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ISBN 978-65-00-07447-5 Prof. Me. Gil Barreto Ribeiro (PUC Goiás) Diretor Editorial Presidente do Conselho Editorial Dr. Cristiano S. Araujo Assessor Larissa Rodrigues Ribeiro Pereira Diretora Administrativa Presidente da Editora CONSELHO EDITORIAL Profa. Dra. Solange Martins Oliveira Magalhães (UFG) Profa. Dra. Rosane Castilho (UEG) Profa. Dra. Helenides Mendonça (PUC Goiás) Prof. Dr. Henryk Siewierski (UnB) Prof. Dr. João Batista Cardoso (UFG Catalão) Prof. Dr. Luiz Carlos Santana (UNESP) Profa. Me. Margareth Leber Macedo (UFT) Profa. Dra. Marilza Vanessa Rosa Suanno (UFG) Prof. Dr. Nivaldo dos Santos (PUC Goiás) Profa. Dra. Leila Bijos (UnB) Prof. Dr. Ricardo Antunes de Sá (UFPR) Profa. Dra. Telma do Nascimento Durães (UFG) Profa. Dra. Terezinha Camargo Magalhães (UNEB) Profa. Dra. Christiane de Holanda Camilo (UNITINS/UFG) Profa. Dra. Elisangela Aparecida Pereira de Melo (UFT) LINGUAGEM E ENSINO EM PERSPECTIVA CLAUDIA LUCIA LANDGRAF VALÉRIO EPAMINONDAS DE MATOS MAGALHÃES IMARA QUADROS Goiânia-GO EDITORA ESPAÇO ACADÊMICO 2020 CIP - Brasil - Catalogação na Fonte Copyright © 2020 by Claudia Lucia Landgraf Valério, Epaminondas de Matos Magalhães, Imara Quadros Editora Espaço Acadêmico Endereço: Rua do Saveiro, Quadra 15, Lote 22, Casa 2 Jardim Atlântico - CEP: 74.343-510 - Goiânia/Goiás CNPJ: 24.730.953/0001-73 Site: http://editoraespacoacademico.com.br/ Contatos: Prof. Gil Barreto - (62) 98345-2156 / (62) 3946-1080 Larissa Pereira - (62) 98230-1212 Diagramação: Marcos Digues www.diguesdiagramacao.com.br Capa: Projetado por freepik.com O conteúdo da obra e sua revisão são de total responsabilidade do autor. DIREITOS RESERVADOS É proibida a reprodução total ou parcial da obra, de qualquer forma ou por qualquer meio, sem a autorização prévia e por escrito do autor. A violação dos Direitos Autorais (Lei nº 9.610/98) é crime estabelecido pelo artigo 184 do Código Penal. Impresso no Brasil | Printed in Brazil 2020 V162l Valério, Claudia Lucia Landgraf. Linguagem e ensino em perspectiva [livro eletrônico] / Claudia Lucia Landgraf Valério, Epaminondas de Matos Magalhães e Imara Quadros. – Goiânia : Editora Espaço Acadêmico, 2020. 205 p. ; Ebook [PDF]. Bibliografia ISBN: 978-65-00-07447-5 1. Literatura. 2. Linguagem - ensino. I. Magalhães, Epaminondas de Matos. II. Quadros, Imara. III. Título. CDU 82:37 Índice para catálogo sistemático 1. Liberatura - ensino......................................................................................................82:37 5 SUMÁRIO APRESENTAÇÃO .......................................................................9 1. A REPRESENTAÇÃO DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO CONTO “PARA QUE NINGUÉM A QUISESSE” DE MARINA COLASANTI ...........................................................11 1.1 Introdução .......................................................................................12 1.2 Metodologia e delineamento da pesquisa ...................................14 1.3 O paradigma patriarcal ..................................................................16 1.4 A atuação da Literatura na formação humana ...........................20 1.5 Análise do conto “Para que ninguém a quisesse” .......................24 1.6 Considerações Finais .....................................................................29 1.7 Referências .....................................................................................30 2. AFLIÇÕES DE AMARO E AS DENÚNCIAS DA LITERATURA ...........32 2.1 Introdução ....................................................................................33 2.2 Explorando a história de Amaro ...............................................34 2.3 Discussões acerca de racismo e homossexualidade a partir da literatura de Adolfo Caminha ................................45 2.4 Considerações finais ....................................................................49 2.5 Referências ...................................................................................50 3. A LEITURA NO BRASIL: APONTAMENTOS HISTÓRICOS, CONCEITO E CENÁRIO EDUCACIONAL ......................................51 3.1 Introdução .......................................................................................52 6 3.2 Apontamentos históricos sobre a leitura ....................................53 3.3 Conceito da leitura e o cenário educacional ...............................62 3.4 Considerações finais.......................................................................66 3.5 Referências .....................................................................................67 4. O PROTAGONISMO JUVENIL COMO PARÂMETRO PARA A INTRODUÇÃO DA APRENDIZAGEM EM PARES .......................69 4.1 Introdução ....................................................................................70 4.2 O protagonismo como ação mediadora nas práticas de aprendizagem ..........................................................................72 4.3 A aprendizagem em pares como prática pedagógica pautada no protagonista colaborativo ......................................76 4.4 Considerações finais ....................................................................80 4.5 Referências ...................................................................................81 5. (RE) CONHECENDO A AVALIAÇÃO DA APRENDIZAGEM: REFLEXÕES E DESAFIOS NA CONSTRUÇÃO DOS PROJETOS INTERDISCIPLINARES NAS TURMAS DE ENSINO MÉDIO ............85 5.1 Introdução ....................................................................................86 5.2 A admissão dos projetos interdisciplinares para construção e ampliação dos conhecimentos no ensino médio .................88 5.3 Avaliação da aprendizagem frente aos projetos interdisciplinares: desafios e possibilidades ............................92 5.4 Considerações finais ....................................................................96 5.5 Referências ...................................................................................98 6. TECNOLOGIAS DIGITAIS DE INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO (TDIC) E OBJETO DIGITAL DE APRENDIZAGEM (ODA) NO CONTEXTO DA FORMAÇÃO DOCENTE: OFICINA ..................................................................99 6.1 Introdução .....................................................................................100 6.2 Metodologia ..................................................................................101 7 6.3 Oficina ............................................................................................101 6.4 Análises das oficinas e resultados ...............................................106 6.5 Considerações finais.....................................................................117 6.6 Referências ...................................................................................118 7. ESTRATÉGIAS DE LEITURA: POSSIBILIDADE DE TRABALHO PARA UMA PRÁTICA REFLEXIVA DA LEITURA NA ESCOLA .... 120 7.1 Introdução ..................................................................................121 7.2 Etapas para o trabalho com as estratégias de leitura ............123 7.3 Professor como o mediador do trabalho com as estratégias da leitura .....................................................................................129 7.4 Considerações finais .................................................................133 7.5 Referências .................................................................................134 8. ENTRE O TEMPO E A HISTÓRIA: PRODUÇÃO DE MEMÓRIAS LITERÁRIAS COM UTILIZAÇÃO DAS TIC. .................................. 135 8.1 Introdução .....................................................................................136 8.2 Fundamentação teórica ...............................................................138 8.3 Olimpíada de Língua Portuguesa e Metodologia de Trabalho .145 8.4 A produção de memóriasliterárias e o uso das TICs ..............150 8.5 Considerações finais.....................................................................152 8.6 Referências ...................................................................................154 ANEXO A – Íntegra da Memória Literária .....................................156 9. ENTRE O CLÁSSICO E O BEST-SELLER... ESCOLHA OS DOIS! ...... 159 9.1 Introdução .....................................................................................160 9.2 Entre o clássico e o best-seller... escolha os dois! .....................161 9.3 O que leem os estudantes? ...........................................................167 9.4 Considerações finais.....................................................................170 10. JOSÉ JOAQUIM PILLON: UMA OBRA SOBRE A NATUREZA E O PERTENCIMENTO ............................................................. 174 10.1 Introdução ...................................................................................175 8 10.2 Dados biográficos: o padre e o professor ................................175 10.3 O escritor e o pensador ..............................................................177 10.4 Autoria e pertencimento: o homem, a obra e seu tempo ......184 10.5 Considerações finais ..................................................................186 10.6 Referências ................................................................................187 11. DAS ALTERNATIVIDADES NA METODOLOGIA DA FORMAÇÃO UNIVERSITÁRIA CONTEMPORÂNEA: UM ENSAIO SOBRE A ENSINABILIDADE INVERTIDA NA PERSPECTIVA DOCENTE E DISCENTE PLURIDISCILINAR ................................................. 189 11.1 Introdução ..................................................................................190 11.2 Por uma história narrada e bancária: a evolução educacional e suas consequências na atualidade ...................192 11.3 Da aceitabilidade e das práticas didáticas de aplicabilidade do ensino invertido na holística dos protagonistas do ensino ...........................................................196 11.4 Considerações finais ..................................................................201 11.5 Referências ..................................................................................203 9 APRESENTAÇÃO Os textos aqui propostos são resultados de pesquisas desenvolvi- das e em desenvolvimento no Programa de Pós-Graduação – Mestrado em Ensino e do Grupo de Pesquisa em Ensino de Literatura e Línguas - GPELL - do Instituto Federal de Mato Grosso (IFMT). O Grupo de Pesquisa em Ensino de Literatura e Línguas (GPELL), abrange projetos que tratam das construções de saberes a partir da pró- pria atuação dos sujeitos em práticas sociais, tendo como foco as me- diações de linguagem, na produção de sentido e da vinculação social, na contemporaneidade, assim como a formação de professores para as práticas didático-pedagógicas voltadas para o ensino-aprendizagem das linguagens e seus códigos. Para tanto, o Grupo constitui-se de professores-pesquisadores e estudantes que discutem o contexto do ensino de linguagens frente ao mundo globalizado e à emergência das novas tecnologias. Como cata- lizadora, esta equipe almeja oferecer suporte ao profissional ligado ao ensino formal ou não formal que atua em diferentes instituições. Destaca-se o caráter interdisciplinar das pesquisas, que perpas- sam pelas diferentes áreas do conhecimento, tendo como foco o ensino de linguagens, para linguagem e suas diferentes perspectivas. Entende- mos que em um cenário diverso como o que vivemos, as relações entre ensino e pesquisa devem permear constantemente os processos de pro- dução do conhecimento, em especial, nas Ciências Humanas, conjunto macroestrutural que compreende a linguagem e a própria educação. 10 Tomando alguns versos de Fernando Pessoa, do poema Navegar é preciso: Viver não é necessário; o que é necessário é criar. Não conto go- zar a minha vida; nem em gozá-la penso. Só quero torná-la grande, ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a (minha alma) a lenha desse fogo. Só quero torná-la de toda a humanidade; ainda que para isso tenha de a perder como minha. Cada vez mais assim penso. Parafraseando o poeta, o que desejamos da educação é o ato cria- dor, o desejo de transformação, de mudança. O sentido maior de toda pesquisa é mudar, transformar e construir novos espaços, de tornar a humanidade mais humana. Cada vez que produzimos, escrevemos e pesquisamos desejamos que os estudos empunhados tragam uma nova perspectiva para o universo educacional. Desejamos a todos uma boa leitura e que “naveguem” pelos tex- tos. Os organizadores 11 1. A REPRESENTAÇÃO DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO CONTO “PARA QUE NINGUÉM A QUISESSE” DE MARINA COLASANTI Carlos Rafael Dias1 Resumo Este artigo se propôs a analisar as representações da violência contra a mulher no conto “Para que ninguém a quisesse”, de Marina Colasanti, e refletir sobre a situação de violação aos direitos da mulher na sociedade brasileira atual, a partir da perspectiva de estudantes da Educação de Jovens e Adultos – EJA. Para tanto, buscou-se estabelecer um repertó- rio teórico acerca dos conceitos de “dominação masculina” e “violên- cia simbólica” propostos por Bourdieu (2004); compreender como a obra literária atua na formação humana, com aporte teórico em Sartre (2004), Llosa (2004) e Cândido (2011); e analisar, em conjunto com as participantes da pesquisa, as representações da violência contra a mu- lher no corpus ficcional do estudo. Realizou-se, então, uma pesquisa qualitativa, de natureza aplicada, dividida em duas etapas. A primeira delas constituiu-se em uma pesquisa bibliográfica. A segunda consis- tiu na realização de oficinas de leitura para discussão coletiva e análise do conto. Utilizou-se como técnicas para a produção de dados, a ob- 1 Possui Mestrado em Ensino pelo Instituto Federal de Mato Grosso (2019), Espe- cialização em Educação de Jovens e Adultos pelo Instituto Federal de Mato Grosso (2012), Graduação em Direito pela Universidade do Estado de Mato Grosso – UNE- MAT (2010). Atualmente é professor efetivo da área de Direito do Instituto Federal de Mato Grosso - Campus Pontes e Lacerda, Advogado e consultor jurídico. Carlos Rafael Dias 12 servação participante (YIN, 2001); (GIL, 2008), o registro em diário de campo (OLIVEIRA, 2014); (BOGDAN; BIKLEN, 1999); e a gravação das oficinas em áudio. Para análise dos dados produzidos, foi utilizada análise de conteúdo temática (BARDIN, 1977). Palavras-chave: Violência de gênero. Educação de Jovens e Adultos. Re- presentação literária. 1.1 Introdução A cada ano as pesquisas vêm confirmando que o cenário brasilei- ro no campo da violência contra a mulher se torna mais preocupante. O Brasil apesar de ser uma democracia que defende os direitos humanos, também é o quinto país do mundo onde mais se mata mulheres por se- rem mulheres (WAISELFISZ, 2015). Além disso, tem números críticos relacionados a outros crimes no âmbito da violência contra a mulher, como lesão corporal, estupro e ameaça. E mesmo com importantes mu- danças desenvolvidas nas últimas décadas na construção e implemen- tação de políticas públicas de proteção à integridade física da mulher no âmbito privado2, os índices de violência contra a mulher ainda não tiveram o recuo esperado. O problema da violência contra a mulher é, como se sabe, um fenômeno complexo, que possui profundas raízes históricas, e está for- temente alicerçado em um pensamento patriarcal de desequilíbrio de poder entre homens e mulheres. A supremacia do homem, ou domina- ção masculina, encontra ressonância em um longo percurso histórico de criação e legitimação dessas desigualdades, de modo que se pode falar na existência de um paradigma de sistema social que inculca no 2 A publicação da Lei Maria da Penha (11.340/2006); as mudanças promovidas pela lei do divórcio (6.515/77) e, posteriormente, o fim do institutoda separação judicial (EC 66/10); a criação de pastas ministeriais com a finalidade de promover políticas públicas específicas para as mulheres; e a previsão que os contratos habitacionais decorrentes do Programa Minha Casa Minha Vida sejam feitos em nome da mulher são alguns exemplos da preocupação do Estado brasileiro em proteger as mulheres no espaço privado. A REPRESENTAÇÃO DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO CONTO “PARA QUE NINGUÉM A QUISESSE” DE MARINA COLASANTI 13 imaginário coletivo, a crença segundo a qual essas desigualdades são naturais e, portanto, não devem ser questionadas (BOURDIEU, 2002). Essa dinâmica de naturalização da opressão, quando transpor- tada para o campo da violência contra a mulher, constitui-se naquilo que Bourdieu (2002) chama de violência simbólica. Essa violência é uma decorrência de a vítima assimilar, nos meios simbólicos de comu- nicação e conhecimento, algumas opressões e abusos como se fossem algo normal. Dessa aparência de naturalidade, resulta que a violência simbólica adquire invisibilidade, torna-se insensível a própria vítima, de modo que ao internalizar a opressão, tendo-a como natural, a vítima não consegue pôr fim à dominação. Nesse sentido, de acordo com Bourdieu, para a superação da vio- lência simbólica e, consequentemente, da violência contra a mulher a que dá substrato, é necessário um despertamento, um chamamento à ordem, com o propósito de fazer desmascarar essa opressão por meio de atos de conhecimento que proporcionem uma “transformação radical das condições sociais de produção das tendências que levam os domi- nados a adotar, sobre os dominantes e sobre si mesmos, o próprio ponto de vista dos dominantes” (BOURDIEU, 2002, p. 53). Nessa perspectiva, este artigo discute à temática da violência contra a mulher, por meio de uma intersecção entre literatura e direi- to. Tendo como concepção, de acordo com Cândido (2011), que a lite- ratura tem uma função social, psicológica e formativa. E dessa forma ela, a literatura, pode se constituir em um “instrumento consciente de desmascaramento, pelo fato de focalizar as situações de restrição dos direitos, ou da negação deles, como a miséria, a servidão, a mutilação espiritual”. Sendo assim, esse desmascaramento promovido pela literatura permite refletir sobre a situação de violação aos direitos e pode levar a vítima de agressões a buscar a proteção do Estado. A literatura leva ao Direito. A obra literária, ao representar o mundo e suas atrocidades, promove um despertamento acerca da violação dos direitos, e é capaz Carlos Rafael Dias 14 de levar a vítima a uma postura ativa, a exigir do Estado a proteção de seus direitos. Dessa forma, acreditamos que a intersecção entre literatura e Di- reito é um dos meios possíveis para a superação do poder hipnótico da violência simbólica, isto porque pode instigar reflexões sobre os instru- mentos simbólicos subjacentes às relações sociais de que o pensamento patriarcal se vale para naturalizar a opressão sobre as mulheres. O objetivo principal deste trabalho é analisar as representações da violência contra a mulher no conto “Para que ninguém a quisesse”, de Marina Colasanti, e refletir sobre a situação de violação aos direitos da mulher na sociedade brasileira atual, a partir da perspectiva das es- tudantes do curso Técnico em Comércio – EJA, do IFMT – Campus Pontes e Lacerda Fronteira Oeste. Para a consecução deste propósito, buscamos o cumprimento de objetivos secundários: estabelecer um repertório teórico acerca do paradigma do patriarcado; compreender como a obra literária atua na formação humana; e analisar em conjunto com as participantes da pesquisa as representações da violência contra a mulher no corpus ficcional do estudo. Assim, na primeira parte deste artigo traremos considerações acerca do paradigma do patriarcado, a partir dos teóricos Carlos Alber- to Plastino e Pierre Bourdieu. Na segunda seção deste trabalho, discuti- remos com base nos ensinamentos de Antônio Cândido, Jean Paul Sar- tre e Mario Vargas Llosa como a literatura atua na formação humana. E, por fim, faremos a análise do conto “Para que Ninguém a Quisesse”, de Marina Colasanti, em conjunto com as estudantes de EJA do IFMT – Campus Pontes e Lacerda Fronteira Oeste. 1.2 Metodologia e delineamento da pesquisa A presente pesquisa é de abordagem qualitativa, de natureza aplicada e foi dividida em duas etapas. A primeira delas constitui-se de uma pesquisa bibliográfica, na qual procuramos estabelecer definições A REPRESENTAÇÃO DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO CONTO “PARA QUE NINGUÉM A QUISESSE” DE MARINA COLASANTI 15 teóricas sobre as desigualdades entre os sexos, buscando reconhecer o paradigma do patriarcado como condicionante de uma ordem simbóli- ca que privilegia a manifestação da violência, discutir como a literatura atua na formação do homem e, por fim, entender como a intersecção entre literatura e direito pode se constituir em um meio de reconheci- mento e exercício de direitos. A segunda parte foi a realização da oficina, em que as partici- pantes da pesquisa se encontraram com a obra “Para que ninguém a quisesse”, de Marina Colasanti, onde pudemos promover uma análise conjunta do fenômeno da violência contra a mulher, partindo da inter- pretação do texto literário e chegando na perspectiva das participantes acerca da realidade social. Durante a oficina, o professor-pesquisador e as participantes da pesquisa sentaram-se em círculo, para uma melhor interação e fluência dos assuntos a serem discutidos. Os trabalhos das oficinas foram moderados pelo professor-pesquisador que buscou atuar como facilitador do diálogo, nos termos propostos por Gatti (2005), cuidando para que o grupo desenvolvesse a discussão, fazendo encami- nhamentos para possibilitar trocas de informação e buscando manter o objetivo da pesquisa. A pesquisa foi realizada com um total de 07 (sete) estudantes do curso Técnico em Comércio integrado ao ensino médio na modalidade da educação de jovens e adultos do IFMT – Campus Pontes e Lacerda – Fronteira Oeste. As idades das estudantes variaram de 19 a 39 anos. Na oficina inaugural fizemos uma atividade em que as estudantes escolheram nomes fictícios para representá-las neste trabalho e nas pu- blicações subsequentes à pesquisa. A finalidade era prover meios para que essas estudantes tivessem sua identidade e privacidade resguarda- das ao mesmo tempo em que também se sentissem retratadas. Ambicio- namos com isso que as partícipes da pesquisa se envolvessem mais pro- fundamente com as oficinas por encararem como uma oportunidade de ter sua voz ouvida. Os nomes escolhidos pelas participantes foram: Anah Flor, Carla, Crepúsculo, Orquídea, Paula, Rubi e Sol. Carlos Rafael Dias 16 Utilizamos como técnicas para a produção de dados, a observação participante (YIN, 2001); (GIL, 2008); (BOGDAN; BIKLEN, 1999), o registro em diário de campo (OLIVEIRA, 2014); (BOGDAN; BIKLEN, 1999); e a gravação das oficinas em áudio. Para análise dos dados produ- zidos, utilizamos análise de conteúdo temática (BARDIN, 1977). Por fim, é importante dizer que este estudo é parte de uma pes- quisa com maior abrangência, realizada a partir do contato das inte- grantes do estudo com outros contos de Marina Colsanti e, também, que esta pesquisa foi devidamente aprovada pelo Conselho de Ética em Pesquisa da Universidade de Cuiabá – CEP/UNIC, sob o parecer con- substanciado nº 3.540.510. O pesquisador responsável por essa pesquisa não recebeu bolsa de estudos e a pesquisa não contou com nenhum financiamento externo. 1.3 O paradigma patriarcal Uma compreensão importante acerca do patriarcado é que ele se constitui como um paradigma de sistema social. Nesse sentido, traze- mos as lições de Plastino (2016), segundo o qual, um paradigma é um modelo geral que, a partir de determinadas concepções fun- damentais — crenças —, preside durante longos períodos his- tóricos as linhas mestras da organização de uma sociedadehu- mana. Trata-se de uma construção histórica, imaginada e criada pelos homens de determinada época (PLASTINO, 2016, p. 26). A definição do autor traz pelo menos dois elementos importan- tes de serem considerados. O primeiro deles é que o paradigma institui uma crença em uma dada forma de se pensar sobre a organização da sociedade. Essa crença quando é incorporada ao inconsciente coletivo adquire uma aparência de naturalidade, ou até mesmo de obrigatorie- dade. De tal forma, que a repetição de algumas práticas sociais, por um A REPRESENTAÇÃO DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO CONTO “PARA QUE NINGUÉM A QUISESSE” DE MARINA COLASANTI 17 tempo prolongado, cria no imaginário coletivo a ilusão de que aquele modo de se conduzir na sociedade é o modo correto, o natural, o que deve ser mantido “porque sempre se fez daquela forma determinada”. O paradigma é, portanto, uma organização do pensamento de longa dura- ção, de tal maneira que o seu conteúdo mais fundamental se naturaliza, perdendo-se de vista sua origem histórica. Quando se naturaliza fica isento de crítica, parece que suas afirmações centrais são evidentes para todo mundo e, portanto, não deve ser criticado. Pense-se, por exemplo, na divisão sexual do trabalho, em que durante muito tempo, na socieda- de ocidental, a crença vigente era que em razão das características rela- cionadas ao sexo biológico os homens teriam a responsabilidade sobre a esfera produtiva (funções de importante valor social agregado, como indústria, comércio, empreendimentos, e na política) e as mulheres es- tariam encarregadas da esfera reprodutiva (atividades relacionadas à gestação e educação dos filhos e aos afazeres domésticos). Apesar de esse tipo de divisão do trabalho representar um pensamento históri- co, arcaico, uma crença vetusta e inapropriada para os padrões sociais atuais, ela ainda encontra ressonância nos setores mais conservadores da sociedade brasileira, justamente pela força do paradigma patriarcal que a sustenta. Outro ponto que merece destaque na definição do autor, refere-se à afirmação de que todo paradigma social é uma construção histórica, imaginada e criada por seres humanos de uma determinada época. Em assim sendo, se houver a compreensão de que um paradigma representa a crença de uma determinada época, só que qualificada pelos efeitos inexoráveis da ação do tempo inculcando o hábito, fica mais fácil ques- tionar aquela mesma crença e colocá-la à prova, amoldando-a às cir- cunstâncias atuais. Em outras palavras, reconhecer o caráter histórico de um paradigma é o primeiro passo para retirar-lhe a força que possui graças à equivocada aparência de naturalização. Nesse ponto, torna-se importante evocarmos o pensamento de Bourdieu. Para o sociólogo francês, muitas manifestações humanas que Carlos Rafael Dias 18 consideramos naturais são socialmente construídas. E existe uma ten- dência do senso comum em naturalizar a ação humana, ou seja, de con- siderá-la como resultado de uma natureza qualquer. Esse processo de naturalização dos atos humanos acaba por ignorar o quanto as nossas manifestações resultam de um trabalho propriamente social de que o nosso corpo é vítima, de uma explicação sociológica que não é natural (BOURDIEU, 2007). Para Bourdieu (2002), a construção da identidade do masculino e do feminino encontra-se no campo simbólico. De modo que, em di- ferentes sociedades “ser homem” e “ser mulher” não significa a mesma coisa. Não existe, por assim dizer, uma definição natural, biológica, dos comportamentos que definem um homem ou uma mulher. Essa iden- tidade só será produzida após um processo sociocultural, a partir de diversas relações sociais que inculcam um certo jeito de ser, de pen- sar, e agir. E isso acontece, muitas vezes, sem que haja uma percepção consciente do sujeito. Dessa forma, a força simbólica que o paradigma exerce é muito maior que qualquer determinação biológica ou natural. Nas palavras do autor Torna-se evidente que nossa questão principal tem que ser de- monstrar os processos que são responsáveis pela transformação da história em natureza, do arbitrário cultural em natural. E, ao fazê-lo, nos pormos à altura de assumir, sobre nosso próprio universo e nossa própria visão de mundo, o ponto de vista do antropólogo capaz de, ao mesmo tempo, devolver a diferença en- tre o masculino e o feminino, tal como a (des) conhecemos, seu caráter arbitrário, contingente, e também, simultaneamente, sua necessidade sociológica. (BOURDIEU, 2002, p.11). Desse modo, na visão do sociólogo francês, é preciso desmasca- rar os argumentos que legitimam as desigualdades de gênero atribuin- do-lhes características de naturalidade ou de diferença biológica. Com efeito, existe uma arbitrariedade sim na construção dessas desigualda- A REPRESENTAÇÃO DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO CONTO “PARA QUE NINGUÉM A QUISESSE” DE MARINA COLASANTI 19 des, mas essa arbitrariedade é de índole cultural, produzida e reprodu- zida pela própria sociedade, por meio do que o autor chama de habitus3. Quando ao dissertarmos sobre os números que descrevem o cenário nacional de violência contra a mulher indicamos a existência de um ambiente cultural propício à violência no país, nos referíamos ao substrato simbólico existente no pensamento patriarcal brasileiro. Apesar de fugir dos objetivos do presente trabalho estabelecer qualquer comparação entre os cenários de violência com outros países, cabe o questionamento, o homem brasileiro e o homem islandês têm os mes- mos componentes biológicos, o que explicaria o Brasil ser o quinto país do mundo que mais mata mulheres por serem mulheres, e a Islândia ter números desprezíveis de violência contra a mulher, sendo conside- rado o país mais pacífico do mundo? Logicamente, o comportamento de homens islandeses e brasileiros difere não por questões naturais ou biológicas, mas por fatores culturais. Para Bourdieu (2002), a dominação masculina se opera mediante essa violência simbólica, nas palavras do autor Também sempre vi na dominação masculina, e no modo como é imposta e vivenciada, o exemplo por excelência desta submissão paradoxal, resultante daquilo que eu chamo de violência simbó- lica, violência suave, insensível, invisível a suas próprias vítimas, que se exerce essencialmente pelas vias puramente simbólicas de comunicação e do conhecimento, ou mais precisamente, do des- conhecimento, do reconhecimento, ou, em última instância, do sentimento (BOURDIEU, 2002, p. 03). O ambiente cultural brasileiro é fortemente carregado por va- lores patriarcais, os quais se cristalizam, muitas vezes, em práticas so- 3 O habitus pode ser compreendido como a naturalização de comportamentos que são convenientes de serem realizados no campo social. Para Bourdieu, o habitus é uma espécie de reprodução imperceptível de comportamentos aprendidos pela vivência em determinado campo social, é o condicionamento cultural do sujeito ao ambiente, que acontece mesmo sem que este se dê conta. Carlos Rafael Dias 20 ciais degradantes aos direitos das mulheres. E por essas práticas serem constantes, adquirem uma aparência de naturalidade, que faz com que o oprimido, muitas vezes, nem se dê conta que vive em uma situação de opressão, esse é o efeito da violência simbólica. Dessa forma, segundo Bourdieu (2002), uma mudança na con- juntura de violência só será possível se for vencido o poder hipnóti- co da violência simbólica imposta pelo pensamento patriarcal. Sem a pretensão de propor soluções universais para o problema, a tese que defenderemos nos próximos capítulos deste trabalho é que a literatu- ra – com sua capacidade de suscitar reflexões sobre a realidade - pode ser uma das possibilidades para o despertamento desse poder hipnótico da violência simbólica, e, consequentemente, de efetivação dos direitos humanos das mulheres. 1.4 A atuação da Literatura na formação humana Cândido (2011) teoriza sobre a natureza da literatura, buscando explicar como a obraliterária atua na formação do homem. Para o autor, existem, pelo menos, três faces a serem consideradas sobre a literatura: 1) ela é uma construção de objetos autônomos, com estrutura e signifi- cados; 2) ela é uma forma de expressão, ou seja, comunica sentimentos, emoções e uma determinada visão de mundo; 3) ela é uma forma de conhecimento. Apesar de ser comum nos atermos ao terceiro aspecto e pensarmos na literatura como forma de disseminação de conhecimento e, portanto, como algo com caráter instrutivo, o efeito da obra literária se desenvolve com a atuação concomitante dos três aspectos. Pensar na literatura como a construção de um objeto autôno- mo é refletir sobre a maneira pela qual a mensagem da obra literária é construída. Se diferentes pessoas passassem pela mesma experiência e lhes fosse pedido que escrevessem um texto literário inspirado naqui- lo que foi vivido, o resultado muito provavelmente seria a obtenção de textos tão diversos como os seus escritores. Isto porque, quando o autor A REPRESENTAÇÃO DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO CONTO “PARA QUE NINGUÉM A QUISESSE” DE MARINA COLASANTI 21 transforma sua história em linguagem, no instante em que os fatos são contados, eles sofrem uma significativa transformação. Existe, no ato de contar, uma escolha a ser feita pelo autor: ele decidirá não só o que contar, mas como irá fazê-lo. E cada opção por uma forma de contar a história revela, ao mesmo tempo, a preferência por não narrar outras várias versões que poderiam ser contadas, mas foram deliberadamente excluídas (Llosa, 2004). Para Sartre (2004, p. 22) “Ninguém é escritor por haver decidi- do dizer certas coisas, mas por haver decidido dizê-las de determinado modo”. Escrever é organizar palavras, retirá-las do caos e ordená-las de modo a serem decodificadas pelo entendimento humano, com o obje- tivo de transmitir uma mensagem. De acordo com Cândido (2011, p. 177), “a organização da palavra comunica-se ao nosso espírito e o leva, primeiro, a se organizar; em seguida, a organizar o mundo”. Por essa razão, a sistematização do texto, a ordenação da forma com a qual se transmitirá a mensagem, implica necessariamente na comunicação de uma organização de ideias, a qual poderá resultar em uma forma dife- rente de ver o mundo. Nesse sentido, o impacto da obra literária, oral ou escrita, aconte- ce por meio da fusão inextrincável entre a mensagem e a forma (CÂN- DIDO, 2011). Sendo assim, o poder da obra literária está intimamente ligado à eficiência alcançada pelo escritor neste processo de ordenação das palavras. Inegavelmente, esse empreendimento não é fácil, o belo poema de Drummond ilustra a agonia do literato ao professar que “Lu- tar com palavras é a luta mais vã”. A segunda constatação sobre a literatura, difundida por Cândi- do, revela que a obra literária é uma forma de expressão, de comunicar sentimentos e proporcionar experiências novas. Esse entendimento é semelhante ao de Aristóteles, para quem a arte literária “se trata, não só de imitar uma ação em seu conjunto, mas também de imitar fatos ca- pazes de suscitar o terror e a compaixão, e estas emoções nascem prin- cipalmente (e mais ainda) quando os fatos se encadeiam contra nossa Carlos Rafael Dias 22 experiência” (Aristóteles, 2010, p. 15). Para o pensador grego, a beleza da literatura está justamente nessa capacidade de comunicar sentimen- tos, forçar reflexões, de maneira tal que, ainda que o filósofo considere a obra literária uma imitação da realidade, ele também admite que, para o leitor, ler passa a ser uma experiência verdadeira. Isto porque, ao simu- lar as situações cotidianas, a obra literária proporciona a possibilidade de se refletir sobre a realidade. Nesse sentido, para Aristóteles, a litera- tura se aproxima da filosofia. Vargas Llosa (2002) corrobora, também, desse entendimento da literatura como forma de expressão, para o autor, a criação ficcional nos transporta para o universo criado pelo escritor e nos faz entrar em contato com emoções e pensamentos novos, capazes de ampliar nossa experiência humana. E por mais fantasiosa que seja a obra literária “ela afunda suas raízes na experiência humana, da qual se nutre e à qual alimenta” (LLOSA, 2004, p. 21). Para Llosa, seja na escrita realista ou na escrita fantástica, o poder da ficção se opera indistintamente, fazendo o leitor ampliar seus horizontes, ao mergulhar na representação de reali- dades, de experiências, que se pode identificar na vida. A terceira face da literatura, apontada por Cândido (2011), diz respeito à obra literária ser uma incorporação de conhecimento. Para o autor, de maneira consciente ou inconsciente, a obra literária atua sobre o leitor trazendo uma mensagem. Esse conteúdo transmitido, além do conhecimento latente proveniente da organização das emo- ções e de uma visão diferente do mundo – conforme já expusemos ao dissertarmos sobre as duas primeiras faces da literatura – também apresenta níveis de conhecimento intencional planejados pelo autor e conscientemente assimilados pelo leitor. Nesses níveis de conheci- mento, o autor injeta suas intenções de propaganda, ideologia, crença, revolta, adesão. Nesse sentido, também, é o pensamento de Sartre (2004), que ao buscar definir a literatura, começa a desenvolver seu raciocínio a partir da indagação “que é escrever? ”. O filósofo responde ao questionamento A REPRESENTAÇÃO DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO CONTO “PARA QUE NINGUÉM A QUISESSE” DE MARINA COLASANTI 23 inicial a partir da premissa de que “falar é agir” (SARTRE, 2004, p. 20). Para Sartre, ao falar, eu desvendo a situação por meu próprio projeto de mudá-la; desvendo-a a mim mesmo e aos outros, para mudá- -la; atinjo-a em pleno coração, traspasso-a e fixo-a sob todos os olhares; passo a dispor dela; a cada palavra que digo, engajo-me um pouco mais no mundo e, ao mesmo tempo, passo a emergir dele um pouco mais, já que o ultrapasso na direção do porvir (SARTRE, 2004, p. 20) Para o filósofo francês, quem se dispõe a escrever o faz buscando mudar a realidade, de modo que todo escritor escolheu um modo de agir em face do mundo, chamado por ele de “ação por desvendamento” (SARTRE, 2004, p. 20). Em outras palavras, o escritor é um ser engajado que decidiu escrever para comunicar ao mundo suas ideias, seus pensa- mentos, e, em alguns casos, utiliza do empreendimento da escrita para denunciar iniquidades, como ocorre no que Cândido chama de “litera- tura social”, composta por obras em que existe uma tomada de posição política e humanitária. Sobre esses textos, assevera o autor: “a literatura satisfaz, em outro nível, à necessidade de conhecer os sentimentos e a sociedade, ajudando-nos a tomar posição em face deles” (CÂNDIDO, 2011, p. 180). Nesse sentido, em referência a pesquisa que ora desenvolvemos, acreditamos que a obra de Marina Colasanti se situa nesse tipo de lite- ratura social, já que os símbolos, as alegorias presentes em seus textos, representam a situação da mulher na sociedade e denunciam, de certa forma, as iniquidades de um sistema opressor. De acordo com Bourdieu (2002), a força da dominação mascu- lina reside na violência simbólica, uma violência insensível, invisível, que faz com que a vítima não perceba que se encontra em uma situa- ção de violência. Esse poder hipnótico da violência simbólica se deve justamente ao longo processo histórico e cultural de incorporação da Carlos Rafael Dias 24 desigualdade de gênero ao imaginário social. A forma de romper com a dominação masculina, segundo o sociólogo francês, é desmascarar essa opressão por meio de atos de conhecimento que proporcionem uma “transformação radical das condições sociais de produção das tendências que levam os dominados a adotar, sobre os dominantes e sobre si mesmos, o próprio ponto de vista dos dominantes” (BOUR- DIEU, 2002, p. 53). Como já pontuamos anteriormente, Antônio Cândido (2011, p. 188) assevera que a literatura pode constituir-se em um “instrumentoconsciente de desmascaramento, pelo fato de focalizar as situações de restrição dos direitos, ou da negação deles, como a miséria, a servidão, a mutilação espiritual”. Dessa forma, acreditamos que a literatura é um dos meios de superação do poder hipnótico da violência simbólica, isto porque pode instigar reflexões sobre os instrumentos simbólicos subjacentes às rela- ções sociais de que o pensamento patriarcal se vale para naturalizar a opressão sobre as mulheres. A literatura, em nossa visão, pode ser um meio legítimo de empoderamento, propiciando o conhecimento sobre alguns direitos femininos desconhecidos por grande parte das mulhe- res, e fornecendo, dessa forma, meios para o exercício desses direitos. 1.5 Análise do conto “Para que ninguém a quisesse” O conto “Para que ninguém a quisesse” descreve uma relação marcada por uma constante violência psicológica, em que o marido se comporta de maneira abusiva, exigindo que a mulher se desvencilhe de traços da sua identidade. A Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) insere a violência psicológica no rol das formas de violência doméstica e familiar passíveis de intervenção do Estado na vida privada, com o propósito de assegurar a integridade física e psicológica da mulher. O art. 7º, II, daquele texto legal define violência psicológica como: A REPRESENTAÇÃO DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO CONTO “PARA QUE NINGUÉM A QUISESSE” DE MARINA COLASANTI 25 qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvi- mento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comporta- mentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, per- seguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimi- dade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológi- ca e à autodeterminação (BRASIL, 2006). As atitudes expostas na narrativa, como o homem controlar o modo que a mulher se veste, a forma com que exprime sua identidade, comportamentos abusivos que infligem sofrimento psicológico à mu- lher, fazendo com que exista prejuízo a sua saúde psíquica, todas essas ações caracterizam a violência psicológica e entram na aplicabilidade da Lei Maria da Penha. Do ponto de vista jurídico-processual, o maior problema nos ca- sos de violência psicológica é que dificilmente se consegue fazer prova em juízo sobre a materialidade desse tipo de violência. A prática judiciá- ria tem dado maior guarida aos casos em que existe uma lesão aparente, mais facilmente demonstrável, como na violência física e alguns casos de violência sexual e patrimonial. Durante a oficina procuramos instigar as participantes da pes- quisa a dizer se consideravam que as atitudes praticadas pelo marido no conto colasantiano se caracterizavam ou não como violência doméstica. O propósito era compreender a percepção dessas mulheres acerca da violência contra a mulher, mais precisamente em relação as formas de violência que não deixam marcas visíveis. Nesse sentido seguem alguns relatos: ORQUÍDEA – Eu tenho pra mim que a gente tem que ver bem as coisas. O marido dizer que gosta mais de uma roupa ou de outra, ou então falar que alguma roupa tá mostrando demais, Carlos Rafael Dias 26 não acho que tem problema não. Mas aí ir lá e jogar roupa da mulher fora, cortar o cabelo dela por causa de ciúme, aí já acho que é violência sim. ANAH FLOR – Eu acho que é muito errado o homem querer mandar na mulher, mas a mulher casada também tem que en- tender que tem roupa que não é de mulher casada usar. Mas vio- lência eu acho que não é não, a gente nunca vê alguém ser preso por causa de não deixar a mulher se arrumar (risos). SOL – Quando eu era casada já passei por umas coisas assim, meu marido não gostava que eu colocasse roupas curtas e com decote. Eu achava normal, as vezes eu ficava brava, mas sabia que no fundo ele tava cuidando de mim. Dos relatos das mulheres podemos perceber, conforme propõe Saffioti (1999), que entre o que se concebe por violência e o que se admi- te como o normal em uma relação de casais existe uma fronteira bastan- te nebulosa. De modo que não é verdade admitir que todas as mulheres terão a mesma consciência acerca da existência dos limites a serem tras- passados para que um relacionamento passe a ser violento. Esses limites serão formatados na individualidade, cada mulher, de acordo com sua vivência, experiência, cultura, terá fronteiras mais largas ou mais estrei- tas de reconhecimento de ações que possam ser consideradas condutas violentas. Dessa forma, se tomarmos por base o pensamento de Bourdieu acerca da violência simbólica ser uma violência invisível, insensível, naturalizada, o reconhecimento das violências de resultado imaterial – como o são a moral e a psicológica – pode ser bastante problemático, de forma que muitas mulheres vivem situações de violência psicológica, mas não a entendem como um processo violento, por terem assimila- do em seus mecanismos simbólicos que algumas condutas abusivas são naturais. Das falas das estudantes e da premissa do texto, podemos perce- ber uma certa adesão tácita a padrões de comportamentos moldados A REPRESENTAÇÃO DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO CONTO “PARA QUE NINGUÉM A QUISESSE” DE MARINA COLASANTI 27 pela sociedade que estabelecem, com fundamento em condicionamen- tos morais, uma separação entre o vestuário considerado apropriado para mulheres solteiras e casadas. Por que o vestuário da mulher ca- sada tem que manter o corpo mais coberto que o da solteira? Estaria a sensualidade feminina em contraposição ao instituto do casamento? De quem é o corpo da mulher casada, dela ou do marido? O pensamento patriarcal, muito bem delineado e apresentado no texto, implica, como assevera Scott (1995), na dominação do corpo da mulher, sendo a sexualidade considerada a chave do patriarcado. O ma- rido do conto não se enciumara da mulher por alguma atitude dela que tivesse sugerido interesse por outros homens, mas “porque os homens olhavam demais para a sua mulher” (COLASANTI, 1986, p. 111). O ciúme não era de afeto, e sim de propriedade. O problema não estava na fidelidade conjugal, pairava sobre a defesa do domínio sobre a mulher. O pensamento que subjaz é do homem como colonizador e da mulher como terra colonizada. Para o marido, a vontade, a liberdade, as escolhas da mulher lhe são indiferentes, a preocupação é com os outros colonizadores que se aproximam de sua propriedade. Para usar os con- ceitos de Beauvoir (1970) sobre alteridade, o marido se preocupa com os outros sujeitos e a ameaça que paira sobre o seu objeto. A relação do homem com a mulher segue o binômio possuidor- -posse. Já a relação do homem com os outros homens pelo corpo da mulher segue a lógica patriarcal consistente nas disputas influenciadas pelos três valores propostos por Plastino (2016) como pontos centrais do patriarcalismo: conflito, conquista e dominação. Dessa forma, pelo pensamento patriarcal, ainda muito vívido em nossa sociedade, o corpo da mulher é visto como propriedade do marido. O corpo da mulher casada deve estar coberto como quem põe muros em volta de sua pro- priedade, sua feminilidade só pode se revelar para seu possuidor. Outro elemento importante de ser observado no conto, é que as exigências do marido passaram a ser cada vez mais rigorosas e se reves- tiam de tons imperativos: “mandou que descesse a bainha” / “exigir que Carlos Rafael Dias 28 eliminasse os decotes” / “tosquiou-lhe os longos cabelos”. A gravidade das limitações dirigidas à mulher foi aumentando até o ponto em que o cabelo dela foi tosquiado. Isso demonstra a tendência existente na traje- tória da violência contra a mulher em que as agressões começam menos violentas e ganham ascendência em força, intensidade e periodicidade. Assim como a trajetória violenta costuma começar com violência psi-cológica e evoluir para agressões físicas, os dois primeiros comandos do marido foram ordens (mandou, exigiu) e o último foi ação física (tos- quiou). Uma metáfora importante foi constatada durante as oficinas “Eu morei muito tempo na roça e lá a gente não usa essa palavra ‘tos- quiar’ pra gente não, a gente usa mesmo é pra animais, pra cortar o pelo deles, será que a mulher não foi chamada de animal? ” (RUBI). Referir-se a mulher como um animal domesticado é dizer que o pro- cesso de retirada da liberdade da mulher resulta também na perda de sua humanidade. Quanto mais agredida em sua identidade, me- nos humana se torna a mulher. No texto, a referência ao processo de perda de humanidade é cuidadosa: primeiro a mulher foi tosquiada, depois tornou-se “esquiva como um gato”, e, enfim, foi “mimetizada com os móveis e as sombras”. Perdida em si mesmo, tornando-se em sombra, o estado da mulher no conto é idêntico ao de muitas vítimas de violência psicológica que adoecem, ficam depressivas e acabam no isolamento. Ao conquistar seu objetivo de fazer com que mais nenhum ho- mem olhe e se interesse por sua mulher, o marido encontra paz na nar- rativa “Agora podia viver descansado. Ninguém a olhava duas vezes, ho- mem nenhum se interessava por ela”. Enquanto isso, a mulher deixava de passar pela praça, evitava sair de casa, com medo de provocar algum olhar masculino, pelo qual seria culpada e punida (JACOBSEN, 2018). Aquele homem havia implementado uma estratégia de controle social com sua mulher, de modo que a dominação pela violência se mostra presente em toda a narrativa. A REPRESENTAÇÃO DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO CONTO “PARA QUE NINGUÉM A QUISESSE” DE MARINA COLASANTI 29 Por fim, o marido começa a sentir falta, não da mulher, mas da- quele objeto de desejo que um dia despertou olhares de outros homens. Então começa a trilhar o caminho da sedução levando batom, vestido de seda e uma rosa de cetim. No entanto, a empreitada de conquista não tem sucesso, pois a mulher, ao acatar toda a humilhação que lhe foi imposta, acabou por desistir de si mesma. 1.6 Considerações Finais A questão da violência contra a mulher chama atenção pela gran- deza dos números que normalmente estão ligados ao fenômeno, por essa razão se constitui em uma das mais graves mazelas sociais, caracte- rizando-se pela persistência e durabilidade dos preceitos e preconceitos que a sustentam. Esses antigos paradigmas cultivam um pensamento patriarcal que atua na sociedade e direciona comportamentos de forma praticamente invisível, operando por meio daquilo que Bourdieu (2002) nomeou de violência simbólica. O poder dessa violência reside, justamente, nessa invisibilidade e o tempo, a repetição, o inculcamento são o que lhe ga- rantem força e permanência. Dessa forma, a não ser que exista uma interferência externa que provoque profunda reflexão sobre seus fundamentos, o pensamento patriarcal atua no sujeito sem que ele sequer pense a respeito, fazendo com que suas ações, ainda que cruéis e injustas, tenham aparência de normalidade. Esse é o caso da dominação masculina, da manutenção de inúmeros privilégios dos homens em detrimento das mulheres e da persistente desigualdade de gênero. É, também, o fundamento primeiro do uso da força e da agressi- vidade pelos homens, no interior dos lares, para controlar suas mulhe- res. É, igualmente, o substrato do sentimento de posse, do ciúme doen- tio, da necessidade de controle sobre a mulher. O paradigma patriarcal é o alicerce mais firme para a perpetuação do comportamento violento. Carlos Rafael Dias 30 Em colisão frontal a este problema, a investigação proposta neste estudo adquiriu importância por buscar na arte, mais precisamente na literatura, meios de combater o poder desse paradigma patriarcal. Pro- pugnou-se por colocar mulheres, estudantes com trajetórias escolares descontínuas, em contato com o conto “Para que ninguém a quisesse”, de Marina Colasanti, texto que representa questões concernentes a rela- cionamentos abusivos e diferentes formas de violência contra a mulher. O objetivo principal de analisar em conjunto com as participan- tes da pesquisa as formas de violência contra a mulher foi cumprido. Embora, como se viu, as respostas denotaram uma assimilação tácita por parte das mulheres de um pensamento patriarcal dominante, prin- cipalmente quando consideram que a demanda masculina por contro- lar-lhes o modo de se portar e se vestir é justificada por um instinto natural de proteção. Finalmente, conclui-se, utilizando a perspectiva de Llosa (2004), que a ficção de Marina Colasanti, como toda obra literária, revela verda- des sobre nós e sobre o mundo. E por mais que seja uma mentira ficcio- nal, o texto literário analisado nesta pesquisa dialoga, eloquentemente, com a realidade da mulher brasileira contemporânea. 1.7 Referências ARISTÓTELES. Arte Poética. São Paulo: Martin Claret, 2010. BEAUVOIR, Simone de. O Segundo sexo I: fatos e mitos. 4. ed. São Paulo: Difusão europeia do livro, 1970. BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. Rio de Janeiro: Ed. Ber- trand Brasil, 2002. ____. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: EDUSP, 2007. BARDIN, Laurence. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2009. A REPRESENTAÇÃO DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO CONTO “PARA QUE NINGUÉM A QUISESSE” DE MARINA COLASANTI 31 Lei 11.340, de 7 de agosto de 2006, Planalto. Disponível em < http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm > Acesso em: 05 de set. De 2019. CANDIDO, Antonio. A literatura e a formação do homem. Ciência e cultura. São Paulo, v. 24, n. 9, p. 803-809, set. 1972. ____. Vários escritos. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2011. COLASANTI, Marina. Contos de amor rasgados. Rio de Janeiro: Roc- co, 1986. GIL, Antonio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. 6. ed. Edi- tora Atlas, 2008. JACOBSEN, Kallige Cristina. Direito e Literatura: a construção iden- titária da mulher em Marina Colasanti. 2018. 161 f. Dissertação (Mes- trado em Letras) - Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2018. LLOSA, Mario Vargas. A verdade das mentiras. São Paulo: Arx, 2004. PLASTINO, Carlos Alberto. Do paradigma da dominação ao paradig- ma do cuidado. Divulgação em saúde para debate. Rio de Janeiro, n. 53, p. 25-40, jan. 2016. SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. 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AFLIÇÕES DE AMARO E AS DENÚNCIAS DA LI- TERATURA Guilherme Ramos de Oliveira4 Letícia Gisele Pinto de Moraes5 Resumo Abordar questões raciais e homossexualidade em textos não é tarefa fá- cil, já que o autor tem a preocupação em passar a mensagem correta ao leitor. No Brasil, o contexto histórico e social é composto por misoginia, machismo, homofobia e racismo, que com o passar dos anos vem sendo trabalhado para que seja superado e as pessoas que são oprimidas por estes preconceitos, não tenham mais suas existências ameaçadas e pos- sam viver da melhor maneira possível. Neste sentido, a literatura tem abraçado causas e movimentos sociais na representação das minorias e denúncia dos meios e modos de opressão, cumprindo com sua função social em romper paradigmas e modificar a realidade do leitor. A vista deste papeltransgressor das obras literárias, volta-se o olhar para Bom Crioulo, história escrita por Adolfo Caminha, em 1895, que explora as inquietações e aflições de um marinheiro negro e homossexual do sé- culo XIX. Sendo assim, a presente pesquisa tem por escopo a revisão bibliográfica da obra, para compreender as proposições do autor entre 4 Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Ensino, Associação ampla IFMT- -UNIC. E-mail: demolay.groliveira@gmail.com 5 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Ensino, Associação ampla IFMT- -UNIC. E-mail: leticiapmq@gmail.com 33 AFLIÇÕES DE AMARO E AS DENÚNCIAS DA LITERATURA ficção e realidade, e levando em consideração a importância da leitura literária para o avanço nos debates relacionados a gênero, sexualidade e racismo. Palavras-chave: Literatura. Homossexualidade. Racismo. 2.1 Introdução O debate acerca da inclusão e aceitação de pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, queer, intersexuais, assexuais e outras variações de sexualidade e gênero, tem ganhado espaço na sociedade, por meio de movimentos sociais, redes, livros, artigos, pesquisas, revistas, jornais e periódicos. No entanto, o que se vê é o desabrochar da luta de inúmeros autores que deram início a essa discussão lá no passado. Sob esta perspectiva, volta-se o olhar para uma obra literária pu- blicada em 1895, num brasil recém abolicionista e republicano, eivado de conservadorismo, pobreza, racismo, preconceito ao diferente e ho- mofobia. Todavia, como precursor no caminho da quebra de paradig- mas, Adolfo Caminha, traz em Bom Crioulo, diversos estigmas sociais dos quais precisavam ser discutidos naquela época. A obra que denuncia violência, homofobia, racismo e machismo através de um personagem negro/preto e homossexual, trouxe inquie- tação e indignação para o público da época, já que não estavam ha- bituados com tamanha ousadia. Deste modo, encara-se que este livro ao provocar o leitor a refletir sobre a vida de pessoas marginalizadas e discriminadas, apenas pela cor da pele e orientação sexual, revela uma ideologia dominante que perpassa gerações e deve ser aniquilada. Para tanto, por ser uma obra escrita no século XIX, está repleta de termos e posicionamentos que são considerados inadequados atual- mente. Visto que se publicada nos dias atuais, certamente seria criticada pelas polêmicas envolvendo o título do livro e idade dos personagens. Outrora, considerando seu papel precursor, sendo a primeira literatura 34 Guilherme Ramos de Oliveira | Letícia Gisele Pinto de Moraes brasileira a relatar a paixão entre dois homens, há de se reconhecer sua importância para a discussão acerca da homoafetividade. Neste sentido, a análise do texto volta-se para a mensagem que o autor se propôs a passar, com o intuito de que casais homossexuais são como casais heterossexuais, seus anseios, desejos e vontades são os mesmos, que não há diferença entre eles. Todavia, deixa claro o contex- to histórico da trama, convidando o leitor a participar e compreender que a história daquele personagem, paralelamente seria a realidade de muitas pessoas que são inferiorizadas por sua classe social, etnia, cor de pele e orientação sexual. Por ora, tem-se uma leitura repleta de informações sobre a mari- nha, castigos aos marinheiros, como homossexuais e negros eram vistos pela sociedade em geral, de modo que ao comparar o período que o texto foi publicado, aos dias atuais, houve certo progresso em relação aos assuntos abordados, em decorrência da luta pelos direitos humanos, mas ainda há muito o que conquistar para a tão sonhada igualdade e equidade dos povos. 2.2 Explorando a história de Amaro Em 1895, Adolfo Caminha, trouxe à tona a discussão de racismo, homossexualidade e bissexualidade na obra Bom Crioulo. Por ora, nota-se que o título já é um apontamento ao racismo, tendo em vista que a palavra ‘crioulo’ é usada em tom pejorativo às pessoas negras/pretas. Antemão, a análise do texto visa demonstrar a genialidade do autor em criticar uma sociedade preconceituosa, antiquada, escravocrata, racista e homofóbica. A ficção aborda a história de Amaro, negro, que fora escravo, mas conseguiu fugir e se refugiar na marinha brasileira. Por ser considerado ótimo marinheiro, passou a ser chamado de Bom Crioulo pelos com- panheiros de trabalho. Outrora, em fases obscuras, tornava-se nocivo e consequentemente era castigado: 35 AFLIÇÕES DE AMARO E AS DENÚNCIAS DA LITERATURA Seguia-se o terceiro preso, um latagão de negro, muito alto e cor- pulento, figura colossal de cafre, desafiando, com um formidável sistema de músculos, a morbidez patológica de toda uma gera- ção decadente e enervada, e cuja presença ali, naquela ocasião, despertava grande interesse e viva curiosidade: era o Amaro, ga- jeiro da proa – o Bom Crioulo na gíria de bordo. (p.32) Vê-se que Amaro possuía características físicas peculiares, um sujeito másculo, viril, forte, mas por circunstâncias inapropriadas aca- bava causando confusão e sendo punido, bem como os demais colegas de trabalho. Os marinheiros que descumpriam as regras eram presos e castigados com chibatadas. Por ora: Quando havia conflito no cais Pharoux, já toda a gente sabia que era o Bom Crioulo às voltas com a polícia. Reunia povo, toda a população do litoral corria enchendo a praça, como se tivesse acontecido uma desgraça enorme, formavam-se partidos a favor da polícia e da Marinha... uma coisa indescritível! (p.34) Deste modo, fica claro que Amaro causava confusões cor- riqueiramente, sendo castigado inúmeras vezes no decorrer do exercício de sua profissão. No entanto, sempre que ocasionava conflitos, era decorrente de ingestão de bebidas alcoólicas ao fi- nal da jornada de trabalho. Até que certo dia originou uma nova confusão, sendo: O motivo, porém, de sua prisão agora, no alto-mar, a bordo da corveta, era outro, muito outro: Bom Crioulo esmurrara desa- piedadamente uma segunda classe, porque este ousara, “sem o seu consentimento”, maltratar o grumete Aleixo, um belo ma- rinheirito de olhos azuis, muito querido por todos e de quem diziam-se “cousas”. (p.34) 36 Guilherme Ramos de Oliveira | Letícia Gisele Pinto de Moraes A partir daqui o texto começa a abordar o interesse que Amaro passa a ter por um colega da marinha, o grumete Aleixo. Percebe-se que a afeição pelo jovem marinheiro era tamanha, de modo que impulsio- nou uma briga em sua defesa. Nestes termos, antes de avançar para o romance entre Amaro e Aleixo, o autor busca esclarecer as aflições do personagem: Ele, o escravo, “o negro fugido” sentia-se verdadeiramente ho- mem, igual aos outros homens, feliz de o ser, grande como a na- tureza, em toda a pujança viril da sua mocidade, e tinha pena, muita pena dos que ficavam na “fazenda” trabalhando, sem ga- nhar dinheiro, desde a madrugadinha té... sabe Deus! (p.37) Basta esclarecer que não se sabe exatamente o período que se pas- sa a história, se antes ou depois do abolicionismo, no entanto Caminha enfatiza a liberdade que Amaro obteve ao fugir da fazenda onde era escravizado, passando a refugiar-se na marinha. Lugar que se sentia ver- dadeiramente homem. Assim: Amaro soube ganhar logo a afeição dos oficiais. Não podiam eles, a princípio, conter o riso diante daquela figura de recruta alheio às praxes militares, rudo como um selvagem, provocando a cada passo gargalhadas irresistíveis com seus modos ingênuos de tabaréu; mas, no fim de alguns meses, todos era de parecer que “o negro dava para gente”. Amaro já sabia manejar uma es- pingarda segundo as regras do ofício, e não era lá nenhum boto- cudo em artilharia; criara fama de “patesca”. Nunca, durante esse primeiro ano de aprendizagem, merecera a pena de um castigo disciplinar: seu caráter era tão meigo que os próprios oficiais co- meçaram a tratá-lo por Bom Crioulo. (p.38) Reafirma-se a competência de Amaro neste trecho, no entanto percebe-se o racismo presente no posicionamento dos demais mari- 37 AFLIÇÕES DE AMAROE AS DENÚNCIAS DA LITERATURA nheiros, pois o tratavam com inferioridade. Entretanto, passam a afei- çoá-lo quando encontraram nele um excelente oficial por desempenhar bom trabalho e acatar ordens. Haja vista, inicialmente não era de causar conflitos, exceto quando passou a adotar hábitos ébrios e posteriormen- te apaixonar-se por Aleixo: Diziam uns que a cachaça estava deitando a perder “o negro”; outros, porém, insinuavam que Bom Crioulo tornara-se assim, esquecido e indiferente, dês que “se metera” com o Aleixo, o tal grumete, o belo Marinheiro de olhos azuis, que embarcara no Sul. – O ladrão do negro estava mesmo ficando sem-vergonha! E não lhe fossem fazer recriminações, dar conselhos... Era muito homem para esmagar um! (p.43) Amaro se afeiçoou pelo grumete e não sabia lidar com a situação, deixando que os demais marinheiros notassem o que estava acontecen- do entre os dois. Ocorre que uma relação homossexual não era aceita no século XIX, de modo que era perigoso e arriscado o que se passava entre os dois. “O próprio comandante já sabia daquela amizade escandalosa com o pequeno. Fingia-se indiferente, como se nada soubesse, mas co- nhecia-se-lhe no olhar certa prevenção de quem deseja surpreender em flagrante...” (CAMINHA, 1895, p. 43). À vista disso, para que Amaro e Aleixo pudessem dar continuida- de com a relação, deveriam ser discretos, para evitar escândalos. Assim, ressalta-se a homofobia existente no período que a obra foi escrita, de modo que uma relação entre dois homens jamais seria aceita pela socie- dade. Adiante: Tudo isso, porém, não passava de suspeitar, e Bom Crioulo, com o seu todo abrutalhado, uma grande pinta de sangue no olho esquerdo, o rosto largo de uma prognatismo evidente, não se in- comodava com o juízo dos outros. – Não lho dissessem na cara, porque então o negócio era feio... A chibata fizera-se para o ma- 38 Guilherme Ramos de Oliveira | Letícia Gisele Pinto de Moraes rinheiro: apanhava até morrer, como um animal teimoso, mas havia de mostrar o que é ser homem! (p.43) Isto é, os acontecimentos entre Amaro e Aleixo eram deduzidos pelos demais, pois ambos mantinham comportamento discreto. Toda- via, ainda que soubesse dos comentários homofóbicos, o marinheiro não se incomodava, pois mesmo que fosse punido pela ocasião, teria escrúpulos para lidar com a covardia. Neste seguimento: Sua amizade ao grumete nascera, de resto, como nascem todas as grandes afeições, inesperadamente, se precedentes de espécie alguma, no momento fatal em que seus olhos se fitaram pela primeira vez. Esse movimento indefinível que acomete ao mes- mo tempo duas naturezas de sexos contrários, determinando o desejo fisiológico de posse mútua, essa atração animal que faz o homem escravo da mulher e que em todas as espécies impul- siona o macho para a fêmea, sentiu-a Bom Crioulo irresistivel- mente ao cruzar a vista pela primeira vez com o grumetezinho. Nunca experimentara semelhante cousa, nunca homem algum ou mulher produzira-lhe tão esquisita impressão, desde que se conhecia! Entretanto, o certo é que o pequeno, uma criança de quinze anos, abalara toda a sua alma, dominando-a, escravizan- do-a logo, naquele mesmo instante, como a força magnética de um ímã. (p.43-44) Observa-se que a atração de Amaro por Aleixo é genuína, não é um sentimento efêmero, já que potencializa com a amizade de ambos. Outrora, há uma problemática moral neste romance, tendo em vista que o grumete nem está perto de completar a maioridade. Sendo assim, o autor aguça a criticidade do leitor em relação a diferença de idades do casal, pois partindo da premissa que não deve haver preconceito com a homossexualidade, há problema gravíssimo na formação de um casal entre um adulto e um adolescente de quinze anos. 39 AFLIÇÕES DE AMARO E AS DENÚNCIAS DA LITERATURA No desenrolar da trama, Amaro se mostra completamente encan- tado e apaixonado por Aleixo, de modo que nunca houvera se afeiçoado por outra pessoa. Assim, deixa claro que no passado tentou se relacionar com mulheres, mas resultou em frustração. A partir destas experiências mal logradas, preferiu seguir sem se relacionar com ninguém, até o apa- recimento do grumete em sua vida. Assim descreve: Não se lembrava de ter amado nunca ou de haver sequer arrisca- do uma dessas aventuras tão comuns na mocidade, em que en- tram mulheres fáceis, não: pelo contrário, sempre fora indiferen- te a certas cousas, preferindo antes a sua pândega entre rapazes a bordo mesmo, longe de intriguinhas e fingimentos de mulher. Sua memória registrava dois fatos apenas contra a pureza quase virginal de seus costumes, isso mesmo por uma eventualidade milagrosa: aos vinte anos, e sem o pensar, fora obrigado a dor- mir com uma rapariga em Angra dos Reis, perto das cachoeiras, por sinal dera péssima cópia de si mesmo como homem; e, mais tarde, completamente embriagado, batera em casa de uma fran- cesa no largo do Rocio, donde saíra envergonhadíssimo, jurando nunca mais se importar com “essas cousas”... (p. 48) Ante a este sentimento que só crescia em Amaro, também o fazia questionar os motivos desta afeição por um homem, mesmo sendo um instinto natural, pois sabia dos riscos de relacionar-se com uma pessoa do mesmo sexo. Sabendo que outros marinheiros também se relaciona- vam e ocultavam a homossexualidade, para não serem julgados imorais, para ele seria mais fácil relacionar-se com uma mulher e evitaria maio- res problemas, como se vê: Tudo isto fazia-lhe confusão no espírito, baralhando ideias, re- pugnando os sentidos, revivendo escrúpulos. – É certo que ele não seria o primeiro a dar exemplo, caso o pequeno se resolvesse a consentir.... Mas – instinto ou falta de hábito – alguma cousa 40 Guilherme Ramos de Oliveira | Letícia Gisele Pinto de Moraes dentro de si revoltava-se contra semelhante imoralidade que ou- tros de categoria superior praticavam quase todas as noites ali mesmo sobre o convés.... Não vivera tão bem sem isso? Então, que diabo! Não valia a pena sacrificar o grumete, uma criança... Quando sentisse “a necessidade”, aí estavam mulheres de todas as nações, francesas, inglesas, espanholas... a escolher! (p.49) Visto que mesmo ao avaliar os perigos de manter-se apaixona- do por homem, resolveu se arriscar por Aleixo e dar continuidade ao romance. Com isto, colaborou com o crescimento do grumete na mari- nha, ensinando-o a ser um excelente oficial. Todavia, ante ao desabro- char deste sentimento, resolveram avançar com a relação: Depois de um silêncio cauteloso e rápido, Bom Crioulo, conche- gando-se ao grumete, disse-lhe qualquer cousa no ouvido. Alei- xo conservou-se imóvel, sem respirar. Encolhido, as pálpebras cerrando-se instintivamente de sono, ouvindo, com o ouvido pegado ao convés, o marulhar das ondas na proa, não teve âni- mo de murmurar uma palavra. Viu passarem, como em sonho, as mil e uma promessas de Bom Crioulo: o quartinho da rua da Misericórdia no Rio de Janeiro, os teatros, os passeios...; lem- brou-se do castigo que o negro sofrera por sua causa; mas não disse nada. Uma sensação de ventura infinita espalhava-se-lhe em todo o corpo. Começava a sentir no próprio sangue impulsos nunca experimentados, uma como vontade ingênita de ceder aos caprichos do negro, de abandonar-se-lhe para o que ele quisesse – uma vaga distensão dos nervos, um prurido de passividade... – Ande logo! Murmurou apressadamente, voltando-se. E consu- mou-se o delito contra a natureza. (p.60) Nestes termos, o autor instiga o leitor a se questionar por que a relação sexual consentida entre dois homens que se amam, é considera- da um delito contra a natureza. Reflexão esta que perpassa pelo século XXI, de modo que ainda existe preconceito com casais homoafetivos. 41 AFLIÇÕES DE AMARO E AS DENÚNCIAS DA LITERATURA Contudo, afirmando não ser contra sua natureza, “ao pensar nisso, Bom Crioulo sentia uma febre extraordinária de erotismo, um delírio inven- cível de gozo pederasta... Agora compreendia nitidamenteque só no homem, no próprio homem, ele podia encontrar aquilo que debalde procurara nas mulheres”. (CAMINHA, 1895, p. 63) Todavia, em uma nova passagem, passa a compreender seus in- sucessos com as mulheres que tentou se relacionar no passado, já que concluiu ser homossexual. Importante ressaltar que Amaro compreen- deu sua natureza após longos anos de sua existência, cujo processo se diferencia de pessoa para pessoa. De modo que reflete: Afinal de contas era homem, tinha suas necessidades, como qualquer outro: fizera muito em conservar-se virgem té aos trin- ta anos, passando vergonhas que ninguém acreditava, sendo muitas vezes obrigado a cometer excessos que os médicos proí- bem. De qualquer modo estava justificado perante sua consciên- cia, tanto mais quanto havia exemplos ali mesmo a bordo, para não falar em certo oficial de quem se diziam cousas medonhas no tocante à vida particular. Se os brancos faziam, quanto mais os negros! É que nem todos têm força para resistir: a natureza pode mais que a vontade humana... (p. 64) Após compreender sua natureza e orientação sexual, Amaro ago- ra quer trilhar este caminho com Aleixo, e não se esconder a exemplo de um dos oficiais com quem trabalha. Para tanto, ao avançar a história, ele e o grumete alugam um quarto no sobradinho de D. Carolina, para que quando estivessem em terra, pudessem partilhar seus momentos de casal. Sendo assim: Bom Crioulo, desde a primeira noite dormida no sobradinho, começou a experimentar uma delícia muito íntima, assim como um recolhido gozo espiritual – certo amor à vida obscura daque- la casa onde ultimamente quase ninguém ia, e que era o seu que- 42 Guilherme Ramos de Oliveira | Letícia Gisele Pinto de Moraes rido valhacoito de marujo em folga, o doce remanso de sua alma voluptuosa. Não sonhava melhor vida, conchego mais ideal: o mundo para ele resumia-se agora naquilo: um quartinho pegado às telhas, o Aleixo, e.… nada mais! Enquanto Deus lhe conser- vasse o juízo e a saúde, não desejava outra cousa. (p.74) Amaro e Aleixo para se resguardarem, mantinham o relaciona- mento com discrição, trabalhando na marinha, mas quando voltavam para cidade, se abrigavam no sobradinho. De modo que esta situação perdurou por meses, como ressalta: Quase um ano de convivência fora bastante para que ele se iden- tificasse absolutamente com o grumete, para que o ficasse conhe- cendo, e a convicção de que Aleixo não o traía entregando-se à fúria selvagem de qualquer marmanjo, a certeza de que era res- peitado pelo outro, comunicava-lhe essa tranquilidade confiante de marido feliz, de capitalista zeloso que traz o dinheiro guarda- do inviolavelmente. (p.81) Entretanto, após meses mantendo esta rotina, Amaro se vira for- çado a se afastar de Aleixo, pois recebeu uma gratificação e teria que passar mais tempo trabalhando. Assim, os dias de romance no sobra- dinho estariam contados. Mesmo ante ao recém empecilho, Amaro es- tava decidido a não perder este amor, que passou a se transformar em obsessão: E o negro ficou pensando no grumete, sentado à mesa, de crista caída, esgravatando maquinalmente a unha com um fósforo. – “Aquilo” não ia bem... Precisava tomar uma resolução: abando- nar o Aleixo, acabar de uma vez, meter-se a bordo, ou então ami- gar-se aí com uma rapariga de sua cor e viver tranquilo... Estava emagrecendo à toa, não comia, não tinha descanso, em termos de adoecer, de apanhar uma moléstia, por causa do “sr. Aleixo”. 43 AFLIÇÕES DE AMARO E AS DENÚNCIAS DA LITERATURA Se ao menos pudesse vê-lo todos os dias, como na corveta...; mas assim, longe um do outro? Não valia a pena, era cair no desfru- te... (p. 98) Inseguro com sua atual posição, Amaro questiona se deve ou não esperar por Aleixo, já que estava longe de casa e não tinha informações sobre o que pudesse estar acontecendo. Tendo em vista que o grumete estava na flor da idade, poderia se afeiçoar por outros rapazes. No en- tanto, mal ele sabia que a preocupação dele estava dentro do próprio sobradinho: D. Carolina realizara, enfim, o seu desejo, a sua ambição de mu- lher gasta: possuir um amante novo, mocinho, imberbe, com uma ponta de ingenuidade a ruborizar- lhe a face, um amante quase ideal, que fosse para ela o que um animal de estima é para seu dono – leal, sincero, dedicado té ao sacrifício. (p.113) Amaro estando longe da cidade, D. Carolina e Aleixo passaram a se relacionar, o que para o desenvolvimento da trama é superinteres- sante, pois inicialmente o grumete é apresentado como homossexual. Desta feita, em 1895, Adolfo Caminha além de dar voz à representação da homossexualidade, também traz à tona a bissexualidade do jovem rapaz cujo personagem principal é perdidamente apaixonado. Outros- sim, há de se reiterar a diferença exorbitante nas idades de D. Carolina e do adolescente Aleixo, evidenciando-se novamente a problemática do relacionamento entre um adulto e um menor de idade. Adiante, não era interesse de D. Carolina, que Amaro mantivesse contato com Aleixo, de modo que fez o possível para mantê-los inco- municáveis. Neste ínterim, o jovem grumete reflete sobre a relação que esteve com Amaro e se vê melhor sem ele, tendo em vista que tinha tudo que lhe era possível, mas a obsessão do amado o fazia um ser em cativeiro, como explica o texto: 44 Guilherme Ramos de Oliveira | Letícia Gisele Pinto de Moraes Mas Aleixo não podia esquecer Bom Crioulo. A figura do negro acompanhava-o a toda parte, a bordo e em terra, quer ele quises- se quer não, com uma insistência de remorso. Desejava odiá-lo sinceramente, positivamente, esquecê-lo para sempre, varrê-lo da imaginação como a um pensamento mau, como a uma ob- sessão insólita e enervante; mas, debalde! O aspecto repreensivo do marinheiro estava gravado em seu espírito indelevelmente; a cada instante lembrava-se da musculatura rija de Bom Criou- lo, de seu gênio rancoroso e vingativo de sua natureza extraor- dinária – híbrido conjunto de malvadez e tolerância –, de seus arrebatamentos, de sua tendência para o crime, e tudo isso, to- das essas recordações o acordavam, punham-lhe no sangue um calefrio de terror, um vago estremecimento de medo, qualquer cousa latente e aflitiva... Suas expansões com a portuguesa eram incompletas, vibravam-lhe os lábios em sorrisos de falsário, cada vez que ela o exaltava para deprimir o outro... (p. 115) Para tanto, Amaro tinha voltado a beber e se envolveu em uma confusão, a qual acarretou um castigo que lhe fez ser internado em um hospital. Neste tempo que estava no hospital, mandou um bilhete a Aleixo, que em conversa com D. Carolina, resolveu não responder e seguir sua vida sem Amaro. Esta inércia do grumete fez com que Amaro se revoltasse completamente contra o amado, de modo que: Era um misto de ódio, de amor e de ciúme, o que ele experimen- tava nesses momentos. Longe de apagar-se o desejo de tornar a possuir o grumete, esse desejo aumentava em seu coração ferido pelo desprezo do rapazinho. Aleixo era uma terra perdida que ele devia reconquistar fosse como fosse; ninguém tinha o direito de lhe roubar aquela amizade, aquele tesouro de gozos, aque- la torre de marfim construída pelas suas próprias mãos. Aleixo era seu, pertencia-lhe de direito, como uma cousa inviolável. Daí também o ódio ao grumete, um ódio surdo, mastigado, brutal como as cóleras de Otelo... (p. 137-138) 45 AFLIÇÕES DE AMARO E AS DENÚNCIAS DA LITERATURA E, assim, vê-se um amor sendo desfeito, já que após Aleixo ig- norar seu bilhete, Amaro vai atrás de respostas e acaba se deparando com a situação que não desejava. Acarretando o final trágico da história. Portanto, demonstrando a realidade preconceituosa presente na comu- nidade, esta é uma obra que denuncia inúmeros problemas políticos, culturais, econômicos e sociais, através de uma abordagem crítica sobre racismo e homossexualidade. 2.3 Discussões acerca de racismo e homossexualidade a partir da li- teratura de Adolfo Caminha A literatura de Adolfo Caminha
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