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n E S P I R I T U A L I D A D E 16 O ROSACRUZ · INVERNO 2011 A paciência como virtude Por HÉLIO DE MORAES E MARQUES, FRC – Grande Mestre da GLP INVERNO 2011 · O ROSACRUZ 17 A paciência é uma das virtudes mais importantes para aquele que almeja a harmonia e a maestria espiritual. Ela deve fundamentar-se no auto- domínio e no exercício concomi- tante com outras virtudes. A natureza não dá saltos, pois está sujeita a leis universais que devemos aprender a respei- tar. Estamos todos sujeitos ao tempo de ma- turação das coisas. Isso é inexorável. Salomão, no livro Eclesiastes, sabiamente afirmou: “Tudo tem o seu tempo determinado, e há tem- po para todo propósito debaixo do céu…” Entender isso é ter paciência. Todavia, como é difícil ser paciente, agir com paciên- cia… mesmo sabendo que a impaciência nos leva à precipitação e à desarmonia. Antes, porém, de abordarmos mais pro- fundamente a paciência como virtude – com ênfase na paciência em si, sua gênese, seus benefícios e, sobretudo, seu importante papel na vida de todos nós como místicos – vamos investigar por que ela é considerada uma virtude. Por que virtude? O que é virtude? Significa dizer que nossa reflexão partirá do geral, isto é, do conceito de virtude, para o particular, que é considerar a paciência en- quanto tal. Compreendido o significado de virtude, será mais fácil nos apropriarmos do poder da paciência. No dicionário Aurélio, de língua portu- guesa, “virtude” é definida como “a disposi- ção firme e constante, por um esforço da von- tade, à prática do bem”. Para Aristóteles, “virtude” é “o hábito que torna o homem bom e lhe permite cumprir bem a sua tarefa”. Os Estóicos, por sua vez, definiam “virtude” como “uma disposição da alma coerente que torna dignos de louvor aqueles em que se en- contra”. Esta definição foi repetida na filosofia antiga e medieval e também no pensamento moderno. Encontra-se em Abelardo, Alberto Magno, São Tomás de Aquino e Leibniz. Epicuro dará à virtude um valor mais utilitário. Considera a virtude suprema a sa- bedoria, pois esta permite julgar as opiniões, que são a causa das perturbações da alma. Na Renascença, Telésio via na virtude a faculdade de estabelecer a medida certa das paixões e das ações para que não derive delas nenhum prejuízo ao homem. Mais tarde, Hume e Bentham – represen- tantes do utilitarismo e empirismo inglês – vão atribuir à virtude um caráter ainda mais pragmático definindo-a como: “a disposição que produz a felicidade”. Spinoza partilha deste conceito. Ele ensina que: “Comportar-se absolutamente seguindo a virtude não é senão para nós comportar-se como o próprio ser, segundo o guia da razão, sobre o fundamento da procura do útil”. O iluminismo francês assumiu um sentido moral como fundamento da virtu- de. Neste diapasão, Rousseau atribuía à piedade uma disposição natural que deve ante- ceder toda reflexão. No mesmo sentido, Voltaire resumia a virtude no simples ato de “fazer o bem ao próximo”. Etimologicamente, a palavra virtude deriva do latim virtus, que quer dizer “força”; a força é a base de toda virtude. Daí Kant afirmar que a virtude era “intenção moral em luta”. A virtude reside na força mo- ral de cumprir a vontade que coincida com a Lei. O Imperativo categórico kantiano diz: “Tu deves”. Mas aí é que está a chave do problema da paciência – agir segundo a lei natural, tole- rando, tolerando. . . Novamente, tu deves. Na verdade, temos vontade de ser mais tolerantes e, por consequência, mais pacien- tes, mas… Baruch Spinoza © C O M M O N S. W IK IM ED IA .O RG n E S P I R I T U A L I D A D E 18 O ROSACRUZ · INVERNO 2011 A vontade é, neste contexto, o elemento- -chave desencadeador da paciência que, dada a sua natureza passiva, resulta em uma ade- quação sem ser necessariamente uma resig- nação porque não há renúncia, mas adapta- ção. Trata-se daquela mansidão que, segundo o Mestre Jesus – que é um exemplo dela –, herdará os céus. Temos, portanto, três conceitos básicos de virtude que podemos avaliar: 1. “Virtude” é a qualidade que capacita o in- dividuo para seu papel social1. 2. “Virtude” é a qualidade que capacita o individuo a dirigir-se à conquista dos fins (telos) especificamente humanos, sejam estes naturais ou transcendentais2. 3. “Virtude” é a qualidade que tem utilidade para se alcançar êxito secular e celestial.3 Como estudantes da AMORC, sabemos que no bojo da nossa Filosofia permeia uma ética. Ao longo dos nossos ensinamentos, ela aparece muitas vezes de forma clara e muitas vezes de forma subliminar ou indireta, conju- gando nitidamente os três aspectos. Não po- deria ser de outra forma, pois temos os olhos nos céus, mas os pés no chão. Não obstante, para nós, caminhantes da Senda Rosacruz, a visão combinada dos três é aquela que mais se aproxima da nossa visão das coisas, indi- cando que a prática da virtude da paciência nos permitirá alcançar autodomínio, harmo- nização e felicidade. Nosso guia será sempre, e cada vez mais, o Mestre Interior. Isto posto, podemos considerar a “paciên- cia” como virtude propriamente dita. Comprometer-se com atividades virtuosas é um pouco como criar uma criança peque- na. Há uma grande quantidade de fatores envolvidos. Inicialmente, precisamos ser habilidosos para transformar nossos hábi- tos e temperamentos, porém isso é possível. O mais importante é saber que a paciência é algo que nós podemos criar. É como um músculo. Todos nós temos músculos, mas al- gumas pessoas são mais fortes do que outras porque se exercitam mais. O mesmo acontece com a paciência. Levou muito tempo para ficarmos do jeito que somos hoje, e não mudamos os nossos hábitos da noite para o dia. É mais eficaz, em vez de alternar breves rompantes de esforço heróico com períodos de relaxamento, trabalhar com constância, causando uma transformação efetiva. Se desfrutamos de boa saúde é porque a nossa mente está calma e serena. Um dos benefícios mais importantes da paciência consiste em sua ação como um antídoto po- deroso ao mal da raiva, uma forte ameaça à nossa paz interior e, consequentemente, à nossa felicidade. Avaliemos: a disponibilidade financeira, a boa educação, a lei, a fama, nada nos protege da raiva. Só a proteção interior do autodo- mínio paciente evita que experimentemos a desarmonia das emoções e pensamentos negativos. O aprimoramento da paciência requer a presença de algo ou alguém que nos contrarie. Este tipo de pessoa ou circunstân- cia nos dá a chance de praticarmos a tole- rância. A nossa força interior é posta à prova com mais intensidade do que aquela de que o nosso Eu seria capaz. A mente humana é simultaneamente a fonte e, se desenvolvida de forma apropria- da, a solução de todos os nossos problemas. Possuirmos grande erudição sem um bom coração nos traz ansiedade porque resulta em desejos que, via de regra, não podem ser realizados. Inversamente, a compreensão genuína dos verdadeiros valores da vida tem um efeito oposto e evita a ansiedade. A compaixão é, por sua natureza, gentil, INVERNO 2011 · O ROSACRUZ 19 pacífica e delicada, embora seja também muito poderosa. Quando perdemos facilmente a paciência, demonstramos nossa insegurança e inconstância. Portanto, ser dominado pela raiva é um forte sinal de fraqueza. Mas, se mudarmos de atitude e praticarmos alguns exercícios, seremos capazes de aprender a utilizar o poder da paciência. Quanto mais exercitamos a paciência, mais a percebemos como um fator crucial para termos ou não vidas satisfatórias. A pa- ciência nos dá autocontrole, capacidade para parar e usufruir mais plenamente do mo- mento presente. A partir daí, nos tornamos capazes de fazer escolhas sábias. Ela cons- tantemente nos recompensa com os frutos da maturidade e da sabedoria: autodomínio, paz e maestria espiritual. E consegue isto com base na estabilidade do quadrado mís- tico reunindo quatro qualidades essenciaisda mente e do coração: vontade, constância, harmonia e tolerância. Pesquisas recentes sobre a inteligência emocional demonstraram que o efeito da constância pode ser igual ao de muitos pon- tos de QI. Na essência de cada verdadeiro talento há uma consciência das dificuldades inerentes a qualquer realização e uma certeza de que com constante persistência e paciência algo importante será realizado. Portanto, o talento é uma espécie de tenacidade. George- Louis Leclerc de Buffon referia-se a isto quan- do escreveu: “A genialidade nada mais é do que uma aptidão maior para a paciência”. Se somos pacientes, conseguimos man- ter a calma em nosso íntimo, não importa o que esteja acontecendo ao nosso redor. Confiamos na capacidade que temos de lidar com as situações que se apresentam, e essa confiança nos dá uma grande paz interior. Paciência torna-se sinônimo de autocontrole, pois permite dominarmos nossas emoções. A aceitação que vem com a paciência também nos ajuda a compreender os outros, por entendermos que, como seres humanos, todos temos limitações. A paciência nos dá a capacidade emocional de reagir com bonda- de e de sentir compaixão. A paciência, que segura nossa irritação ante as diferenças, é o caminho para a empa- tia – a capacidade de colocar-se no lugar do outro e acolher seus sentimentos. A paciência nos ajuda a sermos mais felizes em um relacionamento amoroso. Fundamentalmente, todos sabemos, não se pode amar sem praticar a paciência. Qualquer um pode se apaixonar, viver um período de exaltação em que o cérebro inun- da seu sangue e seu sistema nervoso com endorfinas, e tudo parece possível. Mas essa sensação inevitavelmente diminui e cada um, com suas próprias idiossincrasias, se vê frente a frente com outro ser humano com todas as suas peculiaridades. Neste momento, quando se está compartilhando uma vida a dois, é que ocorrem os atritos e que a paciência en- tra em ação. São Paulo nos lembra: “O amor é paciente e gentil”. A mente humana é a fonte e a solução dos problemas © P H O TO S. C O M n E S P I R I T U A L I D A D E 20 O ROSACRUZ · INVERNO 2011 Como místicos, sabemos que a arte de escutar, o silêncio e a humildade são experi- ências passivas que se somam no processo do desabrochar da personalidade-alma. Simone de Beauvoir afirmava textualmente: “A pa- ciência é uma das qualidades ‘femininas’ que têm como origem a nossa opressão, mas que deve ser preservada após a nossa libertação”. Isto coloca a paciência no hall das categorias de atitudes receptivas. Enquanto bondade, gratidão e generosidade estão relacionadas a coisas que nós fazemos – e a nossa cultura acostumou a valorizar a dinâmica – a paci- ência está relacionada às coisas que nós não fazemos. Quando perguntaram “por que o mar era tão grande”, a resposta foi emblemá- tica: “porque teve a humildade de se colocar abaixo de todos os rios”… Em última análise, nossa missão como místicos em busca da maestria espiritual exi- ge, entre outras virtudes, a da paciência, de modo a aumentar nosso nível de consciência. Há alguns passos que, se seguidos regular- mente, nos promovem – e muito – neste desabrochar da alma através da prática da virtude da paciência. São eles: 1. Harmonize-se pela manhã, pois uma boa harmonização com as práticas do círculo e da oração determina o ritmo de tudo o que virá depois. 2. Mantenha sob controle o seu nível de açúcar no sangue. Nossa “alma” existe no espaço e está dentro de nós e em nós. Embora sejamos almas viventes, o nosso corpo e o seu sistema nervoso não são ficções. Embora as práticas da paciência sejam na maioria emocionais, há a pos- sibilidade de uma alteração por questões bioquímicas. 3. Saiba o que deflagra sua impaciência. A paciência é cultivada através do processo racional de análise. É por aí que iniciamos nosso treinamento da paciência. 4. Exercite seu autocontrole. “Ligue” a sua paciência com o poder da vontade. Use a força da virtus. Seja virtuoso. 5. Aprenda a reconhecer seus primeiros si- nais de aviso e o que antecede a explosão. Nestas ocasiões, levante-se, peça licença, mentalmente entoe um som vocálico, afaste-se da pessoa ou da situação. Esta interrupção aumenta a possibilidade de você manter a calma. 6. Exercite a respiração apropriada. O exer- cício de respiração consciente consiste em pôr as mãos sobre a barriga, logo abaixo do umbigo, e sentir o seu abdome inflar. Segurar a respiração, contar até três e, a Simone de Beauvoir © C O M M O N S. W IK IM ED IA .O RG INVERNO 2011 · O ROSACRUZ 21 *Mensagem apresentada na Convenção Européia de Barcelona, 2009. Notas: 1. Homer; 2. Aristotle, New Testament, Stoics, Abelard, Albertus Magnus, St. Thomas Aquinas, Leibniz; 3. Epicuros, Thelesius, Hume, Spinoza, Rousseau, Voltaire, Kant, B. Franklin. seguir, expirar sentindo o abdome esvaziar. Repita até se harmonizar novamente. 7. Quebre paradigmas. Procure ver de outro ângulo. É o típico caso da fábrica de cal- çados que mandou dois analistas de mer- cado para um determinado país africano. Um deles mandou um telegrama dizendo: “Situação impossível. Ninguém usa sapa- tos”. O outro escreveu: “Excelentes oportu- nidades. Eles não têm sapatos”. 8. Tenha como uma verdade o fato de que a paz pode ser encontrada em todas as oca- siões, por mais adversas que possam ser as circunstâncias. 9. Use a concentração, pois ela é uma das técnicas mais úteis no cultivo da paciência. Concentre-se no plexo solar e sinta as ba- tidas do seu coração. Visualize um círculo de energia envolvendo todo o seu corpo a uma distância de 30cm. Dê-lhe um colori- do suave, preferencialmente lilás ou róseo. 10. Convoque a sua compaixão. Responda com o coração. O cérebro, dada a sua ra- cionalidade, é muito crítico e não lembra que somos todos obras-primas inacabadas em processo de crescimento. Lembre-se sempre das palavras de Thomas Kempis em sua obra “A Imitação de Cristo”: “Esforce-se para ser paciente ao suportar os defeitos dos que o cercam, porque você tam- bém tem muitos, e eles precisam ser supor- tados pelos outros. Se você não é como gos- taria de ser, como pode pretender encontrar alguém que seja totalmente do seu agrado?” Resumidamente, utilize a sua Sabedoria Interior. Procure o seu centro. Invoque o Mestre que fala. O que não podemos esquecer é que a im- paciência é fruto de um sonho de perfeição. O ato de nos abrirmos para a possibilidade de nossa imperfeição facilita aceitarmos a nossa raiva e a nossa fragilidade como ca- racterísticas inevitáveis dos seres humanos, e nos capacita – pelo autodomínio – a admi- nistrá-las e transformá-las. Isto permite nos amarmos exatamente como somos e, quanto mais amor e compaixão tivermos conosco, mais paciência teremos para conceder a to- das as pessoas. O amor e a paciência são dois fios que se entrelaçam. Por isso, a grande pergunta que devemos fazer é a seguinte: Como podemos amar melhor? “Que o nosso amor seja um instrumento eficaz para desenvolver a nossa paciência fazendo com que ela esteja sempre em nosso coração e brilhe no mundo, transformando-o num lugar melhor para todos os seres huma- nos.” Assim Seja! Para concluir, vamos associar a Personalidade- Alma em desenvolvimento a uma Rosa. Podemos usar a antiga e tradicional ana- logia da Rosa desabrochando onde a Perso- nalidade-Alma é promovida a cada virtude adquirida. A busca, a compaixão e o amor se somam na conquista do autodomínio que conduz à maestria espiritual, mas para isso são necessárias muitas virtudes e, dentre elas, a paciência tem um papel fundamental. Em sua obra intitulada “ADONAI”, Jorge Adoum – também conhecido como Mago Jefa – traduz com as seguintes palavras a senda do verdadeiro Adepto e suas implicações no processo iniciático que conduz à Iluminação: “Não é digna do beijo do sol a semente que não rompa dolorosamente os seus invólucros”. 4