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LITERATURA DE MINORIAS ÉTNICAS E SEXUAIS PESQUISA E ENSINO PARA UMA ESCOLA INCLUSIVA Gisele Pereira de Oliveira Organizadora Recife - PE 2021 UNIVERSIDADE DE PERNAMBUCO – UPE REITOR Prof. Dr. Pedro Henrique Falcão VICE-REITORA Profa. Dra. Socorro Cavalcanti EDITORA UNIVERSIDADE DE PERNAMBUCO – EDUPE CONSELHO EDITORIAL Prof. Dr. Ademir Macedo do Nascimento Profa. Dra. Ana Célia Oliveira dos Santos Prof. Dr. André Luis da Mota Vilela Prof. Dr. Belmiro do Egito Profa. Dra. Danielle Christine Moura dos Santos Prof. Dr. Emanoel Francisco Spósito Barreiros Profa. Dra. Emilia Rahnemay Kohlman Rabbani Prof. Dr. José Jacinto dos Santos Filho Profa. Dra. Maria Luciana de Almeida Prof. Dr. Mário Ribeiro dos Santos Prof. Dr. Rodrigo Cappato de Araújo Profa. Dra. Rosangela Estevão Alves Falcão Profa. Dra. Sandra Simone Moraes de Araújo Profa. Dra. Silvânia Núbia Chagas Profa. Dra. Sinara Mônica Vitalino de Almeida Profa. Dra. Virgínia Pereira da Silva de Ávila Prof. Dr. Vladimir da Mota Silveira Filho Prof. Dr. Waldemar Brandão Neto GERENTE CIENTÍFICO Prof. Dr. Karl Schurster COORDENADOR Prof. Dr. Carlos André Silva de Moura CAPA E PROJETO GRÁFICO Danilo Catão Este livro foi submetido à avaliação do Conselho Editorial da Universidade de Pernambuco. Título: Literatura de minorias étnicas e sexuais Formato do eBook: PDF Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução deste livro com fins comerciais sem prévia autorização dos autores e da EDUPE. Esta obra ou os seus artigos expressam o ponto de vista dos autores e não a posição oficial da Editora da Universidade de Pernambuco – EDUPE Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) Núcleo de Gestão de Bibliotecas e Documentação - NBID Universidade de Pernambuco L775 Literatura de minorias étnicas e sexuais pesquisa e ensino para uma escola inclusiva/ Organização de Gisele Pereira de Oliveira. -- Recife : EDUPE, 2021. 156 p. [recurso eletrônico] ISBN: 978-65-86413-39-7 1. Literatura - Ensino. 2. Ensino - aprendizagem. 3. Minorias - Educação. 4. Grupos étnicos. 5. Minorias I. Oliveira, Gisele Pereira de. II. Título. CDD: Ed. 23 -- 808.07 Elaborado por Claudia Henriques CRB4/1600 Sumário Por que literatura de minorias étnicas e sexuais na escola? 5 Entre deusas negras e mortas cintilantes: a mulher no Oriente e no Ocidente na poesia de Cecília Meireles 19 Heterossexualidade compulsória como prática social de poder: a violência simbólica em dois contos de Caio Fernando Abreu 48 O que dizem os cadernos originais de Carolina Maria de Jesus? Uma análise das supressões na obra Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada 76 Autoria feminina e negra pelo viés do letramento literário e da estética da recepção: contos de Conceição Evaristo no 8º ano do ensino fundamental 100 Uma favelada vai à escola: Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus, interseccionalidade e letramento literário 130 5 POR QUE LITERATURA DE MINORIAS ÉTNICAS E SEXUAIS NA ESCOLA? Gisele Pereira de Oliveira1 Uma das questões mais recorrentes e, talvez, urgentes no con- texto educacional brasileiro é a crise na leitura (LAJOLO, 2010). Considerando que, desde algum tempo e progressivamente, a lei- tura não ocupa um espaço significativo na vida das pessoas, prin- cipalmente entre as crianças e os/as jovens. Um artigo publicado pelo O Estado de São Paulo é dedicado a essa questão proeminente e preocupante da leitura no ensino (e na vida) hoje. O texto intitulado “Por que eles não conseguem ler?” apresenta o relato de experiência de Luiz Marques (2002), profes- sor de Língua Portuguesa em escolas de ensino público em São 1 Doutora em Letras (Literatura e Vida Social) pela UNESP-Assis. Professora Adjunta no curso de Letras da UPE - Campus Mata Norte. Coordenadora do Grupo de Estudos “Lite- ratura, Letramento e Sociedade”, cujas pesquisas originaram os artigos desse volume. E-mail: gisele.oliveira@upe.br 6 Paulo. No artigo, o professor reitera o problema já conhecido por colegas de profissão: a maioria dos/as2 alunos/as não têm o hábito da leitura e, quando lê, não compreende o que lê. Essa constatação também se deu como resultado de uma pes- quisa realizada pelo Programa Internacional de Avaliação de Alu- nos da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico), que avaliou a capacidade de leitura de estudantes de 15 anos em 32 países, em escolas públicas e privadas. De acordo com a pesquisa, o alunato brasileiro foi capaz de identificar letras, palavras e frases, mas não de compreender o sentido do que lia. O cerne do problema não se justifica mais pela falta de acesso a livros uma vez que iniciativas, como o Programa Nacional Biblio- -teca da Escola (PNBE), das últimas décadas têm facilitado a pre- sença de acervos nas escolas. Dessa forma, seria a não existente ou ineficiente prática da leitura o problema a ser solucionado. Em ou- tras palavras, embora os livros e outros modelos de leitura sejam mais facilmente difundidos pelas mídias, acervos escolares e bi- bliotecas públicas, a escola ainda falha como propagadora e incen- tivadora da leitura, apesar de ensinar a ler (ou assim acredita-se!). Para Jean Foucambert (1994, p. 18), “analfabetismo é o desco- nhecimento das técnicas de utilização da escrita; iletrismo é a falta de familiaridade com o mundo da escrita, uma exclusão em rela- ção ao todo ou a parte desse modo de comunicação”. A partir des- sa perspectiva, podemos dizer que a escola alfabetiza embora não produza leitores/as aptos/as o suficiente em termos de competên- cias de leitura e escrita que as práticas sociais exigem. E essa com- 2 Adotamos o uso de “/a(s)” como dispositivo linguístico de linguagem não-sexista nesse volume. 7 petência necessária pode ser referida como letramento literário, isto é, “uma estratégia metodológica no direcionamento, forta- lecimento e ampliação da educação literária oferecida aos alunos a fim de torná-los leitores proficientes, dentro e fora do contexto escolar; noutras palavras, é o uso social da literatura” (SILVA; SIL- VEIRA, 2013, p. 94). Considerando a literatura como um dos caminhos mais efica- zes para o letramento, constatamos que uma das principais difi- culdades do seu ensino, como apontado por Luiz Marques, é o livro didático. Esse traz, salvo algumas exceções, roteiros prontos para o estudo dos textos literários. Além disso, predetermina o tipo de textos, os critérios das análises, as respostas (prontas – o que, com a sua existência imposta e aceita como essencial, impede a reflexão dos/as professores/as e do alunado). Em seu Literatura e ensino: uma problemática, Maria Rocco nota o número de professores/as que emprega o uso do livro didá- tico como instrumento principal de trabalho em sala de aula. As “facilidades” do manual põem o saber, para Lígia Chiappini Leite (1983), ao alcance da mão, e, por isso, congelam-no nas ideias ins- tituídas, destruindo-o, uma vez que o seu uso “amarra” o/a profes- sor/a em uma rotina que lhe tira a liberdade e a criatividade, apazi- guando a inquietação criadora que leva uma pessoa a questionar. Em relação ao/à aluno/a, o livro didático dificilmente respeita e estimula a curiosidade crítica, o gosto da aventura, e dificilmente contribui para a constituição e a solidez da autonomia do ser do/a educando/a. Dessa âncora que se tornou o livro didático, surgem alguns equívocos em relação à leitura e à literatura: 8 1. Associa-se, geralmente, a leitura literária ao mero prazer, como se prazer ou desprazer pela leitura não fosse algo so- cial e cultural, pois ninguém nasce gostando ou não de ler, tendo prazer ou não pela leitura; ao relacionar a literatura a apenas entretenimento, se invisibilizam outros atributos seus na formação humana e do seu uso social; 2. Considera-se que as pessoas não leem porque não gostam, quando, na verdade, elas não leem pelas condições que sub- jazem à relação leitor/texto. O/A leitor/a proficiente não nasce pronto: tal condição é consequênciada atmosfera leitora reinante no seu contexto social, principalmente, no que diz respeito à escola e, essencialmente, à sala de aula; 3. Acredita-se que não se lê nada quando, na verdade, se lê sim, e muito, principalmente em redes sociais. Mas o que se lê? Há uma ênfase na prática leitora cotidiana à informação ao invés de saberes, a dados acabados em lugar de apreensão de significados e atribuição de sentidos, a conclusões dadas, sem a possibilidade de inferência e/ou dedução. As alterna- tivas de desenvolvimento de atividade crítico-reflexiva são acessíveis majoritariamente pela leitura literária, pelo le- tramento literário; 4. Pensa-se que a ausência da leitura literária na vida das pes- soas se dá só por falta de referências culturais, quando, mui- tas vezes, é resultado da forma como a literatura é apresen- tada na escola, seja porque a seleção não retrata a realidade dos/as aprendentes (muitas vezes por ser canônica e, em maioria, temporalmente distante da realidade vivida pelo corpo discente), seja pela maneira que é instrumentaliza- 9 da, pelos exercícios exigidos, pela metodologia inadequada, proporcionando a impressão de que literatura seja algo en- fadonho, difícil, para fins de análises linguísticas ou grama- ticais apenas. Entretanto, será a experiência literária que possibilitará a am- pliação de horizontes, a reflexão e o desenvolvimento da sensibili- dade. Esse contato deveria ser efetivado na escola com o ensino da literatura e das outras artes, concretizando o direito do/a aluno/a, conforme prescreve a LDB (9.394/96), em seu Art. 35, inciso III, a fim de que haja o “aprimoramento do educando como pessoa hu- mana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autono- mia intelectual e do pensamento crítico” (BRASIL, 1996). Quando esse direito não é efetivado na escola, implica negativamente na formação humana do/a aluno/a. Para Candido, ao discutirmos direitos humanos, vemos que os critérios que os determinam variam no decorrer do tempo. Por exemplo, se considerarmos os direitos trabalhistas na história, constataremos que o número e abrangência desses aumenta ou di- minui a gosto de época, governo vigente, visão de mundo, confi- guração econômica local e global etc. Dessa forma, para Candido, a partir da definição do sociólogo francês Louis-Joseph Lebret, se definíssemos bens compreensíveis (não essenciais) e incompreen- síveis (essenciais), por conseguinte, chegaríamos a uma definição dos diretos humanos como aqueles que não poderiam ser negados a ninguém (CANDIDO, 1995, p. 173). Ora, facilmente podemos assumir que alimentação, habitação, saneamento básico, educação, saúde, dentre outros, são bens in- 10 compreensíveis, enquanto cosméticos, adereços etc. seriam bens compreensíveis. Entretanto, o limite da compreensividade não é tão clara sempre e varia no decorrer do tempo e conforme a cul- tura. Dessa forma, como se determina a incompreensividade dos bens que delimitariam os direitos humanos? Para Candido: Do ponto de vista individual, é importante a consciência de cada um a respeito, sendo indispensável sentir desde a infân- cia que os pobres e desvalidos têm direito aos bens materiais (e que portanto não se trata de exercer caridade), assim como as minorias têm direito à igualdade de tratamento. Do ponto de vista social é preciso haver leis específicas garantindo este modo de ver. (CANDIDO, 1995, p. 173) A partir dessa perspectiva, se somos todos/as iguais perante a lei, o acesso aos bens incompreensíveis deveria ser igualitário. Ademais, a definição desses bens deveria ser a mesma independen- temente da posição em que uma pessoa se encontra na hierarquia socioeconômica. Para definir esses bens, Candido apresenta a seguinte premis- sa: “são bens incompressíveis não apenas os que asseguram sobre- vivência física em níveis decentes, mas os que garantem a integri- dade espiritual” (CANDIDO, 1995, p. 173-174). Para o autor, dentre os bens que garantem a integridade espiritual, estaria a arte e, por conseguinte, a literatura: “São incompressíveis certamente a ali- mentação, a moradia, o vestuário, a instrução, a saúde, a liberdade individual, o amparo da justiça pública, a resistência à opressão etc.; e também o direito à crença, à opinião, ao lazer e, por que não, à arte e à literatura?” (CANDIDO, 1995, p. 174). 11 Vista por esse ângulo, a literatura seria um direito na medida em que responde a uma necessidade humana e, ao mesmo tempo, corresponde a uma expectativa coletiva. Por um lado, para Candi- do, assim como sonhar faz parte do sono, o fabular faz parte das atividades psíquicas humanas de forma que a criatividade ficcio- nal ou lírica se apresenta como produção consciente ou incons- ciente e, simultaneamente, é objeto de busca para contato, sacian- do a necessidade intrínseca do fabular em nós. Em outras palavras, ou estamos fabulando mental ou verbalmente (narrando eventos e histórias a nós mesmos/as ou a outrem), ou estamos à procura de fábulas para nos satisfazer, tanto na forma de filmes ou séries, como em anedotas, piadas, prosa ou poesia, causos ou contos etc. Por outro lado, no âmbito da coletividade ou da cultura, a li- teratura assume o papel de transmissão de costumes e normas, fazendo parte dos mecanismos do grupo social de aculturação for- mativa. Para Candido: Neste sentido, ela pode ter importância equivalente à das formas conscientes de inculcamento intencional, como a educação familiar, grupal ou escolar. Cada sociedade cria as suas manifestações ficcionais, poéticas e dramáticas de acor- do com os seus impulsos, as suas crenças, os seus sentimen- tos, as suas normas, a fim de fortalecer em cada um a presen- ça e atuação deles. (CANDIDO, 1995, p. 175) Nessa perspectiva, a literatura humaniza, confirmando seu status como bem incompreensível: “[...] ela [a literatura] é fator indispensável de humanização e, sendo assim, confirma o homem na sua humanidade, inclusive porque atua em grande parte no 12 subconsciente e no inconsciente” (CANDIDO, 195, p. 175). Em ou- tras palavras: A leitura escolar deve contemplar o aspecto formativo de educando, estimulando-lhe a sensibilidade estética, a emo- ção, o sentimento [...] o texto literário tem muito a contribuir para o aprimoramento pessoal, para o autoconhecimento, sem falar do constante desvelamento do mundo e da grande possibilidade que a leitura de determinada obra oferece para o descortínio de novos horizontes para o homem, no sentido da formação e do refinamento da personalidade. (Silveira, 2005, p.16) Ao destituir a literatura dessa posição de bem ou direito, le- gando-a ao papel de pretexto para ensino de pontos gramaticais ou linguísticos, como o livro didático faz, ou ao apresentá-la de for- ma fragmentada, por trechos descontextualizados, a escola faz um desserviço e coloca em risco a formação integral do alunado. Concomitantemente, ao distratar a literatura no ambiente es- colar, corre-se o risco de não desenvolver o senso crítico do corpo discente, conforme os pressupostos do letramento literário. Se- gundo Cosson (2007), a linguagem literária compreende três tipos de aprendizagem: 1) A aprendizagem da literatura, que se dá através da expe- riência estética do mundo por meio da palavra, e instiga os sentidos, os sentimentos e a intimidade, pois há uma rela- ção tátil, visual, sensorial, emocional do/a leitor/a com o texto; 2) A aprendizagem sobre a literatura, que envolve os conhe- cimentos de história, teoria e crítica; 13 3) A aprendizagem por meio da literatura, que está relacio- nada aos saberes e às habilidades proporcionadas aos/às usuários/as pela prática da leitura literária: ampliação do universo cultural do/a leitor/a através dos tantos temas humanos, sociais, políticos, ideológicos, filosóficos, dentre outros, que são tratados nos gêneros literários. Ainda para Cosson (2007), o letramento literário precisa acompanhar: 1) por um lado, as três etapas básicas do processo deleitura: antecipação, decifração do código e interpretação; 2) e, por outro, o saber literário associado à função humaniza- dora da literatura. Por sua vez, para Antonio Cândido (1999), a literatura como força humanizadora exerce três funções na expressão e formação humana: 1. A primeira é a função psicológica e está ligada à necessida- de de ficção e fantasia do ser humano e à capacidade de se reelaborar o real através da ficção; 2. A segunda função é a formativa e se dá através de inculca- mentos não maniqueístas, ou uma habilidade crítico-refle- xiva que enxerga o mundo em sua complexidade; 3. E, por fim, a terceira função que é a de conhecimento do mundo e do ser, pois a literatura é uma forma de represen- tação de uma dada realidade social e humana. 14 Dessa forma, a prática da literatura consiste exatamente numa exploração das potencialidades da linguagem, da palavra e da es- crita. Ela diz o que/quem somos e nos incentiva a desejar e a ex- pressar o mundo por nós mesmos/as, e isso se dá porque a litera- tura é uma experiência a ser realizada, é uma vivência, uma vez que a leitura literária nunca será a mesma: o/a leitor/a sempre terá algo a ressignificar; e sempre poderá ressignificar-se. No exercício da literatura, podemos ser outros/as, podemos vi- ver como os/as outros/as, podemos romper os limites do tempo e do espaço de nossa experiência e, ainda sim, sermos nós mesmos/ as. É por isso que interiorizamos com mais intensidade as “verda- des” dadas pela poesia e pela ficção. Quando se trata de escolas públicas em regiões e para públicos de camadas desprivilegiadas socioeconomicamente, a não dedi- cação do ensino à literatura reitera a premissa de que esse bem se destina às camadas privilegiadas. Muitas vezes a literatura é re- tratada como objeto de consumo/luxo, “sacralizado” e distante de determinados contextos socioculturais, e isso acaba por revelar a condição elitizada dada à literatura pela classe dominante e, as- sim, delimita pertencimento, acesso e valor. Se partirmos do pressuposto de que o corpo discente da edu- cação pública se constitui, paralelamente às estatísticas da popu- lação em geral, por mulheres e negros/as, com um contingente ex- pressivo da população LGBTQI+, deveríamos nos inquietar com a constatação de que a literatura trazida pelos livros didáticos são de autoria majoritária de homens brancos cis heterossexuais. Muitas são as questões transversais que devem ser considera- das aqui. Primeiramente, emite-se a mensagem ao alunado que a 15 produção artística e de conhecimento é de domínio da etnia branca, de homens e de pessoas que se enquadram à heteronormatividade. Em seguida, e por correlação, temos a ausência de representa- tividade que afeta diretamente a autoestima, o autoconhecimento e o empoderamento de mulheres, negros/as e LGBTQI+. Em outras palavras, perpetua-se o silenciamento e invisibilidade das parce- las da população que são geralmente rotuladas como minoria, quando, numericamente, são maioria, mas que historicamente são legadas a um local de subalternidade ou não protagonismo na sociedade. Além disso, a literatura de autoria masculina branca e hetero- normativa promete dar conta de experiências humanas pelo viés da imaginação apenas, uma vez que a vivência e a subsequente e correlativa sensibilidade não são coisas compartilhadas inteira- mente quando descritas por alguém que não faz parte daquela rea- lidade sócio-histórica. Em outras palavras, apesar da arte permitir que fabulemos sobre a realidade da alteridade quanto à identidade de gênero, à orientação sexual, raça, condição socioeconômica, a partir da observação dessas realidades, do nosso conhecimento de mundo, dos relatos das experiências de outrem, o local de fala é imprescindível como autenticidade e legitimidade de uma dada realidade. Portanto, omitir a produção feminina, negra e LGBTQI+ do repertório literário escolar é reiterar a opressão, o preconceito, o local de subalternidade de mulheres, da população negra e LGB- TQI+. Assim, é urgente que a escola atualize seu acervo literário, abarcando a produção que protagoniza as minorias como por- ta-vozes de sua própria realidade. Essa guinada é essencial para 16 efetivar o papel da literatura como bem incompreensível e, conse- quentemente, como direito humano inalienável. A literatura escrita por minorias étnicas e sexuais não consta ou não está suficientemente presente no livro didático. Dessa for- ma, precisamos revisar e pensar métodos e conteúdos para instru- mentalizar os/as (futuros/as) professores/as para: 1) se atentarem da (não) presença dessa literatura no material escolar; 2) estarem suficientemente familiarizados/as com autores/as contemporâ- neos/as, modernos/as e de outras escolas literárias, de forma a estarem aptos a inseri-los no planejamento de suas aulas; 3) com- preenderem a urgência e relevância da representatividade, da visibilidade e da, consequente, reflexão sobre a diversidade e do direito e importância de uma consciência e prática inclusivas na sociedade. O presente volume, portanto, compila artigos de diferentes au- tores/as que se dedicaram a pesquisar literatura de minorias étni- cas e sexuais, ou seja, de autoria feminina, negra ou LGBTQI+, pelo viés do ensino de literatura, no âmbito dos trabalhos desenvolvi- dos pelo Grupo de Estudos “Literatura, Sociedade e Letramento” (GELSOL). Privilegiaram-se as pesquisas que se voltam à formação de leitores/as e ao letramento literário na educação básica. O obje- tivo geral é a reflexão acerca da inclusão de autoria de minorias no repertório literário em sala de aula para as mesmas minorias que compõem o corpo discente, promulgando a inclusão, a representa- tividade, o local de fala e a visibilidade tanto em relação à literatu- ra lida na escola, como ao público leitor. 17 Esperamos que sirva para referência e de prática docente que contemple as minorias étnicas e sexuais como maioria do corpo discente. REFERÊNCIAS BORDINI, Maria da Glória; AGUIAR, Vera Teixeira de. Literatu- ra: a formação do leitor: alternativas metodológicas. 2. ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1993. BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros cur- riculares nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino funda- mental: língua portuguesa. Brasília: MEC/SEF, 1998. CAMPOS, Maria Inês Batista. Ensinar o prazer de ler. 3ª ed. São Paulo: Olho d’água, 2003. CÂNDIDO, Antônio. O Direito à Literatura. In: ____. Vários Escri- tos. 3ª ed. São Paulo: Duas Cidades, 1995. ______. A literatura e a formação do homem. Remate de Males, UNICAMP, Campinas, Número especial – Antonio Cândido, 1999, p. 81-90. COSSON, Rildo. Letramento Literário: teoria e prática. São Pau- lo: Contexto, 2007. GIROTTO, Cyntia; SOUZA, Renata. Estratégias de leitura: para ensinar alunos a compreenderem o que leem. In: SOUZA, Renata (org.) Ler e compreender: estratégias de leitura. Campinas: Mer- cado de Letras, 2010. LAJOLO, Marisa. A censura moralista. O Estado de São Paulo, São Paulo, 10 ago. 2010, Educação, s/p. Disponível em http://edu- cacao.estadao.com.br/noticias/geral,a-censura-moralista,594723. Acessado em 26/05/2016. 18 LEITE, Lígia Chiappini M. Invasão da catedral: literatura e ensi- no em debate. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1983. MARQUES, L. Por que eles não conseguem ler? O Estado de São Paulo, São Paulo, 14 abr. 2002, Caderno A, p. 19. ROCCO, Maria Tereza F. Literatura e ensino: uma problemática. São Paulo: Ática, 1992. SILVA, Antonieta Mírian de O. C.; SILVEIRA, Maria Inez M. Letra- mento literário na escola: desafios e possibilidades na formação de leitores. Revista Eletrônica de Educação de Alagoas. Volume 01. Nº 01. 1º Semestre de 2013, p. 93-101. SILVEIRA, Maria Inez Matoso. Modelos Teóricos e estratégias de leitura de leitura: suas implicações no ensino. Maceió: EDU- FAL, 2005. SOARES, Magda Becker. Letramento: um tema em três gêneros. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. ZILBERMAN, Regina.Estética da recepção e história literária. São Paulo: Ática, 1989. 19 ENTRE DEUSAS NEGRAS E MORTAS CINTILANTES: A MULHER NO ORIENTE E NO OCIDENTE EM DOIS POEMAS DE CECÍLIA MEIRELES Gisele Pereira de Oliveira3 Dentre os diversos aspectos de que trata a crítica da poesia (e da prosa, em certa medida) de Cecília Meireles, há aqueles de grande notoriedade, como a bipolaridade entre o breve e o eterno, a musicalidade, a herança simbolista, o status de “poesia nas altu- ras” (PAES, 1997, p. 35-36) e de “atmosfera de distanciamento e sua- vidade” (FERNANDES, 2006, p. 30), ou seja, de seu aspecto como 3 Doutora em Letras (Literatura e Vida Social) pela UNESP-Assis. Professora Adjunta no cur- so de Letras da UPE - Campus Mata Norte. Coordenadora do Grupo de Estudos “Literatura, Letramento e Sociedade”, cujas pesquisas originaram os artigos desse volume. E-mail: gise- le.oliveira@upe.br 20 poesia das questões metafísicas, entre outros – paralelamente aos estudos sobre livros específicos de sua autoria. Entretanto, há outros aspectos lacunares na crítica de sua produção, tais como o feminino, os temas do cotidiano, aqueles historicamente localizados (com exceção dos estudos sobre o Ro- manceiro da Inconfidência, bastante estudado), o que lhe cabe de moderna/modernista e o que há de oriental em sua lírica, mais es- pecificamente, da Índia e do seu pensamento filosófico-religioso. A Índia se faz presente na lírica ceciliana como locus poético, especialmente no livro Poemas escritos na Índia, mas não exclusi- vamente ali: imagens e outras apreensões sensíveis de suas paisa- gens, do seu povo, dos hábitos cotidianos e/ou sagrados e algumas personalidades (Gandhi, Tagore, Vinoba Bhave, Sarojíni Naidu, Jawaharlal Nehru) dão vida a diversos poemas. Por outro lado, aspectos filosófico-religiosos, ou do imaginário indiano, fazem parte do pano de fundo ideológico de sua poesia, dando subsídio para sua noção de temporalidade, sua visão de mundo, dos seres, da Vida, do Ser, da morte e de seu além. Semelhantemente à inquietação que nos instiga especifica- mente ao elemento oriental na obra ceciliana, ao voltarmo-nos ao tema da mulher em sua poesia, perguntamo-nos qual seria sua perspectiva quanto à escrita feminina ou sobre o feminino, espe- cialmente quando comparamos seu olhar frente ao feminino oci- dental, em oposição ao oriental. Uma vez que estabelecemos que o feminino está presente na produção de Cecília como tema – diferentemente do que uma re- cepção crítica cristalizada e superficial aponta –, gostaríamos de deter-nos brevemente no tocante à visão de Cecília quanto à es- 21 crita de mulheres, ao mesmo tempo em que ainda considerando a escrita sobre mulheres. Haveria para a poetisa uma escrita especi- ficamente feminina? Se sim, qual sua característica/diferenciação em relação à escrita masculina? Ao escrever sobre mulheres, qual sua postura? Reprodução da representação da mulher até o seu tempo? Crítica? De autoconhecimento? Cecília, conforme apontado por Jacicarla Silva, inaugura a crítica feminista latino-americana ao apresentar a conferência4 intitulada “Expressão feminina da poesia na América”, que será publicada na forma de ensaio em 1959: “parece possível, portan- to, olhar esse ensaio ceciliano pelo viés da crítica feminista atual, como forma de salientar seu aspecto pioneiro no que tange aos es- tudos acerca da produção de autoria feminina latino-americana” (SILVA, 2009, p. 121). Ademais, a poetisa antecipa uma das posturas da crítica femi- nista atual, qual seja, a prática de se posicionar consciente e criti- camente perante o discurso dominante: sua conferência inicia-se discutindo uma posição crítica generalizante e reducionista cor- rente em relação à escrita feminina (SILVA, 2009, p. 101). Para contrapor a visão dominante e inferiorizante da produção feminina, apresentada na conferência à guisa de exemplo, Cecília cita uma “escritora comprometida com as causas da mulher e das classes minoritárias” (SILVA, 2009, p. 102) – ou crítica feminista precursora (como ela?) –, Flora Tristán, corroborando sua posição pessoal contra a superioridade masculina e seu discurso opressor. Para compreender tais asseverações quanto à posição da poetisa 4 A conferência foi pronunciada na Sala do Conselho da Universidade do Brasil em 1956. 22 como crítica feminista pioneira, se faz necessário entender mini- mamente a configuração da crítica feminista no momento em que Cecília discorre sobre as poetisas na América Latina. De acordo com Silva (2009, p. 23), a crítica feminista estabelece três momentos principais em sua história: 1) em torno da década de 1960, a crítica feminista se volta à análise da representação da mulher nas obras de autoria masculina; 2) na década seguinte, essa crítica detém-se às escritoras mulheres e sua produção; e 3) na dé- cada de 1980, o enfoque foi a questão do gênero e as relações de po- der e opressão. Além disso, há fases do que se refere à postura das escritoras, que foram denominadas por Beth Miller (SILVA, 2009, p. 23), tais como: 1) andrógina, ou o período em que as mulheres escrevem dentro dos moldes preestabelecidos pelos homens; 2) fe- minina, isto é, uma escrita que, de acordo com a vivência diferen- ciada das mulheres, produziria uma escrita própria; e 3) feminista, ou seja, a fase em que as mulheres, conscientes como tais, escreve- riam sobre “coisas de mulher”. Ainda sobre a teorização e perio- dização da crítica feminista, Elaine Showalter propõe: 1) a escrita feminina, ou aquela que internaliza e reproduz a masculina; 2) a feminista como sendo aquela que se caracteriza como de protesto; e 3) a fêmea, isto é, a da autorrealização (SILVA, 2009, p. 23). Serão Virginia Woolf, com o seu A room of one’s own (1928), e Simone de Beauvoir, com Le deuxième sexe (1949), que farão grande contribuição para a discussão da crítica feminista e, muito prova- velmente, Cecília teve acesso a essas produções, seja como tradu- tora de Woolf ou leitora assídua de textos em língua francesa. À luz dessas considerações sobre a crítica feminista, tentare- mos responder às questões formuladas acima, em torno da obra 23 ceciliana, considerando o ensaio baseado em uma conferência inti- tulado “Expressão feminina da poesia na América”. Primeiramen- te, haveria para a poetisa uma escrita especificamente feminina? Cecília, nesta conferência, apresenta diversas poetisas hispa- no-americanas cronologicamente. Por um lado, diz que no século XIX, embalado pelo Romantismo, experimentam-se na América as mesmas “inquietações sentimentais como no resto do mundo” (MEIRELES, 1959, p. 66). Por outro lado, ao se referir ao início do século XX, menciona ter havido mudanças ocorridas quanto ao acesso das mulheres à educação e que “as lutas pela afirmação do valor feminino em todos os campos alargavam facilidades que, um pouco antes, ainda pareceriam escandalosas” (MEIRELES, 1959, p. 72). Entretanto, será na década de 1940 que se notarão as mudanças significativas: Assim, as mulheres foram adotando uma linguagem mais franca e decidida, e as próprias mudanças trazidas pelo tem- po, – convívio nos estudos, as liberdades conquistadas, a igualdade ou pelo menos equivalência de homens e mulhe- res, o trabalho em comum, a ciência, que se sobrepõe à sabe- doria, o ritmo das ideologias, e outros motivos – lhes deram o privilégio de traduzir em linguagem literária todas as emo- ções que antes pareceriam incompatíveis com a sua poesia. É possível que certos excessos provenham da liberdade recen- te, ainda mal amadurecida; e como isso principia a acontecer em tempos de estudos psicanalíticos, não é de estranhar que muita coisa se leva à conta de terapêutica literária (MEIRE- LES, 1959, p. 90). Cecília, dessa forma, acompanha a equiparação de direi- tos (quanto às condições de trabalho, ao voto, à educação), que se efetuam principalmente a partir de 1930, e observa como a 24 escrita feminina se desenvolve paralelamente.Porém, ao tratar da especificidade da escrita poética feminina em oposição à masculina, diz ser difícil estabelecer uma separação nítida porque “o espírito – e a arte que é uma de suas manifestações – talvez seja andrógino” (MEIRELES, 1959, p. 102). Além disso, defende que, em termos de experiências literárias, as mulheres as têm identicamente aos homens; mais especificamente, dirá ela: E vemos que essas experiências não se resolvem apenas em composições plasticamente arquitetadas, mas que, sob essa arquitetura existe uma elaboração do espírito, uma inquie- tação e uma investigação de caminhos interiores, com os recursos inerentes à Poesia, isto é, por uma forma de Conhe- cimento que não é nem o científico nem o filosófico (MEIRE- LES, 1959, p. 103). Nitidamente, para a poetisa, não existiria essencialmente uma capacidade (ou um dom) masculino ou feminino para a poesia; se- ria, de fato, “um privilégio dos verdadeiros poetas, apenas” (MEI- RELES, 1959, p. 103). Isso estaria condizente com o status da dis- cussão da crítica feminista na época da conferência, qual seja, o da equiparação de direitos entre homens e mulheres: É interessante observar que, durante a conferência, a poeti- sa brasileira deixa transparecer essa noção de uniformidade entre a escrita de homens e mulheres, o que não é de se es- tranhar, já que Cecília está inserida dentro de um contexto social em que predomina a concepção de igualdade” (SILVA, 2009, p. 118). Então, não haveria diferença entre a escrita masculina e femi- nina? Sim, ela afirmará. Entretanto, a diferenciação tem origem 25 social, em termos de âmbito de ação e acesso a áreas e conhecimen- to, moldando o léxico, enfocando os temas pertinentes, estabele- cendo limites: As condições sociais, no entanto, separaram por muito tem- po o homem e a mulher em campos específicos. Reclusa em sua ignorância do mundo, guardiã da casa e dos filhos, seu vocabulário teria de organizar-se em horizontes próximos, fáceis de atingir pelos habitantes de seu modesto reino. En- tregue à sua sorte assim prescrita, atravessou os tempos em cativeiro ou sacrário, quase incomunicável, como os prisio- neiros e os Deuses. Nem por isso as faculdades da alma deixa- ram de palpitar sob esses muros. Como disse a peruana que há mais de um século discorria sobre a mulher limenha, suas qualidades naturais de observação e a agudeza do instinto supriram, na mulher as deficiências de cultura formal (MEI- RELES, 1959, p. 102). Em outras palavras, Cecília defende que a mulher possua a mesma potencialidade para a produção lírica que o homem, pois nada lhe falta “nem o poder verbal, nem a sutileza da linguagem, nem a variedade de invenções que cabem no seu artesanato” (MEI- RELES, 1959, p. 104). Entretanto, seus caminhos de chegada são ge- ralmente outros e, assim, sua mensagem, tanto quanto a masculi- na, dependerá “da visão emocional e espiritual a que pode atingir, por exercício ou dom” (MEIRELES, 1959, p. 104). Nesta perspectiva, podemos assumir que Cecília antecipada- mente, em relação à crítica feminista, demonstra uma consciên- cia crítica que desarticula o discurso dominante, não se submete, e se posiciona, inclusive, de forma transgressora, conforme conclui Silva (2009, p. 113). Ademais, a poetisa ao defender “as condições sociais como fator fundamental para compreender a relação de di- 26 ferença sexual” estaria de acordo com conceitos atuais acerca da diferenciação sexual a partir da organização social, pois conside- ra-se que “a identidade sexual não se constrói somente pelas dife- renças biológicas, mas pelas divergências sociais e culturais a que a sociedade submete o indivíduo (SILVA, 2009, p. 115).5 Na esteira dessas considerações, nos voltamos à Cecília como mulher e a vemos preocupada com a questão feminina nas socie- dades ocidental e oriental, ao escrever poemas que a enfrentam, e ao analisar a produção lírica de outras mulheres latino-america- nas. Para demonstrar sua veia crítico-feminista, decidimos apro- ximar dois poemas: “Mulheres de Puri”, pensando o seu olhar so- bre o feminino oriental, e “Balada das dez bailarinas do cassino”, fazendo o contraponto com sua visão da mulher no Ocidente. Cecília insere o poema “Balada das dez bailarinas do cassino” no livro Retrato Natural publicado em 1949. De acordo com Maurí- cio Vieira, este livro, semelhantemente a Rosa do Povo, de Drum- mond, e Metamorfoses, de Murilo Mendes, e paralelamente a Mar Absoluto e outros poemas, carrega o eco insistente, que reverbera da Europa, da segunda guerra e, por isso, há a tendência ao pes- simismo, a algumas imagens negativas, recorrências do tema da trajetória sem rumo certo, da esterilidade, da desolação, do es- gotamento, inclusive do próprio canto, isto é, da poesia (VIEIRA, 2004, p. 16). 5 Isso é corroborado por Bella Jozef: “As estruturas econômicas confiaram diferentes papéis econômico-sociais aos homens e às mulheres. Isso deve-se refletir também na atividade criadora. Se levarmos em conta a situação da mulher numa sociedade, numa época deter- minada, digamos a nossa, é claro que sua ficção e poesia vão nos transmitir essa posição es- pecífica. Não que a obra literária seja reflexo da sociedade: ela é algo paralelo, não há uma re- lação de causa e efeito, mas é influenciada por uma situação econômico-social específica. E, dentro desse quadro, a mulher partiu em busca de uma voz própria” (JOZEF, 1989, p. 46-47). 27 No que concerne ao nosso tema, o feminino, é interessante notar que os poemas sobre a mulher em Retrato Natural majorita- riamente tratam da “realidade que se apresenta transfigurada em imagens da negatividade” (VIEIRA, 2004, p. 17). Por exemplo, no poema “Ar livre”, a imagem da “menina translúcida” que passa sob a luz do sol e cuja imagem, inicialmente, cromatiza uma paleta de cores e luzes, na qual tecidos se evaporam, e flores e pássaros parecem surgir de seu próprio movimento, encerra-se com uma imagem que denota inércia e tristeza: “E quando para na ponte, as águas todas vão correndo,/ em verdes lágrimas para dentro de seus olhos” (MEIRELES, 2001, v. 1, p. 601). Em “Canção romântica às virgens loucas”, por sua vez, canta-se a recordação da imagem da mulher idealizada, cuja imagem evocava “rios, em frondes/ ao vento, por jardins floridos” (p. 623), e que representava “uma longa esperança” e “o amor para mais tarde”. Todavia nada é realizado, é tudo de esperança finda: tudo se resume em “puro pensamento perdido!”, pois “morrereis levianamente,/ tendo ouvido falar por alto/ do amor, da tristeza, da vida.../ Como quem ouviu, longe, um pássaro” (p. 624). E serão mulheres translúcidas, em tecidos esvoaçantes, numa imagem, quiçá, idealizada, como a das bailarinas de Degas, que talvez esperássemos ao ler em “Balada das dez bailarinas do cas- sino”. Porém ressoam a mesma negatividade ao apresentar uma realidade transfigurada em toda sua crueza. Dez bailarinas deslizam por um chão de espelho. Têm corpos egípcios com placas douradas, pálpebras azuis e dedos vermelhos. 28 Levantam véus brancos, de ingênuos aromas, e dobram amarelos joelhos. Andam as dez bailarinas sem voz, em redor das mesas. Há mãos sobre facas, dentes sobre flores e com os charutos toldam as luzes acesas. Entre a música e a dança escorre uma sedosa escada de vileza. As dez bailarinas avançam como gafanhotos perdidos. Avançam, recuam, na sala compacta, empurrando olhares e arranhando o ruído. Tão nuas se sentem que já vão cobertas de imaginários, chorosos vestidos. A dez bailarinas escondem nos cílios verdes as pupilas. Em seus quadris fosforescentes, passa uma faixa de morte tranquila. Como quem leva para a terra um filho morto, levam seu próprio corpo, que baila e cintila. Os homens gordos olham com um tédio enorme as dez bailarinas tão frias. Pobres serpentes sem luxúria, que são crianças, durante o dia. Dez anjos anêmicos, de axilas profundas, embalsamados de melancolia. Vão perpassando como dez múmias,as bailarinas fatigadas. 29 Ramo de nardos inclinando flores azuis, brancas, verdes, douradas. Dez mães chorariam, se vissem as bailarinas de mãos dadas. (MEIRELES, 2001, v. 1, p. 618-619) Cecília escreveu ao todo cinco baladas.6 Confessamente admi- radora da literatura da Idade Média e dos românticos ingleses,7 suas baladas variam em forma, apresentando esquemas estróficos e métricos variados, mantendo, entretanto, algumas constantes, quais sejam, o tom dramático, a temática trágica ou mórbida, o aspecto narrativo, ora descrevendo um evento, ora sintetizando a história de uma personalidade. Outrossim, é interessante notar que, apesar de constar em sua produção diversos poemas que remetem à música (improvisos, interlúdios, intermezzos, canções, cantigas, madrigais, serenatas 6 Cronologicamente, ela escreveu: 1) “Balada do soldado Batista” (MEIRELES, 2001, v. 1, p. 495), na qual conta, em tercetos ao embalo do estribilho “Era das águas, vinha das águas”, a história do soldado que morre em naufrágio enquanto seus pais oram, esperam, imaginam seu destino ainda em vida; 2) “Balada das dez bailarinas do cassino”; 3) “Balada de Ouro Preto” (p. 648) que trata, em sextilhas e redondilhas maiores, do aparecimento inesperado de um leproso à porta de uma casa antiga, com seus “braços fluidos/que vão sendo rosa e areia”, por quem ora para que seja aliviado de seu olhar e sorriso tristes; 4) “Balada a Philip Muir” (MEIRELES, 2001, v. 2, p. 1330) dedicada ao copeiro inglês que serviu a poetisa num navio cruzando o Atlântico, em 1941, durante a segunda guerra mundial, e a faz cogitar sua participação na guerra como “puro lorde, pelo silêncio e pela altivez”, que “serve champa- nhe, hoje. Amanhã, seu sangue, talvez”; 5) “Balada do pobre morto” (p. 1823), composta em septilhas de versos octassílabos, narra o encontro da voz lírica com um cortejo fúnebre em que decide fazer companhia ao morto: “Como vais assim sozinho,/de tal solidão coberto,/ pensei que, ficando perto,/te ajudava no caminho”. 7 “Em todo caso se for possível considerar “raízes espirituais” aquilo de que mais gosto, ou que mais repercute em mim, lembrarei o Oriente clássico e os gregos; toda a Idade Média; os clássicos de todas as línguas; os românticos ingleses; os simbolistas franceses e alemães. E principalmente a literatura popular do mundo inteiro, e os livros sagrados” (MEIRELES, 1983a, p. 68 – grifos nossos). 30 etc.), Cecília inaugurará sua composição de baladas apenas em Mar Absoluto e outros poemas, talvez por ter a necessidade, então, de uma forma poética que compactue com o tom negativo condi- zente com a guerra. Essa balada, por sua vez, é composta por versos livres em sexti- lhas – diferentemente de algumas outras de sua autoria. A variação métrica parece-nos condizente com a circunstância problemática a que o poema se refere. Mesmo possuindo um esquema de rimas um tanto estável, a desordenação métrica contribui mimetica- mente para a movimentação das bailarinas, a qual também é de- sordenada – tudo contribuindo para o acúmulo da tensão. Apesar de não ter um estribilho fixo, as protagonistas, as “dez bailarinas”, são mencionadas em todas as estrofes. De fato, sua po- sição na estrofe determinará uma cisão na estrutura do poema: da primeira à quarta estrofe “dez bailarinas” aparecem no primeiro verso e em movimento (deslizam, andam, avançam e escondem); entretanto, nas duas últimas estrofes, são deslocadas para o segun- do verso e se apresentam, desta vez, por meio de atributos, pois, agora, estão inertes, ou mortas: “as dez bailarinas tão frias”; “as bailarinas fatigadas”; e “as bailarinas de mãos dadas”. Dessa for- ma, o poema se divide em dois movimentos: do mover-se ciente a um deixar-se levar; da ação ativa para a letargia compulsória. Da primeira para a segunda estrofe também há uma divisão, ou melhor, há uma transição entre uma caracterização sagrada para outra profana, uma vez que as características das bailarinas, inicialmente, remetem a símbolos e analogias com ritos, com o sa- grado; entretanto, ao serem inseridas em um ambiente profano, perdem sua aura divina. 31 Elas são apresentadas ao/à leitor/a como aquelas que “desli- zam/por um chão de espelhos”: esta imagem narcisista pode ser uma metáfora ao deslocamento de algo sobre águas – folha, flor, seres diminutos ou alados; seja sobre um riacho, ou no mar. Tra- ta-se de uma imagem natural, pagã, e arquetipicamente sagra- da: como Ganga ou Yamuna, Deusas que são a personificação dos rios sagrados na Índia; ou semelhantes a Afrodite ou Vênus sobre águas; ou, ainda, tal qual as ninfas florestais. A correlação entre água, mulher e lua – o episódio das bailari- nas parece noturno – remete direta e magicamente à esfera da fer- tilidade feminina sagrada, pois acionada pelo rito. Atentemos ao fato de que ao deslizarem por sobre espelhos, elas têm sua imagem multiplicada exponencialmente; o que poderia denotar também fecundidade ao reproduzirem-se: “Transfiguradas em muitas, graças ao chão espelhado por onde deslizam (ou caem), elas tam- bém perfazem mais que dez, vinte, multiplicadas em progressão geométrica na exemplaridade das suas imagens” (DAL FARRA, 2006, p. 35). Essa sacralidade é corroborada pelo próximo verso ao se com- parar o corpo das bailarinas com “corpos egípcios com placas dou- radas,/ pálpebras azuis e dedos vermelhos”: são, então, hieróglifos de Deusas como Anuket (do rio Nilo), ou Tefnut (das águas), res- ponsáveis pela fertilidade. Por fim, como vestais que adentram uma arena sacrificial e se prostram em reverência, portam “véus brancos, de ingênuos aromas,/ e dobram amarelos joelhos”. Esse verso, todavia, inicia a transição que as bailarinas passam do ideal sagrado à realidade profana, introduzida na segunda estrofe, com a dobra de seus joe- 32 lhos, que é ambígua, pois, tanto pode ser uma reverência, como uma subjugação, ou humilhação. A segunda estrofe introduz o ambiente do casino: mesas, fa- cas, charutos, luzes e música. As bailarinas são as “sem voz”, que andam, não dançam, pelo recinto. Por estarem mudas, inferimos que sua subjetividade lhes foi negada e isso será a primeira refe- rência ao que classificamos como reificação da mulher aqui, isto é, sua transfiguração como objeto, que são negociadas, comercializa- das, por sua aparência e movimentos. Os consumidores/espectadores são apresentados por coisas e partes do corpo que apontam seus atributos: “Há mãos sobre fa- cas, dentes sobre flores/e com os charutos toldam as luzes acesas”. Se as mulheres são reificadas, os homens tampouco são humanos, uma vez que são apenas fragmentos e sua identificação é feita por sinédoque, a qual denota somente animosidade: a imagem é de fe- rocidade por serem só mãos e dentes sobre flores. Flores essas que são uma referência às bailarinas reificadas já que mais adiante se- rão “ramo de nardos inclinando flores”, ou seja, juntas formam um buquê de caules que, ao se vergarem, propiciam a imagem de flo- res: imagem dupla, uma vez que as saias rodadas típicas das baila- rinas, quando vistas por cima ou ao se inclinarem, assemelham-se a flores, e, aqui, caules que vergam flores por estarem murchando – um prenúncio da condição das bailarinas que se acumulará até o desfecho: murchas, isto é, sem vida; tal qual mortas. Retomando a segunda estrofe, a sacralidade ideal intuída na primeira estrofe é, portanto, profanada, pervertida, agora, pela feracidade dos homens e pela fumaça de seus charutos que obscu- recem a luminosidade/sacralidade ambiente. Uma vez que o am- 33 biente está, desta forma, convertido, a profanação se apresenta em indignidade: “Entre a música e a dança escorre/uma sedosa escada de vileza”. Apesar da presença da música e da dança, como moda- lidades de arte e elementos comuns aos rituais e cerimônias, e de uma inferida sofisticação pelo adjetivo “sedosa”, o movimento se mostrará descendente (“escada”) uma vez que o que predomina é a “vileza”; adegradação, o indigno. As bailarinas, antes sacerdotisas ou Deusas e, então, sem voz, agora, por analogia aos homens vorazes e ao ambiente degradado, são “gafanhotos perdidos”. É notório que seu sacro-ofício nunca se cumpriu, pois, nunca de fato dançaram: em nenhum momento, até então, o verbo dançar, ou algum semelhante foi empregado; ao invés disso, suas ações são outras (deslizar, andar e levantar). Neste momento, não mais deslizam sobre espelhos, mas sim, como insetos indefesos, suas ações são de hesitação, de autopre- servação ou resistência, e de repúdio: “Avançam, recuam, na sala compacta,/ empurrando olhares e arranhando o ruído” – pura so- freguidão. O desconforto, o desamparo e o risco de perigo são emi- nentes e se expressam em choro que lamenta a exposição de seus corpos: “Tão nuas se sentem que já vão cobertas/ de imaginários, chorosos vestidos”. Aqui, introduz-se a cisão a que nos referimos anteriormente. Na quinta estrofe, as bailarinas, vencidas, executam suas últimas ações no poema: escondem as pupilas, ou seja, cerram os olhos, e “levam seu próprio corpo” como para um sepulcro. A promessa de fecundidade, por referência implícita a um rito de fertilidade, no início do poema, se extingue definitivamente, pois, seus corpos são estéreis: “Em seus quadris fosforescentes,/ 34 passa uma faixa de morte tranquila”. Reificadas, transformadas em coisas, não podem produzir nada e, dessa forma, exauridas de sua própria subjetividade, “como quem leva para a terra um filho morto,/ levam seu próprio corpo, que baila e cintila”. Em outras palavras, não há mais resistência: derrotadas, destituídas de si mesmas, violadas, se entregam e pela primeira vez bailam (e brilham), mecânica ou maquinalmente, pois, coisas, inanima- das, por conseguinte, mortas. Esta estrofe apresenta suas der- radeiras ações, mas são atributos de aparência seu movimento e resplandescência. A penúltima estrofe introduz uma imagem estática. Como num quadro ou fotografia, veem-se os indivíduos cristalizados, ou passivos. Por um lado, os espectadores são finalmente nomeados como humanos, mas são “homens gordos” e sua atitude é de “um tédio enorme”. Por outro lado, as bailarinas têm atributos, não mais ações: “as dez bailarinas tão frias./ Pobres serpentes sem lu- xúria,/ que são crianças, durante o dia./ Dez anjos anêmicos, de axilas profundas,/ embalsamados de melancolia”. Tampouco são humanas, ou humanas plenas; são, na verdade, ora serpentes as- sexuais (“sem luxúria”), ora crianças (por parte do dia), ora seres sobrenaturais (“anjos anêmicos”) – não possuem status ou lugar sociais, nem expressão. Sobretudo, são cadáveres: sem desejo; pá- lidas, pois anêmicas; esqueléticas com suas “axilas profundas”; são múmias, já que “embalsamadas”; são, enfim, pálida memória, ausência, “melancolia”. Por contiguidade, na última estrofe, a morte é palpável e a imagem é de um cortejo fúnebre. As bailarinas são declaradamen- te múmias, em oposição às sacerdotisas ou Deusas egípcias da pri- 35 meira estrofe. São, então, o “ramo de nardos inclinando flores”, como dito antes, flores que se vergam murchando, ou analogia às flores que são oferecidas aos mortos durante os rituais funerários. Neste velório, o lamento vem das mães – não dos homens que as as- sistiam – que “chorariam, se vissem, as bailarinas de mãos dadas”. Lemos, portanto, este poema, como uma crítica ferrenha à reificação da mulher no Ocidente, entendendo o termo pela cono- tação de consideração da mulher como objeto, o usufruto de seu corpo, o enfoque em sua aparência, em detrimento de sua subje- tividade, dignidade, e vontade (se não, sacralidade); de seu lugar e voz no meio social ocidentalizado. Numa perspectiva história, por um lado, poder-se-ia ler o poe- ma como uma crítica à degradação das práticas femininas relacio- nadas ao âmbito do sagrado: por muito tempo na história ociden- tal – que acreditamos ser o foco aqui –, as mulheres, na Grécia, em Roma, no Egito, na Europa pré-cristianismo – e como veremos na Índia –, eram sacerdotisas, e dentre suas atividades sagradas en- contrava-se a dança, a roda, o círculo de mulheres que bailavam à luz dos astros; por exemplo, harmonizando seu ciclo menstrual com as fases da lua e, assim, celebrando a fertilidade em pacto com a natureza. Em oposição às práticas encantadas dessas mulheres, a partir da modernidade, com o crescimento das cidades, a expan- são das religiões patriarcais (cristianismo, judaísmo e Islã), vê-se na esteira do desencantamento ou declínio da magia, a desvalori- zação, senão a decadência do status da mulher no âmbito religioso e cultural. Elas deixam de ser sacerdotisas, curandeiras, educado- ras, contadoras de história, e passam a ser, assim como a natureza, dominadas, exploradas e reificadas. 36 Por outro lado, se considerarmos o período da guerra como datação da composição do poema, podemos contextualizá-lo con- siderando a situação das mulheres nesta circunstância. Quantas viúvas de combatentes foram legadas ao trabalho em casino, bares e boates como meio de sobrevivência? Quantas tiveram que se sub- meter ao inimigo, como amantes, prostitutas, ou até esposas? A guerra não é cruel apenas com os soldados mortos em batalha. As mulheres sofrem a perda dos companheiros, a desolação material, o desamparo afetivo, a submissão a situações deveras degradantes para sobreviver. Será neste período que Cecília escreverá poemas como “Lamento da noiva do soldado”, “Lamento da mãe órfã” e “Vigília”, demonstrando sua inquietação ao tematizar a problemá- tica das mulheres deixadas para trás, na retaguarda da guerra. Considerando, todavia, conforme Vieira (exatamente sobre o volume Retrato Natural), que “a relação entre história e poesia não é de espelhamento. O desafio é integrar o sentimento do momen- to, [e] a matéria histórica num universo poético próprio onde as imagens e metáforas apontam para múltiplas direções” (VIEIRA, 2004, p. 16), vemos esta temática em “Balada das dez bailarinas no casino” como uma crítica acerca da condição da mulher ocidental como algo atual e que se refere a diversas esferas da sociedade e do trabalho. Ainda há salários diferenciados por gênero, por exem- plo. Ou a exploração midiática da imagem da mulher como produ- to. Além disso, as mulheres ainda são geralmente apontadas como as que se destinam aos trabalhos subalternos ou relacionados ao âmbito doméstico etc. A cristalização de uma normatividade patriarcal até os dias de hoje, visível quando a mulher cumpre dupla jornada (traba- 37 lho assalariado e do lar; papel de pai e mãe simultaneamente), ou quando sua valorização se dá pelo corpo que possui e por seu com- portamento quanto à sexualidade, ainda exige denúncia, reflexão, mudança. Cecília demonstra-se, assim, preocupada com a questão da mulher, como crítica feminista; e sua crítica perdura, pois, tra- ta-se de uma problemática quase mundial e persistente. Entretanto, ao voltar-se para o Oriente, sua visão se relativiza e, mesmo discorrendo sobre a mulher e o trabalho árduo, humil- de, ou subalterno, há uma abordagem diferenciada. Sua visão da Índia é de uma sociedade tradicional, isto é, que incorpora o lega- do filosófico-religioso da antiguidade e, por isso, se constitui como uma sociedade ainda magicamente encantada, e isso influencia sua perspectiva ao olhar a mulher na Índia em seu ofício, como ve- remos no poema “Mulheres de Puri”: Quando as estradas ficarem prontas, mulheres de Puri, alguém se lembrará de vossos vultos azuis entre os templos e o mar. Alguém se lembrará de vosso corpo agachado, Deusas negras de castos peitos nus, de vossas delgadas mãos a amontoarem pedras para a construção dos caminhos. Quando as estradas ficarem prontas, mulheres de Puri, alguém se lembrará que está passeando sobre a sombra de vossos calmos vultos azuis e negros. Alguém se lembrará de vossos pés diligentes, com pulseiras de prata clara. Alguém amarará, por vossa causa, o chãode pedra. 38 E vossos netos falarão de vós, mulheres de Puri, como de ídolos complacentes, benfeitores e anônimos, e entre os ídolos ficareis, inacreditáveis, mudas, negras e azuis. (MEIRELES, 2001, v. 2, p. 1035) Cecília, neste poema, se refere às mulheres que viu na cidade de (Jagannatha) Puri,8 no Estado de Orissa, na costa oriental da Índia. Banhada pelo mar, contém muitos templos e é considera- da um dos sete locais de peregrinação mais importantes para o hinduísmo. A principal divindade, que dá nome à cidade, é Shri Jagan- natha, ou “o Senhor do Universo”. Acompanhado por seu irmão, Shri Baladeva, e por sua irmã, Shrimati Subhadra, são venerados no templo principal de Puri, construído no século XII. Cecília, ao visitar a cidade, detinha conhecimento de sua his- tória e discorre sobre essa em uma crônica: Porque Jagganath domina tudo. Aliás, assim deve ser, uma vez que esse nome sânscrito significa “Senhor do Universo”. Como Senhor do Universo, Jagganath sabe tudo, penetra tudo, e dizem que permite o acesso a seu templo a quantos o queiram visitar, seja qual for a religião que professam. A peregrinação a Jagganath é imensa. Imensa e constante. Em Puri, segundo me explicaram há festas todos os meses, – pequenas festas com cerimônias curiosas: os fiéis dão ba- 8 Puri significa “cidade”, sendo a abreviação do nome oficial, Jagannath Puri, ou “A cidade de Jagannath”. 39 nho nas imagens, balançam-nas em balouços, vestem-nas, oferecem-lhes iguarias, especiarias – um tesouro folclórico perenemente vivo, nestas areias da baía de Bengala... Mas a grande festa é a Ratha-Jatra, que se realiza entre junho e julho, com a célebre procissão dos carros, cujos ecos repercu- tem até o Ocidente. Os carros são enormes, de uns quinze metros de altura, com rodas de uns dois metros de diâmetro. [...] Quanto a mim, desejava apenas contemplar os carros, e foi assim que chega- mos à praça defronte ao templo (MEIRELES, 1999c, p. 222). Tendo ouvido falar das divindades e do festival de Ratha Yatra, ou “passeio dos carros”, Cecília queria ver os famosos carros. É o único evento (anual) em que as divindades são trazidas para fora do templo, colocadas em carros gigantescos puxados pelos/as de- votos/as e levadas, numa procissão que dura sete dias, para outro templo, chamado Gundicha. Após alguns dias, a procissão retorna da mesma forma para o templo principal. Cecília especificamente gostaria de ver três coisas em Puri: “ainda há três coisas que me interessam profundamente aqui [...]. Essas três coisas são: as cartas de jogar, a filigrana e o carro de Jagganath. [...] E o carro de Jagganath está mais adiante, nos templos de Puri” (MEIRELES, 1999, p. 216-217). Como sua visita foi no início do ano, ela não satisfez seu desejo – aliás, nenhum dos três foi realizado. Como ela menciona na crônica supracitada, tudo na cidade de Puri revolve em torno das divindades, do Senhor do Universo. Isso é importante para compreender o poema em questão. 40 Durante seu passeio pela cidade, observa tudo: E vi os templos de Puri! A tarde, toda vermelha nas águas do golfo de Bengala. [...] Minha esperança era o carro de Jagga- nath. E assim atravessávamos as ruas humildes, com suas cabanas cobertas de palha (frescas no verão, abrigadas, no inverno), seus muros cheios de desenhos ingênuos, com os vizinhos em conversa, as crianças em brinquedos, nesse am- biente de família humana intimamente unida, que sempre me sugerem as aldeias indianas (MEIRELES, 1999, p. 218-219). Dentre as imagens que passam perante seus olhos inventa- riantes e aprendizes, avista um grupo de pessoas que trabalha na pavimentação de estradas com paralelepípedos e essa imagem motivará o poema “Mulheres de Puri”: “E há mulheres e homens trabalhando, pelo caminho. É uma estrada, que constroem? Pe- dras amontoadas, classificadas pelo tamanho. Mulheres que as carregam” (p. 225). O ofício dessas mulheres é árduo; carregam pedras sobre as ca- beças. Enquanto as mulheres no Ocidente, em sua maioria, até a época do poema, década de 1950, ainda estão no âmbito doméstico, ou dedicadas ao ensino, secretárias, aeromoças, e artesãs, na Ín- dia, o trabalho é braçal: varredoras, colhedoras, carregadoras de água ou pedra. Os homens, por sua vez, é interessante notar, são bordadores e costureiros, lavadeiros, cozinheiros, garçons ou ser- viçais, e, apesar dessa inversão de papéis, se considerarmos os pa- drões de gênero estabelecidos no Ocidente patriarcal, Cecília não aparenta estranhar; relativiza, compreende e descreve. Porém há uma preocupação que motiva o poema: o receio de que essas mulheres desapareçam; caiam no esquecimento. Aqui, garantir a memória desse árduo trabalho é dar o mérito devido a 41 quem o executou. Dessa forma, o poema parece estabelecer um pacto entre a poetisa e essas mulheres, de que, pelo menos em pa- lavra, elas serão lembradas; serão eternizadas. O poema possui um refrão, “Alguém se lembrará”, que é com- binado com diversos itens escolhidos como meritórios de recorda- ção: “vossos vultos azuis”; “vosso corpo agachado”; “vossas mãos delgadas a amontoarem pedras/para a construção dos caminhos”; “vossos calmos vultos azuis e negros”; “vossos pés diligentes/ com pulseiras de prata clara”. A recordação que se almeja seria quanto à especificidade do trabalho executado e à aparência dessas mulhe- res; não há nada pessoal: não saberemos seus nomes, sua origem, sua história individual. De semelhante forma, elas são descritas em prosa: Belas, sérias, – quase tristes – escuras, com o sári arregaçado por entre as pernas, formando uma espécie de calção drapea- do; algumas não trazem blusa: apenas uma ponta do sári mal encobre metade do busto. Homens e mulheres trabalham em silêncio. Não é por nossa causa; já os encontramos assim. Apesar de puras de feições, e de cabelos corridos, há mulhe- res quase negras (MEIRELES, 1999, p. 225). Mulheres escuras, silenciosas, vestidas de forma modesta. Sem blusas, seja pelo calor, seja porque a relação cultural com o corpo da mulher se diferencia da nossa – na iconografia indiana, as divindades femininas e as mulheres comuns são retratadas com os seios expostos e isso pode significar que esta parte do corpo femi- nino não seja tão fetichizada como é no Ocidente. Compõe-se uma visão da mulher abrangendo o âmbito do sa- grado: “Deusas negras de castos peitos nus”. Podemos tecer um 42 primeiro contraste com as mulheres no poema das bailarinas: en- quanto naquele a exposição do corpo é vexatória, mesmo que não explícita, aqui, não há constrangimento. Se as bailarinas são vio- ladas, as mulheres carregadoras são castas, mesmo que estejam parcialmente nuas. A dicotomia é clara: de um lado, Deusas egíp- cias cintilantes e profanadas, de outro, Deusas negras e castas. Mas há uma tensão que se acumula no poema em relação ao (não-)lugar dessas mulheres na memória e, por conseguinte, na história. Essa tensão, por um lado, se concentra na medida em que a dúvida de que alguém se lembre delas se intensifica pela re- petição do refrão “alguém se lembrará”: ao mesmo tempo em que soa como um prenúncio, uma profecia, pela insistência deixa-se pairar a dúvida (“Será?”). Por outro lado, na forma do poema, de- senvolve-se a tensão pelo refrão que ressoa como um estribilho de uma prece, como uma petição reiterada dirigida às próprias Deu- sas negras – interlocutoras do eu-lírico – e que ecoa ao cosmos, como se dissesse, “oxalá alguém se lembrará de vós”. Além disso, o tom oratório é corroborado pela sonoridade do poema: a contínua assonância de “o”, “e” e “u”, até a terceira es- trofe, combinada com a aliteração predominante de sibilantes e nasais resulta num fechamento que remete a um ininterrupto sussurro; um murmúrio com nuances de revelação íntima, con- fessional. Vejamos dois exemplos: “Deusas negras de castos peitos nus”; e “alguém se lembrará que está passando sobre a sombra/de vossos calmos vultos azuis e negros”. Nota-se,também, que as três primeiras estrofes são quartetos, denotando uma harmonização, uma uniformidade entre o padrão sonoro constante e o esquema estrófico em comum. Mas que mudança ocorre na quarta estrofe? 43 Essa é um terceto e tem, no primeiro verso, a transição para um segundo movimento no poema, pois, se ainda reitera o refrão com a sonorização fechada devido às aliterações e assonâncias su- pracitadas, por outro lado, é seguido por um verso que rompe com o esquema sonoro: agora, a assonância é do “a” com aliteração das oclusivas “k” e “p”. Dessa forma, o/a leitor/a se depara com outro humor pela a abertura da tonalidade com a nova assonância. Isso é corroborado pelos objetos mencionados que introduzem lumino- sidade: as mulheres “Deusas negras e azuis” possuem, agora, cin- tilação por meio de seus apetrechos prateados – “com pulseiras de prata clara”. Sua aparência será detalhada em prosa: E é nestas [mulheres] que as joias de prata nas orelhas, no na- riz, no pescoço, nos dedos, nos braços, nos tornozelos têm, realmente, singular poder sugestivo. Estes sáris humildes são, geralmente, de um azul safira muito profundo. Pensa-se na noite estrelada, diante destas pobres mulheres que vão e vêm, na sua penosa ocupação (MEIRELES, 1999, p. 225). Essa variação sonora e visual – abertura e luminosidade – cor- robora uma possível dissolução da tensão que se acumulara. A li- tania reiterada que até então prenunciava, ou pedia pelo perten- cimento das mulheres à memória, neste momento, introduz uma afirmação. O estribilho se modifica de rogativa em promessa: “Al- guém amará, por vossa causa, o chão de pedra”. Se a problematização se dava em questão da memória dessas trabalhadoras, inicialmente, essa se resolveria pela significação sagrada desses caminhos construídos por essas mulheres. Como já mencionamos antes, Jagannatha Puri é um local de peregrinação, um dos mais sagrados locais para o hinduísmo e recebe milhões 44 de pessoas todos os anos. Venerado como extensão da divindade que a preside, a cidade também recebe reverência e adoração, pois, na lógica hierofânica hinduísta, os locais sagrados, ou dhamas, são imanentemente divinos, cujo contato resulta em diversos benefí- cios espirituais. Nesta perspectiva, o poema proclamaria que o tra- balho das mulheres nestas ruas do dhama, que serão adoradas pe- los/as fiéis por permitirem seu acesso à divindade, por metonímia, as mãos que construíram os caminhos seriam simultaneamente veneradas, mesmo que anonimamente. Enquanto as bailarinas, também anônimas, oferecem seu tra- balho em ambiente profano, as carregadoras de pedras atuam no âmbito do sagrado e seu esforço não se anulará com o amanhecer, como no casino, mas se perpetuará conforme ondas infinitas de peregrinos/as palmilharem o chão divino de Jagannatha Puri. Afi- nal, para a poetisa, essa “penosa ocupação” não passaria em bran- co para a própria divindade, já que “como Senhor do Universo, Jagganath sabe tudo, penetra tudo” (MEIRELES, 1999, p. 222), e, assim: “Mas em redor tudo são Deuses, nos seus plintos, nos seus nichos, nas suas torres... Deuses seculares, milenares, eternos. Deuses que devem estar vendo tudo isto, muito melhor do que nós vemos...” (p. 225). Contudo, a memória do trabalho dessas negras Deusas ainda se perdurará de outra maneira: “E vossos netos falarão de vós,/ como ídolos complacentes,/ benfeitores e anônimos”. Uma vez que há a veneração dos/as antepassados/as na Índia, com a pre- sença de suas fotos nos altares domésticos, por exemplo, espera- -se que seus feitos sejam reiteradamente lembrados e transmiti- dos para as futuras gerações. Neste âmbito familiar, as mulheres 45 seriam, finalmente, lembradas com seus nomes, sua história; não mais anonimamente. A analogia das mulheres com Deusas negras, no início do poe- ma, antecipou a dissolução da tensão que ocorreria mais adiante, ao se erigir as mulheres ao patamar de ídolos na última estrofe: “e entre ídolos ficareis, inacreditáveis,/ mudas, negras e azuis”. Em outras palavras, com sua veneração pelas gerações futuras conti- guamente à adoração nos altares domésticos, essas mulheres não seriam esquecidas – problemática do poema – e, mesmo sem sua expressão verbal, pois, “mudas”, seriam lembradas como “com- placentes” e “benfeitoras”. Ao mesmo tempo, parece-nos que as mulheres “negras e azuis” alçariam, no âmbito da família, dos descendentes, o status de heroínas, por lhe serem atribuída a con- dição de “inacreditáveis”. Outrossim, cabe-nos um adendo em relação à forma da divin- dade patrona de Puri: Jagannatha é negro, simples e inacreditá- vel também. A poetisa-viajante detalha sua aparência da seguinte forma: A imagem de Jagganath – contam-me – é uma tosca imagem de madeira [...]. Pintam-na de vermelho, menos o rosto, que é preto. Não tem braços nem pernas: perdeu-os, quando car- regava o mundo, para salvá-lo. Explicam essa rusticidade da imagem, contando que o ídolo primitivo foi esculpido pelo próprio Vishnu, disfarçado em carpinteiro. Está ele ainda no esboço, e pedira que o deixassem trabalhar na solidão; mas o rei, desconfiado de que se tratava de um carpinteiro preguiço- so, resolveu espreitá-lo: Vishnu desapareceu, deixando inter- rompido para sempre o seu trabalho. [...] Assim é Jagganath, o Senhor do Universo, humilde e imperfeito, no meio das ri- quezas acumuladas no seu templo (MEIRELES, 1999, p. 224). 46 Considerando essa descrição, podemos supor que a poetisa, ao dizer que as mulheres ficarão “entre os ídolos”, “mudas, negras e azuis”, está aproximando-as da própria divindade, cuja cidade tem seu chão construído por elas. Por esse serviço, portanto, alçariam uma posição eterna juntamente à divindade homenageada com seu trabalho. Tendo comentado ambos os poemas, “Balada das dez bailari- nas no casino” e “Mulheres de Puri”, nossa compreensão é de que Cecília tem visões diferenciadas ao mirar as mulheres no Ocidente e no Oriente. Sua leitura parece se balizar pela noção de sagrado e profano, sobretudo. Apesar de ambos os poemas apresentarem problemáti- cas acerca da mulher e seu lugar na sociedade, enquanto no poe- ma das bailarinas não há dissolução da tensão, parece-nos que a poetisa aposta no lugar das mulheres indianas construtoras, seja pelo espaço sagrado em que atuam, seja pela preocupação que esta cultura apresenta em relação aos antepassados. De todo modo, há a inquietação de Cecília pelo tema das mu- lheres na sociedade e esses poemas devem ser vistos como seu exercício de crítica feminista, apontando problemáticas, lançando a inquietação que lhe toca de volta ao/à leitor/a, provocando-o/a. REFERÊNCIAS DAL FARRA, Maria Lúcia. Cecília Meireles: imagens femininas. Caderno Pagu, Campinas, n. 27, Dec. 2006. Disponível em: http:// www.scielo.br/pdf/cpa/n27/32147.pdf. Accessado em 07/03/2013. FERNANDES, Moíza de C. Emily Dickinson e Cecília Meireles: entre o eterno e o efêmero, duas vozes femininas em dois diferen- tes séculos de poesia. 2006. 87 f. Dissertação (Mestrado em Litera- http://www.scielo.br/pdf/cpa/n27/32147.pdf http://www.scielo.br/pdf/cpa/n27/32147.pdf 47 tura Brasileira) – Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2006. JOZEF, Bella. A mulher e o processo criador. In: COELHO, Nelly N. et al. Feminino singular. A participação da mulher na litera- tura brasileira contemporânea. Rio Claro, SP: Edições GRD, 1989, p. 43-59. MEIRELES, Cecília. Expressão feminina da poesia na América. In: Três conferências sobre cultura hispano-americana. Rio de Janeiro: Ed. Departamento de Imprensa Nacional – MEC, 1959, p. 61-104. ______. Crônicas de Viagem 3. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1999. ______. Poesia Completa. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 2001. PAES, José Paulo. Poesia das alturas. In: ______. Os Perigos da Poesia e Outros Ensaios. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997, p. 35-36. SILVA, Jacicarla Souza da. Vozes femininas na poesia latino-a- mericana. Cecília e as poetisasuruguaias. São Paulo: Cultura Aca- dêmica, 2009. 48 HETEROSSEXUALIDADE COMPULSÓRIA COMO PRÁTICA SOCIAL DE PODER: A VIOLÊNCIA SIMBÓLICA EM DOIS CONTOS DE CAIO FERNANDO ABREU José Paulo Alexandre de Barros Júnior9 1. INTRODUÇÃO “A homossexualidade e o sujeito homossexual são invenções do século XIX” (LOURO, 2004, p. 29). A princípio, tal afirmação pode parecer precipitada ou polêmica, mas possui toda uma sus- tentação sociológica no que tange à história das sexualidades. Em- bora do ponto de vista fenomenológico, a homossexualidade exis- ta notoriamente desde os primórdios da humanidade em todas as 9 Concluinte em Letras (Português/Inglês) na UPE - Campus Mata Norte. Bolsista PIBIC (ago. de 2017 - jul. de 2018). Ex-professor da rede de Educação Básica e Supervisor Pedagógico em escolas da rede privada de Pernambuco. Tem interesse em pesquisas na área de literatura e educação voltadas as temáticas: literatura de autoria homossexual, feminina e de minorias étnicas; ensino e letramento literário. E-mail: josepauloj08@gmail.com 49 culturas, a categorização dessa identidade ou orientação sexual surge da sustentação do pensamento judaico-cristão dominante a partir da criação de artefatos simbólicos de fixação identitária con- tra qualquer orientação que fugiria do ideal de uma “sexualidade natural”10. A partir desta categorização, o que antes era definido apenas em termos de uma prática sodomita e pecaminosa, que poderia ser atribuída a qualquer indivíduo, passou a delimitar e classificar sujeitos que possuíam comportamentos sociais e sexuais diferen- tes do que era convencionado como condutas comuns a um sujei- to que possuía uma “sexualidade natural”. O sujeito homossexual passa, então, a ser marcado e reconhecido por esses traços que sur- gem nesse contexto como estigmas atribuídos a essa sexualidade/ identidade considerada desviante. Para Foucault, essas categorizações que permeiam a história da sexualidade devem ser compreendidas a partir do elo discursi- vo entre as relações sociais de poder e dominação que são estabele- cidas a partir de um regime político normativo: a norma estabele- ce um padrão e considera como erro o que se desvia deste padrão (1999, p. 297). Essa divisão hierárquica das sexualidades, fez com que os sujeitos homossexuais ou aqueles considerados subversivos passassem a ser subjugados e postos à marginalização. Tal fenô- meno social surge de forma repressiva e faz com que esses sujeitos exilados da sociedade criem subgrupos sociais, produzindo uma cultura própria que é particularizada por estilos de vida diferentes. 10 Para Foucault (1988), o termo “sexualidade natural” surge numa construção discursiva e disciplinatória para designar uma orientação sexual de uma maioria heterossexual. O que diverge deste modelo dominante é considerado anormal e desviante. 50 Na cultura ocidental, o discurso punitivo a homossexuais tor- na-se mais notório a partir do início do século XX (FOCAULT, 1988, p. 38). Entretanto, desde as correntes pós-estruturalistas que iam surgindo a partir da segunda metade desse período, observa-se um cenário de mudanças na história das sexualidades no momento em que o mundo fica envolto num turbilhão de questionamentos e eventos contestatórios. São nesses eventos contestatórios que surgem as pesquisas dos estudos culturais e mais precisamente dos estudos Queer, ocasio- nando um profundo questionamento sobre a sociedade hetero- normativa, se voltando à compreensão cultural desses sujeitos, que causam estranhamentos e que subvertem as imposições da norma. Com base nesses estudos, levam-se em conta também a exclu- são, a violência e a falta de representatividade do sujeito homos- sexual na sociedade. Indivíduo esse vítima de uma heterossexua- lidade compulsória11 que se configura como uma ferramenta de regime político e simbólico do poder do patriarcado12. Uma das perguntas que permeia a pesquisa é: como essa sociedade hetero- normativa impõe e mantém esses discursos hegemônicos e utiliza dos seus privilégios para consolidar suas práticas de degradação 11 O termo heterossexualidade compulsória ou heterossexualidade obrigatória refere-se a convenção social na qual a heterossexualidade é um imposição, criando essências do que é ser masculino, do que é ser feminino e até mesmo uma essência do próprio desejo pautada num modelo binário (homem-mulher). 12 Compreende-se aqui como patriarcado o sistema social de controle de poder primário da sociedade, dominado exclusivamente por homens adultos. 51 em relação a esses sujeitos estranhos, diferentes ou Queer13, rele- gando-os a falsas representações e ao lugar de margem? Para responder a essa pergunta (dentre outras) que norteiam a pesquisa, partimos da premissa de literatura como representa- ção (CANDIDO, 2006). E, com uma abordagem metodológica de pesquisa bibliográfica, analisaremos a prosa de Caio Fernando Abreu14 (CFA), cujos personagens, (sobre)vivem às consequências por enfrentarem as imposições e por não representarem um pa- pel de gênero que seria “natural” e “ideal” conforme a sociedade viciosa na qual estão inseridos. Assim, esses personagens narram suas histórias de vida baseadas na opressão do discurso hegemô- nico – além de denunciar práticas que refletem a inferiorização e os estigmas atribuídos a esses indivíduos. Esse é o caso dos prota- gonistas dos contos “Terça-feira gorda” (Morangos Mofados, 1982) e “A Dama da Noite” (Os Dragões não Conhecem o Paraíso, 1988), em que, por meio da narrativa, denuncia-se a violência velada e reve- lada a homossexuais no país da pseudoliberação sexual: o Brasil. Partindo leitura analítica desse corpus, busca-se compreen- der por meio da representação ficcional literária o que a socieda- de heteronormativa tem produzido, como visão/compreensão de 13 Queer pode ser traduzido por estranho, talvez ridículo, excêntrico, raro, extraordinário. Mas a expressão também se constitui na forma pejorativa com que são designados homens e mulheres homossexuais (LOURO, 2001, p. 546). 14 Caio Fernando Abreu (1948-1996), foi um escritor da literatura contemporânea que faleceu em consequência a agravos causados pela AIDS. Assumindo a posição de homem das letras, a produção de CFA foi vasta, porém, foi como contista que seu trabalho se tornou conhe- cido. Além disso, toda produção ficcional de CFA se desenvolve a partir da abordagem de temas polêmicos: homossexualidade, homoerotismo, solidão e doenças. Temas esses con- siderados como tabu dentro de um contexto social extremamente conservador e dominado pelo totalitarismo do estado. Como porta-voz e canal de representatividade das afetivida- des marginalizadas, a literatura de CFA revelou-se como reflexo e fonte de expressão a mo- vimentos que reivindicavam direitos e objetivavam uma sociedade igualitária. 52 mundo, discurso e, por conseguinte, como comportamentos. Ob- jetiva-se especificamente ir mais adiante e investigar a fundo as motivações e as consequências destes ocultamentos identitários (que são sócio-históricos). Pretende-se então delinear um estudo acerca das vozes que são subalternas, e revisar antigas fórmulas e estigmas impostos pela norma hegemônica que o centro social estabeleceu como representação da realidade. Acima de tudo, pre- tende-se deslocar um olhar analítico para às margens e compreen- der as falsas representações que são forjadas no subconsciente so- ciocultural, averiguando como a escrita de CFA desconstrói este imaginário15. Nesse caso, baseando-se nos arcabouços teóricos de Foucault (1988, 1996, 1999) Louro (2001), Spyvak (2010) e dos estudos Queer juntamente com os estudos culturais, o presente artigo tem como principal objetivo identificar na literatura de CFA, como represen- tação, a situação dos sujeitos homossexuais que se encontram em condição de marginalização na sociedade contemporânea, carac- terizando as formas pelas quais o discurso patriarcal e heteronor- mativo cria práticas de inferiorização, degradação
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