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- 1 - - 2 - - 3 - DIANA NARA DA SILVA OLIVEIRA SILVIA ELISABETH MORAES organizadoras CIDADANIA PLANETÁRIA COMO SIGNIFICANTE FLUTUANTE: articulando significados na Universidade e na Escola - 4 - Comitê Científico Alexa Cultural Presidente Yvone Dias Avelino (PUC/SP) Vice-presidente Pedro Paulo Abreu Funari (UNICAMP) Membros Adailton da Silva (UFAM – Benjamin Constant/AM) Alfredo González-Ruibal (Universidade Complutense de Madrid - Espanha) Ana Cristina Alves Balbino (UNIP – São Paulo/SP) Ana Paula Nunes Chaves (UDESC – Florianópolis/SC) Arlete Assumpção Monteiro (PUC/SP - São Paulo/SP) Barbara M. Arisi (UNILA – Foz do Iguaçu/PR) Benedicto Anselmo Domingos Vitoriano (Anhanguera – Osasco/SP) Carmen Sylvia de Alvarenga Junqueira (PUC/SP – São Paulo/SP) Claudio Carlan (UNIFAL – Alfenas/MG) Denia Roman Solano (Universidade da Costa Rica - Costa Rica) Débora Cristina Goulart (UNIFESP – Guarulhos/SP) Diana Sandra Tamburini (UNR – Rosário/Santa Fé – Argentina) Edgard de Assis Carvalho (PUC/SP – São Paulo/SP) Estevão Rafael Fernandes (UNIR – Porto Velho/RO) Evandro Luiz Guedin (UFAM – Itaquatiara/AM) Fábia Barbosa Ribeiro (UNILAB – São Francisco do Conde/BA) Fabiano de Souza Gontijo (UFPA – Belém/PA) Gilson Rambelli (UFS – São Cristóvão/SE) Graziele Acçolini (UFGD – Dourados/MS) Iraíldes Caldas Torres (UFAM – Manaus/AM) José Geraldo Costa Grillo (UNIFESP – Guarulhos/SP) Juan Álvaro Echeverri Restrepo (UNAL – Letícia/Amazonas – Colômbia) Júlio Cesar Machado de Paula (UFF – Niterói/RJ) Karel Henricus Langermans (Anhanguera – Campo Limpo - São Paulo/SP) Kelly Ludkiewicz Alves (UFBA – Salvador/BA) Leandro Colling (UFBA – Salvador/BA) Lilian Marta Grisólio (UFG – Catalão/GO) Lucia Helena Vitalli Rangel (PUC/SP – São Paulo/SP) Luciane Soares da Silva (UENF – Campos de Goitacazes/RJ) Mabel M. Fernández (UNLPam – Santa Rosa/La Pampa – Argentina) Marilene Corrêa da Silva Freitas (UFAM – Manaus/AM) María Teresa Boschín (UNLu – Luján/Buenos Aires – Argentina) Marlon Borges Pestana (FURG – Universidade Federal do Rio Grande/RS) Michel Justamand (UNIFESP - Guarulhos/SP) Miguel Angelo Silva de Melo - (UPE - Recife/PE) Odenei de Souza Ribeiro (UFAM – Manaus/AM) Patricia Sposito Mechi (UNILA – Foz do Iguaçu/PR) Paulo Alves Junior (FMU – São Paulo/SP) Raquel dos Santos Funari (UNICAMP – Campinas/SP) Renata Senna Garrafoni (UFPR – Curitiba/PR) Renilda Aparecida Costa (UFAM – Manaus/AM) Rita de Cassia Andrade Martins (UFG – Jataí/GO) Sebastião Rocha de Sousa (UEA – Tabatinga/AM) Thereza Cristina Cardoso Menezes (UFRRJ – Rio de Janeiro/RJ) Vanderlei Elias Neri (UNICSUL – São Paulo/SP) Vera Lúcia Vieira (PUC – São Paulo/SP) Wanderson Fabio Melo (UFF – Rio das Ostras/RJ) - 5 - Embu das Artes 2021 DIANA NARA DA SILVA OLIVEIRA SILVIA ELISABETH MORAES organizadoras CIDADANIA PLANETÁRIA COMO SIGNIFICANTE FLUTUANTE: articulando significados na Universidade e na Escola - 6 - © by Alexa Cultural Direção Gladys Corcione Amaro Langermans Nathasha Amaro Langermans Editor Karel Langermans Capa K Langer Revisão Técnica Diana Nara da Silva Okiveira Revisão de Língua Silvia Elizabeth Miranda Editoração Eletrônica Alexa Cultural Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Cidadania planetária como significante flutuante: articulando signi- ficados na Universidade e na Escola / Organizadoras Diana Nara da Silva Oliveira, Silvia Elisabeth Moraes – Embu das Artes, SP: Alexa Cultural, 2021. 266 p. : il. ; 14 x 21 cm Inclui bibliografia ISBN 978-65-89677-60-4 1. Ciências sociais. 2. Ambientalismo. 3. Desenvolvimento sustentável. I. Oliveira, Diana Nara da Silva. II. Morais, Silvia Elizabeth. CDD 333.72 Elaborado por Maurício Amormino Júnior – CRB6/2422 Índices para catálogo sistemático: 1 - Ciencias Sociais 2 - Cidadania Planetária 3 - Desenvolvimento sustentável. 1. Todos os direitos reservados e amparados pela Lei 5.988/73 e Lei 9.610 Alexa Cultural Ltda Rua Henrique Franchini, 256 Embú das Artes/SP - CEP: 06844-140 alexa@alexacultural.com.br alexacultural@terra.com.br www.alexacultural.com.br www.alexaloja.com C568 - 7 - “Seria uma atitude ingênua esperar que as classes dominantes desenvolvessem uma forma de educação que proporcionasse às classes dominadas perceber as injustiças sociais de maneira crítica”. (FREIRE, 1981) - 8 - - 9 - PREFÁCIO TORNANDO-NOS HUMANOS PLANETÁRIOS Como nos tornamos humanos? Cidadãos? Professores? Artis- tas? Pergunta o Prof Botelho1. Seguimos na mesma linha de reflexão acrescentando: Como nos tornamos cidadãos planetários? Cidadania Planetária é a defesa radical de todas as formas de vida no planeta, incluindo os povos indígenas e os afrodescendentes, com seus saberes e tradições, juntamente com o conhecimento cons- truído pelos cientistas em seus laboratórios, universidades e institui- ções de pesquisa. Consideramos Cidadania Planetária como significan- te flutuante (Laclau, 2007), o que o faz flutuar de um projeto a outro, articulando e preenchendo seus significados. São estudos, práticas pe- dagógicas, vivências e propostas dos autores desse e-book que lhe dão vida. A origem da discussão sobre significante flutuante remonta a Ferdinand de Saussure, linguista e filósofo suíço que definiu um signo linguístico como sendo composto por um “significante” (signifiant) - a forma que o signo tem - e o “significado” (signifié ) - o conceito que representa. O signo é o todo que resulta da associação do significante com o significado, ou seja, uma combinação reconhecível de um signi- ficante com um especial significado. Para Saussure os signos não são dotados de uma natureza “es- sencial” ou intrínseca: ao contrário, a relação entre significante e signi- ficado é arbitária. Além disso os signos referem-se principalmente uns aos outros. Nenhum signo faz sentido por conta própria, mas apenas em relação a outros signos. Ambos significante e significado são pura- mente entidades relacionais. Vários outros autores já abordaram o conceito de significante flutuante comparando-o com o significante vazio. Claude Levi-Strauss (1968) exemplifica significante flutuante com a noção de mana, algo tão geral que representa o mais diverso dos significantes: a susbtância da qual é formada a magia e a invenção mítica e estética, “uma espécie de “quarta dimensão” do espírito, um plano no qual se confundem as noções de “categoria inconsciente” e “categoria do pensamento coletivo”(p.27). ”. Para Chandler (2013) um significante vazio é aquele que tem um signifi- cado vago, altamente variável, não especificável ou não existente. 1 Professor da Universidade Federal do Ceará - 10 - Uma contribuição para a discussão de significante flutuante foi dada por Stuart Hall em palestra intitulada Raça: o significante flutu- ante no Goldsmith College, Universidade de Londres, em 1997. Na cultura humana, diz ele, há um verdadeiro ímpeto de classificar os humanos em tipagens muito distintas de acordo com as características físicas ou intelectuais. De certa forma, isso é um impulso cultural po- sitivo porque agora entendemos a importância de todas as formas de classificação de significados. Até você classificar as coisas de maneiras diferentes, você não pode gerar significados. Mas o que é importante para nós é identificar quando os sistemas de classificação tornam-se objetos de distribuição do poder, ou seja, quando a marcação de dife- rença e semelhança numa população humana torna-se razão para que um grupo passe a ter muito mais valor positivo do que o outro grupo. O que o racismo como filosofia sustenta é que há uma conexão natural entre a aparência, diferenças de cor, cabelo e ossos e o que as pessoas pensam e fazem, o quão inteligente elas são, se são bons atletas, bons dançarinos ou mesmo civilizados. Os racistas acreditam que estas características não são o resultado do meio ambiente, mas da nossa genética. Entretanto, todas as tentativas de fundamentar o conceito deraça cientificamente, no que se poderia chamar de fundamentos bio- lógicos ou genéticos, têm-se demonstrado amplamente insustentáveis. Portanto, raça é uma construção discursiva, um significante flutuante. O tratamento de raça como algo biologica ou geneticamente funda- mentado, na verdade está servindo a um certo grupo político que visa a dominação. Em nossa análise utilizamos o conceito de significante flutuan- te de Ernesto Laclau, professor de teoria política da Universidade de Essex onde fundou e dirigiu por muitos anos o programa de pós-gra- duação em Ideologia e Análise do Discurso assim como o Centro de Estudos Teóricos em Humanidades e Ciências Sociais. Nascido na Ar- gentina Laclau foi ativista, membro do Partido Socialista da Esquerda Nacional e editor do jornal Lucha Obrera, publicação desse partido. Em suas obras Laclau discute universalidade/particularidade, articula- ção, cadeia de equivalência, cadeia diferencial, pontos nodais, hegemo- nia, significante vazio/significante flutuante. Laclau e Mouffe (1985) postulam que o corpo social resulta de múltiplas práticas articulatórias que constituem e organizam as rela- ções sociais. Cabe à articulação estabelecer uma relação entre diversos - 11 - elementos modificando suas respectivas identidades de forma a aglu- tinar elementos dispersos no campo discursivo para em seguida orga- nizá-los dentro de uma única totalidade estruturada. Neste processo permanente de construção da totalidade do corpo social, as demandas são articuladas por “lógicas da equivalência” – criando antagonismos a outras demandas e suas respectivas identidades – e “lógicas de diferen- ça”, que as fazem ser repelidas e negadas por outras demandas. O dis- curso age sobre as demandas articulando-as entre si e significando-as até reuni-las em cadeias de associação que constroem o corpo social. Em entrevista que tive o privilégio de realizar para a pesquisa sobre Cidadania Global na universidade durante Estágio Sênior-CA- PES no Instituto de Educação, Universidade de Londres em dezembro 2013, o Prof Laclau esclareceu o que ele entende por significante. Um significante não é um conceito per se, porque um conceito deve ter um conteúdo concreto. Um significante é um nome e a diferença entre um nome e um conceito é que um nome não tem um conteúdo concreto. Um nome opera como suporte para uma certa forma de articulação, é o que sustenta a unidade da coisa; não é que a coisa tem algo próprio que transmite a um nome. Para Laclau (1996; 2013) existem dois tipos de significantes: o vazio e o flutuante. Um significante vazio é aquele que tenta quebrar sua relação com qualquer significado a fim de re- presentar um campo heterogêneo. Um significante flutuante é aquele que pode articular-se com uma variedade de projetos concretos. Então, porque ele se move entre os projetos, ele não é vazio, ele é flutuante. Laclau exemplificou o que ele quer dizer por significante vazio com o movimento Solidarność liderado por Lech Walesa nos estalei- ros Lenin, em Gdansk, Polônia nos anos 1980 e que exigia melhores condições para os trabalhadores da indústria naval. O movimento se iniciou ligado a um conjunto de demandas precisas, mas com o tem- po passou a abarcar muitas outras demandas em diferentes áreas. No final, Solidarność tornou-se o significante de algo muito mais amplo. Quando se tem essa universalização, corta-se a ligação entre este sig- nificante e o significado para o qual foi anexado no início. Ele tende a se tornar vazio. No caso do Solidarność, no início teve um significante, mas as demandas aumentaram tanto que a referência a um significado particular foi diluída. Um significante flutuante é diferente. Ele pode ser conecta- do a diferentes contextos portanto a função de significação em cada - 12 - contexto é plenamente realizada. Ele flutua entre diferentes formas de articulação, em diferentes projetos. Resumindo e enfatizando, um significante flutuante se concretiza, se realiza mediante projetos. Em nosso e-book temos o relato dos projetos que articulam o significante flutuante Cidadania Planetária na escola e universidade. De início temos a declaração apaixonada dos autores de “Amar e mudar as coisas me interessa mais” onde firmam o compromisso pela promoção da cidadania planetária no aprendizado. Em seguida seguem projetos e propostas de abordagem inter e transdisciplinar que dão suporte ao significante flutuante Cidadania Planetária: » a visibilização, valorização e incorporação dos saberes africa- nos e afro-brasileiros fundamentados na Ecologia de saberes, sob a ótica da pedagogia decolonial e através do Roleplaying Game (RPG); » o olhar interessado, encorajador e inclusivo em projetos que, mediante o uso das tecnologias, dão espaço para a manifestação e desenvolvimento dos alunos em suas múltiplas inteligências; » a valorização e estudo de questões tão caras a nós nordestinos como o bioma Caatinga, como a Iracema de José de Alencar onde é abordada a questão dos povos indígenas; » o uso do método Paulo Freire adaptado à alfabetização com o levantamento do universo vocabular das crianças; » o tema da educação para a paz como elemento potencializa- dor do bem-estar e do desenvolvimento social, comunitário e individual; » a utilização de documentário como recurso pedagógico para promover um diálogo das crianças com a natureza; » a proposta didático-pedagógica na Educação de Jovens e Adultos (EJA) à luz do acervo e biografia do fotojornalista bra- sileiro Sebastião Salgado, um cidadão planetário por excelência cujo tema principal tem sido os excluídos; » o ensino criativo em Artes tendo como tema central a relação entre Arte, Música e Experiência que inclui o canto coral, onde coralistas são também criadores de novos arranjos musicais; » a discussão da relação entre pandemias e o desequilíbrio am- biental por meio de situações-problema com base em artigos científicos e notícias da mídia, na perspectiva crítica da Educa- ção Ambiental; - 13 - » o solo como temática que vai além dos estudos geográficos e biológicos, perpassando pela arte, história, economia, física, química, matemática e linguagens além de sua diversidade de pigmentações, minerais, texturas, matéria orgânica. Tanto as temáticas acima listadas quanto as áreas de formação dos autores desse e-book já por si garantem a riqueza das abordagens. São licenciados, mestres e mestrandos, doutores e doutorandos em Geografia, História, Arte, Pedagogia, Música, Letras, Biologia, Saúde Pública, Tecnologia de Alimentos, Psicologia, Psicopedagogia, Quími- ca, Ecologia, Tecnologias de Informação e Comunicação, Educação. O olhar especializado garante o disciplinar, as várias áreas do conhe- cimento presentes nos grupos facilitam o interdisciplinar, e o coletivo de atores atentos às questões culturais, sociais e científicas dão conta do transdisciplinar. Cada um desses projetos, propostas, estudos, vi- vências dão significado ao significante flutuante Cidadania Planetária na escola e universidade: é o conhecimento em suas dimensões ético- -política, artística, afetiva, cognitiva, visando à formação de cidadãos planetários conscientes de sua ancestralidade e trajetória de formação que demonstram crença no futuro, espírito coletivo, confiança e auto- confiança em nossa humanidade. Silvia Elisabeth Moraes Fortaleza- Ceará 02 de Agosto de 2021 REFERÊNCIAS CHANDLER, D. (2013). Semiotics for Beginners. aber.ac.uk. Última atualização em 03/01/2013 www.dominicpetrillo.com/ed/Semiotics_ for_Beginners.pdf. HALL, Stuart (1997) Race, the floating signifier. Media Education Fou- ndation www.mediaed.org LACLAU, E.; MOUFFE, C. (1985) Hegemony and Socialist Strategy. New York: Verso. LÉVI-STRAUSS, C. (1968) Introduction à l’œuvre de Marcel Mauss (Marcel Mauss, Sociologie et anthropologie) Paris: Les Presses Univer- - 14 - sitaires de France, Quatrième édition, LACLAU, E. (2007) Emancipation(s) London: Verso SANTOS,B de Sousa (2007), “Beyond Abyssal Thinking: From Global Lines to Ecologies of Knowledges”, Review, XXX, 1, 45-89. SAUSSURE, F. (1979) Cours de Linguistique Générale. Paris: Payot et Rivages. - 15 - SUMÁRIO PREFÁCIO TORNANDO-NOS HUMANOS PLANETÁRIOS Silvia Elisabeth Moraes - 9 - APRESENTAÇÃO NOTAS INTRODUTORIAS Luiz Botelho de Albuquerque, Silvia Elisabeth Moraes e Pedro Rogério - 19 - DA EMBRUTECIDA SOLIDÃO TRANSMISSIVA À UM CONVI- TE MULTIDIMENSIONAL, RECONECTADOR DE SABERES E HUMANIZAÇÃO Carlos Rochester Ferreira de Lima - 29 - AMAR E MUDAR AS COISAS ME INTERESSAM MUITO MAIS Carlos Eduardo Tabosa Lopes, Davide Carlos Joaquim Francisca Liliana Araújo Pereira, Maria Gleice Rodrigues e Maria José Marques Lima - 31 - UNIDADE 1- FORMAÇÃO DE PROFESSORES, ENSINO E PRÁTICAS INTER- DISCIPLINARES APRENDIZAGEM SIGNIFICATIVA E PRÁXIS PEDAGÓGICA POR MEIO DE MAPAS MENTAIS E DA LITERATURA DE CORDEL Maria Leudysvania de Sousa Lima Gadêlha e Ana Cristina de Moraes - 53 - PROJETOS INTERDISCIPLINARES NA FORMAÇÃO INICIAL DE PEDAGOGOS: experiências, desafios, aprendizagens e reflexões Paula Pereira Scherre, Marly Medeiros de Miranda Maria Auricélia Gadelha Reges, Gardenia Maria de Oliveira Barbosa e Carlos Rochester Ferreira de Lima - 67 - - 16 - INTERDISCIPLINARIDADE E FORMAÇÃO DE PROFESSORES POLIVALENTES: didática e as múltiplas linguagens na educação infantil Edna Kílvia Silva de Freitas, Hamilton Gabriel Silva Maia Nara Nair Coelho da Silva e Carlos Rochester Ferreira de Lima - 81 - O ROMANCE IRACEMA EM SALA DE AULA: uma proposta interdisciplinar Maria Aline Silva Carvalho, Yasmin Ferreira Maia Paulo Samuel Viana Castro, José Anderson Costa Gomes e Diana Nara da Silva Oliveira - 95 - O ESTUDO DOS POVOS PRÉ-CABRALIANOS PARA ALÉM DO LIVRO DIDÁTICO: uma proposta pedagógica a partir da decolonialidade e da interdisciplinaridade Perpétua Socorro Lopes Sampaio, José Anderson Costa Gomes e Paulo Sampaio Teixeira - 111 - EDUCAÇÃO PARA PAZ NA PERSPECTIVA INTERDISCIPLI- NAR E TRANSDISCIPLINAR Maria José Marques Lima, Carlos Manuel Ribeiro da Silva e Luiz Botelho Albuquerque - 125 - UNIDADE 2- MÚLTIPLAS LINGUAGENS, TECNOLOGIAS E ARTE-EDUCAÇÃO AS FRUTAS DO MEU COTIDIANO: proposta interdisciplinar de alfabetização mediada pelas tecnologias e Paulo Freire Adalrinete Maia Gondim, Maridene Rodrigues Bezerra e Paula Pereira Scherre - 141 - - 17 - COLONIALIDADE E DECOLONIALIDADE NO ENSINO DA HISTÓRIA AFRICANA E AFRO-BRASILEIRA: saberes e formação docente através do RPG Maria de Fátima de Vasconcelos Costa e Joycimara de Morais Rodrigues - 157 - INTELIGÊNCIAS MÚLTIPLAS: projeto interdisciplinar sobre tecnologias digitais Francisca A. Marcilane G. Cruz, Maria Gezilane Gomes de Lima Maria Kênia Firmino da Silva e Rayssa Melo de Oliveira - 169 - ECOLOGIA DE SABERES: ANÁLISE DA PRODUÇÃO AUDIOVISUAL “O COMEÇO DA VIDA 2: “lá fora” como gerador de conexões genuínas entre o escolar e a natureza Adriana Isabel Rodrigues Marcos e Marilha da Silva Bastos - 181 - EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS PELAS LENTES DE SEBASTIÃO SALGADO: construtores da cidadania planetária Karla Eveline Barata de Carvalho e Lireda França de Souza - 193 - ATIVIDADE DE CRIAÇÃO ARTÍSTICA EM SALA DE AULA: uma proposta pedagógica Francisca Antonia Marcilane Gonçalves Cruz Natanael Martins de Sousa, Adeline Annelyse Marie Stervinou e Marco Antonio Toledo Nascimento - 211 - UNIDADE 3 MEIO AMBIENTE E ECOLOGIA DE SABERES O SURGIMENTO DE PANDEMIAS E O DESEQUILÍBRIO AMBIENTAL: uma proposta transdisciplinar para a formação de cidadãos planetários Raquel Sales Miranda, Aurélio Wildson Teixeira de Noronha e Raquel Crosara Maia Leite - 225 - - 18 - “AI, AI, O POVO ALEGRE, MAIS ALEGRE A NATUREZA”: relato de experiência de construção de um projeto interdisciplinar Mônica Costa Cordeiro , Lunian Fernandes Moreira Joel Ivo de Sousa Araújo, Alex José de Sousa e Gardênia Maria de Oliveira Barbosa - 239 - EDUCAÇÃO EM SOLOS: proposição didático-pedagógica de ensino contextualizado Marina Cristina Silva Coelho, Felipe Oliveira da Silva Francisco Ricardo Leite Silva e Leandro Vieira Cavalcante - 252 - - 19 - APRESENTAÇÃO FORMAÇÃO - CIDADÃO, PESSOA, PESTE: a criação de um sentido para a vida social contemporânea. Como nos tornamos humanos? Cidadãos? Professores? Artis- tas? Esta é uma questão básica que deu origem e acompanha o de- senvolvimento de várias disciplinas acadêmicas. Traz embutida uma dimensão de processo, de historicidade, de adaptabilidade. Traz tam- bém um desafio metafísico importante, ligado às questões de gênese e teleologia, origens e finalidades, significado e sentido da vida e da exis- tência, dos arranjos culturais e simbólicos específicos em cada contexto ambiental e histórico. E ainda uma questão curricular! Nosso diálogo neste semestre atribulado de 2020.2 se articula a um destes arranjos interdisciplinares, no contexto da distopia que caracteriza a sociedade brasileira nesta terceira década do século XXI. Trata-se de um desafio curricular de responsabilidade de intelectuais comprometidos com as causas da Educação. A questão que temos pela frente tem duas faces: como chegamos até aqui? Para onde vamos? Sem recuar muito podemos tomar como referência os intelectu- ais que interpretaram a sociedade brasileira e apontaram, simultanea- mente, suas fragilidades e suas perspectivas. O primeiro deles é Macha- do de Assis, especificamente em um de seus contos mais iluminados a respeito da cultura brasileira: Um homem célebre. Publicado em 1883, este conto nos ajuda a identificar e compreender os fatores que estru- turaram a formação da sociedade brasileira e sua cultura: colonialidade e escravidão. Chegamos ao século XXI ainda marcados por aspectos de uma formação que violentam os interesses do nosso povo, ainda que se- jam vantajosos para uma pequena elite poderosa, patriarcal, racista e atrasada. Não conseguimos resolver a mentalidade colonizada nem as relações com os povos americanos nativos e afrodescendentes. Vive- mos aquilo que Roberto Schwarz apontou muito acertadamente em Machado de Assis: ideias fora de lugar! Obviamente este descompasso atende a interesses dos podero- sos e resulta em prejuízo ao conjunto do povo brasileiro! Como Darcy - 20 - Ribeiro denunciou muito claramente, nossas dificuldades (no plano educacional, por exemplo) não são acidentes: são o resultado de um projeto de dominação, voltado a impedir nosso desenvolvimento e a construção de uma nação soberana e orientada para o bem-estar de seu povo. Na trilha aberta por Machado de Assis, podemos avançar com Nísia Floresta, Anísio Teixeira, Cecília Meireles, Fernando de Azevedo, Nise Silveira, Sergio Buarque de Holanda e Bertha Lutz, intelectuais que leram e compreenderam os dilemas da sociedade brasileira, e a partir disto, propuseram ações (dentre as quais destacamos o Manifes- to dos Pioneiros da Educação Nova, de 1932) que se defrontavam com o tema da educação nacional libertária, laica, inclusiva, pública, gra- tuita e de qualidade, o qual permanece cada dia mais relevante e atual. Para nós, Educadores, este é o desafio: compreender como nos tornamos os estudantes, os educadores, os cientistas, os intelectuais, em suma, o povo que somos concretamente, e não os estudantes, edu- cadores, cientistas, intelectuais, e povo que podemos ser. É impensá- vel que uma região com as riquezas que tem, as distribua tão mal! É inaceitável que milhões de analfabetos, desempregados, miseráveis e famintos sejam excluídos da riqueza nacional canalizada para uma elite predadora. Face a este contexto, e no momento em que atravessamos uma distopia sanitária e política, olhamos para o passado da educação en- quanto processo de formação humana e cidadã. Este olhar nos per- mite compreender a trajetória do campo educacional onde operamos, e imaginar alternativas para superar as nossas dificuldades presentes. Na nossa constituição como um povo novo (comolembra Dar- cy Ribeiro) que resulta da mistura de povos antiquíssimos, reunidos pelo processo da colonização e escravismo, identificamos alguns mo- delos de formação que operam simultânea e sucessivamente. Os povos americanos nativos que habitavam a região onde hoje é o Brasil, desenvolveram processos de formação eficazes. Darcy Ribei- ro, Manuela Carneiro da Cunha, Sergio Buarque de Holanda e tantos outros mostram como estes povos ágrafos, sem moeda e sem outras instituições modernas tidas como indispensáveis, vivendo magnifica- mente em equilíbrio com o ambiente. Cada membro da comunidade aprende pela observação e pelo exemplo, tudo aquilo que é necessário à sua identidade e existência. - 21 - Os povos africanos escravizados e trazidos para o Brasil, por sua vez, já tinham desenvolvido uma cultura da Ancestralidade, com pro- cessos de formação sofisticados e carregados de significação civilizató- ria. Em terras brasileiras eles souberam reinventar uma cultura afro- descendente que lhes permitiu enfrentar a escravidão e se converter num dos grupos da mais extraordinária criatividade desta civilização que construímos no Brasil. A Paidéia é o modelo de formação que hoje chamamos de euro- cêntrica, desenvolvida no contexto da civilização da Antiguidade Clás- sica, na região que hoje é Grécia, posteriormente estendida a Roma e a região do Mediterrâneo. É o modelo de formação do homem na sociedade patriarcal, escravista e pagã. Chega até nós traduzida pela experiencia lusitana, e filtrada pelas contribuições espanholas, holan- desas, francesas, de todos aqueles que, de alguma forma, interferiram educativamente na formação da civilização brasileira. O colapso da civilização pagã da Antiguidade Clássica, sob in- fluência do Cristianismo, deu lugar a um novo projeto de formação do homem católico, visando prepará-lo para a vida verdadeira, isto é, a vida depois da morte. Trata-se do paradigma da formação Escolástica que vai ter uma profunda influência na educação brasileira, desde suas origens com os Jesuítas e demais ordens religiosas que, de certo modo, monopolizaram a educação escolar até a República, influência que se prolonga até hoje (veja-se Tempos de Capanema). Santo Agostinho. Esses desenvolvimentos na Europa sofrem ainda o impacto das invasões muçulmanas, que entre os séculos 7 e 15 influenciaram decisi- vamente as culturas europeias, contribuindo inclusive para reintrodu- zir as contribuições gregas na Europa. Esta contribuição de uma edu- cação Andaluz vai ajudar na formação de uma atitude mais tolerante, no contexto das Universidades que surgiam. A crítica aos desmandos da Igreja Católica resultou na emergên- cia das confissões protestantes. A formação do novo homem cristão reformado será realizada pela Didática de Comenius, que vai procurar ensinar tudo a todos, visando salvá-los. A crítica ao absolutismo resultará em projetos de formação do cidadão para a vida em sociedade através de uma educação laica, públi- ca e obrigatória para todos os cidadãos. Rousseau... Educadores propõem uma educação e escola cada vez mais in- clusiva, voltada para os interesses e possibilidades dos estudantes, com ênfase no aprender. Pestalozzi, Montessori, - 22 - O surgimento de disciplinas que tratam do desenvolvimento das inteligências e da compreensão dos processos da aprendizagem resul- tará numa escola baseada em ciências humanas e sociais. Dewey, Pia- get, Vigotsky, Luria, Leontiev, Emilia Ferreiro, Paulo Freire, Gardner, O reconhecimento do poder explicativo das histórias de vida, das narrativas de si, das biografias e autobiografias, na compreensão das trajetórias e dos processos de formação, particularmente de profes- sores. Pineau, Monberger, Passegi, Abrahão, Silva, Castro, Bourdieu. Chegamos a 2021; vivemos um presente distópico, agravado por uma pandemia que já matou mais de 550.000 cidadãos e está em plena expansão. Assistimos às tentativas de destruição da escola pública e das redes de proteção social. Ódio, negação, violência, estupidez, armas, intolerância e brutalidade se colocam como pilares emergentes de uma parcela da sociedade orientada pela estupidez e para a maldade. Não é este o presente que desejamos. Não será nosso futuro! Para isso precisamos: ajustar as contas com os povos indígenas que até o dia de hoje exterminamos para roubar as terras, e com os afrodescendentes cujos ascendentes escravizamos e torturamos; supe- rar o estatuto colonial que nos faz submissos à ganância de esperta- lhões vestidos de bandeiras; e sobretudo formar cidadãos capazes de amadurecer de forma saudável, tolerante, cooperativa, respeitadora do ambiente e dos seus iguais. Há cem anos os educadores propõem uma educação civilizado- ra, voltada para os interesses e necessidades do povo brasileiro. Tenta- mos levar a sério o que diziam Machado e Nísia Floresta. Prosseguimos o que fizerem Anísio Teixeira e Cecília Meireles. Procuramos cuidar de pessoas e instituições, como Darcy Ribeiro e Nise Silveira. Não desisti- mos. Realizamos nosso trabalho de intelectuais da educação. Face a tudo isso que já vivemos, sofremos e fizemos, hoje pro- pomos uma Educação para depois da pandemia, baseada numa peda- gogia do afeto e do cuidado, uma didática do aprender juntos, um cur- rículo para a formação de uma cidadania planetária. Nossa experiência de povo sangrado e ressangrado (aquele já citado por Capistrano) é o modelo paradigmático do que queremos evitar. E pensamos fazê-lo curricularmente. - 23 - POR UMA VIDA QUE VALHA A PENA SER VIVIDA Como nos tornamos humanos? Cidadãos? Professores? Artis- tas? Pergunta o Prof Botelho. Como nos tornamos cidadãos planetá- rios? Pergunta Profa. Silvia Elizabeth. E seguimos perguntando: Por que somos como somos? Porque escolhemos as coisas que escolhemos (roupa, música, vocabulário, escola, hobbies, profissão, livros)? Ou seja, por que somos como somos e estamos da maneira que estamos no mundo? Olhando para todo o contexto histórico, tão bem apresentado pelo prof. Botelho, fica claro que o projeto de modernidade dá sinais de saturação desde a primeira metade do séc. XX. A natureza no sen- tido corrente (fauna, flora, clima e condições de vida de uma forma ampla) nos avisa que ou mudamos ou aumentaremos o risco da vida planetária. Diante de tão grande desafio, o que fazer? Precisamos olhar para a simplicidade de forma tranquila, assim como nos ensina um dito oriental que cita o prof. Henrique Beltrão: “O discípulo pergunta ao mestre: como chegar à perfeição? E o mestre com serenidade pergunta: já fez seu desjejum? E o discípulo responde: sim! Continua o mestre: já lavou sua cuia? E o discípulo responde: não.... Então, diz o mestre, comece lavando sua cuia” O que nos ensina esse breve diálogo? Que toda a revolução começa com a atitude diária de cada um de nós. Se toda a sofisticação intelectual que desenvolvemos até aqui não estiver a serviço da construção de um mundo melhor, mais justo, solidário, afetuoso, ético e belo será um grande desperdício. Contudo, nossa formação mais profunda, aquela que está in- corporada, impressa nas estruturas cognitivas e subjetivas foi forjada em grande medida pelas referências modernas do que acreditávamos ser o melhor e que estamos constatando sua ineficácia para a saúde do indivíduo, da sociedade e do planeta. Como nos alerta Theodor Ador- no e em seguida Pierre Bourdieu, tendemos a reproduzir em alguma medida a nossa própria formação. O professor que somos hoje tende a reproduzir experiências autoritárias que nos formaram; o homem e a mulher que somos hoje tende a reproduzir atitudes machistas e pa- triarcais que nos formaram; o estudante que somos hoje tende a ser passivo, submisso e docilmente dominado como nos ensinaram a ser no passado; o trabalhador que somos hoje tende a ser subserviente a quem está no comando; e os comandantes e dominadores de hoje ten- - 24 - dem a estar convencidos que nasceram para subjugar os demais que não são seuspares. Então, como fazemos para escapar dessa reprodu- ção que em maior ou menor medida também compõe nossa formação? Adorno nos indica o caminho da permanente reflexão sobre si mesmo e sobre a sociedade. Manter o espírito crítico e alerta. Como canta a Tropicália em “Divino maravilhoso” de Caetano Veloso: “É preciso es- tar atento e forte!” Atenção ao dobrar uma esquina Uma alegria, atenção menina Você vem, quantos anos você tem? Atenção, precisa ter olhos firmes Pra este sol, para esta escuridão Atenção Tudo é perigoso Tudo é divino maravilhoso Atenção para o refrão É preciso estar atento e forte Não temos tempo de temer a morte (2x) Atenção para a estrofe e pro refrão Pro palavrão, para a palavra de ordem Atenção para o samba exaltação Atenção Tudo é perigoso Tudo é divino maravilhoso Atenção para o refrão É preciso estar atento e forte Não temos tempo de temer a morte (2x) Atenção para as janelas no alto Atenção ao pisar o asfalto, o mangue Atenção para o sangue sobre o chão Atenção Tudo é perigoso Tudo é divino maravilhoso Atenção para o refrão É preciso estar atento e forte1 1 https://youtu.be/7HvW-xu_j_o - 25 - A vida do planeta está em risco? Não temos tempo de temer a morte. Temos de criar proposições, alternativas, ambiente de refle- xão permanente, manter o espírito crítico e alerta às artimanhas do poder. Bourdieu nos auxilia generosamente a entender as formas de funcionamento da sociedade que através de estratégias legitimam os dominadores. Mas, também, nos oferece ferramentas heurísticas para perguntarmos como podemos usar a lógica de funcionamento do cam- po para objetivos republicanos, eticamente defensáveis. Dessa forma podemos desenvolver estratégias que deem vozes aos batuques da nos- sa origem africana, às danças da nossa origem indígena, aos cantores, músicos e compositores que não chegaram ao mercado multinacional das antigas gravadoras nem “viralizam” nas plataformas digitais. Essa é uma contribuição de grande relevância que a universidade pode trazer à sociedade. Mas, precisamos fazer essa revolução a partir do nosso dia a dia, na nossa sala de aula, em casa, no café da manhã. Precisamos trazer essa reflexão para a prática diária. Por exemplo reconhecendo que nos- sa capacidade de compreender o mundo é limitada e por mais elabo- rada que sejam nossas teorias e conceitos acadêmicos a vida é sempre maior e mais rica. Se muito podemos aprender com Adorno, Bourdieu, Micelli, Morin, Nóvoa, Sacristán Boaventura, também podemos e, do meu ponto de vista, devemos aprender com o artista (pintor e ritmis- ta) Descartes Gadelha, com os Rabequeiros do Nordeste (como nos demonstrou lindamente prof. Gilmar de Carvalho), com os cantores da noite (vide pesquisa de Silvio Mauro Monteiro), com os cantadores, emboladores e violeiros (como nos ensinou profa Elba Braga Rama- lho), com a economia popular do Conjunto Palmeiras, com os movi- mentos sociais, ou seja, com a vida vivida a cada dia. Nosso conheci- mento é falso, porque é sempre uma tradução da realidade. Como diria Umberto Eco, traduzir é trair. Então, não podemos nos arvorar a ser os grandes detentores do conhecimento, muito menos de um conheci- mento superior. De um lado temos um desafio planetário e de outro reconhece- mo-nos tão pequenos e limitados. O que fazer? O convite é trabalhar- mos no aqui e agora, em nosso microclima, como citado no início do texto, lavando diariamente a cuia após de desjejum, respeitando uns aos outros, reconhecendo as possibilidades e potencias do local, de cada estudante, de cada professor, de cada artista, a partir do anonima- to das nossas ações, plantando sementes de amor que venham frutificar - 26 - em agentes sociais que espalhem onde quer que estejam – em casa, na escola, no trabalho, entre amigos, nos palcos da vida – o comprome- timento ético com a construção de um mundo melhor seja na música, na matemática, nas ciências, nos currículos, nas artes. Nosso objetivo maior é viver uma vida que valha a pena ser vivida. Seguimos aqui as reflexões desenvolvidas por Silvia Elisabeth Moraes e colaboradores. Fortaleza- Ceará 02 de Agosto de 2021 Luiz Botelho de Albuquerque2 Silvia Elisabeth Moraes3 Pedro Rogério4 REFERÊNCIAS AMARAL, Aracy. Artes plásticas na Semana de 22. São Paulo: Pers- pectiva, 1976. BOURDIEU, Pierre. Esboço de auto-análise. São Paulo: Cia das Le- tras, 2005. CUNHA, Manuela Carneiro da. Cultura com aspas e outros ensaios. São Paulo: Cosac Naify, 2009. DeNORA, Tia. Making sense of reality. London: Sage2014. DeNORA, Tia. Music in everyday life. Cambridge: Cambridge Univer- sity Press, 2010. 2 Graduado em Música Composição e Regência pela Universidade de Brasília (1971), Mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1980) e Doutor em Sociologia da Edu- cação - University of Iowa (1990). Atualmente é Professor Associado do Departamento de Teoria e Prática do Ensino da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará. Atua também junto ao Curso de Licenciatura em Música do Instituto de Cultura e Arte da UFC e junto ao Mestrado Profissionalizante em Artes PROFARTES/UFC. 3 Graduada em Letras Anglo-Germânicas, Universidade Federal do Ceará (UFC), tem Mestrado em Speech Communication, Universidade de Illinois, EUA, Doutorado em Educação (Currículo), UNICAMP. Atualmente é Professora da pós-graduação da FACED/UFC 4 Doutor em Educação. Mestre em Educação pela UFC (2006). Graduado em Música - Licenciatura - pela Universidade Estadual do Ceará (2000). Professor e pesquisador do Programa de Pós-Gradu- ação em Educação da UFC e do Mestrado Profissional em Artes - PROFARTES. Professor Associa- do I do Curso de Música - Licenciatura - da UFC. - 27 - GOODSON, Ivor F. Currículo: teoria e história. Petrópolis: Vozes, 2008. HOLANDA, Sergio Buarque de. Visão do Paraíso. São Paulo: Brasi- liense, 1996. JAEGER, Werner W. Paideia: a formação do homem grego. São Pau- lo: Martins Fontes, 1995. MACHADO DE ASSIS, J.M. Um homem célebre. In: Contos essen- ciais. São Paulo: Martin Claret, 2019. pp.342-351 MICELI, Sergio. Intelectuais à brasileira. São Paulo: Cia das Letras, 2001. MORIN, E. A religação dos saberes: o desafio do século XXI. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: A Formação e o Sentido do Bra- sil. São Paulo: Global, 2014. SANTOS, Boaventura S. e MENESES, Maria Paula. (org.) Epistemolo- gias do Sul. São Paulo: Editora Cortez. 2010. SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2003. SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cida- des; Ed.34, 2012. SCHWARTZMAN, Simon, BOMENY, Helena Maria Bousquet e COS- TA, Vanda Maria Ribeiro. Tempos de Capanema. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. ADORNO, Teodor W. Educação e Emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. ADORNO ______. Teoria da Semicultura. Educação & Sociedade (CEDES). Campinas-SP: Papirus, 1996. 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Nós, disciplinados pelos longos invernos sincrônicos, não admitimos a anacronia a qual estávamos envoltos, até a raiz. (os ponteiros correm... os ponteiros correm....) E percebemos em nós lacunas, incômodos, fissuras. (os ponteiros correm... os ponteiros correm....) Eis que um dia/noite/madrugada, não me recordo a badalada, Chega-nos um espelho multifocal, Pelas mãos de uma “AULISTA” que buscava outras pistas para sair daquela solidão. Sentamos como que em um confessionário secular, ali fizemos nossos desabafos coletivos. DESEMBRUTECER É DIFÍCIL, DESEMBRUTECER É MUITO DIFÍCIL!!!! - Havia uma crosta institucional; - Existem Gargalos internalizados, prisões epistêmicas, ladainhas milenares que nos abalam as práticas e as mentalidades... Corpos, olhares, posturas, prisões, medos – grades fundindo nossos cercadinhos, bolhas que nos encastelam em um pedestal arrogante, ingênuo e inócuo. TRANSMITIR NÃO É O IDEAL! Mediar “o que”, precisa vir depois de “com quem”, “em que circunstâncias” e ao “como construir com o outro”. DESEMBRUTECER É MUITO DIFÍCIL! Pressupõe entender: a cruel fragmentação, a brutal relação verticalizada, individualismo, a desumanização, a colonização dos saberes, e, enfim, o ‘projeto’ de escola e universidade que há muito não respondem mais. - 30 - É UM CONVITE... Diálogo que respeita – procurar juntos/perguntar uns com outros. É construído não por certezas, mas por perguntas, indagações que se voltam a si mesmas, porque prenhes de uma sede de descobrir, perguntar, refletir, de saber e de agir. É UM CONVITE.... Para desenjaular nossos incômodos, aquilo que está estilhaçado, sem conecção, pelo menos na superfície da aparência das coisas. É um chamamento, dialógico, ao diálogo das partes com o todo, à procura de sentidos, sonhos, desejos, partilhas. (IDAS E VOLTAS, REVOLTAS E VIDAS) (Bis) É UMA ATITUDE! É uma decisão pactuada numa ação coletiva, democrática, para além do caráter meramente consumidor subalternizante. É um ‘ensinar-se e aprender-se’, um movimento de escafandristas que não se conformam com a aparência das coisas, e, suas essências querem degustar, espiar, ajuntar e reconhecer. SER, SERMOS... NOS (RE)FAZENDO NO CAMINHAR! Poema inspirado nas vivências e nos sentidos partilhados no Projeto Interdisciplinar: 2019-2021– FAFIDAM/UECE. Russas - Ceará, 07 de maio de 2021 Carlos Rochester Ferreira de Lima* * Doutor em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará e docente do curso de Peda- gogia da Faculdade de Filosofia Dom Aureliano Matos, Campus da Universidade Estadual do Ceará, em Limoeiro do Norte - CE. - 31 - AMAR E MUDAR AS COISAS ME INTERESSAM MUITO MAIS Carlos Eduardo Tabosa Lopes1 Cidadania planetária nos aponta para reflexão-ação contínua, sendo um mote for- tíssimo que nos impulsiona a pensar a vida como o princípio da existência humana e, portanto, o zelo por ela é dever de todos nós. Isso se reflete em minha trajetória enquanto educador, terapeuta e compositor, uma vez que é por onde expresso meu profundo desejo de amar e mudar as coisas, cobrando, de quem o cabe, o que efe- tivamente podem ser e contribuindo com a parte que me é dever nesta ciranda da existência. Davide Carlos Joaquim2 Na educação em saúde, a cidadania planetária pode ser compreendida como estra- tégias voltadas não só a procedimentos técnicos, mas à visão holística para o trata- mento das patologias do corpo e da mente. Suas ações podem ajudar a humanidade no fortalecimento das relações dialógicas, possibilitando maior compreensão das múltiplas dimensões de mundo e superação da barbárie do conhecimento. Maria Gleice Rodrigues3 Cidadania planetária tem sido uma temática de grande relevância na minha traje- tória formativa, visto tratar de questões imprescindíveis à formação humana. Por este motivo, me move a disseminar suas premissas, fundamentadas no legado de Paulo Freire, que ao mesmo tempo é inspiração e missão. Francisca Liliana Araújo Pereira4 Quando refletimos sobre os saberes que os professores julgam necessários incor- porar à sua prática pedagógica em uma perspectiva planetária, consideramos re- levantes indagar-lhes se, ao longo de sua formação inicial, foi contemplada uma dimensão global, pois julgamos importante investigar as concepções dos docentes diante dessa temática. O que percebemos é que a prática pedagógica ainda não estar voltada à educação planetária, porém, faz-se urgente uma educação que se responsabilize pelo futuro comum da humanidade, que pense global e localmente, que incentive a tomada de atitudes, de articulações e que também rompa com há- bitos de consumo, de destruição e pense no meio ambiente, nas guerras, na igual- 1 Licenciado e Bacharel em Educação Física; Doutorando em Educação (UFC); Mestre em Saúde da Família (UFC); Músico; Cantautor cearense; Universidade Federal do Ceará (UFC). E-mail: edu- asaf@alu.ufc.br 2 Enfermeiro; Doutorando em Ciências Morfofuncionais (UFC); Universidade Federal do Ceará (UFC). E-mail: davidecarlos@alu.ufc.br 3 Pedagoga; Mestra em educação (UFC), docente no Curso de Pedagogia da Faculdade Ieducare. E-mail: mariamarquesrodrigues@yahoo.com.br 4 Graduada em Letras; Especialista em Psicopedagogia; Professora do ensino básico no estado do Ceará. E-mail: lilizinhaaraujo@hotmail.com - 32 - dade. Somente com a educação planetária conseguiremos reavaliar os modos de vida excludentes, as desigualdades sociais e a relação do homem com a natureza. Maria José Marques Lima5 A cidadania planetária é um tema que abrange todos os aspectos da vida humana em suas inúmeras necessidades, está vinculada aos diretos humanos, a vivência da democracia e assim da justiça social. Cumprindo o seu duro dever e defendendo o seu amor e nossa vida Mas eu não estou interessado em nenhuma teoria Em nenhuma fantasia, nem no algo mais Longe o profeta do terror que a laranja mecânica anuncia Amar e mudar as coisas me interessa mais Amar e mudar as coisas, amar e mudar as coisas me interessa mais6 (BELCHIOR, 1976) Introdução Neste ensaio, nos dedicaremos a dialogar multidisciplinarmente sobre os caminhos pedagógicos possíveis, objetivando o vislumbre de um horizonte democrático com a promoção da cidadania planetária como compromisso permanente nos dias que virão. O termo cidada- nia planetária nos conduz à reflexão de nosso papel no mundo, con- siderando que o microcosmos (Corpo) se expressa nos macrocosmos (Planeta Terra) e todo movimento efetivado no micro repercute no todo. O cidadão planetário é aquele que vive em comunhão e em con- tato com a natureza, que se sente parte de todo o processo da vida. A educação para cidadania planetária se sustenta na educação cidadã de Paulo Freire, pois baseia-se em um currículo pautado na intercultura- lidade e na transdisciplinaridade em que, através do diálogo constante, com as diversas culturas e as disciplinas, coloca-a sempre voltada para as pessoas num coletivo a partir de suas histórias de vida e de suas iden- tidades. Na primeira parte, lançaremos o olharsobre a educação pro- motora da cidadania planetária, como premissa humana fundamental para a valorização da vida digna, justa e democrática. A seguir, exploraremos os fundamentos da mobilização social e seu potencial transformador das realidades. Identificaremos também territórios potentes para a mobilização social, na busca de possibili- 5 Graduada em Letras; Doutoranda em Ciências da Educação na Universidade do Minho (Portugal) em cotutela com a (UFC); Professora da rede pública do Ceará e do município de Fortaleza - CE. E-mail: mariamarques3@gmail.com 6 https://www.youtube.com/watch?v=Lr7ywDnQjvY - 33 - dades para a partilha de riquezas e o exercício da autonomia. Este é, portanto, um convite para amar e mudar as coisas. O caminhante se faz ao caminhar É de se esperar que a vida humana seja encarada como valor fundamental na existência, nunca reduzida ou coisificada, reconhecida como riqueza essencial para a existência neste planeta redondo. Cons- cientizar-se de seu valor é indispensável para este entendimento, uma vez que, por si só, expressa uma ética do viver em sociedade. De certo que os seres humanos, segundo o iluminista Jean-Jacques Rousseau, são frutos do meio em que vivem e, portanto, reflexos do experien- ciado, o que demonstra o potencial criativo da vida ao moldar-se às realidades. Contudo, faz-se necessário reforçar que não somos recep- táculos passivos daquilo que o meio nos impõe, pois devemos, sim, dei- xar marcas positivas pela caminhada que representam uma promissora expectativa aos projetos educativos de formação humana. Nesta direção, cada movimento humano caminhante impri- me marcas indeléveis na estrada que o conduz ao presente próximo e, a cada instante, novos passos lhe são exigidos. Por isso, compreender- -se caminhante e responsável pelo caminho são decisões urgentes no percurso deste momento, uma vez que a frágil vida, urge em emergir e, portanto, nos requer posicionamento ante as iniquidades. Por isso, educar, sendo um ato de amor, primordialmente e, em sua égide, o exercício permanente da mobilização do potencial hu- mano para a vida digna, justa e prazerosa, naturalmente se estabelece no cenário das relações planetárias, apoiada no entendimento de que se é parte de uma rede ecológica de vidas, imbricadas numa cosmolo- gia universal, a fim de que nos aponte para uma cidadania planetária e oriente a existência, tendo o bem viver como o centro. Mudar as coisas exige compromisso com a vida A vida que conhecemos se estabelece na existência em uma dinâmica teia de relações, primordialmente, como componentes do mesmo organismo, cooperando para a sustentação de seu equilíbrio. São organelas que compartilham o mesmo espaço e, portanto, posicio- nam-se de modo a permanência da existência, em busca da expansão e perpetuação da sua espécie. Nesta direção, animais, plantas, seres uni e pluricelulares vivenciam a experiência mágica das inter-relações es- tabelecidas internamente da mesma forma como nas movimentações destes corpos em sociedade. - 34 - Tendo em vista que o nosso lar, morada dos milhares de mi- lhões de seres vivos, território esférico e azul, quando visto do alto, é um lugar onde estas relações se dão e que a vida, sendo a máxima man- tenedora da existência, convida-nos a abraçar a ecologia universal, na perspectiva da construção das mudanças necessárias. Estas mudanças se expressam por meio da conscientização permanente de seus habi- tantes, em busca da criação de um ideário que nos permita olhar o entorno e perceber que o exercício da cidadania faz sentido, quando pensado coletivamente, na busca por condições de vida para todos. A cidadania planetária nos aponta um horizonte largo de possi- bilidades, uma vez que a cooperação nos torna mais fortes, mais huma- nos, ampliando nossa potência e apontando benefícios singulares, pois cada um, sendo uma força motriz, é capaz de ressignificar os sentidos do existir e construir cooperativamente um lugar que permita a todos a vivência salutar, digna, justa e prazerosa da existência. O cidadão pla- netário é aquele que vive em comunhão e em contato com a natureza, que se sente parte de todo o processo da vida no planeta. Verifiquemos o conceito de humanidade, que, derivada do latim humanitas atis, com o sentido de condição da essência do ser humano e nos aponta o entendimento de que a humanidade é uma só, portanto, seu percurso deve apontar para a mesma direção, a de conviver e coo- perar para o fortalecimento de sua potência de existir e para a conquis- ta das condições necessárias para o exercício de um porvir. Atravessamos um momento tenso e que nos marcará sobrema- neira, tatuado na carne humana pela repetição da barbárie e de sua naturalização, a violência, a morte, a doença, as catástrofes ambientais provocadas pelo homem, as queimadas, destruição das florestas, as- sassinato em massa de animais, tráfico de pessoas e inúmeras outras barbaridades que demonstram o fracasso da sociedade de consumo. Já dizia Paulo Freire que é “um professor a favor da decência e contra o despudor, a favor da liberdade e contra o autoritarismo, a favor da de- mocracia e contra a ditadura” e acrescentaria, a favor da vida e contra a morte. Pedagogia da autonomia, de autoria do patrono da educação brasileira, em seu texto emblemático, revela a vontade amorosa de mu- dar o mundo, de rumar a vida para um caminho mais humano, con- vida-nos a rever a nós mesmos, nossos valores, nossos posicionamen- tos, não para a culpabilização simplória, mas para a tomada de decisão frente à barbárie, propondo uma educação verdadeiramente crítica - 35 - que envolva os sujeitos conscientemente com a realidade, de modo a se tornarem capazes de transformá-la. É preciso encarar a barbárie com olhos de corujas, garras de águias e ternura materna, para se enxergar além das aparências, lutar contra a ignorância e amar acima de tudo, pois só se é capaz de mudar as coisas por meio do amor, posicionando- -se fortemente contra a barbárie e seus algozes. As barbaridades se avizinham, se revelam e escancaram a cruel- dade neoliberal que insiste em destruir conquistas democraticamente estabelecidas, atingir a vida e celebrar a ignorância, valendo-se de ar- gumentos providos de um fanatismo exacerbado, acrítico e ignoran- te, travestido de culto, seguido por uma legião de alienados, violentos, agressivos, que são o retrato fiel do conceito de oprimido cunhado pelo autor, ficando ainda mais evidente quando afirma que, quando uma educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser opressor. Freire inaugura uma descrição clara do pobre de direita, sen- do aquele que deseja ser opressor, portanto, uma vítima da barbárie, treinado nos covis da violência, massacrado, sem oportunidades de se emancipar, tornando a si próprio desejoso pela dor, sofrimento, e ou- trora, ávido por instilar em outrem a mesma dolência, tenebrosamente amalgamada pela desilusão, falseada de liberdade e fundamentada no argumento falacioso de conquista de uma pseudoliberdade. Belchior, um dos cantautores mais conceituados e complexos da música popular brasileira, uma vez que se utiliza de muitas referências literárias nas letras de suas músicas, especificamente na música “Aluci- nação” (1976), apresenta uma filosofia da não filosofia, pois o eu-lírico fala que nós não devemos nos prender aos sonhos, e sim, ligarmo-nos ao que é real, que o delírio e a alucinação devem estar ligados ao real, o que é um paradoxo, pois uma vez que algo seja uma alucinação, não pode ser real. Todavia o que nos chama atenção na letra da música é a relação que o cantor faz com o niilismo, tratando da filosofia da nossa existên- cia como algo ínfimo diante do universo inteiro, o que podemos supor que a intenção do cantor é problematizar a inter-relação existente entre homem e a natureza, de si consigo. No trecho: “Longe o profeta do terror que a laranja mecânica anuncia”, o cantor traz à tona que, assim como o romance“Laranja Mecânica” de Anthony Burgess, publicado em 1962, apresenta a violência, o autoritarismo, sondando questões so- ciais e políticas, abordando temas como a criminalidade da juventude, psiquiatria, livre arbítrio e a corrupção moral. Não seria sua intenção - 36 - anunciar o terror, mas quebrar o místico de que a vida é sempre boa e nos chamar atenção a respeito da patologia social e a urgência em mu- darmos os nossos comportamentos em relação ao mundo e aos nossos semelhantes. Para o cantor, a real alucinação não virá do etéreo, ela virá das experiências reais e das nossas sensações de não estarmos sozinhos. Desse modo, Belchior inverte o significado da palavra alucinação, mos- trando que apesar de vivermos tempos sombrios, ainda é tempo de amarmos uns aos outros e que, só através do amor, é possível compre- ender o real sentido da vida e exercitarmos o sentido de condição da essência humana: “Amar e mudar as coisas, amar e mudar as coisas me interessa mais” (BELCHIOR, 1976). Mobilizar é partilhar poder Um dos maiores desafios de nosso país e da humanidade é cons- truir uma cultura ética e democrática, balizada nos Direitos Humanos, com o objetivo de assegurar uma vida digna para todos. Quando fala- mos de uma cultura democrática, queremos apontar que a Democracia só pode ser vivida e construída de forma coletiva, ou seja, não pode ser comprada, não pode ser decretada, não pode ser imposta, portanto é uma decisão tomada por toda a sociedade de construir coletivamente e viver uma ordem em que os Direitos Humanos e a vida digna sejam possíveis para todos. Segundo Toro e Werneck (1996), a Democracia não é um par- tido político, não é uma ciência, nem uma religião; a Democracia é uma cosmovisão, que parte da premissa de que a garantia dos Direitos Humanos para todos é o que justifica as atividades de uma sociedade. Por isso é importante ressaltarmos que o exercício da democracia nos proporciona liberdade de escolha e autonomia, todavia não podemos esquecer da construção de uma ética democrática e para torná-la possí- vel é preciso a participação de todos os membros da sociedade, vislum- brando a soberania, cidadania, dignidade humana, valores do trabalho, da decência, da participação social e do pluralismo político. Como afirmamos anteriormente, a democracia é uma cosmovi- são, o que quer dizer que ela aceita cada pessoa como fonte de criação de ordem social; não existe um modelo de democracia ideal que po- demos copiar, por isso é nossa a responsabilidade de criarmos a nossa própria democracia. Faz-se mister também lembrar que o conflito é - 37 - constitutivo da convivência democrática, o que não devemos confun- dir é que tal conflito possa gerar inimigos, pois em um estado democrá- tico, o que podemos ter são pessoas que pensam diferente, que buscam os objetivos de outra forma, que têm interesses distintos, mas colocam as divergências em segundo plano para atender ao bem comum. Vi- ver em democracia, não quer dizer que a paz representa ausência de conflitos, mas sim, a capacidade de a sociedade criar e aceitar regras para dirimir conflitos e formular projetos que fortaleçam os Direitos Humanos. Mobilização social: Caminho urgentemente necessário Para tratarmos de mobilização social é fundamental esclarecer o conceito real dessa expressão e desmistificar o que o senso comum entende de mobilização social, quando confunde com manifestações públicas, portanto traremos a contribuição de Toro e Werneck (1996) que definem mobilização social como um ato de escolha; uma ação de convocar vontades para atuar na busca de um propósito comum, par- tindo de convicções coletivas daquilo que convém a todos. Para que a mobilização social seja útil à sociedade, ela precisa estar pautada na construção de um projeto futuro, exigindo dedicação contínua para se produzir resultados cotidianos. Toda mobilização so- cial parte do pressuposto de se alcançar um objetivo comum, exigindo ações de comunicação no seu sentido amplo, enquanto processo de compartilhamento de discursos, visões e informações. Não devemos confundir com propaganda ou divulgação falaciosa e infundada, pois se o seu propósito é passageiro, não teremos mobilização social. Uma das formas de garantirmos o sentido do processo de mo- bilização social é nos balizarmos eticamente pela Constituição da Re- pública; nela está consagrada a nossa escolha pela Democracia, tendo como fundamentos, entre outros, a cidadania e a dignidade humana. Nesse sentido, é necessário buscarmos a compreensão do conceito de cidadania e os princípios da democracia. Toro (1996) aponta que toda ordem social é criada por nós. O agir ou não agir de cada um contribui para a formação e consolidação da ordem em que vivemos. Essa afirmação nos chama à responsabili- dade de que a construção da sociedade depende de nossas vontades e escolhas, por conseguinte somos autores da realidade social. Se esta- mos atravessando um momento de caos, é imprescindível deixarmos - 38 - as visões de fatalismo ou de subserviência e criarmos uma nova menta- lidade na sociedade civil, que perceba a si mesma como fonte criadora da ordem social, pressupondo compreender que os “males” da socie- dade são o resultado da ordem social que nós mesmos criamos e que, por isso podemos modificar. É urgente e necessário romper os grilhões que nos tentam apri- sionar nas masmorras da dominação, da escravidão, da ignorância e do estado “galinha”. Como poética e filosoficamente Leonardo Boff de- nuncia, é preciso reconhecer-se águia e alçar o voo às alturas, fitando os olhos na imensidão do céu, percebendo em si mesmos o potencial infindo de dominar os ares e a terra e não se contentar com os grãos jogados ao solo. Compreender a natureza humana com toda sua potência é im- prescindível atualmente, para que possamos, como águias, ver além das aparências, escutar além das palavras e compreender seus sentidos, significados e intencionalidades, superando a ignorância e jamais per- mitindo ser condicionado à natureza “galinha”. Emitindo típico Kau- -Kau das águias, aquele grito de liberdade preso na garganta e dizer em alto e bom som: Basta de tanta iniquidade! Basta de tantos abusos! Em uma intervenção do educador James Aggrey, na ocasião em que a colonização se fazia aceita pelos colonizados, como descrito a seguir, conta Leonardo Boff: Era uma vez um camponês que foi à floresta vizinha apanhar um pássaro para mantê-lo cativo em sua casa. Conseguiu pegar um filhote de águia. Colocou-o no galinheiro junto com as galinhas. Comia milho e ração própria para galinhas. Embora a águia fosse o rei/rainha de todos os pássaros. Depois de cinco anos, este homem recebeu em sua casa a visita de um naturalista. Enquanto passeavam pelo jardim, disse o natura- lista: Esse pássaro aí não é galinha. É uma águia. De fato – disse o camponês. É águia. Mas eu a criei como galinha. Ela não é mais uma águia. Transformou-se em galinha como as outras, apesar das asas de quase três metros de extensão. Não – retrucou o naturalista. Ela é e será sempre uma águia. Pois tem um coração de águia. Este coração a fará um dia voar às alturas. Não, não – insistiu o camponês. Ela virou galinha e jamais voará como águia. Então decidiram fazer uma prova. O naturalista tomou a águia, er- gueu-a bem alto e desafiando-a disse: Já que você de fato é uma águia, já que você pertence ao céu e não à terra, então abra suas asas e voe! - 39 - A águia pousou sobre o braço estendido do naturalista. Olhava dis- traidamente ao redor. Viu as galinhas lá embaixo, ciscando grãos. E pulou para junto delas. O camponês comentou: Eu lhe disse, ela virou uma simples galinha! Não – tornou a insistir o naturalista. Ela é uma águia. E uma águia será sempre uma águia. Vamos experimentar novamente amanhã. No dia seguinte, o naturalista subiu com a águia no teto da casa. Sussurrou-lhe: Águia, já que você é uma águia, abra suas asas e voe! Mas quando a águia viu lá embaixoas galinhas, ciscando o chão, pulou e foi para junto delas. O camponês sorriu e voltou à carga: Eu lhe havia dito, ela virou galinha! Não – respondeu firmemente o naturalista. Ela é águia, possuirá sempre um coração de águia. Vamos experimentar ainda uma últi- ma vez. Amanhã a farei voar. No dia seguinte, o naturalista e o camponês levantaram bem cedo. Pegaram a águia, levaram-na para fora da cidade, longe das casas dos homens, no alto de uma montanha. O sol nascente dourava os picos das montanhas. O naturalista ergueu a águia para o alto e ordenou-lhe: Águia, já que você é uma águia, já que você pertence ao céu e não à terra, abra suas asas e voe! A águia olhou ao redor. Tremia como se experimentasse nova vida. Mas não voou. Então o naturalista segurou-a firmemente, bem na direção do sol, para que seus olhos pudessem encher-se da clarida- de solar e da vastidão do horizonte. Nesse momento, ela abriu suas potentes asas, grasnou com o típico kau-kau das águias e ergueu-se, soberana, sobre si mesma. E começou a voar, a voar para o alto, a voar cada vez para mais alto. Voou... voou.. até confundir-se com o azul do firmamento...” E Aggrey terminou conclamando: Irmãos e irmãs, meus compatriotas! Nós fomos criados à imagem e semelhança de Deus! Mas houve pessoas que nos fizeram pensar como galinhas. E muitos de nós ainda acham que somos efetiva- mente galinhas. Mas nós somos águias. Por isso, companheiros e companheiras, abramos as asas e voemos. Voemos como as águias. Jamais nos contentemos com os grãos que nos jogarem aos pés para ciscar (BOFF, 2002, p. 8). Educação: uma construção coletiva Uma educação que se dedica ao sentido formativo da pessoa, como processo contínuo e inacabado, sem fragmentação, não se con- funde meramente com ensino, em aumentar o volume de conheci- mentos: aponta o sujeito como participante ativo, possuidor de co- nhecimento prévio com sua visão de mundo e o educador como um facilitador, orientador, jamais um detentor do conhecimento. - 40 - A educação ocorre nos espaços de construção e partilhas de opi- niões, atitudes e comportamento efetivo, usa o diálogo e a humildade como ferramentas dialógicas ao estabelecerem pontes entre educador e educando. Partindo deste pressuposto, observamos que a escola so- zinha não educa, pois faz parte de um processo que, juntamente com a família e a sociedade, objetiva uma evolução contínua em que se possa formar a consciência humana de maneira ampla, harmoniosa, plena e de paz, de natureza pessoal e transpessoal, sendo orientada por valores que ultrapassam a predominância da especialidade como: simplicida- de, cooperação, generosidade, igualdade, equanimidade, tornando a escola parte da comunidade, do mundo real onde o aprendente está, não da pessoa isolada, mas dentro de um coletivo atuante que quer construir sempre algo para a transformação. Morin (2015) contribui com nossa reflexão quando aborda a necessidade de uma ética no ensino, condição humana do ser, ao mes- mo tempo indivíduo-sociedade-espécie, isto é, o indivíduo inserido em uma sociedade, portanto o desenvolvimento humano está associado às autonomias individuais, às solidariedades comunitárias e à consciência de pertencimento à espécie humana. O autor ainda nos traz uma problematização pertinente: A partir disso, esboçam-se as duas grandes finalidades ético-polí- ticas do novo milênio: estabelecer uma relação de controle mútuo entre a sociedade e os indivíduos por meio da democracia, fazer da humanidade uma comunidade planetária (MORIN, 2015, p.157). Falar de democracia supõe a vivência da cidadania planetária que deverá ter como foco a superação das desigualdades, eliminação das sangrentas diferenças econômicas e a integração intercultural da humanidade, enfim uma cultura de justipaz (a paz como fruto da justi- ça) (PADILHA, 2011, p. 27). Não se pode falar em cidadania planetária global sem uma efetiva cidadania na esfera local e nacional. A Saúde como um campo potente Estamos em um hiato planetário em nossa existência, neste ce- nário turbulento dos anos 2020-2021, período em que se circunscreve o registro da COVID-19 na cidade de Wuhan - China. Momento em que atravessamos uma pandemia que revela a realidade humana, prin- cipalmente, da população subalternizada, que está submetida ao longo - 41 - de décadas. Os corpos historicamente forjados pela ameaça cotidiana de sofrimento e de morte, além dos aspectos mutagênicos relacionados ao vírus e sua capacidade de transmissão, a atual situação de saúde é também um reflexo nítido das iniquidades socioeconômicas e falta de políticas sociais e de saúde concretas em um cenário de globalização, conforme atesta Nascimento (1978). Devemos reconhecer que o negacionismo, o obscurantismo adotados e incentivados por alguns líderes mundiais, a exemplo do Brasil e dos Estados Unidos da América, impediram a eficiência e eficá- cia das medidas não farmacológicas de combate à pandemia, por favo- receram comportamentos de risco, culminando no maior número de infecções e mortes evitáveis. Ainda, neste contexto, temos assistido ao aumento de notícias falsas, as fake news7, que ameaçam a saúde públi- ca, por favorecerem a desinformação, o negacionismo, principalmente da ciência, além da propagação de tratamentos sem comprovação cien- tífica, assim como a forte investida em campanhas antivacinação. Mesmo com todo o empenho da ciência em produzir vacinas eficazes e seguras, notamos que uma parcela da população não preten- de se imunizar contra o novo coronavírus, devido ao medo de possíveis complicações e disseminação de informações equivocadas, levando a diminuição na cobertura vacinal e suas consequências. Diante da complexa realidade de incerteza, apontamos que a educação em saúde é uma estratégia importante para o combate à pan- demia. Uma educação que não se trata apenas de atos de transmissão de conhecimento sobre o coronavírus, mas um processo ético, estético, político e pedagógico que requer o desenvolvimento do pensamento crítico e reflexivo, contribuirá com a mudança de hábitos da popula- ção, favorecendo o combate à pandemia. Um exemplo na natureza desse enquadramento está na iniciativa da “educação em saúde dia- lógica”. Esse modelo propõe a construção do conhecimento pautado no diálogo, em que o educador e educando assumem papel ativo no processo de ensino e aprendizagem, através de uma abordagem críti- co-reflexiva da realidade (FIGUEIREDO et al., 2009), configurando o que Paulo Freire denominou de consciência crítica. A educação em saúde dialógica se aproxima dos esforços de vários profissionais e pesquisadores, como Merhy (2002), no sentido 7 Informações não verídicas, transmitidas por meio de mensagens, áudios, imagens ou vídeos edi- tados para atrair a atenção do leitor no intuito de desinformá-lo e obter algum tipo de van- tagem sobre ele, sem que haja fonte verídica determinada, mas apresentando uma maquiagem que transparece uma aparente credibilidade para quem as recebe (JÚNIOR et al., 2020, p. 336). - 42 - em que proporciona um ambiente do cuidado participativo e menos es- truturado hierarquicamente. O autor defende a implementação de ações de saúde que se alicercem na construção de vínculos entre os sujeitos, no cuidado centrado nas necessidades individuais e coletivas dos usuários, ca- racterizadas como trabalho vivo em ato (FRANCO; MERHY, 2007). Nesse contexto, também é importante destacarmos o movimen- to da educação popular, inspirado no pensamento de Paulo Freire, modelo pedagógico que valoriza a diversidade e heterogeneidade dos grupos sociais, a intercomunicação entre diferentes atores no processo de ensino, o compromisso com a classe subalternizada e o diálogo en- tre o saber popular e científico, defendido pelo sociólogo Boaventura de Sousa Santos como novos paradigmas (SANTOS, 2007). Assim, as ações de educação em saúde realizadas por meio da dialogicidade, além de promoveremmudanças no indivíduo, como autonomia de decidir sobre a própria saúde, estimulam o empodera- mento de habilidades que exercem influência nas decisões em um con- texto de desigualdades socioeconômicas. Nesse sentido, defendemos que o combate à pandemia do novo coronavírus incorpore as práticas de educação em saúde dialógicas que possam aguçar a potencialidade humana, inspirar o processo de transformação social, estimular o re- conhecimento de determinantes e condicionantes de saúde, além de provocar a percepção holística e desvendar o empoderamento crítico. Uma educação que envolve diferentes atores sociais, aqui destacamos a escola e educadores, devido seu papel na construção do conhecimento, que pode estender para fora dos muros das instituições, e pela forma- ção ética e política de cidadãos comprometidos com a construção de uma sociedade sadia. Educar para quê? Saberes necessários para a promoção da vida Essa indagação de resposta aparentemente óbvia, carrega em si nuances que nos instigam a pensar a educação como um componen- te da atividade humana orientada para o “desenvolvimento do pensa- mento através da atividade de aprendizagem dos alunos (formação de conceitos teóricos, generalização, (análise, síntese, raciocínio teórico, pensamento lógico), desde a escola elementar” (LIBÂNEO, 2004, p.15). Diante da amplitude do ato educativo, ao mesmo tempo que se mostra complexo e possível, apresenta-se distante da prática esco- - 43 - lar, pois aponta para a superação do pensamento utópico, que não está ocupada com a construção de saberes para a emancipação humana e que se limita ao mercado de trabalho, pois se abre, tão somente, ao alcance do mundo do trabalho. Para isso, precisamos redimensionar o trabalho educativo na perspectiva “de produzir, direta e intencio- nalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens” (SAVIANI, 2008, p. 7). Se a escola não se posiciona para esse fim, seguirá negando o significado geral de uma educação crítica, quando em lugar de atuar na promoção da humanidade em seu conjunto, diz, Saviani (2009), sub- mete a maioria dos seres humanos a um processo de dominação e ex- ploração pela minoria que detém a propriedade dos meios de produção e, assim, controla a sociedade em suas várias dimensões: econômica, social, política, cultural e pedagógica. Buscando superar esta realidade, evidenciamos que Libâneo (2004) nos provoca a perceber que o trabalho didático se dá na media- ção das relações do aluno com objetos de conhecimentos, razão pela qual o conceito nuclear do didático é a aprendizagem, por sua vez a razão de ser do ensino, portanto vimos que por meio do ensino, o pro- fessor realiza plenamente seu trabalho quando ajuda o aluno a adquirir capacidades para novas operações mentais e a operar mudanças quali- tativas em sua personalidade. Na busca desse propósito que é local e global, acreditamos que a aprendizagem pode resultar em um compromisso pedagógico que transcenda a transmissão de saberes acumulados e representativos da cultura, cuja prática educativa é revestida de sentido, na perspectiva de uma educação transformadora e reconhecida como um “triplo proces- so de humanização, socialização e entrada numa cultura” (CHARLOT, 2006, p. 15). A educação adjetivada pelo processo de humanização reconhece que a ação educativa se dá “com seres humanos, sobre seres humanos, para seres humanos” (TARDIF, 2007, p. 31), constituindo-se assim, de características próprias desse processo desenvolvido sob a égide de um projeto de sociedade que conduza à democratização. Logo, um cami- nho educacional que solicita à escola, apresentar-se aberta ao exercício de uma pedagogia crítica superando a condição da classe dominante que segundo Saviani (2012) não tem interesse na transformação da es- cola e está empenhada na conservação da dominação, estando apenas a - 44 - acionar mecanismos de adaptação que, inclusive, visem impedir a sua transformação. E essa não é a escola que desejamos. A escola que queremos abre-se ao questionamento em torno das possibilidades objetivas que temos para promover a humanização. Nesse intento, pode ressignificar seu papel social na superação dos impactos que afetam diretamente a escola pública e que, na contínua ausência de políticas educacionais efetivas, contribui para a estagna- ção do processo evolutivo e compromete drasticamente a emancipação humana. Contrapondo-se a essa condição, é importante citar Padilha (2011) que contribui com a ideia de pensar a educação, para além da lógica do mercado, substituindo, em grande medida, a competição pela colaboração, destacando o papel do indivíduo isolado em seu próprio mundo e valorizando o papel do cidadão, a fim de que sua prática atue numa coletividade e seja comprometida com a sociedade da qual par- ticipa, construindo sua própria história e sendo por ela condicionado. Essa proposição se apresenta em consonância com a emergência de uma escola crítica fundada na educação libertadora, promovendo atividades que, na concepção de Luckesi (1994), professores e alunos, mediatizados pela realidade, da qual apreendem e de onde extraem o conteúdo de aprendizagem, possam atingir o nível de consciência des- sa mesma realidade, a fim de nela atuarem, num sentido de transfor- mação social. Por isso, cabe à escola crítica, decidir-se pelo esclareci- mento para que a classe dominada tome consciência de sua dominação e lute para a transformação social. Vislumbramos, portanto, a escola como um espaço de constru- ção de saberes que tornam alunos e professores agentes sociais para melhor lidar nesta sociedade, considerada por Padilha (2011) pós-mo- derna, tecnológica e globalizada, na qual a velocidade é a sua marca. Frente às características apresentadas, consideramos que educar impli- ca entender o sujeito multifacetado, fragmentado e bombardeado por um volume significativo de informações, e contribuir decisivamente para que, por meio de um processo intenso de problematização e sis- tematização, ele possa transformar esses fragmentos em conhecimento de relevância científica e social, buscando o equilíbrio necessário entre todas as formas de vida na Terra. Notadamente, podemos entender ser este, o parâmetro de uma proposta educacional desejável à formação holística do ser. Para tanto, demanda olhar o currículo da escola atual e redefini-lo, na condição de - 45 - criar espaços para todas as tratativas que constituem a base de várias outras imprescindíveis na escolarização, incluindo o trabalho voltado às inteligências pessoais, que cada vez mais têm se tornado necessárias. A esse respeito, Gardner (1995) corrobora dizendo que, en- quanto a inteligência intrapessoal é vista como a capacidade voltada para si mesmo, fazendo com que um indivíduo seja capaz de formar um modelo acurado e verídico de si mesmo e de utilizar esse mode- lo para operar efetivamente na vida, a inteligência interpessoal aponta como a capacidade de compreender as outras pessoas, o que as motiva e como se relacionam, permitindo responder adequadamente aos tem- peramentos, estados de humor, motivações e seus desejos, interagindo efetivamente com elas, ou seja, inteligências necessárias na vida, por- tanto, inerentes ao processo ensino-aprendizagem. Sabemos que na conjuntura educacional atual, o processo de mudança é muito lento e neste ritmo desacelerado, a escola carece de um agir mais autônomo e consciente do seu papel social, uma vez que ainda não foi capaz de dar conta do déficit na formação cidadã, possi- velmente, pela indisponibilidade do currículo para tratar de questões emergentes e que afetam a humanidade, de forma inconsequente, parte significativa da população vive na subserviência do capitalismo que é, em si, um paradigma determinante do modo de ser e viver, impactan- do bruscamente na convivência. Reiterando a tratativa das inteligências inerentes ao movimento de humanização,
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