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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM GIULIA MENDES GAMBASSI Mulheres, adolescência e conflito com a lei: uma análise discursivo-desconstrutiva CAMPINAS, 2018 GIULIA MENDES GAMBASSI Mulheres, adolescência e conflito com a lei: uma análise discursivo-desconstrutiva Dissertação de mestrado apresentada ao Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas para obtenção do título de Mestra em Linguística Aplicada na área de Linguagem e Sociedade. Orientadora: Profa. Dra. Maria José Rodrigues Faria Coracini Este exemplar corresponde à versão final da Dissertação defendida pela aluna Giulia Mendes Gambassi e orientada pela Profa. Dra. Maria José Rodrigues Faria Coracini. CAMPINAS, 2018 Agência(s) de fomento e nº(s) de processo(s): CAPES ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8326-818 Ficha catalográfica Universidade Estadual de Campinas Biblioteca do Instituto de Estudos da Linguagem Crisllene Queiroz Custódio - CRB 8/8624 Gambassi, Giulia Mendes, 1990- G142m GamMulheres, adolescência e conflito com a lei : uma análise discursivo- desconstrutiva / Giulia Mendes Gambassi. – Campinas, SP : [s.n.], 2018. GamOrientador: Maria José Rodrigues Faria Coracini. GamDissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem. Gam1. Adolescentes (Meninas). 2. Identidade (Psicologia) em adolescentes. 3. Detenção de menores. 4. Mulheres e psicanálise. 5. Linguagem e psicanálise. 6. Estudos de gênero. 7. Análise do discurso. I. Coracini, Maria José Rodrigues Faria, 1949--. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Estudos da Linguagem. III. Título. Informações para Biblioteca Digital Título em outro idioma: Women, adolescence and conflict with the law: : a discursive- deconstructive analysis Palavras-chave em inglês: Teenage girls Identity (Psychology) in adolescence Juvenile detention Women and psychoanalysis Language and psychoanalysis Gender studies Discourse analysis Área de concentração: Linguagem e Sociedade Titulação: Mestra em Linguística Aplicada Banca examinadora: Maria José Rodrigues Faria Coracini [Orientador] Mariana Rafaela Silva Batista Peixoto Claudete Moreno Ghiraldelo Data de defesa: 26-02-2018 Programa de Pós-Graduação: Linguística Aplicada Powered by TCPDF (www.tcpdf.org) http://www.tcpdf.org BANCA EXAMINADORA: Maria José Rodrigues Faria Coracini Mariana Rafaela Batista Silva Peixoto Claudete Moreno Ghiraldelo IEL/UNICAMP 2018 Ata da defesa, com as respectivas assinaturas dos membros da banca, encontra-se no SIGA - Sistema de Gestão Acadêmica. Dedicatória Às mulheres que, generosamente, aceitaram construir esta dissertação conosco, às que se negaram em participar e às que nada puderam dizer. Aos meus irmãos (Alice, Ana Lígia, Mariana e Pedro) e à esperança que eles me trazem. A Salvador José Troise (in memoriam), o primeiro mestre (em) que (me) (re)conheci. À Juliana e à Lena, mulheres que me mostraram os caminhos do que é estar neste mundo performando o gênero feminino, além do que espera e oferece o senso comum. Agradecimentos Acredito que os agradecimentos de uma pesquisa devem contemplar o reconhecimento da contribuição (in)direta de algumas pessoas para sua escrit(ur)a e a confissão de que nada (vida e/ou pesquisa) seria possível sem o outro. Aproveito também para tentar indulgenciar minhas ausências, os dias sombrios e os momentos de isolamento que, em sua maioria, foram compreendidos e acalentados por aqueles com quem tive a sorte de dividir esses dois anos. Pelo apoio incondicional, leitura cuidadosa e ombro amigo desde o início desta pesquisa, agradeço à Renan Kenji Sales Hayashi, amigo a quem tanto (con)fio e admiro profundamente como pesquisador, professor e humano. Pelos cafés, jantares e palavras de apoio, assim como pelo incentivo, pela cumplicidade e pelo carinho, agradeço à Bruna Tella Guerra, à Cláudia Alves, ao Junot Maia, à Natasha Magno e ao Ricardo Bezerra. Aos amigos Lua Gill e Rodrigo Cardoso vale um à parte, pois não só me ouviram, ampararam e incentivaram, como me levaram para um lugar remoto com cafés da manhã e noites de jogos de tabuleiro para que eu pudesse terminar as correções pós-qualificação em plena época de festas. Jamais poderei esquecer ou agradecer a amizade generosa de vocês. À Fabiana Anjos, agradeço pelas tardes e noites de estudo no bitolódromo, pelos almoços e conversas, assim como pela amizade querida e sincera. Por compreender minhas ausências e me apoiar, mesmo que às vezes à distância, agradeço a: Beatriz Muniz, Daniel Mariotti, Maíra Balau, Priscila Yuri Nago, Talita Barbary, Tatiane Zerbini e Thais Kirita. Aos docentes Cláudia Hilsdorf Rocha, Daniela Palma, Lauro Baldini e Márcia Mendonça, agradeço pelo enriquecimento de meus questionamentos, pelas oportunidades e pelo fomento a conhecer novas formas de atuar e estar na Linguística Aplicada e no IEL. Pela parceria e generosidade na luta pelas cotas na pós-graduação do IEL, agradeço aos integrantes do GT Pró-Cotas nos anos de 2016, 2017 e 2018 por terem marcado incomensuravelmente a minha vida e militância, assim como a escrita desta dissertação (Bruna Tella Guerra, Bruno Santos, Danielle Lima, Felipe Nascimento, Janaína Tatim, Lua Gill, Natasha Magno, Rafahel Parintins e Rodrigo Cardoso). Às Profas. Dras. da UFMG Andréa Guerra e Jacqueline Barbosa, agradeço pela acolhida em seu grupo e auxílio imprescindível na produção do corpus desta pesquisa, estendendo meu muito obrigada aos membros de sua equipe que me acolheram durante minha estadia em Belo Horizonte, Ana Carolina Dias Silva, Lucas Alves e Rodrigo Lima. Agradeço, ainda, aos indispensáveis Cláudio Platero, Miguel Leonel, Raiça Fernandez e João Pereira de Sá Neto, companheiros e mestres da vivência discente no IEL, sem os quais os dias e prazos dos alunos da pós-graduação seriam (ainda mais) impossíveis, assim como a cada um os servidores do IEL e da Unicamp que estruturam e possibilitam a feitura de toda e qualquer pesquisa. Agradeço, ainda, à CAPES pela bolsa de fomento à pesquisa, recebida durante os dois anos de mestrado. Também foram vitais para o desenvolvimento desta dissertação as (quase infinitas) horas passadas na biblioteca do IEL, que só foram suportáveis devido à equipe empática aos destemperos do processo de escrita de uma pesquisa acadêmica. Por isso, agradeço a: Ana Aparecida Granzotto Llagostera, Crisllene Queiróz Custódio, Aparecida Maria Domingues, Cristiano Brito dos Santos, Dionary Crispim de Araújo, Lilian Demori Barbosa, Loide Brambilla, Lucas Zanellato Michelani e Maria Madalena Silva Brito. Às Profas. Dras. Claudete Ghiraldelo e Mariana Peixoto, membros da banca de qualificação e de defesa, agradeço a leitura generosa e atenta que (trans)formou a edição final desta dissertação. E pelas (in)certezas e contribuições, agradeço aos membros do grupo de pesquisa e orientandos da Profa. Dra. Maria José Coracini, que estiveram comigo desde 2012. Por fim, (re)vela-se o agradecimento que mais é difícil mensurar em palavras grafadas ou ditas, mas que tento expressar aqui. À Professora Doutora Maria José Coracini, agradeço por ter me apresentado à temática da exclusão social dentro dos estudos da linguagem como possibilidade de produção de conhecimento científico em minha monografia (que inicialmente se voltava aos estudos de tradução), assim como por ter me incentivado a pesquisar e a voltar para a Unicamp depois da graduação. Por ter me ensinado que há beleza nas incertezas e que é inaceitável contentar-se com o que se apresenta como óbvio e certo, agradeço; assim como por ter transformado a minha forma de lidar com a vida e comigo mesma, trazendocores e tons (des)confortáveis aos dias, às noites e às madrugadas de mestranda, essenciais para que eu pudesse tentar enxergar na escuridão do contemporâneo. E mesmo que já tenham se passado seis anos desde nossa primeira conversa na sala de projetos do grupo, ainda volto a ela(s) com o mesmo entusiasmo, admiração e ânsia por questionamentos (por vezes sem resposta) do primeiro dia. Que saibamos (re)conhecer novas possibilidades e perspectivas nos próximos quatro anos do doutorado. Epígrafe1 1 A dificuldade que sentimos em encontrar uma epígrafe para nosso trabalho (re)afirmou o silêncio que amarra o nosso objeto de pesquisa. Na tentativa de encontrar dizeres que pudessem delimitar o tema desta dissertação, falhamos. Mas não porque não soubemos procurar quem falasse algo correlato a ele, mas pela nossa pesquisa ser/ter um (d)enunciado que remete à falta. Falta de representatividade, falta de espaço para a escuta. Por isso, em nossa epígrafe, ao invés de trazermos a palavra de outros para situar a motivação desta dissertação, marcamos, no branco desta página, o silenciamento do feminino, do marginal e do adolescente que acompanhou e (des)construiu esta pesquisa. Resumo O objetivo do presente trabalho é analisar como se dão as representações identitárias de três mulheres que estiveram em conflito com a lei durante a adolescência, problematizando o que dizem de si e considerando o imaginário de adolescentes, de jovens em conflito com a lei e de mulheres na sociedade. A partir dos estudos da linguagem, buscamos problematizar como se materializam ou se (re)produzem nos dizeres das participantes, assim como em suas representações de si e do outro, discursos recorrentes em nosso sistema homogeneizante, que parece ignorar a construção de identidades como um tecido contínuo, multifacetado e inacabado. Então, a partir da perspectiva discursivo-desconstrutiva cunhada por Coracini (2003, 2007, 2010, 2012, entre outros), consideramos que falar de si permite que sejam rastreados fragmentos da constituição identitária do sujeito que se expõe ao relatar sua história (CORACINI, 2008). Ademais, partimos do pressuposto de que dizeres recorrentes no senso comum (re)produzem estigmas sobre jovens em conflito com a lei, minimizando a adolescência a uma identidade generalizante e efêmera, assim como buscando moldar e predizer o comportamento feminino. Apesar disso, fazemos a hipótese de que os dizeres (re)produzidos sobre jovens mulheres em conflito com a lei não correspondem às suas representações de si. Essa hipótese se desdobra em três perguntas: (i) quais são e como se manifestam linguisticamente as representações que essas mulheres que estiveram em conflito com a lei têm de si?; (ii) de que forma essas representações convergem e/ou divergem das narrativas autorizadas sobre os sujeitos em conflito com a lei?; e (iii) caso apareçam questões relacionadas a gênero e a raça em seus dizeres, de que modo elas interferem nas representações que as participantes têm de si? O corpus da pesquisa, coletado oralmente e posteriormente transcrito, foi produzido com seu consentimento livre e esclarecido, partindo de um roteiro semiestruturado que visou fomentar depoimentos acerca de suas vivências. Como resultado principal, temos a confirmação parcial de nossa hipótese, pois, apesar de haver interferência do imaginário do que é ser mulher, adolescente e desviante da lei em suas representações identitárias, as representações dessas mulheres por vezes (re)produzem e por vezes excedem ou extrapolam formações discursivas que silenciam e impõem verdades aos grupos dos quais fazem parte. Palavras-chave: linguagem; identidade; estudos de gênero; prisão; psicanálise. Abstract The objective of this research is to analyze how the identity representations of three women that happened to be in conflict with the law during their adolescence occur, aiming to problematize what they say about themselves, considering the social imaginary regarding women, adolescents, and young people in conflict with the law. In the field of language studies, we aim to problematize how recurrent discourses – that are present in our homogenizing system and that seem to ignore the construction of identities as a continuous, multifaceted and unfinished fabric – materialize or are (re)produced in the sayings of the participants. In this sense, inserted in the discursive-deconstructive perspective coined by Maria José Coracini (2003, 2007, 2010, 2012, among others), we assume that speaking of oneself allows tracking fragments of the identity constitution of the subject, that exposes her/himself when reporting telling her/his history (CORACINI, 2008). In addition, we assume that recurrent sayings in the common sense (re)produce stigmas of young people in conflict with the law, minimizing adolescence to a general and ephemeral identity, as well as seeks to shape and predict female behavior. Nevertheless, we hypothesize that the (re)produced sayings regarding young women in conflict with the law do not correspond to their representations of themselves. This hypothesis unfolds in three questions: (i) which are the representations that these women – who have been in conflict with the law – have of themselves and how they are manifested linguistically?; (ii) how these representations converge and/or diverge from authorized narratives about subjects in conflict with the law?; and (iii) if comments related to gender and race appear in their statements, how do they interfere in their representations of themselves? The corpus of this research, collected orally and later transcribed, was produced with their free and informed consent, starting from a semi structured script that aimed to instigate testimonies about their experiences. As a main result, we have the partial confirmation of our hypothesis because, although there is interference of the imaginary of what is to be a woman, an adolescent and a deviant of the law in their identity representations, the representations of these women sometimes (re)produce and sometimes exceed or extrapolate the discursive formations that silence and impose truths to the groups that they are part of. Keywords: language; identity; gender studies; prison; psychoanalysis. CONVENÇÕES USADAS NA TRANSCRIÇÃO DAS ENTREVISTAS / (barra): indica uma pausa breve na fala da enunciadora. // (barras duplas): indicam pausa longa na fala da enunciadora. : (dois pontos): marcam alongamento na pronúncia de vogais. ... (reticências): indicam hesitação na fala da enunciadora. [...]: indicam supressão de parte da fala da enunciadora. [ ]: indicam a inserção de comentário da pesquisadora. Maiúsculas: indicam ênfase na entonação da enunciadora. Salvo citação ao nome fictício das participantes, nomes de instituições ou outras palavras convencionalmente grafadas com a primeira letra maiúscula, serão transcritas em minúsculas. Sumário Introdução ..................................................................................................................... 14 Parte 1: Trama de étamine .............................................................................................. 19 Capítulo 1 – (In)visibilidade da prisão e de seus sujeitos .............................................. 21 1.1 Poder de arquivo: proteção x silenciamento ......................................................... 23 1.1.1 A Fundação CASA e a lei do ventre livre ...................................................... 26 1.1.2 O mito da escrava Anastácia .......................................................................... 28 1.2 Do suplício à (des)identidade ............................................................................... 32 1.3 Heterotopia (im)possível .......................................................................................34 Capítulo 2 – Conflito com a lei e adolescência: o retorno ao ato ................................... 37 2.1. Adolescência em conflito com a lei ..................................................................... 38 2.2 Da Lei e da segunda castração .............................................................................. 41 2.3 Cultura ocidental e violência ................................................................................ 45 2.4 Conflito com a Lei x conflito com a lei ................................................................ 47 2.5 O retorno ao ato .................................................................................................... 49 Capítulo 3 – Questão de gênero? .................................................................................... 52 3.1 Da violência .......................................................................................................... 53 3.2 Do desvio .............................................................................................................. 58 3.3 Do corpo ............................................................................................................... 60 Capítulo 4 – Os caminhos e a costura da pesquisa ......................................................... 64 4.1 Perspectiva teórico-filosófica ............................................................................... 65 4.1.1 Sujeito ............................................................................................................ 67 4.1.2 Desconstrução ................................................................................................ 69 4.1.3 Representações identitárias ............................................................................ 70 4.1.4 Senso comum ................................................................................................. 72 4.2 Produção do corpus: “onde é que elas estão?”...................................................... 75 4.3 Amizade e herança: uma abordagem analítica desconstrutiva ............................. 81 4.4 Da nossa violência: gestos de interpretação e cicatrizes ....................................... 87 4.5 A verdade importa? ............................................................................................... 89 4.6 Resistência como condição de produção .............................................................. 92 Parte 2: Tapeçaria ........................................................................................................... 95 Capítulo 5 - Voz (aprisio)nada ....................................................................................... 97 5.1 (Estere)óticos: através do olhar do Outro ............................................................. 99 5.1.1 Sobre( )viver sendo negra ............................................................................ 101 5.1.2 Escrever (r)existências ................................................................................. 114 5.1.3 Estar entre grades: adolescência e prisão ..................................................... 125 Alinhavando .......................................................................................................... 134 5.2 (Des)(a)creditadas: assujeitamento e feminilidades ........................................... 135 5.2.1 Gradiva ......................................................................................................... 135 5.2.2 (Frágil) corpo ............................................................................................... 145 5.2.3 Humilhadas .................................................................................................. 155 Alinhavando .......................................................................................................... 161 5.3 Renom(e)ação: desistir sem renunciar ................................................................ 162 Alinhavando .......................................................................................................... 168 Histeriótipo: algumas conclusões ................................................................................. 170 Referências bibliográficas ............................................................................................ 175 ANEXO I – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) ........................... 186 ANEXO II – Roteiro semiestruturado .......................................................................... 188 ANEXO III – História da Fundação CASA ................................................................. 189 14 Introdução Em agosto de 2015 foi aprovada na Câmara dos Deputados, em 2º turno, a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos nos casos de crimes hediondos, homicídio doloso e lesão corporal seguida de morte.2 Esse fato marcou o ápice do debate sobre o tema – alongando-se durante o ano em questão –, que não incluiu, em nenhuma instância, aqueles que seriam diretamente impactados por essa mudança: as jovens e os jovens em conflito com a lei. Incomodou-nos que muito se falou (e ainda se fala) sobre esses jovens, mas pouco se sabe e se busca saber deles. Os adolescentes, principalmente, têm seus dizeres desconsiderados e, muitas vezes, desmerecidos pelos adultos. Caso entrem em conflito com a lei, a situação se agrava. Após alguma reflexão, evidenciaram-se, então, os constantes investimentos no apagamento desses sujeitos. O discurso da mídia3 (re)produz representações desses sujeitos, ecoando dizeres do senso comum4 que impõem a eles uma identidade de grupo como sendo perigosos, merecedores de todo e qualquer suplício que lhes aconteça nas instituições ditas de recuperação.5 Além disso, sobre os adolescentes em conflito com a lei, paira o descrédito de suas ações e intenções que parece tornar impossível a suposta reintegração social após o período de internação. Nos discursos que atravessam e são atravessados pelo contexto socio-histórico da escrita desta dissertação, as representações desses jovens são geralmente ligadas a um sentimento de medo e, ao mesmo tempo, de ojeriza, que também acompanha tudo o que foge às normatizações sociais.6 Temos, então, via linguagem, a construção de um imaginário sobre a delinquência – que, no caso deste 2 Disponível em: http://g1.globo.com/politica/noticia/2015/08/camara-aprova-em-2-turno-reducao-da-mai oridade-penal-para-16-anos.html. Acesso em: dez. 2017. 3 “Na sociedade contemporânea, a mídia é cada vez mais relevante no agenciamento dos diferentes discursos, que disputam espaço e visibilidade nos meios de comunicação, muitas vezes como forma de legitimação. Cria-se, assim, um movimento que se retroalimenta, já que a mídia só pode constituir seus dizeres tecendo textos oriundos de diferentes discursos que lhe são, a priori, estranhos, mas que, por outro lado, precisam dela como forma de legitimação e visibilidade. Assim, a mídia constitui seu discurso mobilizando, aproximando e se apropriando de outros discursos sob uma nova regra: a regra da visibilidade ou do espetáculo” (RUBBO RONDELLI, 2014, pp. 44-5). 4 Detalharemos o que entendemos por senso comum no capítulo quatro, item 4.1.4 Senso comum. 5 No caso deste trabalho, foram produzidas entrevistas com mulheres que passaram pela Febem (Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor), em São Paulo – atualmente Fundação CASA (Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente) –, pela Fundação CASA, também em São Paulo, e pelo CIA (Centro Integrado de Atendimento ao Adolescente Autor de Ato Infracional) de Belo Horizonte. 6 “Esses sentimentos exacerbados de medo do crime fundamentam, por sua vez, uma demanda da população por ordem através do aumento da repressão e intensificação das práticas punitivas, mesmo que isso signifique perdas na garantia dos direitoshumanos e, portanto, aumento na arbitrariedade das ações da polícia e do Estado”. Disponível em http://www.crianca.mppr.mp.br/pagina-294.html. Acesso em: jan. 2018. 15 trabalho, se focará na delinquência durante a juventude – que parece predizer quem são e o que esperar desses sujeitos. Entretanto, ressaltamos que não se trata de uma análise sociológica ou de registros de diferenças de classe na criminalidade. O que empreendemos neste trabalho é uma análise de como, a partir da e na linguagem, é possível perceber o funcionamento de mecanismos de poder e de controle na constituição dos sujeitos, mais especificamente das mulheres que estiveram em conflito com a lei durante a adolescência. Isso, sem deixar de lado a complexidade dos fenômenos sociais e raciais que abrangem não só as participantes desta pesquisa, mas a população carcerária como um todo. Com isso em mente, propusemo-nos a investigar como esse senso comum7 poderia influenciar nas representações de si de três mulheres que passaram por privação de liberdade na adolescência, visto o que delas é dito, em geral, na sociedade,8 e tendo em mente que, em sua maioria,9 elas não encontram espaço nos meios hegemônicos para se dizerem, suas vozes não encontram espaço para escuta. Ademais, escolhemos o gênero feminino como recorte para a composição de nosso corpus, por ser ainda mais contundente o silenciamento de mulheres encarceradas quando se pesquisa sobre os temas adolescência e conflito com a lei. É possível encontrar reportagens, entrevistas e documentários sobre jovens que entraram em conflito com a lei, mas apenas com dizeres de internos do gênero masculino. Logo, além de tratarmos de questões relacionadas ao crime e à adolescência, não podemos desarticular nossa pesquisa das questões de gênero e de raça que, para nós, mostraram-se prementes tanto por nossa escolha de abordar o gênero feminino quanto por duas das três participantes serem negras.10,11 7Também construído pelo discurso científico, no qual estamos inseridas. 8 Como veremos nos resultados de análise, as próprias entrevistadas ressaltam e retomam dizeres estereotipados com relação às mulheres presas, como a ideia de que mulheres se preocupam só com a estética (presente na fala de Eduarda), de que muitos acham que, por ter sido presa, aquela “ex-detenta” é a “pior pessoa do mundo” (presente na fala de Andreia), ou até mesmo que só se vai ou volta para a cadeia, caso não tenha “vergonha na cara” (presente na fala de Thais). 9 Andreia é conhecida na mídia, tendo participado de programas de TV e documentários. 10 Ademais, “[a]s mulheres negras vivem em condição mais vulnerável que as mulheres brancas e, em alguns aspectos, que os homens negros. A intersecção de gênero e raça se manifesta de forma específica nas nossas vidas” (SANTANA, 2016, s/n). 11 Também nesse sentido, “[a]s mulheres negras representam o principal grupo em situação de pobreza. Somente 26.3% das mulheres negras viviam entre os não pobres, enquanto que 52.5% das mulheres brancas e 52.8% dos homens brancos estavam na mesma condição (IPEA, 2011). A maioria das mulheres negras reside nas regiões com menor acesso a água encanada, esgotamento sanitário e coleta regular de lixo. Por isso, estão mais expostas a fatores patogênicos ambientais e também àqueles fatores decorrentes de sobrecarga de tarefas de cuidado com o domicílio, o ambiente, com seus residentes e a comunidade, sob condições adversas e sem anteparo de políticas públicas adequadas” (GELEDÉS; CRIOLA, 2017, p. 11). 16 Articulamos, então, essas proposições teórico-filosóficas e os gestos de análise nos dizeres dessas mulheres, pois, assim como Frois (2017) propõe em sua pesquisa com mulheres encarceradas em Portugal, acreditamos que para compreendermos a reclusão, o seu impacto nas pessoas, na forma como perspectivam o seu passado, o seu presente e o seu futuro, é essencial percebermos também como chegaram aqui, que escolhas fizeram, como entendem e racionalizam o seu passado, a sua trajetória de vida (FROIS, 2017, p. 242). Apesar de sua pesquisa diferir da nossa por propor uma etnografia de mulheres presas em Lisboa, Frois considera que as relações de poder que compõem o espaço prisional inscrevem-se no corpo e na forma como as mulheres se apresentam e se autorrepresentam (FROIS, 2017, p. 243). Produzimos, então, esta dissertação a partir da análise dos dizeres de Eduarda, 18 anos, Andreia MF (Mães e Filhos do Hip Hop), 49 anos e Thais, 20 anos – mediante assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para a gravação das entrevistas12 –, que passaram por períodos de internação na adolescência, tendo ocorrido no estado de São Paulo para duas delas e no estado de Minas Gerais para a terceira. A partir desse material de análise, assim como do contexto de produção desta dissertação, elaboramos nossa hipótese de pesquisa, que se desdobra em três perguntas. Partimos do pressuposto de que dizeres recorrentes no senso comum (re)produzem estigmas sobre jovens em conflito com a lei, minimizando a adolescência a uma identidade generalizante e efêmera, assim como buscando moldar e predizer o comportamento feminino. Apesar disso, fazemos a hipótese de que os dizeres (re)produzidos sobre jovens mulheres em conflito com a lei não correspondem às suas representações de si. Essa hipótese se desdobra em três perguntas: (i) quais são e como se manifestam linguisticamente as representações que essas mulheres que estiveram em conflito com a lei têm de si?; (ii) de que forma essas representações convergem e/ou divergem das narrativas autorizadas sobre os sujeitos em conflito com a lei?; e (iii) caso apareçam questões relacionadas a gênero e a raça em seus dizeres, de que modo elas interferem nas representações que as participantes têm de si? A partir disso, temos como objetivo geral contribuir para a área de Linguística Aplicada, no que tange às discussões sobre linguagem e representações identitárias, em 12 Disponível no Anexo I. 17 contexto de vulnerabilidade13 social e marginalização, que majoritariamente condicionam as situações de conflito com a lei. Além disso, por nosso recorte tratar de conflitos ocorridos durante a adolescência, é possível contribuir também para o ambiente de sala de aula14 na esfera pública, que recebe essas jovens depois de períodos de internação e que, geralmente, não reflete sobre práticas de ensino adequadas a esse público, muitas vezes, por falta de material sobre ele. Como objetivos específicos, buscamos (i) problematizar de que maneira o senso comum influencia nas representações de si, especialmente nas representações que essas mulheres em conflito com a lei têm si e do outro; (ii) ponderar sobre subjetividade e linguagem via psicanálise freudo-lacaniana em casos de vulnerabilidade social e conflito com a lei; (iii) analisar como/se questões de gênero e raça se manifestam via linguagem reproduzindo o senso comum, principalmente em situações de vulnerabilidade social. Para que possamos confirmar ou refutar nossa hipótese total ou parcialmente, e responder a essas perguntas de pesquisa, organizamos esta dissertação em duas partes: Trama de étamine, que conterá os capítulos teórico-filosóficos e um capítulo metodológico, e Tapeçaria, que trará os resultados de análise e será seguida pelo capítulo de conclusão. Julgamos produtivo acomodarmos as discussões dessa maneira, pois, durante nosso percurso de pesquisa e, principalmente, no processo de análise, os resultados pareciam se costurar na trama teórico-filosófica que desenvolvemos neste trabalho. Por isso, na primeira parte, apresentaremos primeiro reflexões teórico- filosóficas que irão orientar nosso olhar sobre o corpus para, depois, versarmos sobre a metodologia em si. Na segunda parte, organizamosos resultados de análise em eixos temáticos e não apenas em seções ou temas, pois, mesmo que possam ser reunidos sob assuntos específicos, os resultados de análise desta dissertação são multifacetados, atravessando e sendo atravessados uns pelos outros, tecendo efeitos de sentido que não são estanques, mas fluidos, constituindo, então, eixos que não dividem esses resultados 13 Optamos por vulnerabilidade a exclusão social, pois consideramos que, mesmo que pretensamente excluídos pelas vozes hegemônicas, os sujeitos vulneráveis socialmente fazem parte da sociedade e de seu funcionamento, mesmo que não sejam considerados produtivos em uma visão neoliberalista, por isso, a palavra exclusão nos parece inadequada para esta dissertação. 14 Essa questão foi trazida quando estávamos em campo, procurando participantes de pesquisa, por uma professora de uma escola municipal de Jundiaí, que disse que tanto para receber mães dos alunos da educação infantil quanto para dar aulas para essas jovens que passaram por internação na adolescência, é preciso refletir sobre como elas e a sociedade as veem, para, então, pensar em maneiras assertivas de manter a elas e a seus filhos na escola. 18 em partes iguais, mas que permitem que sejam colocados em foco, temas que se destacam ao mesmo tempo que se entretecem. Vale, ainda, ressaltar que este trabalho foi produzido por mulheres,15 partindo de um ponto de vista ocidental, pós-colonial e latino-americano – considerando também a cena de privilégio social em que estamos inseridas. Julgamos esse posicionamento relevante, pois esta dissertação foi produzida em um espaço incômodo no litoral que faz margem entre a linguagem e a sociedade, sendo-nos imprescindível marcar nosso lugar de fala.16 15 Ressaltamos, ainda, que esta dissertação é obra não só da orientanda, da orientadora, das Professoras Doutoras integrantes da banca de qualificação e da banca de defesa, mas também (e principalmente) das mulheres que participaram da pesquisa, das que se recusaram a fazer parte dela e das que não pudemos ou conseguimos alcançar. 16 Djamila Ribeiro publicou em 2017, pela editora Letramento, o livro O que é lugar de fala?, que aborda esse conceito a partir da perspectiva do feminismo negro. 19 PARTE 1: TRAMA DE ÉTAMINE Na primeira parte de nossa dissertação, apresentaremos a trama que, na segunda, será costurada por nossos resultados de análise. Assim como a étamine é o pano de fundo de um bordado ou de uma tapeçaria, os primeiros quatro capítulos de nosso trabalho constituem o tecido teórico-filosófico de nossa dissertação, que é multifacetado, possui diversos furos – que permitem acomodar espessuras diversas de linhas na união de seus pontos – e é facilmente desfiado. Seja pelos principais autores que mobilizamos apresentarem pontos de encontro e de desencontro entre si, ou por acreditarmos que não há escrit(ur)a17 neutra ou fixa, a étamine ou os quatro primeiros capítulos de nossa dissertação são apresentados a partir do entrecruzamento de fios diversos, que podem ser (des)fiados ou interpretados de diferentes maneiras. Ainda é interessante pontuar que, apesar de aparentar certa rigidez, com o manuseio, esse tipo de tecido tende a ficar mais maleável, assim como nossas posições teórico-filosóficas, que vão na 17 Entendemos escrit(ur)a a partir do que propõe Foucault ([1969] 1992) sobre a escrita de si e Derrida ([1967] 2000) sobre escritura, a partir da interpretação de Coracini (ECKERT-HOFF; CORACINI, 2010), que, aqui endossamos. Considerando, então, que a escrita de si (FOUCAULT, [1969] 1992) é uma tecnologia disposta para o cuidado de si, propondo uma condição para a ascese do pensamento que culminaria, considerando a estética da existência, na vida como obra de arte, a escritura (DERRIDA, [1967] 2000) estaria além do fono e do grafocentrismo, não sendo secundária à expressão de um sentido, mas, sim, propiciando sua constituição a partir da possibilidade de inscrição. Logo, a escrit(ur)a indica tanto o escrever sobre si (que não está necessariamente vinculado à grafia) como prática reflexiva importante para certa “excelência” da vida, quanto como movimento desconstrutor que possibilita que marcas do inconsciente se (re)velem e novos ou outros sentidos se (re)produzam. 20 contramão do que prima a maioria das ciências exatas e biológicas, por encararmos a parte “teórica” como um terreno movediço que não proporciona segurança ou conforto, mas orientações necessárias. Entretanto, assim como aqueles que irão bordar a étamine, é preciso que façamos uma bainha18 nesta parte de nossa dissertação para definir – tal qual aquele que borda o tecido – o limite do trabalho e evitar seu desfio. Nesse sentido, nossa bainha é a perspectiva teórico- filosófica discursivo-desconstrutiva na qual nos inserimos – que delimita por onde serão bordados nossos gestos de análise – e a maleabilidade de nosso tecido se deu devido às (im)possibilidades que surgiram em nossa pesquisa e que desestabilizaram as previsões rígidas ou fixas que tentamos antecipar antes de iniciar o trabalho de campo. A seguir, então, apresentaremos três temas que irão introduzir questões teórico- filosóficas sobre a prisão, a adolescência e o gênero feminino, organizados da seguinte forma: a (in)visibilidade da prisão, no capítulo um, em que iremos refletir brevemente sobre a história das prisões e do sistema carcerário no Brasil, considerando questões acerca do mal de arquivo (DERRIDA, [1995] 2001) e das novas formas de suplício (FOUCAULT [1975] 2012a), assim como uma certa heterotopia (FOUCAULT [1966] 2016) (im)possível atrelada à prisão; os pontos em comum entre o crime e a psicanálise freudo-lacaniana no capítulo dois, considerando o conflito com a Lei característico da adolescência, vinculado à violência e à cultura em que estamos inseridos; e questões de gênero – que não podemos desarticular de raça e de classe – no capítulo três. Para finalizar esta primeira parte e introduzir os resultados de análise, no capítulo quatro teceremos algumas considerações sobre o processo metodológico desta pesquisa, que resolvemos destacar da introdução por sua densidade e pelas dificuldades que encontramos no processo de investigação e de coleta de dados.19 18 Entendemos “bainha” como dobra ou costura nas bordas do tecido – sendo esse tecido a étamine ou o texto. 19 Embasamos nossas associações à étamine, a partir de um texto publicado no blog de Wagner Reis, professor de ponto-cruz. Disponível em: http://www.wagnerreis.com.br/2012/11/o-tecido-de-bordar-etamine-aida.html. Acesso em: nov. 2017. 21 Capítulo 1 – (In)visibilidade da prisão e de seus sujeitos A instituição prisão é, de longe, um iceberg. A parte aparente é a justificativa: “É preciso prisões porque há criminosos”. A parte escondida é o mais importante, o mais temível: a prisão é um instrumento de repressão social (FOUCAULT, [1971] 2015, p. 7). Pretensamente excluídos e esquecidos,20 os sujeitos em conflito com a lei – adolescentes ou não – parecem ter sido apagados da história; os muros que cercam as instituições a que são alocados parecem ter se fundido à paisagem e a sua (in)existência habita cenários ficcionais em livros, novelas, séries e filmes ou ocupa minutos – de leitura ou em frente à TV ou ao computador – daqueles que narram suas histórias: jornalistas, pesquisadores, documentaristas e gestores de testemunho.21 Nesse sentido, ao iniciarmos o trabalho de campo desta pesquisa, antes mesmo de conseguirmos contatar as participantes, o silenciamento institucional que encontramos na Fundação CASA (Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente) – mesmo que a Fundação proponha um funcionamentodiferente dos presídios, oferecendo um atendimento descentralizado a jovens de 12 a 21 anos – e seus ecos nas ONG responsáveis pelas medidas de Liberdade Assistida (LA),22,23 pareciam refletir uma política de estado que apaga e silencia os/as adolescentes que estão internados24 para cumprir medidas socioeducativas. Isso se destaca ainda mais por ser possível acessar instituições similares 20 Ressaltamos que consideramos que esses sujeitos são pretensamente excluídos e esquecidos na sociedade, pois dela fazem parte, mesmo que, muitas vezes, sejam ignorados e marginalizados consciente ou inconscientemente. 21 De acordo com Cruz (2016), a literatura de testimonio é um gênero que surgiu nos anos 1970 com o objetivo de construir a “verdadeira” história de opressão da dominação burguesa na América Latina, feita a partir da experiência e das vozes dos oprimidos (CRUZ, 2016, p. 3). Entretanto, a autora – que atualmente produz sua tese de doutorado (DTL/IEL/UNICAMP), por hora intitulada “Ousar resistir. Ousar existir.”: os militantes da resistência e a literatura pós-ditatorial –, questiona a mediação, o trabalho de edição em literaturas marginais – como de Carolina Maria de Jesus em Quarto de despejo: diário de uma favelada (Editora Francisco Alves, 1960) – e, principalmente, nas literaturas de testemunho – como Cela forte mulher (Labortexto Editoria, 2003), de Antonio Carlos Prado – em que o olhar e o ouvir do outro (inter)ferem nos testemunhos relatados (ainda sem publicação). 22 De acordo com o site da Fundação, em 2010, “os serviços de LA, que eram realizados em parte pela Fundação CASA, foram totalmente municipalizados, com repasse estadual de verbas gerenciado pela Secretaria de Estado de Assistência e Desenvolvimento Social”. Disponível em: http://www.fundacaocasa. sp.gov.br/ View.aspx?title=medidas-socioeducativas&d=12. Acesso em: jan. 2018. 23 Detalharemos quais são as medidas socioeducativas possíveis de serem aplicadas no capítulo quatro. 24 Tanto nos sites da Fundação CASA e do CPDoc quanto em estudos feitos sobre adolescência e criminalidade, o termo internação é utilizado para se referir à privação de liberdade dos jovens e das jovens menores de 21 anos que cometeram ato infracional, sendo também usual o termo interno/interna para se referir ao adolescente. Iremos utilizar essas nomeações em alguns momentos de nosso trabalho, entretanto, não podemos deixar de lado que o uso dessa palavra remete a internações em casas de saúde, o que, por sua vez, relaciona-se à patologização do crime e da adolescência, como discutiremos no capítulo dois. 22 em outros estados, como Minas Gerais e Rio de Janeiro.25 Dos diversos contatos que fizemos com pesquisadores da área, a dificuldade de acessar a Fundação CASA é constante, (d)enunciada por muitos deles juntamente aos abusos e maus-tratos físicos e psicológicos às internas e aos internos. Ressaltamos também que os coletivos – como o Coletivo Autônomo Herzer,26 com o qual tivemos contato – que conseguem atuar nesses espaços não podem fazer nenhum registro do ambiente ou de dizeres dos jovens.27 Considerando, ainda, que a incidência criminal feminina na adolescência é menor, assim como também são escassas as unidades direcionadas à sua pretensa socioeducação, o silenciamento imposto a elas é ainda mais notável. No estado de São Paulo temos 9.238 jovens institucionalizados por terem entrado em conflito com a lei, dos quais apenas 3,76% são do gênero feminino;28 no Brasil, são 23.447 homens para 1.181 mulheres, ou seja, apenas 5% da população menor de idade em conflito com a lei é feminina.29 Como relatamos, o acesso tanto às jovens mulheres em conflito com a lei quanto aos dados sobre elas é quase que interditado em sua totalidade, o que também é apontado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em pesquisa coordenada por Mello (2015): “ainda, não existem publicações e acompanhamentos acerca do cumprimento da medida socioeducativa de internação, o que torna ainda mais invisíveis as preocupações de políticas públicas e as especificidades de gênero” (MELLO, 2015, p. 9). Nessa pesquisa, outros dois apontamentos também são relevantes por apontarem a (não) interação do grupo de pesquisadores com a Fundação CASA. O primeiro deles refere-se à negativa de acesso à documentação: 25 Fizemos contato com pesquisadores e ativistas relacionados ao tema de criminalidade e adolescência e foi-nos dada a possibilidade de entrar nas instituições desses estados. Optamos por não seguir esse caminho, por termos recebido denúncias de maus-tratos dentro das instituições que poderiam apresentar risco às participantes, caso decidissem falar algo que dessagrasse os agentes que acompanhariam a entrevista. 26 “O Coletivo Autônomo Herzer é um coletivo anticapitalista e abolicionista penal que nasceu no início de 2016 e luta pelo fim do encarceramento de jovens. Seu surgimento diz respeito a um desdobramento da Rede 2 de Outubro, que participou da organização de atos anuais para relembrar o Massacre do Carandiru e denunciar a continuidade dos massacres diários nas unidades prisionais de adultos e jovens [...]”. Disponível em: https://coletivoherzer.milharal.org/. Acesso em: jan. 2018. 27 Thais esteve no CIA em Belo Horizonte/MG, mas, inicialmente, a pesquisa se focava no Estado de São Paulo, por isso, mencionamos, principalmente a Fundação CASA. Iremos detalhar essa questão no item 4.2 Produção do corpus “onde é que elas estão?”. 28 De acordo com o Boletim Estatístico Semanal emitido ao Governador do Estado em agosto de 2017. Disponível em: http://www.fundacaocasa.sp.gov.br/View.aspx?title=boletim-estat%C3%ADstico&d=79. Acesso em: ago 2017. 29 De acordo com o Levantamento Anual do SINASE (Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo) de 2014. Disponível em: http://www.sdh.gov.br/noticias/pdf/levantamento-sinase-2014. Acesso em: ago. 2017. 23 [n]o caso de São Paulo, a administração da Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente (Fundação CASA) negou o acesso aos PIAs [Planos Individuais de Atendimento] ou prontuários das adolescentes. Sequer foi fornecida uma lista com o nome das meninas que cumpriam medida de internação [...] o que também inviabilizou a coleta dos dados nos processos judiciais das adolescentes. Sendo assim, os dados relativos a esse perfil socioeducativo foram fornecidos, já com as frequências tratadas, pela própria Fundação CASA, dados esses que a pesquisa não empreendeu nenhum controle, testagem e análise (MELLO, 2015, p. 15). Um pouco adiante, temos o relato de que, depois de um ano de espera e negociações, a equipe conseguiu permissão para interagir com as internas na Fundação, tendo a entrada das pesquisadoras sido autorizada três meses depois da aprovação oficial da pesquisa. Ressaltamos que essa dificuldade foi encontrada por uma equipe que fazia um levantamento para o CNJ, instituição pública legitimada pela Constituição Federal e que zela pela autonomia do Poder Judiciário. Logo, considerando a influência e a relevância legal do departamento, podemos ter uma melhor dimensão da dificuldade de pesquisadores de projetos independentes em terem os mesmos contatos e a mesma acessibilidade, como vemos a seguir: [p]or fim, no tocante a São Paulo, como já mencionado, o processo com a Fundação Casa foi difícil [...]. Não existia possibilidade de aproximação direta com as unidades, havendo a necessidade da mediação e autorização do setor competente para tanto [...]. Após muitas solicitações de informações pelo portal da transparência, telefonemas e e‑mails trocados, conseguimos o agendamento de uma reunião com a Presidência no final de janeiro de 2014 (MELLO, 2015, p. 17, grifos nossos). A partir, então, de nossa experiência, assim como de relatos de outros pesquisadores e dessa pesquisa do CNJ, nestecapítulo, iremos aprofundar o que entendemos por silenciamento e (in)visibilidade do sistema carcerário, voltando-nos mais especificamente para a Fundação CASA. 1.1 Poder de arquivo: proteção x silenciamento Propomos, então, uma reflexão sobre o silenciamento e a (in)visibilidade a partir do conceito de arquivo, que exploraremos via Derrida ([1995] 2001), Coracini (2010a) e Roudinesco (2006). Para Derrida – de forma resumida e, principalmente a partir da obra Mal de Arquivo ([1995] 2001) –, o arquivo retém acontecimentos passados, mas também possibilidade de futuro, de (re)interpretações. Ao mesmo tempo em que se busca preservar uma memória, a partir do momento em que ela é arquivada, além de ser alterada, 24 cria-se a possibilidade de acessa-la em um tempo por-vir.30 Entretanto, quando se busca arquivar a memória – que é composta também de esquecimentos, recalques e repressões – nós a corrompemos. Ao escolher o que queremos guardar, hierarquizamos e classificamos acontecimentos, os violamos e, de certa forma, destruímos no que Derrida chamou de “mal de arquivo” (CORACINI, 2010a, p. 149). Ao nos voltarmos à Fundação CASA, em um primeiro momento, deparamo- nos com uma seleção de arquivos sobre a instituição e sobre os/as adolescentes atendidos, disponibilizados no CPDoc (Centro de Pesquisa e Documentação)31,32; logo, defrontamo- nos com a escolha da Fundação sobre o que a população pode saber sobre os jovens e as jovens que lá estão e estiveram. Isso nos levou a refletir junto a Roudinesco, em sua obra A Análise e o Arquivo (2006), sobre o apagamento dessas histórias que culminariam em duas relações com a produção de saberes a partir delas: a história como criação e seus saberes como saberes absolutos. No primeiro caso, o apagamento, a inacessibilidade da sociedade como um todo ao que viveram as jovens e os jovens em conflito com a lei, assim como interdição dos pesquisadores aos arquivos da Fundação, potencialmente ajuda a construir um estigma ou até mesmo um arquivo reinventado em dogma, como coloca a autora, sobre quem são essas pessoas, como vivem e se existe, realmente, possibilidade de socioeducação. Criam-se ideias fantasiosas sobre aqueles que estão “fora” das normas, pois “se tudo está apagado ou destruído, a história tende para a fantasia ou o delírio, para a soberania delirante do eu” (ROUDINESCO, 2006, p. 9). Por outro lado, também é possível que se tome como verdade e que se (re)produza o discurso engendrado pelas formas hegemônicas de saber, já que “[s]e tudo está arquivado, se tudo é vigiado, anotado, julgado, a história como criação não é mais possível: é então substituída pelo arquivo transformado em saber absoluto, espelho de si” (ROUDINESCO, 2006, p. 9). Seja pela mídia, pela indústria cultural, por documentos 30 Para Derrida, em contraposição ao porvir, que se relaciona com o futuro previsível, o por-vir traz à tona o sentido de algo que chega como inesperado, o que ainda pode ser alterado, mas não planejado. 31 “O Centro de Pesquisa e Documentação (CPDoc), criado e regulamentado pela Portaria Administrativa nº 873/2006, vinculado à Escola para Formação e Capacitação Profissional (EFCP), é um espaço de referência na pesquisa em história e historiografia da infância e adolescência brasileira, oferecendo uma vasta gama de documentos para as diferentes áreas de pesquisa. O CPDoc desenvolve atividades voltadas à identificação, coleta, preservação, tratamento e divulgação de acervos de natureza arquivística e bibliográfica, fomentando e oferecendo subsídios tanto à pesquisa ‒ de iniciação cientifica, pós-graduação latu senso e stricto sensu e aperfeiçoamento ‒ quanto à sociedade em geral, a partir de procedimentos estabelecidos pela Portaria Normativa nº 155/2008”. Disponível em http://www.fundacaocasa.sp.gov.br/ files/efcp/Guia_CPDOC.pdf. Acesso em: jul. 2017. 32 O CPDoc foi o órgão com o qual entramos em contato para solicitar a entrada na Fundação CASA, assim como o acesso às jovens lá internadas. No capítulo quatro, iremos detalhar como esse contato foi feito. 25 oficiais, entre outros dizeres hegemônicos, vão se tecendo saberes em jogos de verdade (FOUCAULT, [1982] 2010) (re)produzidos no senso comum. Não é preciso procurar ouvir as vozes desses sujeitos, pois são deslegitimadas por esses processos, logo, não se questiona o que se fala sobre eles: são “farinha do mesmo saco”, “merecem sofrer” e falta-lhes “vergonha na cara”.33 Acreditamos que o pouco que temos de informação é tão vigiado, anotado e julgado, tal qual coloca a autora, que se tem uma representação fixa de quem são as pessoas em conflito com a lei. Quando temos relatos de rebeliões, por exemplo, uma das reações comuns na sociedade é achar justificado um tratamento mais violento às presas e aos presos por eles terem apresentado um comportamento que os tornaria merecedores do que quer que a eles aconteça. Entretanto, o desconhecimento quanto às histórias de vida, aos caminhos e às possibilidades de futuro não só das e dos jovens, mas dos sujeitos que entram em conflito com a lei em geral, ajuda a construir não só um imaginário perverso sobre quem são esses seres não-mais-humanos, mas também um espectro que os impede de se reintegrarem à sociedade, pois são constantemente marcados e relembrados de que, em algum momento, confrontaram o que a sociedade dos cidadãos de bem mais preza: a lei e a moral. Esquecemo-nos de que essas pessoas tornam possível que a sociedade como vivemos seja como é; afinal, só pode haver acúmulo de capital por alguns, se outros não o retiverem, só pode haver cidadãos de bem se alguns forem considerados do mal. Chamamo-los de excluídos, em uma dicotomia nós/outros, mas não acreditamos ser possível que alguém deixe de fazer parte da sociedade; escolhemos (de maneira consciente ou não) colocá-los à margem, no esquecimento, arquivamos suas subjetividades e as transformamos em identidades de grupo. E essa “[n]ossa escolha [...] não se orienta por nenhum princípio abstrato, neutro, mas é uma negociação orientada ideologicamente, relacionada bem de perto com as políticas de interpretação” (CORACINI, 2010b, p. 152). Nesse sentido, também é (re)produzido o silenciamento desses sujeitos nos discursos da Academia e das Ciências Jurídicas, como comenta Derrida em Força de lei (2007) ao detalhar a violência performativa e instauradora da lei:34 [o] discurso encontra ali seu limite: nele mesmo, em seu próprio poder performativo. É o que proponho aqui chamar, deslocando um pouco e generalizando a estrutura, o místico. Há ali um silêncio murado na 33 Como veremos (re)produzido no dizer de Thais, no capítulo cinco. 34 Discutiremos esse tema em 2.3 Cultura ocidental e violência. 26 estrutura violenta do ato fundador. Murado, emparedado, porque esse silêncio não é exterior à linguagem (DERRIDA, 2007, p. 25) . Ademais, é possível ver efeitos desses silenciamentos e das políticas de interpretação tanto nas falas de nossas entrevistadas – seja acerca de gênero, raça ou crime – quanto em documentos oficiais da própria Fundação CASA, como veremos a seguir. 1.1.1 A Fundação CASA e a lei do ventre livre Durante nosso percurso de pesquisa, deparamo-nos, como mencionado anteriormente, com o silenciamento institucionalizado daqueles que estão ou estiveram em conflito com a lei. Para buscar construir nosso corpus e dar materialidade à nossa análise, utilizamos, além das entrevistas coletadas, pesquisas com temas semelhantes – como mencionamos na introdução deste capítulo – e, como veremos a seguir, documentos disponibilizados pela Fundação. Em uma de nossas buscas, deparamo-nos com a seção do site da Fundação CASA que versa sobre sua história e chamou-nos à atenção a associação que a própria assessoria de imprensa fazcom a história da escravidão e o processo de criação da instituição.35 Observemos, então, o trecho que destacamos da seção: Ventre livre O primeiro projeto de proteção à infância do qual se tem conhecimento foi enviado à Assembleia Constituinte por José Bonifácio de Carvalho, no século 19, e passou a ser representado pelo Artigo 18 da Constituição da época, na qual se estabelecia que: “a escrava, durante a prenhez e passado o terceiro mês, não será obrigada a serviços violentos e aturados; no oitavo mês, só será ocupada em casa, depois do parto terá um mês de convalescença e, passado este, durante um ano, não trabalhará longe da cria.” Em 1871, com a promulgação da Lei do Ventre Livre, começou a ficar evidente o problema do jovem abandonado. O Governo, então, criou o primeiro sistema de atendimento à criança e ao adolescente. A abolição da escravatura, em 1888, causou grande crescimento do número de abandonados e infratores. Em 1894, o jurista Candido Mota propôs a criação de uma instituição específica para crianças e adolescentes que, até então, ficavam em prisões comuns. No ano de 1896, a Roda, sistema usado pelos conventos da época para o recolhimento de donativos, foi transformada na Casa dos Expostos devido ao aumento do número de crianças atendidas pela mesma e também pela deficiência da proteção dada pelas amas pagas para alimentar as crianças no período de adaptação.36 35 Conteúdo disponível na íntegra no Anexo III. 36 Disponível em: http://www.fundacaocasa.sp.gov.br/View.aspx?title=a-fundacao-historia&d=83. Acesso em: set. 2017. Grifo nosso. 27 Dois pontos, principalmente, destacam-se nesse excerto. Primeiro, temos a relação explícita da escravidão e do mal planejado processo de abolição com a “criação” de um destino pobre e contraventor àqueles sujeitos escravizados que fossem libertos. Foi a partir do desamparo àqueles que foram forçados não só a migrar, mas a trabalhar em condições deploráveis visando expansão mercantilista e, por consequência, lucro e acúmulo de riquezas,37 que o governo à época achou por bem criar um sistema de atendimento a esses sujeitos. O segundo ponto de destaque damos para o uso do verbo “causar” no trecho que italicizamos do excerto. Mesmo havendo relação entre o desamparo social e a criminalidade nesse texto, a palavra “causou” remete ao efeito de sentido de que foi o processo de abolição da escravatura, ou seja, a libertação daqueles que foram feitos prisioneiros no Brasil, o motivo para o crescimento de menores abandonados e infratores. Já aí podemos perceber como o discurso constrói um saber que culpabiliza o vulnerável e que exime os colonizadores ou outros opressores de sua responsabilidade para com tamanha pobreza e desigualdade que até hoje vemos em nosso país.38 Para podermos entender melhor como foi esse processo e como ele se associa ao encarceramento em massa daqueles que foram destinados à pobreza, embasamo-nos na Crítica da razão punitiva: nascimento da prisão no Brasil (MOTTA, 2011). O autor, inspirado pelo trabalho de Foucault no que tange à genealogia do poder punitivo e da prisão em Vigiar e Punir (FOUCAULT, [1975] 2012a), remete-se à organização da penalidade no Brasil, depois do processo de independência de Portugal, que conta com a criação de um Código Criminal que levou à necessidade de um ambiente destinado às práticas penalizadoras – no começo conhecido como Casa de Correção. Já nas décadas de 60, 70 e 80 do século XIX, havia uma Comissão Inspetora – que fazia parte do Ministério da Justiça, à época – que julgou, entre outras coisas, necessária a desmontagem 37 Apesar de algumas tribos africanas terem apresentado como costume escravizar os inimigos derrotados (isso fazia parte de sua cultura), não consideramos esse fato um argumento amenizador dos processos de venda e compra de seres humanos para trabalho escravos, visto que esses sujeitos foram inseridos em uma lógica mercantilista e cruel, sem qualquer justificativa (a não ser a exploração humana) ou semelhança a seus países de origem. 38 A questão da negritude na Fundação CASA é tão incisiva que existe, desde “novembro de 2006, o Comitê Institucional Quesito Cor, órgão vinculado diretamente ao gabinete da presidência da Fundação CASA, [que] representa um avanço nas políticas de atendimento da instituição. Sua missão é discutir questões relativas à diversidade étnico-racial e propor, a partir de um conceito de integração, políticas de atendimento aos adolescentes em medida socioeducativa. Tem por função também propor a integração dos funcionários e discutir o eixo étnico-racial com os servidores e parceiros da Fundação CASA. Nesse tempo de existência, o comitê está estruturado em todas as 11 Divisões Regionais da Fundação”. Disponível em: http://www.fundacaocasa.sp.gov.br/ View.aspx?title=quesito-cor&d=13. Acesso em: jan. 2018. 28 de elementos que se coadunavam à Correção, como o Instituto de Menores Artesãos, o Calabouço e o Depósito de Africanos Livres (MOTTA, 2011, p. 280). E é o Instituto de Menores Artesãos que se assemelha ao que teríamos como instituição dedicada à socialização ou recuperação de menores. Para o autor, é a instituição penitenciária como um todo que inicia, no Brasil, um projeto de disciplinarização da sociedade (MOTTA, 2011, p. 281); entretanto, a necessidade do desmonte ou do fim da escola de menores artesãos é determinada pelo que, para o autor, constitui a prova do fracasso penitenciário (em geral e, ainda, nos dias de hoje): a prisão como geradora de delinquência (MOTTA, 2011, p. 289). Muito se comenta sobre essa potencialidade criminalizadora das instituições socioeducativas, mas, mesmo assim, aquele discurso que culpabiliza o vulnerável parece ser mais forte, mais lógico e mais contundente do que qualquer crítica. Nesse sentido, Foucault aponta, quando reflete sobre o papel social do encarceramento, que [a] constituição do meio delinquente é absolutamente correlativa da existência da prisão. Procurou-se constituir no próprio interior das massas um pequeno núcleo de pessoas que seriam, se assim podemos dizer, os titulares privilegiados e exclusivos dos comportamentos ilegais. Pessoas rejeitadas, desprezadas e temidas por todo mundo (FOUCAULT, [1975] 2012a, p. 33). Por isso, julgamos tão significativa a associação, pela própria Fundação CASA da escravidão com a produção de possibilidades de delinquência para os mais pobres. Ainda hoje, negras e negros são maioria nas prisões;39 portanto, acreditamos que, atualmente, continua a haver um efeito desse processo de abolição da escravidão mal planejado, em que “a coexistência com os africanos chamados livres na penitenciária é um índice de que a sombra da sociedade escravista se projeta sobre a penitenciária” (MOTTA, 2011, p. 3). E é a partir dessa sombra que iremos nos reportar ao mito da escrava Anastácia para continuar nossa reflexão acerca da proteção versus o silenciamento. 1.1.2 O mito da escrava Anastácia Para finalizarmos nossa reflexão sobre o silenciamento, uma figura ajuda-nos a entender a possível relação entre o silenciamento, o processo de arquivo, a escravidão e uma pretensa proteção oferecida pelo Estado. Antes de nos determos a essa análise, vale 39 De acordo com o Mapa do encarceramento: os jovens do Brasil, produzido pela Secretaria-Geral da Presidência da República e disponível em: http://juventude.gov.br/articles/participatorio/0010/1092/ Mapa_do_Encarceramento_-_Os_jovens_do_brasil.pdf. Acesso em: nov. 2017. 29 a pena lembrar o que trouxemos no primeiro capítulo desta dissertação acerca do incentivo para que não se fale sobre o período de internação na adolescência, já que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) garante a não divulgação dos atosinfracionais cometidos por esses sujeitos. Vemos, aí, tanto uma tentativa de proteger aqueles que cometeram delitos antes da maioridade legal – já que não há um bom acolhimento na sociedade para aqueles que passaram por alguma situação de prisão – quanto de silenciamento: evita-se que se propague a experiência e que se saiba como vivem e quem são esses sujeitos, o que ajuda a manter o imaginário tenebroso, fantasístico e ao mesmo tempo consolidado que temos sobre eles. Essa mesma dupla, proteção- silenciamento, pode ser vista na imagem da Escrava Anastácia. No início do século XIX, Arago, pintor, escritor, filósofo e explorador francês desenhou a imagem de um homem com um aparato de punição e de proteção: a máscara de flandres.40 De acordo com Handler e Hayes (2009), Arago publicou em 1822 um de seus relatórios de expedição, que versou sobre as condições precárias e os dispositivos de punição dos africanos ou brasileiros escravizados. Fosse como punição por haver uma tentativa de fuga ou para evitar que comessem terra para se suicidarem, era comum que máscaras de diversos tipos fossem colocadas nesses sujeitos escravizados, como comenta Arago: [u]m escravo que tente escapar é flagelado e, ao redor de seu pescoço, é colocado um anel de ferro [anneau de fer], atrelado à uma pequena espada; a ponta dessa espada é direcionada ao seu ombro e ele continua a usar esse anel até o mestre achar que é válido removê-lo. Eu vi dois Negros com as faces cobertas por máscaras de estanho [masque de fer- blanc], com buracos feitos para os olhos. Eles eram punidos dessa maneira porque sua tormenta os fazia comer terra para acabar com suas vidas (ARAGO, 1822, p. 102 apud HANDLER; HAYES, 2009, p. 30, tradução nossa).41 40 Fabricada com folha de flandres (liga metálica de folha de ferro-estanhado), a máscara de flandres era usada para impedir que sujeitos escravizados ingerissem alimentos, bebidas, terra ou ouro – no caso dos sujeitos escravizados em terrenos de mineração. 41 Em inglês (não conseguimos acesso ao texto de Arago original em francês): “A slave who attempts to escape is flogged and around his neck is placed an iron collar [anneau de fer] with a short sword attached; the tip of this sword is directed against his shoulder and he continues to wear this collar until his master thinks fit to remove it. I have seen two Negroes whose faces were covered with tin masks [masque de fer- Figura 1: Anastácia (ARAGO, 1839, p. 119). 30 Também era recorrente o uso de aparatos como esse nas minerações para proteger os chamados “senhores de escravos” de roubos – já que se aponta que era comum que sujeitos escravizados engolissem ouro. É interessante notar que, apesar de Arago ter sempre relatado, em seus escritos, o sujeito retratado nessa imagem como um homem, essa figura é interpretada como a de uma mulher, nomeada como a escrava Anastácia – esse personagem gerou diversas especulações e ainda tem forte simbologia nos estados brasileiros da Bahia e do Rio de Janeiro. Será que a posição feminina retratada amordaçada faz mais sentido do que a masculina em nosso imaginário? Trazemos o mito de Anastácia, entretanto, para refletir sobre a proteção- silenciamento à qual nos referenciamos anteriormente. Enquanto a justificativa dos senhores de escravos era colocar a máscara para protegê-los de atentarem contra a propriedade – fosse o ouro ou suas próprias vidas42 –, a intenção de punir era clara. Acreditamos, ademais, que podemos ver o reflexo disso ao refletir sobre a proteção- silenciadora que propõe o ECA: não fale sobre o que aconteceu para não se prejudicar no futuro e mantenha o(s) discurso(s) vigente(s) que coloca(m) como fixas as representações a seu respeito. Nesse sentido, quando uma pessoa é presa, é como se ela fosse para um universo paralelo, como se deixasse de ser parte da sociedade, sendo marginalizada e (in)visibilizada. Os “cidadãos de bem” escolhem – e, como vimos a partir de Coracini (2010b, p. 152), não ingenuamente, mas por uma lógica de saberes legitimados – não ver, não saber sobre essas pessoas e deixar o pior acontecer; afinal, “ninguém mandou se desviar da lei”. A partir disso, consideramos que se coloca uma máscara de flandres invisível ou simbólica nesses sujeitos, sendo a eles negada a propagação de sua voz mesmo em liberdade; afinal, as marcas dessa punição não são facilmente extintas, assim como é latente o apagamento de sua história, pela supressão de sua versão da verdade, já que institucionalmente são incentivados a não falar sobre sua experiência para poder ter blanc] with holes made for the eyes. They were punished in this manner because their misery caused them to eat earth to end their lives (Arago 1822; 1: 102)”. 42 “[...] é sobre a vida e ao longo de todo o seu desenrolar que o poder estabelece seus pontos de fixação; a morte é o limite, o momento que lhe escapa; ela se torna o ponto mais secreto da existência, o mais “privado”. Não deve surpreender que o suicídio – outrora crime, pois era um modo de usurpar o direito de morte que somente os soberanos, o daqui debaixo ou o do além, tinham o direito de exercer – tenha-se tornado, no decorrer do século XIX, uma das primeiras condutas que entraram no campo da análise sociológica; ele fazia aparecer, nas fronteiras e nos interstícios do poder exercido sobre a vida, o direito individual e privado de morrer” (FOUCAULT, [1988] 1993, p. 130). 31 alguma possibilidade de futuro.43 Vejamos o comentário que Foucault ([1977] 2012b) faz sobre a prisão no texto A tortura é a razão, a partir do qual podemos melhor analisar o que propusemos: quando alguém passou por um desses programas de reinserção, por exemplo, por um reformatório, por um alojamento destinado a prisioneiros libertados, ou por recidivistas, isso faz com que o indivíduo continue marcado como delinquente: junto ao seu empregador, ao proprietário de seu alojamento. Sua delinquência o define, assim como o relacionamento entre ele e o meio ambiente, tão eficazmente que se chega ao ponto de o delinquente só poder viver em um meio criminal. A permanência da criminalidade não é de modo algum um fracasso do sistema penal, é, ao contrário, a justificação objetiva de sua existência (FOUCAULT, [1977] 2012b, p. 108). Então, no mesmo sentido do que propôs Foucault em Vigiar e Punir ([1975] 2012a) acerca da obliteração dos rituais de pena e da passagem do castigo carnal e público para uma punição da alma longe dos olhos da sociedade, a máscara de flandres colocada nos sujeitos escravizados, ainda reproduz seus efeitos nos jovens delinquentes e periféricos, de maioria negra. Ademais, julgamos relevante nos voltarmos ao filme Um sonho de liberdade,44 de Stephen King, em que, ao ser libertado da prisão, depois de muitos anos, um dos personagens do filme (que é negro) não consegue se (re)adequar à sociedade fora da prisão, pois havia, ali, construído um modo de viver e até uma representação de identidade como prisioneiro. Logo, além da máscara de flandres invisível silenciar aqueles que são presos (principalmente mulheres e adolescentes), ela parece simular ou provocar determinadas representações identitárias, das quais pode ser difícil se desvencilhar. 43 Entretanto, há também a visão de, pela literatura, por exemplo, ocorrer o “estilhaçamento” dessa máscara. Nesse sentido, a respeito da relação do silenciamento com máscara de Flandres, Conceição Evaristo (escritora brasileira vencedora do Jabuti em 2004) concedeu uma entrevista à Djamila Ribeiro (pesquisadora na área de filosofia política e feminista) em que diz: “[a]quela imagem de escrava Anastácia (aponta pra ela), eu tenho dito muito que a gente sabe falar pelos orifícios da máscara e às vezes a gente fala com tanta potênciaque a máscara é estilhaçada. E eu acho que o estilhaçamento é o símbolo nosso, porque a nossa fala força a máscara. Porque todo nosso processo pra eu chegar aqui, foi preciso colocar o bloco na rua e esse bloco a gente não põe sozinha [...].” (RIBEIRO, 2017). 44 Um sonho de liberdade (título original: The Shawshank Redemption) foi lançado em 1994 nos Estados Unidos, país em que foi produzido e filmado, sendo estrelado por Morgan Freeman e Tim Robins. O filme foi escrito e dirigido por Frank Daranbont, que se baseou na obra Rita Hayworth and Shawshank Redemption de Stephen King (1982). O enredo trata da amizade entre Andy Dufresne, condenado a vinte anos de prisão devido ao assassinato de sua esposa e seu amante, e Ellis “Red” Redding, protegido pelos guardas após ter feito parte de operações de lavagem de dinheiro por agentes penitenciários. 32 1.2 Do suplício à (des)identidade Ainda refletindo sobre a punição velada, ou não, desses jovens, apesar de termos assistido ao fim do suplício (castigo infligido ao corpo por meio da violência), a questão do corpo ainda é importante para a compreensão da penalidade e dos sujeitos a ela vinculados. E isso, não só pelo corpo ser o agente do crime, assim como portador da voz que buscamos ouvir, mas por ser (des)figurado, (des)considerado a partir da definição de sua sentença, afinal “[é] dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado” (FOUCAULT, [1975] 2012a, p. 132). Nesse sentido, em Vigiar e punir, Foucault ([1975] 2012a), propõe que a criminalidade e as formas de punição são pensadas a partir do deslocamento da penalidade e do processo de criminalização, o que entendemos fazer um movimento pendular decrescente, que transferiu o registro do poder soberano para o registro do poder disciplinar, firmando-se no segundo. Mesmo com essa mudança, apesar de termos assistido o fim do suplício medieval e do castigo infligido à carne por meio da violência escancarada, ainda que tenha havido a psicologização dos dispositivos de punição, discussões acerca do corpo e do poder incidido sobre ele ainda são vitais para a desconstrução dos discursos que constituem os processos penais atuais. Ao trazer à baila a crítica de Foucault ao modelo panóptico de Bentham,45 Birman, psiquiatra e psicoterapeuta brasileiro, em Entre o cuidado e o saber de si: Foucault e a psicanálise (2000), coloca o olhar especular do outro que, para Lacan, “capturaria definitivamente o infante e estruturaria este para sempre” (BIRMAN, 2000, p. 62), como um “olhar capturante [...] exercido pelos dispositivos panópticos do poder” (BIRMAN, 2000, p. 62), de acordo com Foucault ([1979] 2010). Resumidamente, então, Birman propõe que o olhar que seria constitutivo da criança, tornando seu corpo momentânea e ilusoriamente uma unidade no estádio do espelho, traria nos dispositivos disciplinares uma constante e poderosa vigilância, privando o indivíduo observado de agir por si só, de acordo com sua subjetividade. A busca constante por observar e corrigir o criminoso acaba por fragmentar as partes de seu corpo e de sua identidade para 45 O Panóptico é um tipo de construção arquitetônica, constituído por uma torre que fica cercada por celas que não possuem interface umas com as outras. Cada preso fica isolado, sem conseguir ver ou ouvir outros presos que estejam ao seu lado, não podendo, também, verificar se há ou não, na torre, algum vigia observando-o. Bentham propunha, de acordo com Foucault, o princípio de que o poder devia ser invisível e inverificável (FOUCAULT, [1975] 2012a). 33 reorganizá-las e adequá-las à ordem vigente. Corpo dócil e corpo utópico, que só na relação com o Outro46 existe e produz algum sentido. Descartando, então, individualidades e subjetividades, essa visão do criminoso como o corpo que comete o crime e que deve ser punido faz parte dos mecanismos de poder presentes nos dispositivos de punição da modernidade. E, apesar de haver uma lei que julga e condena, o valor social que é atribuído ao criminoso se aproxima da figura jurídica romana do homo sacer.47 Reduzidos somente a seus corpos, sem qualquer subjetividade, os homo sacer poderiam ser mortos por qualquer um sem julgamento prévio e sem qualquer ônus para seu assassino. Entretanto, mesmo os corpos criminosos da atualidade estando nos limites da lei e dos direitos humanos, socialmente são marginalizados e colocados em um estado de exceção.48 A partir do momento em que tangenciam ou se afastam das normas impostas pela sociedade, esses sujeitos são vistos como inimigos, apagados e colocados em um lugar de desinteresse. No senso comum, esses transgressores merecem sofrer, ser punidos e até mortos, enquanto que os que seguem as regras e as normas se vangloriam de estarem nas conformidades da sociedade, reforçando a vulnerabilidade e o silenciamento daqueles que se distanciam delas. Logo, a função do panóptico, a partir do que Birman apresenta de Foucault, como “algo que seria produzido permanentemente pela insistência do olhar vigilante do poder, que controlaria os menores movimentos das individualidades” (BIRMAN, 2000, p. 62), poderia ser interpretada como a intenção de apagar quaisquer rastros de subjetividade que tenham levado aquele indivíduo a cometer um crime. Readaptá-lo é a missão dos órgãos que serão incumbidos de vigiar e punir esses corpos que cometeram 46 Lacan ([1964] 1985) diferencia outro de Outro no processo de constituição do Eu. Enquanto o outro é o lugar da alteridade especular, o semelhante com o qual a criança se confunde no imaginário enquanto se percebe no mundo na fase do espelho, o Outro “é o lugar em que se situa a cadeia de significante que comanda tudo o que vai poder presentificar-se do sujeito, é o campo desse vivo onde o sujeito tem que aparecer” (LACAN, [1964] 1985, p. 193), ou seja é na relação com o Outro (relacionado ao inconsciente), via linguagem, que temos o simbólico. Vale ressaltar que Lacan propõe figuras topológicas para poder expressar o que do aparelho psíquico parecia fugir das palavras ou da lógica. Elegeu, então, três registros (Imaginário, Simbólico e Real) que, articulados, formam o nó borromeano, que representa esse aparelho. 47 Referindo-se ao direito romano arcaico, Agamben (1995 [2002]) investiga a figura do homo sacer, definida (resumidamente) como um indivíduo que ficava fora da jurisdição humana, por ter cometido algum ato que ia contra a moral da época, ou por ser escravo ou estrangeiro, e cuja morte não era considerada nem homicídio, nem sacrifício para o sagrado, sendo sua vida “matável e insacrificável” (AGAMBEN, [1995] 2002, p. 91). 48 O estado de exceção se dá quando os direitos individuais são suspensos temporariamente pelo governo em situações emergenciais. As situações em que esse conceito é aplicado estão relacionadas a ditaduras e o exemplo mais claro se dá nas políticas de extermínio de Adolf Hitler, que foram embasadas social e juridicamente. 34 os crimes porque escolheram, desviaram da norma apenas porque desejaram, como (re)produz o senso comum. Vistos como inimigos em uma sociedade normatizadora que ignora a construção de identidades e discursos como um tecido contínuo, multifacetado e inacabado, esses sujeitos têm suas vozes pretensamente excluídas do discurso hegemônico, seus direitos deixados em segundo plano e os caminhos que os levaram a esse afastamento das regras são soterrados por preconceitos institucionalizados e reproduzidos por cidadãos “de bem”. Dos suplícios passamos à (des)identidade do corpo docilizado e utópico: se é o que é dito do grupo no qual se está alocado. Por isso, reforçamos a necessidade de olhar para a sociedade de uma maneira crítica, levando em conta as relações culturais e a historicidade que orientaram
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