e adição do fluoróforo POI POI POI PROT PROT POI Figura 21 – Técnica de chIP-on-chip. As proteínas de interesse (POI, do inglês proteins of interest) estão indicadas pelas circunferências azuis Adaptada de: https://bit.ly/3kS4Yz2. Acesso em: 18 nov. 2021. 3.3 Aplicação dos ensaios com microarranjos na pesquisa e no diagnóstico Vamos, agora, explorar os principais usos dos ensaios com microarranjos de DNA na atualidade. Eles são muito utilizados no campo da pesquisa básica para se descobrir genes que estejam relacionados com o desenvolvimento de patologias e, como já discutido, avaliar a relação de mutações com diferentes doenças. 43 BIOMEDICINA INTEGRADA Tais estudos permitiram o desenvolvimento de kits para o diagnóstico de várias condições de saúde e, hoje, o uso de microarranjos de DNA nas análises clínicas já é uma realidade. Observação Antes do advento dos ensaios com microarranjos de DNA, não era possível analisar milhares de genes simultaneamente, o que tornava a avaliação do conjunto de genes envolvidos em uma doença custosa e extremamente demorada. 3.3.1 Uso dos microarranjos de DNA na pesquisa Uma rápida busca no site PubMed, em julho de 2021, utilizando as palavras-chave “DNA microarrays” mostrou que 35.976 artigos foram depositados na base de dados nos últimos 10 anos! Observação PubMed é um motor de busca de livre acesso à base de dados Medline de citações e resumos de artigos científicos na área biomédica. Ele é oferecido pela Biblioteca Nacional de Medicina dos Estados Unidos da América. Os ensaios de microarranjos de DNA foram utilizados como ferramenta para entender o papel de diferentes genes em diversas condições: nas desordens psiquiátricas; nas doenças cardiovasculares; em diferentes tipos de câncer; em algumas doenças infecciosas; nas alergias; na maturação dos sistemas orgânicos durante a embriogênese; entre outros. A técnica tem sido utilizada inclusive na investigação de aspectos relacionados à infecção pelo vírus Sars-Cov-2. Existem estudos, por exemplo, que relacionam os polimorfismos no gene CCR5, que codifica um receptor de citocina, com a severidade da doença (CANTALUPO et al., 2021); que identificam os genes relacionados com as manifestações clínicas durante a remissão da doença (DUBÉ et al., 2021); e que avaliam a susceptibilidade genética associada à manifestação dos sintomas respiratórios (DU et al., 2021). Saiba mais Os estudos citados anteriormente estão disponíveis no site PubMed. É possível consultá-los em: Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/. Acesso em: 18 nov. 2021. 44 Unidade I 3.3.2 Uso dos microarranjos de DNA no diagnóstico Os microarranjos de DNA já são uma realidade nas análises
Compartilhar