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A AUDIOVISÃO SOM E IMAGEM NO CINEMA texto grafia Ouvrage publié avec le soutien du Centre National du Livre _ Ministêre Français Chargé de Ia Culture - et avec le soutien des Programmes d'aide à Ia publication de l'Institut Français Obra publicada com o apoio do Centro Nacional do Livro - Ministério Francês da Cultura - e com o apoio dos Programas de Apoio a Publicação do Instituto Francês Título original: L'audio-vision : son et image au cinema Tradução: Pedro Elói Duarte Revisão: Gabinete Editorial Texto & Grafia Grafismo: Cristina Leal Paginação: Vitor Pedro © Armand Colin, 2008 Todos os direitos desta edição reservados para Edições Texto & Grafia, Lda. Avenida Óscar Monteiro Torres, n.? 55, 2.° Esq. 1000-217 Lisboa Telefone: 21 7977066 Fax: 21 797 81 03 E-mail: texto-grafia@texto-grafia.pt www.texto-grafia.pt Impressão e acabamento: Papelmunde, SMG, Lda. L" edição, janeiro de 2011 ISBN: 978-989-8285-24-9 Depósito Legal n.O322298/11 Esta obra está protegida pela lei. Não pode ser reproduzida no todo ou em parte, qualquer que seja o modo utilizado, sem a autorização do Editor. Qualquer transgressão à lei do Direito de Autor será passível de procedimento judicial. O texto deste livro segue as normas do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990. MI·MÉ-SIS ARTES E ESPETACULO A organização contemporânea da sociedade coabita, de forma nem sempre harmoniosa, com a fruição do espetáculo nas suas mais variadas expressões. Uma coleção de livros sobre as artes do espetáculo que delas preco- nizem uma vivência madura justifica-se pela necessidade de reordenar o nosso espaço de participação e adesão críticas; na realidade, o fenómeno do espetáculo encerra dimensões recônditas, a que razão e emoção devem ter igual acesso. Em "Mi.rné.sis" terão presença obras de natureza estética, técnica, informativa, ou simplesmente lúdica; e, como não poderia deixar de ser, o cinema, o teatro; a dança, a música, entre outros, serão os protagonistas desta coleção. INTRODUÇÃO Até agora, as teorias sobre o cinema, no seu todo, têm escamoteado mais ou menos a questão do som: quer não o levando em conta, quertratando-o como um domínio reservado e menor. Embora alguns investigadores tenham proposto ideias muito férteis sobre a matéria, os seus contributos não foram suficientemente influentes para que se empreendesse uma reconsideração do conjunto do cinema em função do lugar que nele ocupa o som desde há mais de sessenta anos I. E, no entanto, os filmes, a televisão e os media audiovisuais em geral não se dirigem apenas à visão. Suscitam no espetador - no seu «audioes- petador» - uma atitude percetiva específica, que, nesta obra, propomos chamar a audiooisâo. Trata-se de uma atividade que, estranhamente, nunca é considerada na sua novidade: continua-se a dizer «ver» um filme ou um programa, ignorando a modificação introduzida pela banda sonora. Ou então, contentamo-nos com um esquema aditivo. Assistir a um espetáculo audiovisual equivale- ria, em suma, a ver imagens e a ouvir sons, mantendo-se cada perceção perfeitamente isolada. O objetivo deste livro é mostrar como, na verdade, no contrato audiovi- sual, uma perceção influencia a outra e a transforma: não «vemos» a mesma coisa quando ouvimos; não «ouvimos» a mesma coisa quando vemos. O problema já não é, portanto, o de uma suposta redundância entre os dois domínios, nem de uma relação de forças entre eles (a famosa questão, levantada nos anos 1970, «o que é mais importante, o som ou a imagern?»). Esta obra é, em simultâneo, teórica e prática, uma vez que, ao descrever e formular a relação audiovisual como contrato (ou seja, como o oposto de uma relação natural que remete para uma harmonia preexistente entre as perceções), esboça um método de observação e de análise suscetível de ser aplicado aos filmes, aos programas de televisão, aos vídeos, etc.; e resultante de numerosas intervenções pedagógicas. Os capítulos que constituem a primeira parte - «O contrato audiovisual» - resumem uma série de respostas possíveis; os capítulos seguintes - «Para além dos sons e das imagens» - tentam formular as questões e ir além das barreiras estabelecidas e das visões demasiado compartimentadas. O cinema é o principal implicado, mas os casos particulares da televisão, do vídeo e do clipe são considerados num capítulo distinto. 1 Desde os anos 1930, portanto, uma vez que o texto desta introdução foi escrito em 1990. [N. T.] 7 Este estudo deve muito a encontros e trocas de opiniões com estudantes do IDHEC (Institut des hautes études cinématographiques), do IDA, do DERCAV (Département d'Etudes et de Recherches Cinématographiques et Audiovisuelles), do INSAS (Institut National Supérieur des Arts du Spectacle) de Bruxelas, do Centre Parisien d'Études Critiques de P~ris, da École des Arts de Lausana, da associação Gen Lock de Genebra, do ACT de Tolosa e da Universidade de Iowa City. Agradecemos aos professores e responsáveis destes diferentes centros, bem como, pelas suas reações frutuosas, a Christianne Sacco-Zagatoli, Rick Altman, Patrice Rollet e, naturalmente, a Michel Marie, a quem este livro deve a existência. M. c., outubro de 1990 Após a publicação original desta obra, saíram outros três ensaios (Le Promeneur écountant, 1993; La Musique au cinema, 1995; Le Son, 1998), bem como numerosos artigos (nomeadamente na revista Brej), que for- necem novos desenvolvimentos e, em certos casos, alguns novos conceitos sobre os temas aqui abordados. Mas esta obra - desde então traduzida em inglês, italiano e castelhano - continua a ser a síntese mais completa da nossa abordagem global ao «contrato audiovisual», e é por isso que a voltamos a publicar tal como no original, sem alterações. M. c., novembro de 1997 8 Primeira Parte o contrato audiovisual Capítulo 1 Projeções do som sobre a imagem I. A ilusáo audiovisual As luzes da sala apagam-se, o filme começa. No ecrâ, sucedem-se as imagens, brutais, enigmáticas: uma projeção de cinema, a película em grande plano ... Cenastraumatizantes de animais sacrificados. Uma mão a ser pregada. Em seguida, uma morgue, onde o tempo quotidiano se arrasta; nesta morgue, uma criança que parece inicialmente um cadáver como os outros, e que realmente se mexe, desperta, lê um livro, aproxima a mão da superfície do ecrâ e, sob essa mão, parece formar-se o rosto de uma mulher muito bela. Eis o que vimos. É a sequência inicial de Persona, de Bergman, que foi analisada em livros e em cursos, por um Raymond Bellour, um David Bordwell ou uma Marylin Johns Blackwell. E o filme poderia continuar a desenrolar-se assim. Stop! Rebobinemos o filme de Bergman desde o início e, muito simplesmente, cortemos o som, para tentar ver o filme esquecendo aquilo que vimos antes. Agora, aquilo que «vemos» é outra coisa. Em primeiro lugar, o plano da mão pregada: no silêncio, percebemos que se tratava de três planos distintos, embora só tivéssemos visto um, porque estavam encadeados pelo som. Sobretudo, privada de som, a mão d ê ab \.../;C'~/ ~. )../"J d I A . dprega a e a strata. om som, e aterra ora, rea. s imagens a morgue: sem o som que as ligava (a água a gotejar), descobrimos uma série de foto- grafias fixas, bocados de corpos isolados uns atrás dos outros, desprovidos de espaço e de tempo. E a mão direita do rapaz, sem a nota vibrante que acompanha e estrutura a sua exploração, deixa de formar o rosto, move-se simplesmente ao acaso, sem objetivo. Toda a sequência perdeu o seu ritmo e a sua unidade. Seria Bergman um realizador sobrestimado? Seria o som a máscara de uma imagem vazia? - --06servemos agori umã-seqlíência conhecida de Tati, em As Férias do Senhor Hulot (Les Vacances de Monsieur Hulot): numa pequena praia 11 balnear, alguns gags subtis fazem-nos rir. E os veraneantes são tão divertidos, com o seu ar compen~trado, em não se divertirem, em se preocuparem! Agora, cortemos a Imagem, e surpresa! Tal como a face oposta da ima- g~m, .surgeout.ro filme, que «vemos» agora apenas com os nossos ouvidos: ha gntos de c~Ianças quese divertem e brincam, vozes que ressoam num espaço de ar Íivre, todo um mundo de brincadeira e de animação. Estava lá, no som, e não estava lá! Restituamos agora a Bergman os seus sons e a Tati a sua imagem, e tudo volta ao normal. A mão a ser pregada impressiona, a criança modela o~ seus ~ostos, os ve~aneantes têm um ar estranho, e alguns barulhos que nao ouviamos especialmente, quando só havia som, saem da imagem como balões de banda desenhada. Só que, agora, lemos e ouvimos de outra maneira. . Será o cinem~, arte da ima~em, uma ilusão?Evidentemente, como podia deixar de ser? E e realmente disto que fala este livro: da ilusão audiovisual. . Uma ilusão que se encontra, para começar, no centro da relação mais Importante entre som e imagem: a relação (acima ilustrada por Bergman) do valor acrescentado. 11. O valor acrescentado: definição Por valor acrescentado, designamos o vaIo expressivo e informativo com que um s m enriquece uma determina a ima em até dar ~a impressã~ irne iata quá-áe}:r;e r m ou na reQaç:1o q~e dela se guarda, que essa ~nform~~ão ~u essa expressão. decorre «naturalmente» daquilo qu~ vemos e que.J~ esta contida apenas na imagem. E até dar a impressão, errunentemente Injusta, de que o som é inútil e de que reforça um sentido que, na v~rdade, ele dá e cria, sejapor inteiro, sejapela sua própria diferença com aquilo que se vê. Este fenómeno de valor acrescentado funciona, sobretudo, no âmbito do sincro?ismo som/ima em pelo princípio da síncrise (ver capítulo 3), que permite estabelecer uma rela ão imediata e necessária entre ual uer soisa que se vê e ualquer coisa ue se ouve. ~m particula~, tudo aquilo que no ecrâ é choque, queda ou explosão rnais .ou menos SImulados ou realizados com materiais pouco resistentes, a~m o som.uma consistênciaJ:....u.gl<l,ma ialidade ue e im~. Mas, em pnrnerro lugar, ao nível mãis primitivo, o valor acrescentado é o do texto sobre a imagem. Porquê começar por falar de texto? Porque o cinema é vococêntrico e mais precisamente, verbocêntrico. ' 12 lU. Valor acrescentado pelo texto 111.1Vococentrismo e verbocentrismo do cinema Afirmar que, no cinema, o som é maioritariamente vococêntrico sig- nifica lembrar que, em quase todos os casos, favorece a voz, evidencia-a e destaca-a dos outros sons. É a voz que, na rodagem, é captada na tomada de som, que é quase sempre, de facto, uma tomada de voz; e é a voz que se isola na mistura, como um instrumento solista, do qual os outros sons, músicas e ruídos, seriam apenas o acompanhamento. Do mesmo modo, grande parte do aperfeiçoamento tecnológico no campo da captação de som nas rodagens (invenção de novos microfones e de novos sistemas de captação) concentrou-se na fala. Porque, está daro, não se trata da voz dos gritos e dos gemidos, mas da voz enquanto suporte da expressão verbal. E aquilo que se procura obter quando a captamos não é tanto a fidelidade acústica ao seu timbre original, mas a garantia de uma inteligibilidade dara das palavras pronunciadas. O voe centrismo de que falamos é então, quase semPre, um verboce trismo.~ ~~~~--......---- '--' Mas se, no cinema, o som é vococêntrico e verbocêntrico, isso deve- -se, desde logo, ao facto de as pessoas, no seu comportamento e reações quotidianos, também o serem. Se o ser humano ouvir vozes no meio de outros sons que o rodeiam (sopro do vento, música, veículos), são essas vozes que captam e concentram logo a sua atenção. Depois, em rigor, se as conhecer e souber quem está a falar e o que dizem, poderá então interessar-se pelo resto. U Se essas vozes falarem numa língua que lhe seja acessível, vai começar por procurar o sentido das palavras, e só passará à interpretação dos outros elementos quando o seu interesse sobre o sentido estiver saturado. 111.2 O texto estrutura a visáo Há um exemplo eloquente muito utilizado para demonstrar o valor acrescentado pelo texto, retirado de um programa televisivo transmitido em 1984. Nesse programa, vemos um festival aéreo que se desenrola em Inglaterra, comentado a partir de um estúdio francês pelo jornalista Léon Zitrone. Visivelmente desconcertado face às imagens que lhe chegam em desordem, o apresentador faz, porém, o melhor que pode. Num dado momento, afirma «são três pequenos aviões», face a uma imagem na qual . vemos bem três pequenos aviões sobre um fundo de céu azul - e a enor- midade da redundância não deixa de causar risos. No entanto, Zitrone poderia também ter dito: «Hoje, o tempo está magnífico», e só teríamos «visto» isso na imagem, na qual, com efeito, não havia qualquer nuvem visível. Ou poderia ter dito: «osdois primeiros avióes 13 têm um avanço sobre o terceiro», e toda a gente podia então ver isso. Ou ainda: «Para onde foi o quarto?» - e a ausência deste último avião, saído da cartola de Zitrone pelo puro poder do Verbo, teria saltado igualmente aos olhos. Em suma, o comentador poderia ter dito dezenas de outras coisas igualmente «redundantes», mas de uma redundância ilusória, uma vez que cada uma dessas coisas teria guiado e estruturado a nossa visão tão bem que as teríamos «visto» naturalmente. A fragilidade e os limites da célebre demonstração, j~ criticada por Pascal Bonitzer noutro plano, que Chris Marker pretendeu fazer no seu documentá rio Lettre de Sibérie, quando cola numa mesma sequência anódina vários comentários de inspiração política diferente (estalinista, antiestalinista, etc.), consiste no facto de dar a crer - pelos seus exemplos exagerados - que se trata apenas de uma questão de ideologia e que, à parte disso, haveria uma maneira neutra de falar. Ora, o valor acrescentado do texto sobre a imagem vai muito para além de uma opinião colada sobre uma visão (isto seria fácil de contestar), e é a própria estruturaçâo da visão que ele implica, enquadrando-a de uma forma rigorosa. De qualquer modo, a visão da imagem de cinema, fugaz e passageira, não se presta a ser explorada ao nosso ritmo, ao contrário de um quadro numa parede ou de uma fotografia num livro, que podemos explorar durante o tempo que quisermos, de maneira que é mais fácil vê-los separando-os das suas legendas e dos seus comentários. Assim, se a imagem de cinema ou de televisão parece falar por si mesma, trata-se, de facto, de uma fala ... de ventríloquo. E o plano dos três pequenos aviões num céu limpo, quando diz «três pequenos aviões», é uma ma~ioneta animada pela voz do cornentador, IV. Valor acrescentado pela música IY.l Efeito empático e anempático Há duas formas de a música criar no cinema uma emoção específica relativamente à situação mostrada. Numa das formas, a música exprime diretamente a sua partici12ação- d d d ../I~--....r~ ~na, an o o ritmo, o tom e o r seado adaptados, ist id ~-d"/"-"""""" d' dI'VI entemente em runçao lOS~o~s eu rurais a tnsteza, a a e~ e-ç:~~~clfmOs então fa ar de música empática (cio termo empada: tacu a e cIê' partilhar os sentimentos dos outros). ~, pelo contrário, a mús~ manifesta uma indiferença ostensiv I . ,. - d "'-/ I -.J-------~/.- d~l4:am.enteÂ~~ao esenro anuo-se ue maneira I~ual, impávida e. ',/,"-../ .../ ~ ~~. mexoravel, como um texto escnto - e e sobre esse oro no fundo de (~Jndi-/"~ _l"-- _ _q~nça» q~c::.st:...?lest;.Q~.~_~~.:na,o que tem por efeito não a suspensão da 14 emo ão, mas elo contrário, o seu reforço, inscrevendo-a num fundo cós- mico. Exemplos deste segundo caso, a que se pode chamar anempático (com um «a» privativo), são as numerosas músicas de piano mecânico, de celesta, de caixa de música e de orquestra de baile cuja frivolidade e ingenuidade estudadas reforçam, nos filmes, a emoção individual das personagens e do espetador, na medida em que afetam ignorá-Ias. Não há dúvida de que este efeito de indiferença cósmica já era utilizado em certas óperas, quando a emoção era de tal modo forte que paralisava as reações das personagens e provocava nelas uma espécie de regressão psicótica _ o famoso efeito de loucura, a melopeia que o louco emite abanando-se um lado para o outro, etc. Mas, no ecrâ, este efeito anempático adquiriu tal importânciaque se pode considerar que tem uma relação íntima com a essência do cinema: a sua mecânica escondida. De facto, qualquer filme resulta de um desenrolar indiferente e auto- mático, o da projeção, que provoca no ecrã e nos altifalantes~~~~~de ~ - e esse desenrolar deve ser escondido e esquecido. A música anempática mais não faz do que revelar a sua verda~3..sua fa~ robótica. É a música que Faz aparecer a trama mecânica desta tapeçaria emocional e sensorial. Existem também músicas que não são empáticas nem anempáticas, "que ~'~~fi ~~~~ I./d ~ Am um sentido abstrato ou urna mera runçao ue presença, u va QJ;, ue, . ~~.~ <:>: <, ---/~~ ~ <:» aca irifórmativa .:::...em todo o caso, sem ressonância .~E-al. IY.2 Ruídos anempáticos O efeito anem12ático, na maioria dos casos, diz res eito à m" ,...mas po~ambém utilizado com ruídos: or exemplo, quando, numa cena muito violenta ou após a morte de uma personagem; um processo qualquer (ruído de máquina, barulho de um ventilador, jato de um duche, etc.) continua a desenrolar-se como se nada se tivesse passado, por exemplo, em Psico, de Hitchcock, ou Profissão: Repórter, de Antonioni, V. Influências do som sobre as perceções de movimento e de velocidade Y.l O som é movimento A erce ão~onora e a perceção visu~, ~m..earadas entre si, são muito . mais dísEares do gue se imagina. Se temos pouca consciência disso é por-) ~contrato a~diovisual, estas per~eçõ~s se infl~e~ciam mutuame~te e emprestam uma a outra, por contammaçao e pro}eçao, as suas propne- dades respetivas. 15 Em primeiro lugar, a relação destas duas perceções com o movimento e com a imobilidade é sempre fundamentalmente diferente, uma vez que o som, ao contrário do visual, ressu õe 10 o mo i Numa imagem de cinema, onde é comum que algumas coisas se movam, muitas outras podem manter-se imóveis. O som im lica neces- ariamente e por natureza um deslocamento, ainda ue ímmo, uma aglt âo. Contudo, na formas de sugerir a imo ili ade - mas apenas em casos imitados. No limite, o som imóvel é aquele que não apresenta qualquer variação no seu desenrolar - uma particularidade que se encontra apenas em alguns sons de origem artificial: a tonalidade do telefone ou o ruído de fundo de um amplificador sonoro. Algumas correntes e quedas de água fazem tam- bém um barulho próximo do ruído branco, mas é muito raro não estar aí presente qualquer vestígio de irregularidade e de movimento. O efeito de um som fixo pode ser também criado, mas com um sentido diferente, por uma variação, uma evolução que é repetida indefinidamente, «em círculo». Sinal de um movimento ou de um trajeto, o som tem, portanto, uma dinâmica tempo tal específica. Y.2 Diferença de velocidade percetiva A priori, as perceções sonora e visual têm, cada qual, a sua velocidade própria: de uma forma sucinta, o ouvido analisa, trabalha e sintetiza mais depressa do que o olho. Consideremos um movimento visual precipitado - um gesto da mão - e comparemo-lo com um trajeto sonoro brusco com a mesma duração. O movimento visual brusco não formará uma figura nítida, não será memorizado como um trajeto claro. Ao mesmo tempo, o trajeto sonoro poderá desenhar uma forma nítida e afirmada, individua- lizada e facilmente reconhecível. Não é um problema de atenção: poderíamos passar dez vezes o plano do movimento visual e observá-lo com grande atenção (por exemplo, um gesto complexo do braço feito pela personagem), e, mesmo assim, não desenharia uma figura nítida. Se repetirmos dez vezes a audição de um trajeto sonoro brusco, a sua perceção afirma-se e impõe-se cada vez melhor. Há várias razões para isso: em primeiro lugar, para os ouvintes, o som é o veículo da linguagem, e uma frase falada faz o ouvido trabalhar mais depressa (comparativamente, a leitura com os olhos é, salvo treino especial, nos surdos, por exemplo, sensivelmente mais lenta). Por outro lado, se o olho é mais lento, é porque tem mais trabalho a fazer: funciona, em simultâneo, no espaço, que explora, e no tempo, que segue. Por conseguinte, é rapidamente ultrapassado quando tem de assumir essas duas dimensões. O ouvido isola uma linha, um ponto do seu campo de audição, e segue esse ponto e essa linha no tempo. (Mas, se se tratar de uma partitura musical familiar ao ouvinte, a sua escuta abandona mais facilmente a linha do tempo, para se dispersar espacialmente.) Em suma, num primeiro contacto com uma mensagem audiovisual, o olho é mais ágil espacialmente e o ouvido é mais á il tem oralmente. Y.3 Consequências: movimentos visuais marcados ou iludidos pelo som Durante a audiovisão de um filme sonoro, as diferenças de velocidade na análise não são identificadas enquanto tais pelo espetador, na medida em que intervém o valor acrescentado. . Por que razão, por exemplo, os movimentos visuais rápidos que se acu- mulam nos filmes de kung-fu ou os efeitos especiais não criam uma impres- são confusa? Porque são auxiliados e «marcados» por pontuações sonoras rápidas (silvos, gritos, choques e zunidos) que assinalam percetivamente certos momentos e imprimem na memória um traço audiovisual forte. Contudo, o cinema mudo já tinha uma certa predileção pelas monta- gens de ações rápidas: observemos, porém, que, neste tipo de sequência, procurava-se simplificar a imagem ao máximo, ou seja, limitar a perceção espacial e exploratória, a fim de facilitar a perceção temporal. Isto implicava uma visão altamente estilizada, análoga a um esboço. Um bom exemplo disso é a sequência da desnatadeira em A Linha Geral, de Eisenstein, com os seus grandes planos. Se o cinema sonoro pode utilizar com frequência movimentos complexos e fugazes que se produzem dentro de um quadro visual cheio de personagens e de pormenores, é porque o som que está sobreposto à imagem é capaz de marcar e destacar um tra· eto visual particu ar nessa ima. em. Mas não sem um efeito possível de ilusionismo: quando o som faz ver na ima~ um movimento rá ido ue não está lá! E o exemplo, muito elo quente, do trabalho do sonoplasta Ben Burtt na saga de A Guerra das Estrelas: Ben fabricou, como efeito sonoro para a abertura automática de uma porta (trata-se das portas automáticas em losango ou em hexágono dos filmes de ficção científica), um silvo pneumático muito dinâmico e convincente. Tão convincente que, por várias vezes, o realizador Irving Kershner, na rodagem de O Império Contra-ataca, quando tinha de filmar um efeito da porta a fechar, se limitava a encadear um plano da porta fechada com um plano da mesma porta aberta. Na montagem, com o «pschhtt» de Ben Burtt, o espetador, a quem só era mostrado um encadeamento cortado, via a porta a correr! O valor acrescentado funcionava aqui em pleno, a partir de um fenómeno específico do cinema sonoro, a que poderíamos charnar « ais ' ido do ue o olho». Sabemos que os surdos orma s n linguagem gestual desenvolvem uma capacidade específica de ler e estruturar os fenómenos visuais rápidos. Isto coloca a questão de saber se, neste caso, esses fenómenos mobilizam as mesmas áreas cerebrais que os ouvintes utilizam para o som: trata-se de 17 um dos muitos casos que levam ao questionamento das nossas ideias feitas sobre a separação das categorias do som e da imagem. Y.4 A abertura temporal do ouvido Além disso, dizer que a escuta funciona «na linha do tempo» é uma expressão que tem de ser corrigida. De facto, o ouvido escuta por partes breves, e aquilo que é por ele percecionado e memorizado consiste já em sínteses breves de dois a três segundos da evolução do som, que formam estruturas globais. No entanto, no interior desses dois a três segundos percecionados como uma forma global, o ouvido (na verdade, o sistema ouvido-cérebro) fez de forma muito subtil e seria o seu trabalho de análise, de maneira que a sua descrição global do acontecimento, apresentada periodicamente, está cheia de pormenores rigorosos e caraterÍsticos ali recolhidos. Chegamos então a este paradoxo: só ouvimos os sons (no sentido em ue . os reconhecemos) pouco depois de os termos percecionado. Bata as palmas de forma brevee seca e ouça o aru lio que fazem: a escuta - de facto, a apreensão sintética de um pequeno fragmento, guardado na memória, da história sonora - seguirá o acontecimento de muito perto, mas não lhe é totalmente simultânea. VI. A influência do som na perceção do tempo na imagem VI.I Os três aspetos da temporalização Dos diferentes efeitos de valor acrescentado, um dos mai~im ortantes ~~~~~ldtem a ver com a perceçao ao tempo aa Imagem, suscetrve e ser consi era- ve mente in uenciada pelo som. Um exemplo e~o Vimos, no ifiício a~de imagens fixas e desprovidas de qualquer temporalidade se inscrevem num tempo real através de sons de água a pingar e de barulhos de passos. Este efeito de temporalização tem três aspetos: - animação temporal da imagem: a perceçâo do tempo da imagem é dada pelo som mais ou menos fino, pormenorizado, imediato e concreto - ou, pelo contrário, vago, flutuante e amplo; - linearização temporal dos planos, que, no cinema mudo, nem sempre correspondem a uma duração linear na qual o conteúdo do plano 2 seguiria obrigatoriamente aquilo que é mostrado no plano 1, e assim sucessivamente ... Enquanto que o som síncrono impõe uma ideia de sucessão; 18 _ vetorização, ou seja, dramatizaçâo dos planos, orientação para um futuro, um fim, e criação de um sentimento de iminência e expetativa. O plano segue um trajeto e é orientado no tempo. Este efeito é visível na sua forma pura no prólogo de Persona (o plano 1, por exemplo). VI.2 Condições para uma temporalização das imagens pelo som Para funcionarem, estes três efeitos dependem da natureza das imagens e dos sons postos em relação. Primeiro caso: por si mesma, a imagem não tem qualquer animação 71 'd fi"temporal nem vetorização. E o caso e uma imagem xa, ou cUJomovi- mento é apenas uma Hutuaçâo global, que não permite esperar qualquer resolução: por exemplo, um reflexo de água. Neste caso, o som é capaz de situar a imagem numa temporalidade por ele introduzida. 71 Segundo caso: a imagem conté~ uma an.imação temporal própria (deslocação de personagens ou de objetos, movimentos de fumos, de luzes, variação de quadro). A temporalidade do som combina-se então com ~ temporalidade já existente da imagem: quer para ir no mesmo sentido, quer para o contrariar li eiram~ - tal como ois instrumentos que rocam em simultâneo. A tem oralização de ende também do ti o de sons. Se undo a sua densidade, a sua textura interna, o seu aspeto e o seu deSenrolar, um so~ pode animar mais ou menos tem oralmente uma ima em, a um ritmo mais ou menos rápido e fort~ Diferentes fatores entram aqui em jogo. Natureza da sustentação do som: um som de sustentação lisa e contínua é menos animador do que um so~aci entada e remula. Se, para acompan 'ar uma mesma imagem, tocarmos uma nota constante e prolongada de violino e, depois, a mesma nota executada em tremolo com pequenos saltos de arco, a segunda vai criar uma atenção mais tensa e imediata sobre a imagem. Previsibilidade ou imprevisibilidade do desenvolvimento sonoro: ~o r~~ar~e~ ~.:~~e~m~o~~_~~a~xo~nt~o ~u um igue-ta ue mecânico, l~g~~e;:lSlvel,_ tenJ~..:. c~iar u.ma aru a~ temporal m~nor o ue um sJiin com um desenvolvimento irregu ar, logo '--../~ .~~~ <>: ~m~vi~el~_-su~lOca o ouvi o e toda a aten ~ale~. As gotas de água dej ersona, ou as que Tar ovs i gosta de fazer ouvir nos seus filmes são exemplo disso: despertam a atenção pelo seu ritmo subtil ou fortemente irregular. Mas um ritmo demasiado regularmente cíclico pode também criar um efeito de tensão, uma vez ue se ode antever nessa mesma regulari ade mecânica a possibilidade de uma fluruação. ' apel do tempo: a animação tem oral da imagem pelo som não~~--.......... .......-- ,. uma questão mecânica e tempo: uma musica mais rapi a nao ace era . .r ~--.,,_/ ------~~ 19 necessariamente per eção da image. Na verdade, a temporalização depende mais a re ulari ade ou a irre ularidade do débito sonoro do ue o tempo no sentido musical do termo. Por exemplo, se o débito das notas a música or instável, mas de velocidade moderada, a animação temporal será maior do que se a velocidade for rápida, mas regular. Definição do som: um som muito rico em fre uências a _udas criará uma perceção mais alerta - o que explica que, em muitos filmes recentes, o espeta or esteja de sobreaviso. L? A .tem orali~ ão depende também do modelo de li a ão ntre o S som e a ima em e da distribuiÇiõ dos ontos de sincronizas:!.o (ver ç- mais adiante). Também aqui, o som ativ mais ou menos uma ima em H oê ~onforme i~troduza pontos de s~ncronização mais ~revisí .eis o o rrn revisrvers,vanados ou mono tonos. De uma orma geral, a antecipação ~ contro ada e u~de tem oraliza âo, ~B '7'-- Para que o som in uencie temporalmente a imagem, é necessário um .-r:.) mínimo de condições. Em primeiro lugar, é necessário que a imagem se~.~ç reste a isso, uer ela sua fixidez e recetividade assiva (caso das imagens '3Jf- ;}- fixas de Persona), quer pela sua atividade es ecífica (microrritmos «tem- -a 6 porizáveis» pelo som) - ou seja, neste caso, que contenha um mínimo de ç ç _ ele tos de estrutura, de concordância, de harrnóríla e e simpatia como 0·- "'v-Ur se diz para as VI raçoes) ou de ann atia ativa com o flu o sonoro. o d Qs microrritmos visuais a ue nos referimos sao movimentos rapidos na 1 superfície da imagem, causados por coisas como vo utas de fumo, chuva, flocos de neve, onâutãçoes na superfície encrespada de um lago, areias, etc., e, no Imite, pela a Itaçao o propriorão oto rafico uando e é visrvel. Estes enómenos criam valores rítmicos rápidos e fluidos, instaurando na própria imagem uma temporalidade vibrante, trémula. Kurosawa utiliza- -os sistematicamente no seu filme Sonhos (chuva de pétalas de árvores em flor, de flocos numa tempestade de neve, nevoeiro, etc.), e Hans-Jürgen Syberberg gosta também de instalar microrritmos visuais nos seus longos planos fixos e pausados (fumos em Hitier, Um Filme da Alemanha, chama vacilante de uma vela na leitura do monólogo de Molly Bloom por Edith Clever, etc.), bem como Manoel de Oliveira (O Sapato de Cetim), como que para afirmar a duração específica do cinema sonoro, enquanto registo da microestrutura do presente. 20 um valor absoluto. Ficava-se então com a certeza de que aquilo que tinha ~ . d ~ tdeterminada duração na montagem conservana essa mesma uraçao exa a na projeção, o que não acontecia no cinema mudo. Os planos do cinema mudo não tinham uma duração interna exata, um frémito temporal fixo: a projeção deixava a cada sala ou ao projecionista uma certa margem para o ritmo do desenrolar da película. Não é também por acaso que a mesa de montagem com um motor que controla e regula a velocidade de desenro- lamento do filme só apareceu com o cinema sonoro. Atenção: falamos aqui do ritmo do filme concluído, no interior do qual podem ser introduzidos planos manipulados na tomada de vistas, acelera- dos ou em câmara lenta, como fizeram, em diferentes épocas do cinema sonoro, um Michael Powell, um Scorsese, um Peckinpah ou um Fellini. No entanto, ainda ue a velocidade desses lanos não re roduza necessa- riamente a velocidade real com ue os atores re m na roda em, é fixada no tem o do filme a um valor exato, determinado e controlado. Por conseguinte, o som temporalizou a imagem não ~ valo.J.jlcre~nt~o, ~~to simp esmente um~n~ ffiâÍi7~ e ~a ~abiIlza ao da vel(;cidac e do senrolar do fi me. m ar ovs i mudo não serra concebíve ; e aquilo que o realizador russo dizia do cinema, que é a «arte de esculpir no tempo», não o poderia dizer, nem sobretudo fazer, no tempo o cinema mudo, ele que anima os seus longos planos com frémitos, sobressaltos e aparições fugazes, que se combinam com grandes evoluções controladas, numa estrutura temporal hipersensível. O cinema sonoro pode ser então considerado «cronográfico». VI.4 Línearizaçâo temporal uando uma sucessão de imagens não pressu õe .~or si mesma o eng- deamento tem oral das açõ~~t!.a (dando-as a ver como podendo ser tanto simultâneas como sucessivas), a adição de um som realista e die- éticoim õe-Ihe um tem o r;;J(~u seja~t-;:do segundo a nossa medida quotidiana) e sobretudo linear, sucessivo. Consideremos uma cena, tal como vemos muitas vezes no cinema mudo, de reação coletiva, construída como uma montagem de grandes planos de rostos enfurecidos ou gracejadores: sem o som, não há qualquer necessidade de os planos que se sucedem no ecrâ designarem ações que se encadeiam na realidade. Podemos muito bem compreender as reações como simultâneas e situá-Ias num tempo análogo ao «perfeito». Em contrapartida, se a essas imagens colarmos sons de vaias ou de risos coletivos, sucedem-se, magicamente, como que num tempo linear: o plano 2 mostra alguém a rir ou que invetiva depois a personagem do plano 1, e assim sucessivamente. O efeito «desajeitado» de certas cenas de reação coletiva, nos primeiros filmes sonoros, decorre daí: por exemplo, no banquete inicial de La Chienne, 21 de Renoir, onde o som (risos, conversas entre convivas) aparece colado sobre imagens concebidas segundo um tempo ainda não linear. A audi ão da voz falada, nomeadamente uando está inscrita no tempo di~ético e sincronizada com a imagem, tem o oder de inscrever a ima em n~um tem o rea e inearizado, ue' á não tem elasticidade. Daí esse efeito, numa primeira altura, de «tempo quotidiano», que consternará, à chegada do sonoro, muitos cineastas do cinema mudo. A síncrise, de que falaremos com mais pormenor no capítulo 3, é um fator poderoso de linearização e de inscrição num tempo real. VI.5 Vetorízação do tempo real Imaginemos um plano calmo de filme exótico no qual, numa varanda, uma mulher está estendida numa cadeira de balouço; adormecida, o peito dela sobe e desce regularmente. A brisa agita as cortinas e faz tilintarern as sinetas de bambu penduradas junto à entrada. As folhas das bananeiras movem-se com o vento. Este plano muito poético poderia ser facilmente projetado desde a última até à primeira imagem - nada de essencial mudaria, tudo pareceria igualmente natural. Diremos então que o tempo transmitido por este plano é real, uma vez que está repleto de microacontecimentos que reconstituem a textura do presente, mas não está vetorízado: entre o sentido do passado para o futuro ou do futuro para o passado, não há qualquer diferença visível. . Agora, consideremos os sons que poderíamos aplicar a esta cena - sons gravados no próprio local, em direto, ou reproduzidos após a gravação: a respiração da mulher, o vento, o tilintar das sinetas de bambu. Invertamos então a banda sonora: já não funciona, sobretudo o tilintar das sinetas. Porquê? Porque cada um destes entrechoques, constituído por um choque e por uma pequena ressonância decrescente, é uma história acabada, orien- tada no tempo de um modo preciso e irreversível. Invertido, percebe-se logo que está «ao contrário». Os sons são vetorizados. O mesmo acontece com as gotas de água do prólogo de Persona: a mais pequena gota impõe um tempo real, irreversível, porque apresenta uma curva orientada no tempo de uma certa maneira (pequeno choque e ressonância muito ténue) que se conforma à lógica da gravidade e do regresso à inércia. fu cinema,~a-se da diferen a entre a ordem do sonoro e a ordem do ~al: numa escala de tem o com arável (digamos, dois a três segundos), os fenómenos sonoros são muito mais carateI'isticamente vetorizados no tem-p<), com um princípio, -um meio e um fim não reversíveis, o que os enomenos VIsuaIS. - Se isto nos escapa é porque o cinema, no lano visual, utiliza fre uen- temente as exce ões e os aradoxos, jogando com a irreversibilidade visual: um objeto partido que se reconstitui a partir os seus pe aços, um muro demolido que se reconstrói, ou o gag inevitável do banhista que sai da 22 iscina com os pés virados para cima e regressa à prancha de mergulho. ttas, em casos cinematográficos frequentes, uma personagem que fala, sorri, toca piano ... oferece uma imagem periódica e reversível, na q~a~ o tido passado-futuro não é marcado como no som, que, pelo contrano,~ d . é eralmente um desfile de pequenos fenómenos orienta os no tempo: a m~sica de piano, por exemplo, não é constituída por milhares de pequenos índices de tempo real vetorizado, uma vez que cada nota, logo que nasce, começa a extinguir-se? . Em contrapartida, uma imagem que mostra ações causadas por forças não reversíveis (queda de um objeto por efeito da gravidade, explosão que dispersa estilhaços, etc.) é claramente vetorizada. VI 6 A estridulação e o tremoun caráter cultural ou natural desta influência A anima ão tem oral da ima em elo som não é um fenómeno ura- mente fi co mecânico: os có . os ine ato ra cos e eu turais dese - pen m ambém aí o seu· a el. Uma música ou um ~f~ito s~nor~ e v?cal, percecionados como culturalmente desloca os do cenano, nao farao VIbrar ãTma em. No entanto, o fenómeno tem tambéIl.! uma base nã~~~. Consideremos o exemplo do tremolo dos instrumentos de corda, um processo classicamente utilizado na ópera e na música sinfónica para criar um sentimento de tensão dramática, de suspensão e de alerta. O cinema pode também utilizar, para obter o mesmo resultado, uma estridulação de insetos noturnos, como, por exemplo, na cena final de Filhos de um Deus Menor, de Randa Haines. Este som ambiente, porém, não está explicitamente codificado nesse sentido; não é um recurso ~e escrita, ~fi- cialmente catalogado e, apesar disso, pode ter sobre a perceçao dramática do tempo exatamente a mesma propriedade que o trérnulo orquestral de concentrar a atenção e de nos sensibilizar para o mínimo frémito no ecrâ, Aliás, os sonoplastas e os engenheiros de som utilizam frequentemente esses ambientes noturnos, cujo efeito doseiam como chefes de orquestra, pela escolha que fazem de certos registos e pela forma como os misturam para criar um som global. Evidentemente, o efeito variará em função da densi- dade da estridulação, do seu caráter mais ou menos regular ouHutuante e da sua extensão - exatamente como num efeito de orquestra. Ora, para o espetador de cinema, o que há em comum entre um trem.0lo de cordas na orquestra de fosso, que ele identifica como processo musical cultural, e um ruído animal, que ele perceciona como uma emanação natural do cenário em que se situa a ação, sem sequer imaginar que esse ruído pode ter sido gravado separadamente da imagem e depois enge- nhosamente recomposto? Nada mais do que uma identidade acústica: a de uma vibração aguda, ligeira e subtilmente desigua , que põe em alerta e, ao mesmo tempo, fascina. Parece então que estamos face a um efeito 23 universal e espontâneo. Contudo, é um efeito frágil, pois basta um nada _ uma regulação sonora mal feita, uma perda de confiança do espetador no contrato audiovisual, devida a um defeito de realização, de interpretação do argumento - para o comprometer. Isso sempre acontece com todos os efeitos de valor acrescentado, que nada têm de mecânico: assentes numa base psicofisiológica, só funcionam em certas condições culturais, estéticas e afetivas, por uma interação geral de todos os elementos. VII. Exemplo de reciprocidade do valor acrescentado: os sons do horror o valor acrescentado é recí roco: se o som faz ver a imagem de uma maneira diferente da imagem sem som, a imagem, or seu lado, faz ouvir o som e maneIra 1 erente o que se ouviria se este soasse no escuro. No entanto, através esta reciproci a e, o ecrâ continua a ser o suporte principal desta perceção. O som transform L(2elainggem ue ele infl e ci volta a projetar sobre esta o produto das suas influências mútuas. O caso os sons orríveis ou im ressionantes, sobre os uais a ima em projeta por su estão um sentido ue eles ró rios não com ortam é o exemplo desta reciprocidade. -- o os sabemos que o cinema sonoro clássico, no qual se evitava mostrar certas coisas, se socorria do som, para sugerir o espetáculo de uma forma muito mais impressionante do que se o estivéssemos realmente a ver. O exemplo arquetípico encontra-se no início da obra-prima de Aldrich, O Beijo Fatal (Kiss Me l)eadly), quando a fugitiva a que Ralph Meeker deuboleia é apanhada pelos seus perseguidores e submetida à tortura: desta tortura, o espetador vê apenas duas pernas nuas a debaterem-se, enquanto ouve os gritos da infeliz. Eis, diríamos, um efeito tipicamente sonoro. É verdade, mas na condição de ex licar ue a uilo que torna os ritos tão aterradores não é a sua própria realidade acústica, mas a uilo ue a situação narrada e o pouco que vemos projetam sobre eles. e procurarmos outro efeito sonoro retirado de um filme, impõe-se o exemplo de uma cena de La Pelle, de Liliana Cavani (baseado em Malaparte), onde um tanque americano esmaga acidentalmente um rapaz italiano, com um barulho aterrador que faz lembrar uma melancia esmagada. O espetador raramente ouviu o barulho real de um corpo humano assim tratado, mas pode imaginar que se trata de uma coisa húmida e viscosa. Aliás, é evidente que o som do filme de Cavani foi feito com um truque de sonoplasta, talvez exatamente a esmagar um fruto .. Mais adiante, veremos que o valor figurativo e narrativo de um ruído, reduzido a si mesmo, é muito vago. Um me~~~~~Eode, seKundo o 24 contexto dramático e visual, contar coisas muito diferentes, uma vez ue, ara o es etador de cinema, mais o ue o rea ismo acústico, é sobretud~ critério de sincronismo, e secundariamente de verosimilhan (verosimilhança que tem a ver não com o realismo, mas com a convenção), que o levará a colar um som a um acontecimento ou a um fenómeno. O mesmo som pode emão reproduzir de forma convincente, numa comédia, a melancia a ser esmagada e, num filme de guerra, o crânio reduzido a papas. Este mesmo barulho pode ser, num caso, divertido e, noutro, insuportável. É em Franju, em Lesyeux sans visage, que encontramos também um dos raros sons de cinema inquietantes que o público e os críticos notaram e comentaram: o som da queda do cadáver de uma rapariga, resíduo terrível de uma experiência falhada de enxerto, quando o cirurgião Pierre Bras- seur a deixa cair numa cova, auxiliado pela cúmplice Alida Valli. Aquilo j que este som abafado e pesado, que nunca deixa de provocar um frémito na sala, tem em comum com o barulho do filme de Cavani é o facto de transformar o ser humano em coisa, em vil matéria inerte e descartável, com as suas cavidades ósseas e as suas entranhas. Mas é um barulho imEressionante também 12elaforma como no rit~o da cena e o me, representa uma interrupção da Éla, um momento em que a fala das ersona ens não existe - a ui, os dois cúm lices. Certos barulhos só soam assim, no cinema ou na vida, arque surgem num certo momento, numa ca eia e inguagem onde criam um vazio. Um exemplo atroz desta ideia: a cena de An rei RUí tou, e ar ovski, na qual um príncipe russo torturado pelos Tártaros aparece coberto de faixas, que escondem o seu corpo mutilado e só deixam visíveis os lábios. Abando- nado numa cama, amaldiçoa os seus torcionários, mas, logo a seguir, a mão do carrasco agarra numa concha cheia de azeite a ferver e despeja-a na garganta do príncipe. O gesto é-nos ocultado pelas costas do algoz, misericordiosamente (ou melhor, habilmente) interposto nesse momento entre o espetador e a cabeça do supliciado. Ouvimos apenas um barulho terrível de gargarejo e ficamos com pele de galinha. No entanto, tal como em relação ao barulho do esmagamento de que falámos, este mesmo som poderia ser o gargarejo de Peter Sellers numa comédia de Blake Edwards. Aqui, o barulho só é tão forte porque nos representa a fala humana atingida no seu centro físico: destruiu-se uma laringe, uma língua que ainda há pouco falava. 25 Capítulo 2 As três escutas I. Primeira atitude de escuta: a escuta causal 1.1. Definição Quando questionamos alguém acerca daquilo que ouviu, as respostas impressionam-nos pelo caráter heteróclito dos níveis em que se situam. É que existem - pelo menos - três atitudes de escuta diferentes, que visam objetos diferentes: a escuta causal, a escuta semântica e a escuta reduzida. A escuta mais comum é a primeira, a causal, que consiste em servirmo- -nos do som para nos informarmos, tanto quanto possível, sobre a sua causa. Quer essa causa seja visível e possamos recolher sobre ela uma informação suplementar, por exemplo, no caso de um recipiente fechado: o som que produz quando lhe batemos diz-nos se está vazio ou cheio. Quer, a[ortiori, seja invisível e o som constitua a nossa fonte de informação principal sobre ela. A causa também pode ser invisível, mas identificada por um saber ou por uma suposição lógica a seu respeito. Também neste caso, é sobre esse saber que se exprime a escuta causal, que raramente parte do zero. Com efeito, não nos devemos iludir sobre a subtileza e as possibilidades da escuta causal, ou seja, sobre a sua capacidade de nos fornecer, apenas a partir da análise do som, informações seguras e precisas. Na verdade, esta escuta causal, que é a mais comum, é também a mais influenciável. .. e a mais enganadora. 1.2. Natureza da identificação causal A escuta causal pode efetuar-se a diferentes níveis. Podemos reconhecer a causa exata e individual: a voz de uma pessoa determinada, o som de um objeto único entre todos. Mas este reconhecimento raramente se faz a partir do som isolado, fora de qualquer contexto. Só o indivíduo humano pode emitir, através da sua voz falada, um som que o carateriza a ele e só a ele. Em contrapartida, 27 diferentes cães da mesma espécie têm o mesmo latido. Ou, em todo o caso, o que vai dar ao mesmo, não somos capazes de diferenciar o latido de um buldogue do de outro buldogue, ou até do cão de uma raça vizinha. Ainda que os cães possam identificar a voz do dono entre centenas de outras, é muito duvidoso que esse dono possa distinguir, de olhos fechados e sem informações suplementares, a voz do seu cão. Aquilo que nos dissimula esta incapacidade, neste caso, da nossa escuta causal, é que, quando estamos em casa e ouvimos latir na sala ao lado, deduzimos natural e logicamente que se trata do Bóbi ou do Rex. Ao mesmo tempo, uma fonte reconhecida não é necessariamente nome- ada. Podemos muito bem ouvir diariamente uma locutora de rádio da qual não conhecemos nem o físico nem o nome; isso não nos impede de abrir na nossa memória uma ficha sinalética vocal e pessoal dessa locutora, ficha na qual o seu nome e outras caraterísticas (cor do cabelo e traços do rosto, que, evidentemente, não nos são dados pela voz) são temporariamente deixados em branco. Isto porque há uma grande diferença entre aquilo a que poderíamos chamar tomar nota do timbre de voz de um indivíduo e identíficâ-Io, ter dele uma imagem visual, memorizá-lo e dar-lhe um nome. Segundo caso: não reconhecemos um exemplar, um indivíduo ou um «item» único e particular, mas sim uma categoria de causa humana, mecânica ou animal: voz de um homem adulto, motor de uma motorizada, canto de uma cotovia. De forma mais geral, em casos ainda mais ambíguos - e muito mais numerosos do que se pensa -, aquilo que reconhecemos é apenas uma natureza de causa, a própria natureza do agente: «deve ser algo mecâ- nico» (identiíicada por um ritmo, de uma regularidade dita justamente mecânica); «deve ser qualquer coisa de animal, ou qualquer coisa de humano», etc, São identificados, então, à falta de melhor, certos índices, nomeadamente temporais, de que tentamos servir-nos para deduzir essa natureza da causa. Podemos também, sem identificar a fonte no sentido da natureza do objeto causal, seguir com precisão a história causal do próprio som. Por exemplo, conseguimos seguir a história de uma fricção (acelerada, precipitada, em câmara lenta, etc.) e sentir mudanças de pressão, de velo- cidade e de amplitude, sem saber de modo algum aquilo que fricciona e contra o quê. 1.3. A fonte é um foguetão de vários andares Por fim, não podemos esquecer que, frequentemente, um som não tem só uma fonte, mas pelo menos duas, até mesmo três ou mais ainda. Con- sideremos o rangido da caneta de feltro com a qual é escrito o rascunho deste texto; as duas fontes do som são a caneta e o papel - mas também o 28 gesto de escrever e também nós queescrevemos e assim sucessivamente. Se esse som for gravado e ouvido num gravador, a fonte do som será também O altifalante, a fita magnética na qual o som foi registado, etc. Note-se que, no cinema, a escuta causal é constantemente manipulada na sua totalidade pelo contrato audiovisual e nomeadamente pela utiliza- ção da síncrise. Com efeito, trata-se, na maioria dos casos, não das causas iniciais dos sons, mas de causas que somos levados a acrescentar. 11.Segunda atitude de escuta: a escuta semântica Chamamos escuta semântica àquela que se refere a um código ou a uma linguagem para interpretar uma mensagem: a linguagem falada, evidentemente, bem como os códigos, a exemplo do Morse. Esta escuta, de funcionamento extremamente complexo, foi objeto da investigação linguística e dos estudos mais aprofundados. Nomeadamente, apercebemo-nos de que é puramente diferencial. Um fonema não é ouvido pelo seu valor acústico absoluto, mas sim através de todo um sistema de oposições e de diferenças. De maneira que, nesta escuta, as diferenças importantes de pronúncia, logo, de som, poderão não ser notadas se não forem pertinentes no seio de uma língua dada. A escuta linguística em francês, por exemplo, é insensível a certas variações importantes na pronunciação do fonema «a». Evidentemente, a escuta causal e a escuta semântica podem exercer- -se paralela e independentemente numa mesma cadeia sonora. Ouvimos simultaneamente aquilo que alguém nos diz e como o diz. A escuta causal de uma voz é, de resto, para a sua escuta linguística, um pouco o que a perceção grafológica de um texto escrito é para a sua leitura. Note-se que a investigação linguística tentou distinguir e articular a perceção do sentido e a perceção do som, estabelecendo uma diferença entre fonética, fonologia e semântica. IH. Terceira atitude de escuta: a escuta reduzida 111.1Definição Pierre Schaeffer designou por escuta reduzida a escuta que trata das qualidades e das formas específicas do som, independentemente da sua causa e do seu sentido; e que considera o som - verbal, instrumental, 29 anedótico ou qualquer outro - como objeto de observação, em vez de o atravessar, visando através dele outra coisa (o adjetivo «reduzida» foi tomado de empréstimo à noção fenomenológica de redução em Husserl). Uma sessão de escuta reduzida é uma experiência muito instrutiva: os participantes depressa se apercebem de que, ao falarem de sons, tinham o hábito de fazer um vaivém constante entre a matéria desses sons e a sua causa e o seu sentido. Apercebem-se de que, falar dos sons por eles mesmos, limitando-se a qualíficá-los independentemente de qualquer causa, sentido ou efeito, não é tarefa fácil. E as palavras analógicas habituais revelam aqui toda a sua ambiguidade: dizes que este som é áspero, mas em que sentido? Será «áspero» apenas uma imagem, ou apenas uma referência para uma fonte que range? Ou a evocação de um efeito desagradável? Perante esta dificuldade de nos interessarmos pelos sons em si, vemos então surgirem certos tipos de reações específicas que são outras tantas defesas: quer a derrisão, a evocação de causas triviais ou bizarras, tachos ou torneiras. Noutros, a fuga perante a descrição traduz-se pela pretensão de objetivar o som, através do recurso a máquinas como os analisadores de espetro ou cronómetros - que apreendem apenas valores físicos e não designam aquilo que ouvimos. Uma terceira atitude consiste em procurar refúgio atrás de um subjetivismo radical: cada cabeça, sua sentença, e o som ouvido permaneceria sempre incognoscível. No entanto, a perceção não é um fenómeno puramente individual, uma vez que radica numa objetividade particular, a das perceções partilhadas. E é nesta objetividade nascida de uma «intersubjetivídade» que se situa a escuta reduzida, tal como Schaeffer bem definiu. O inventário descritivo de um som na escuta reduzida não se pode contentar apenas com uma apreensão. É preciso voltar a escutar e, para isso, ter o som fixado num suporte. Porque um instrumentista a tocar à nossa frente ou um cantor é incapaz de repetir sempre o mesmo som: só pode reproduzir a sua altura e o seu perfil geral, não as finas qualidades que particularizam um acontecimento sonoro e o tornam único. A escuta reduzida implica, portanto, a fixação dos sons, que acedem assim ao estatuto de verdadeiros objetos. 111.2Exigências da escuta reduzida A escuta reduzida é um método novo, fecundo e ... pouco natural. Perturba os hábitos e as preguiças instaladas, e, àquele que a aborda, abre um mundo de questões que anteriormente nem sequer pensaria colocar. Cada um pratica-a um pouco, mas de forma muito ligeira: quando identificamos a altura de uma nota ou os intervalos entre dois sons, estamos a fazer escuta reduzida sem o saber, pois a altura é um caráter específico do som, independente da identificação da sua causa ou da compreensão do seu sentido. 30 O problema é que um som não é unicamente definido por uma altura específica, pois tem muitas outras caraterísticas percetivas. Por outro lado, muitos sons quotidianos não têm uma altura específica e sensível, sem o que a escuta reduzida não seria mais do que o velho solfejo tradicional ..Será possível formular qualquer coisa de descritivo sobre os sons, abstraindo a sua causa? Schaeffer mostrou essa possibilidade, mas só pôde abrir o caminho, propondo um sistema de classificação no seu Traité des Objets Musicaux, sistema que não está acabado nem ao abrigo de toda a crítica, mas que tem o imenso mérito de existir. Com efeito, é impossível desenvolver uma escuta reduzida se não criarmos conceitoS e critérios novos - a linguagem corrente, bem como a linguagem musical especializada, estão totalmente desmunidas face a alguns desses traços sonoros que reconhecemos graças à escuta reduzida dos sons fixados. Neste livro, não pretendemos fazer um curso de escuta reduzida e de descrição sonora, e, sobre este tema, remetemos para os livros dedicados à questão, e nomeadamente para o nosso próprio condensado dos trabalhos de Pierre Schaeffer, publicado com o título Guide des Objets Sonores. 111.3 Para que serve a escuta reduzida? «Para que serve, afinal, a escuta reduzida?», interrogavam-se os alunos que estudavam o audiovisual e que tiveram de a praticar intensamente durante quatro dias. Com efeito, se o cinema e o vídeo utilizam os sons, é, ao que parece, somente pelo seu valor figurativo, semântico ou evoca- tivo, em referência a causas reais ou sugeridas ou a textos - mas raramente enquanto formas e matérias em si. No entanto, a escuta reduzida tem a imensa vantagem de abrir a escuta e de afinar o ouvido do realizador, do investigador ou do técnico, que assim conhecerão o material de que se servem e dominá-lo-ão melhor. Com efeito, o valor afetivo, emocional, físico e estético de um som está associado não só à explicação causal de que falámos, mas também às suas qualidades específicas de timbre e de textura, ao seu frémito. Tal como no plano visual, um realizador ou um diretor de fotografia têm tudo a ganhar em refinar o seu conhecimento da matéria e da textura visuais, mesmo que nunca façam filmes abstratos. 111.4Acusmática e escuta reduzida A escuta reduzida e a situação acusmática estão ligadas, mas de maneira mais ambígua do que Pierre Schaeffer, a quem devemos a criação destas duas noções, deixava entender. Com efeito, Schaeffer sublinhava o quanto a situação de escuta acus- mática, definida mais à frente como aquela onde ouvimos o som sem per- cebermos a sua causa, pode modificar a nossa escuta e chamar a atenção para caraterísticas sonoras que a visão simultânea das causas nos esconde, porque esta reforça a perceção de certos elementos do som e oculta outros. A acusmática permite verdadeiramente revelar o som em todas as suas dimensões. Ao mesmo tempo, Schaeffer pensava que a situação acusmática podia encorajar por si mesma a escuta reduzida, ou seja, o afastar-se' das causas ou dos efeitos em proveito de uma identificação consciente das texturas, das massas e das velocidadessonoras. Mas é o contrário que frequentemente se produz, pelo menos num primeiro tempo, já que a acusmática começa por exacerbar a escuta causal privando-a do auxílio da vista. Face a um som que passa por um altifalante e que não se apresenta com o seu cartão de visita visual, o ouvinte é levado a colocar mais duas vezes a questão «o que é?» (a traduzir por: «o que causa este sorn?») e a procurar os mínimos indícios de identificação da causa, com frequência interpretados de modo incorreto. Em contrapartida, é a escuta repetida de um mesmo som, na escuta acusmática dos sons fixados, que nos permite afastar-nos gradualmente da sua causa e perceber melhor as suas caraterísticas específicas. Para um ouvinte exercitado, de resto, a escuta causal e a escuta reduzida podem ser feitas em paralelo, tanto mais que têm correlações: com efeito, a partir de quê deduzimos uma causa, senão a partir da forma caraterística à qual o som obedece? O facto de saber que é «o som de ... » já não ameaça então parasitar a interrogação sobre: o que é o próprio som? IV. Escutar/ouvir e ver/olhar Pareceu-nos importante, no quadro deste ensaio sobre a audiovisâo, estabelecer a distinção das três atitudes de audição, mas devemos também lembrar em que contexto misturado e múltiplo se sobrepõem e se combinam estas três audições no cinema. A questão da escuta é inseparável da do ouvir, tal como a do olhar está ligada à da visão. Por outras palavras, para descrever os fenómenos percetivos, somos obrigados a ter em conta o facto de que a perceção consciente e ativa é apenas uma escolha num dado mais vasto que se apresenta e se impõe. No cinema, o olhar é uma exploração, simultaneamente espacial e temporal, num dado a ver delimitado que se mantém no quadro de um ecrã. Ao passo que a escuta é uma exploração num dado a ouvir e até num imposto a ouvir muito menos delimitado em todos os aspetos, com contornos incertos e mutáveis. Devido a factos naturais conhecidos por todos (a ausência de pálpebras para as orelhas, a omnidirecionalidade da escuta e a própria natureza física do som), mas també~ à ausência de uma verdadeira cultura de escuta, este imposto a ouvir é tal que, nele, dificilmente podemos excluir, selecionar e 32 °nguir seja o que for. No som, há sempre qualquer coisa que nos sub- ge e nos surpreende façamos o que fizermos~ E que, .até e so~re~ud~ gando nos recusamos a prestar-lhe a nossa atenç,ao consciente, se ImISCUi nossa perceção e nela produz os seus efeitos. E verdade que a perceção consciente pode exercer-se e submeter tudo ao seu controlo, mas, na situação cultural atual, o som, mais facilmente do que a imagem, tem o poder de a saturar e de a curto-circuitar. As consequêhcias, para o cinema, são que o som é, mais do que a imagem, um meio insidioso de manipulação afetiva e semântica. Quer o som nos trabalhe fisiologicamente (ruídos da respiração); quer, pelo valor acrescentado, interprete o sentido da imagem e nos faça ver aquilo que sem ele não veríamos, ou que veríamos de outra forma. Assim, o som não pode ser de modo algum investido e localizado da mesma maneira que a imagem. 33 Capítulo 3 linhas e pontos I. A questão do horizontal e do vertical 1.1 Harmonia ou contraponto? Em finais dos anos 1920, na altura do aparecimento do filme sonoro, que coincidiu com um desenvolvimento extraordinário do estetismo no cinema mudo, faziam-se muitas comparações entre cinema e música. Foi por isso que, quando o som chegou, se lançou a expressão ainda hoje utilizada de contraponto, para designar a fórmula ideal in abstrato de cinema sonoro: aquela em que, longe de se redobrarem, como se dizia, som e imagem formariam duas cadeias paralelas e livremente ligadas, sem dependência unilateral. Lembremos que, na terminologia da música clássica ocidental, designa-se por contraponto o modo de escrita que pensa as diferentes vozes simultâneas como devendo ser seguidas, cada uma delas, no seu desenrolar horizontal, coordenado com o das outras vozes, mas indivi- dualizado; ao passo que a harmonia considera o ponto de vista vertical, o das relações de cada nota com as que se ouvem no mesmo momento, as quais todas juntas, formam acordes, e rege a condução das vozes relativamente à obtenção desses acordes verticais. A aprendizagem da escrita musical clássica comporta estas duas disciplinas e, de facto, a maioria das obras do repertório ocidental, a partir de um certo período, combina mais ou menos na sua escrita estas duas dimensões, difíceis de dissociar na totalidade. Um suposto contraponto audiovisual, exercendo-seem condições muito diferentes do contraponto musical (uma vez que este funciona sobre o mesmo material de notas, enquanto que o som e a imagem pertencem a categorias sensoriais diferentes), implicaria então, se a comparação tiver sentido, que possa existir no cinema a constituição de uma «vozsonora» percebida horizontalmente como coordenada com a cadeia visual, mas individualizada e desenhada por si mesma. 35 o que aqui queremos mostrar é que o cinema, na sua dinâmica particular e pela natureza dos seus elementos, tende a excluir a possibilidade de tal funcionamento horizontal e contrapontístico. É de tal forma oposto que as relações harmónicas e verticais (quer sejam consonantes, dissonantes ou nem uma coisa nem outra, à maneira de Debussy) são nele muito mais evidentes: ou seja, neste caso, as relações entre um determinado som e aquilo que, ao mesmo tempo, se passa na imagem. A aplicação da noção de contraponto ao cinema é, portanto, mais um «enxerto» resultante de uma especulação intelectual do que um conceito vivo. Prova disso é que rapidamente nos enredámos neste paralelo, ao ponto de utilizá-lo em sentido contrário, pois que muitos dos exemplos dados como modelos de contraponto eram, em rigor, casos de harmonia dissonante, uma vez que mostravam apenas uma discordância pontual entre uma imagem e um som relativamente à sua natureza figurativa. Nós próprios, ao utili- zarmos a metáfora musical, não devemos ser enganados por ela: o termo harmonia também não descreve a especificidade do fenómeno audiovisual. De facto, a nossa interrogação sobre o duplo aspeto horizontal e verti- cal da cadeia audiovisual, à qual será dedicado todo este capítulo, põe em destaque a sua interdependência e a sua dialética: por exemplo, os filmes em que uma espécie de liberdade horizontal é possível - o exemplo típico é o videoclipe, com as suas cadeias paralelas de imagens e de sons muitas vezes sem relação precisa -, demonstram ao mesmo tempo uma vigorosa solidariedade percetiva, marcada pela disposição regular, de tempos em tempos, de pontos de sincronização. Os quais, para recorrer à comparação clássica, constituem a estrutura harmónica do sistema audiovisual. 1.2 A dissonância audiovisual O contraponto audiovisual, chamado, pedido, reclamado com grande alarido no cinema, pode ser visto diariamente na televisão, mas ninguém lhe liga. Produz-se nomeadamente nas transmissões de certos acontecimentos desportivos, quando a imagem segue um caminho e o comentário segue outro diferente. Há um exemplo a que recorremos muitas vezes para o evidenciar, escolhido de uma sequência de reportagem sobre uma prova de ciclismo em Barcelona: a imagem mostra os corredores vistos do helicóptero e é completamente muda. O som é um diálogo no ar entre os jornalistas e os corredores que não participam. Visivelmente, neste excerto, aqueles que falam não estão a olhar para as imagens e já não as comentam. Tudo isto segue, durante dois minutos, caminhos perfeitamente divergentes e só a circunstância do ciclismo dá algum sentido à coabitação desses dois universos. No entanto, quando se mostra este exemplo, ninguém nota o contraponto que nele reina. Porquê? Porque o contraponto audiovisual só se nota se opuser o som e a imagem num ponto preciso, não de natureza, mas de significação; ou 36 1Cja,se condicionar a leitura que se vai fazer tanto do som como da imagem, uma vez que postula uma certa interpretação linear do sentido dos sons, reduzindoesse «sentido», em geral, a uma pura questão de identificação edecausa. Assim, o problema do contraponto-contradição, ou melhor, da disso- nância audiovisual, tal como foi utilizada e reivindicada em filmes como L'Homme qui ment, de Robbe-Grillet, com partitura sonora de Michel Fano, é o facto de implicar uma pré-leitura da relação som/imagem e de bloquear esta numa compreensão de sentido único - uma vez que pressupõe um desfasamento retórico (no modo: «eu devia ouvir isto, ora eu ouço isto») preestabelecido. De facto, introduz a linguagem e as suas categorias abstratas, utilizadas em termos de sim/não, redundante/ contraditório. Com efeito, sobre uma determinada imagem, existem centenas de efeitos sonoros possíveis, todo um leque de soluções das quais algumas reproduzem exatamente o código convencional, ao passo que outras, sem entrarem num desmentido formal da imagem, fazem deslizar a sua perceção noutro plano. A dissonância audiovisual é apenas um desfasamento invertido da convenção e, portanto, uma homenagem a esta, encerrando-nos numa lógica binária que pouco tem a ver com o cinema. Temos o exemplo de um verdadeiro contraponto livre numa espantosa cena de ressurreição do filme Sola ris de Tarkovski. A antiga amante do herói, que se suicidara, reaparece-lhe em carne e osso, numa estação espacial, sob o efeito de forças misteriosas suscitadas por um planeta-cérebro. Desesperada e consciente da sua natureza de artefacto, suicida-se novamente engolindo oxigénio líquido. O herói abraça o corpo completamente gelado. Mas, impiedosamente, o cérebro-oceano ressuscita-a e o corpo estendido começa a agitar-se com sobressaltos, que já não são os da agonia nem do prazer, mas do regresso à vida. Sobre estas imagens Tarkovski resolveu colocar sons de vidros a baterem uns nos outros cujo efeito é prodigioso: não são ouvidos como não-sendo- -os-sons-que-seria-preciso, mas representam de maneira perturbadora, até mesmo aterradora, o caráter simultaneamente frágil e artificial da criatura, bem como o sentimento da precariedade dos corpos. 1.3 Predominância das relações verticais na cadeia audiovisual (não existe banda sonora) No nosso livro sobre La Voix au cinéma [«A Voz no Cinema»] demos o tom sobre a questão do som no cinema, formulando aquilo que devia ser uma evidência: não existe banda sonora. É verdade que, no sentido puramente técnico da palavra, existe uma pista sonora que corre ao longo do filme, mas isso não implica a existência de uma totalidade unitária formada pelos sons do filme. 37 Se utilizamos o termo nesta obra, será apenas para designar técnica e empiricamente a simples montagem inerte e desprovida de significação autónoma de todos os sons do filme, sem lhe atribuir o mínimo sentido ativo. De facto, a noção de banda sonora, tal como é utilizada, é um puro decalque mecânico da ideia de banda de imagem, que existe realmente, uma vez que deve o seu ser e a sua unidade à presença de um quadro, de um lugar de imagens investido pelo espetador. Ao dizermos que não existe banda sonora queremos, portanto, dizer, para começar, que os sons do filme não formam, considerada à parte da imagem, um complexoem sidotado de unidade interna, que secompararia globalmente com aquilo a que chamamos banda de imagem. Mas também queremos dizer que cada elemento sonoro estabelececom os elementos narrativos contidos na imagem - personagens,ação-, assimcomo com os elementosvisuaisde textura e de cenário, relaçõesverticais simultâneas muito mais diretas, fortes e claras do que as que essemesmo elemento sonoro pode estabelecer paralelamente com os outros sons, ou que os outros sons estabelecem entre si na sua sucessão. É como uma receita: se misturarmos à parte os constituintes sonoros antes de os juntarmos à imagem, produzir-se-a uma reação química que Iíquidificará os sons e fará cada um reagir individualmente no campo visual. A relação mais simples e mais forte, a do som fora de campo, pressupõe, por exemplo, o confronto do som com a imagem que o estabelece como fora de campo, fazendo-o, ao mesmo tempo, ressoar à sua superfície. Se suprimimos a imagem, os sons fora de campo que se mantinham à parte dos outros sons, pelo puro efeito da exclusão visual das suas fontes, tornam-se como os outros. A estrutura global desmorona-se e os sons tornam a formar em conjunto uma estrutura completamente nova. O filme privado da sua imagem e transformado em banda sonora revela-se assim insólito, mesmo que ouçamos pouco e coloquemos as imagens memorizadas sobre os sons que 'Ouvimos. Só então podemos falar de uma banda sonora. Por conseguinte, no cinema, não existe uma banda de imagem e uma banda sonora, mas um lugar de imagem e dos sons. 11. O som e a imagem relativamente à questão da montagem 11.1 A montagem dos sons não criou unidade específica Os sons, tal como as imagens no cinema, montam-se: ou seja, são fixados em porções de banda magnética, de som ótico ou de película, que podem ser cortados, montados e deslocados à vontade. Em relação à imagem, foi exatamente esta fabricação por montagem que criou a unidade específica do cinema: o plano. Uma unidade mais 38 ou menos pertinente quanto à análise fílmica (isso depende dos processos e dos realizadores), mas que, de qualquer maneira, continua a ser muito prática para balizar os filmes. Mesmo que não se considere o plano n.? 67 como unidade narrativa estrutural em si.- e apenas como um plano, ou seja, como uma porção de película compreendida entre duas colagens -, é muito interessante poder dizer: o elemento importante, pertinente, significativo de que falamos situa-se entre o meio do plano 92 e o final do plano 94. Com efeito, o plano tem a enorme vantagem de ser uma unidade neutra, objetivamente definida, que toda a gente pode reconhecer, tanto aqueles que fizeram o filme como aqueles que o veem. Percebemos imediatamente que não temos nada de semelhante para o som: a montagem de sons no cinema não criou uma unidade específica. Não percebemos unidades de montagem-som, e as colagens sonoras não nos saltam ao ouvido nem nos permitem delimitar blocos identíficáveis. Isso não é, de resto, exclusivo do cinema: montam-se sons desde que a técnica o permite (quer dizer, desde cerca dos anos 1930), tanto na rádio e em disco como na música em fita. Ora, em nenhum destes casos, haja ou não imagem, a noção de plano sonoro como unidade de montagem conseguiu emergir como unidade neutra e reconhecida por todos. Existem várias razões para isso. 11.2 Possibilidade de uma montagem inaudível dos sons Por um lado, como se sabe, a «banda sonora» de um filme é normal- mente constituída por várias camadas realizadas e dispostas de forma independente, que se sobrepõem umas às outras. Imaginemos um filme que fosse produto de uma mistura de três camadas de imagens em sobreimpressão: seria muito difícil identificar os cortes (é o que acontece em certos momentos de Napoleão, de Abel Gance, ou de O Homem da Câmara, de Dziga Vertov), Por outro lado, faz parte da própria natureza do fenómeno sonoro fixado em suporte poder ser ligado a outro por montagem sem que se perceba o raccord: um diálogo de filme pode ser, por exemplo, recheado de colagens inaudíveis, impossíveis de serem identificadas pelo ouvinte. Ao passo que, como sabemos, é muito difícil juntar de maneira invisível dois planos rodados em momentos diferentes: o raccord salta aos olhos (em A Corda, filme «num só plano», Hitchcock só conseguiu fazê-Io com um truque grosseiro, que consistia em fazer passar diante da câmara as costas de uma personagem). E é claro que os cortes sonoros podem ser ouvidos e identificados de forma brutal. Por conseguinte, ambas são possíveis com o som: tanto a montagem audível como a montagem inaudível. Além disso, a mistura das pistas sonoras é essencialmente, na prática mais corrente, a arte de limar as arestas através de variações de intensidade. Tudo 39 isto torna já impossível a adoção, para o som, de uma unidade de montagem enquanto unidade de perceção, e até enquanto unidade de linguagem.Alguns, porém, veem neste facto não um dado «natural», mas a tradução de determinada posição ideológica e estética, que seria específica do cinema dominante e corresponderia à vontade de esconder os vestígios do trabalho, para dar ao filme um ar de continuidade e de transparência: muitas análises deste tipo foram feitas nos anos 1960 e 1970, que concluiam invariavelmente no apelo para fazer reinar no cinema uma descontinuidade desmistificadora. De facto, poucos realizadores responderam a este apelo, à exceção de Godard em alguns dos seus filmes, um dos raros a cortar os sons como imagens, acusando as descontinuidades e os solavancos e limitando ao máximo a montagem invisível e as variações de intensidade, bem como todos os efeitos de ligação e de esbatimento que são universalmente utili- zados na montagem do som no cinema. 11.3 Um fragmento sonoro audível constitui um plano de som? Além disso, Godard põe de tal forma a descoberto a montagem dos sons que evita misturar demasiadas pistas diferentes ao mesmo tempo (alguns dos seus filmes limitam-se a duas), de maneira que a nossa atenção não é solicitada pelos cortes e ruturas em diferentes níveis da cadeia sonora; ela pode então seguir o fio do discurso sonoro e ouvir «a nu» todas as ruturas, quando estas são efetuadas de maneira a serem audíveis. Por conseguinte, com os seus filmes, estamos nas condições mais francas e mais radicais para apreender o que poderia ser um plano de som. Por exemplo, no início deEu vosSaúdo, Maria, ouvimos claramente os cortes que isolam vários fragmentos sonoros - fragmento de um prelúdio de Bach tocado ao piano, gritos de uma equipa feminina de basquetebol num pavilhão coberto, frases em voz-ojf, etc. Contudo, seria necessário que esses fragmentos de som perfeitamente delimitados criassem a sensação de uma unidade. Para a audição, não constituem blocos: a perceção, sempre no fio do tempo com o som, contenta-se em saltar o obstáculo do corte e, depois, passar para outra coisa, esquecendo a forma daquilo que ouvira anteriormente. O fragmento de som, pelo menos se exceder uma duração muito curta, não se sintetiza na perceção numa totalidade particular. Notemos que o mesmo sucede nos planos visuais, quando estes são planos em movimento que implicam a variação constante do enquadra- mento entre o seu início e o seu fim. A visão está então muito mais no fio do tempo, uma vez que não tem estabilidade espacial. Em contrapartida, no caso de uma planificação a partir de planos fixos ou discretamente enquadrados, cada plano identifica-se, para nós, por uma certa disposição de objetos, uma certa perspetiva, e é fácil representá-lo na nossa memória por essa disposição. 40 Por oposição, mesmo no caso de um ambiente sonoro estável, cortado em pequenos fragmentos como em Godard, não há nada a fazer, é a perceçâo sequencial, temporal, que domina para o som, pelo menos para além de uma duração muito curta. Por outro lado e sobretudo, não é possível criar entre dois fragmentos sonoros que se sucedem (fragmento de chilreios de pássaros ou amostra de música) uma relação de natureza abstrata e estrutural, como aquelas que se podem estabelecer entre os planos visuais, do tipo: alguém observa alg% objeto do seu olhar; a totalidade de um cenário/pormenor dessa totalidade, etc. Se tentarmos algo de semelhante com o som, a relação abstrata que pretendemos estabelecer mergulha no fluxo temporal; aquilo que se impõe é, sobretudo, o caráter sempre dinâmico, particular e momentâneo da rutura entre os dois fragmentos. A explicação deste mistério é que quando falamos de plano no cinema, estabelecemos uma relação entre o espaço do plano e a sua duração, entre a sua superfície espacial e a sua dimensão temporal. Ao passo que, nos fragmentos sonoros, a dimensão temporal parece amplamente predominar e a dimensão espacial não existir de todo. De maneira que, quando há contrato audiovisual e sobreposição de cadeias visuais e sonoras, os cortes visuais continuam a ser o ponto de referência da perceção. Quanto aos cortes secos godardianos no som, embora fraturem a continuidade do plano, como dizem poeticamente alguns investigadores, não fazem mais do que uma linha de fissura numa vidraça que permanece inteira. 11.4 A condição para um lugar dos sons O exemplo de Eu VosSaúdo, Maria é, de resto, interessante a mais de um título: a regra que o realizador nele impôs, a saber, não utilizar mais de duas pistas simultaneamente, é um condicionamento pessoal que, porém, não cria no espetador a consciência autónoma de duas pistas separadas. De facto, a única maneira de perceber essas duas pistas seria arribuir-lhes na sala uma fonte espacial diferente e específica. Nesta condição, de uma pista ligada a um altifalante, teríamos então a sensação de um verdadeiro lugar do som, de um contentor sonoro dos sons. De resto, seria necessário não só que estes proviessem de uma fonte claramente distinta do espaço sonoro do ecrã, mas também que evitassem sincronizar-se com a imagem, para fugirem ao efeito de magnetização espacial pela imagem, que estu- daremos mais à frente, e que é, em geral, o mais forte! 11.5 Unidades, mas náo específicas Significa isto que uma banda sonora de filme constitui, para a escuta, um fluxo sem cortes? 41 Não, porque continuamos a distinguir unidades: mas estas - frases, ruí- dos, temas musicais, células sonoras - são exatamente do mesmo tipo que na experiência corrente, e são identificadas em função de critérios específicos aos diferentes tipos de sons ouvidos. Se se trata, por exemplo, de um diálogo, cortamos o fluxo vocal em frases, palavras, logo em unidades linguísticas. Se se trata de ruídos, realizamos uma divisão percetiva em acontecimentos sonoros, mais fácil se se tratar de sons isolados. Numa música, isolamos melodias, temas e células rítmicas, segundo o grau da nossa cultura musical. Em suma, funcionamos como habitualmente com unidades que não são especificamente cinematográficas e que dependem totalmente do tipo de som e do nível de escuta escolhido (semântica, causal, reduzida). O mesmo acontece se tivermos de isolar os sons uns dos outros na sua sobreposição e não na sua sucessão - referimo-nos, para isso, a um grande número de índices e de níveis de escuta: escuta causal, diferenciação em massa, em qualidade acústica, etc. Assim se explica que a unidade visual do plano, especificamente cine- matográfica, continue a ser de longe a mais evidente e que a planificação sonora a ela se submeta e a ela seja referida. 11.6 O fluxo sonoro: lógica interna, lógica externa O fluxo do som de um filme carateriza-se pelo caráter mais ou menos ligado, mais ou menos insensível e fluidamente encadeado dos diferentes elementos sonoros, sucessivos ou sobrepostos, ou, pelo contrário, mais ou menos acidentado e partido por cortes secos - que interrompem brutalmente um som para o substituírem por outro. A impressão geral do fluxo sonoro, por outro lado, é função não das caraterísticas de montagem e de mistura encaradas separadamente, mas do conjunto dos elementos. Jacques Tati, por exemplo, utiliza efeitos sonoros extremamente pontuados e delimitados, realizados separadamente e localizados no tempo, cuja simples sucessão daria uma banda sonora fragmentada e soluçante, se não usasse, para ligar o todo, elementos de ambiência contínua - por exemplo, ambiências vocais «fantasmas» (os jogos de praia em As Férias do Sr. Hulot, ou os gritos de mercado em O Meu Tio), que servem de aglutinante e dissimulam oportunamente as ruturas de fluxo que decorrem inevitavelmente de uma produção extremamente fragmentada e pontual dos sons. Chamamos lógica interna do encadeamento audiovisual a um modo de encadeamento das imagens e dos sons concebido para parecer responder a um processo orgânico subtil de desenvolvimento, de variação e de crescimento, que nasceria da própria situação e dos sentimentos que inspira: a lógica interna privilegia, portanto, no fluxo sonoro, as modificações contínuas e progressivas e só utiliza as ruturas bruscas quando a situação
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