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IMAGEM PESSOAL Eliane Dalla Coletta Conceito e princípios da imagem pessoal Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: � Definir imagem e constituição do eu a partir da teoria psicanalítica. � Explicar a imagem e a representação social do eu a partir da psicologia social. � Relacionar corpo com identificação e imagem, com foco nos prin- cípios da psicanálise para a constituição psíquica e existencial do sujeito. Introdução Neste capítulo, será abordada a constituição do eu na teoria psicanalítica, a partir de três autores principais: Freud, Lacan e Dolto. Buscaremos o entendimento das relações entre o inconsciente e a consciência nas dimensões tópica, dinâmica e econômica do psiquismo, com as teorias dos domínios e das ações do psiquismo. Iniciaremos com a constituição do eu, buscando a compreensão do estado de desamparo caracterís- tico do recém-nascido até a sua inserção no mundo — via os sistemas percepção-consciência. Freud, a partir de 1920, com a segunda tópica da psicanálise, am- plifica o entendimento sobre o eu — que inicialmente era somente consciência — para um entendimento de que o ego, como represen- tante da personalidade, é o eu do indivíduo. Este último toma decisões e controla ações considerando as condições objetivas da realidade e se desenvolve desde o nascimento. Lacan, por sua vez, a partir de 1936, postulou uma nova abordagem, na qual o eu pode ser compreendido como instância do imaginário, durante o estádio do espelho. Em 1984, Dolto especifica diferenças fundamentais entre a imagem do corpo e o esquema corporal, no qual a imagem do corpo é o principal elemento na constituição do eu. Na ótica da psicologia social, estudaremos as representações com as três questões fundamentais: comunicação, construção de uma realidade e o domínio do mundo. As representações podem e conseguem induzir sentidos aos comportamentos, inclui-los em redes sociais e midiáticas. Assim como temos as representações sociais, temos também as repre- sentações de uma experiência perceptiva não presente, que a psicologia cognitiva concebe como uma imagem mental. Dessa forma, poderá ser obtido um conhecimento sobre os principais conceitos e princípios da imagem pessoal. Imagem e constituição do eu na psicanálise A psicanálise surgiu em 1900, com a publicação da primeira obra de Freud (1856-1939), A interpretação dos sonhos. Freud descobriu o inconsciente através da análise dos sonhos, atos falhos e lapsos. Com a investigação sistemática, construiu uma teoria unificada da mente, demonstrando que a certeza da consciência não é verdadeira, porque a nossa vida intencional poderá ter outros “sentidos” que não o imediato. Entre a certeza da consciência e o verdadeiro saber, instala-se o inconsciente, revelando um saber que não nos é dado, mas que deve ser procurado para ser encontrado. A descoberta do inconsciente gerou um efeito radical no pensamento da época em todas as áreas da ciência. Abordar a constituição do eu na teoria psicanalítica envolve percorrer um caminho que Freud chamou de metapsicológica, ou seja, é um campo de estudo sobre as relações entre o inconsciente e a consciência, considerando um conhecimento psicológico na busca das dimensões tópica, dinâmica e econômica do psiquismo, o que quer dizer abordar uma teoria das localiza- ções, dos domínios e das ações do psiquismo. Podemos iniciar este caminho da constituição do eu relembrando o desenvolvimento do ser humano. Ao nascer, existe uma total impotência que deixa o recém-nascido impedido de experienciar um comportamento articulado, efetivo e eficiente, que é o estado de desamparo expresso por Freud no termo alemão Hilflosigkeit, que diz respeito à condição de alguém estar sem ajuda, sem socorro. Como refere Feres (2009, p. 17): Tal impotência é tomada em duas vertentes: motorisch Hilflosigkeit (estado de desamparo motor) e psychische Hilflosigkeit (estado de desamparo psíquico). Do ponto de vista biológico (motor), temos a constatação da prematuridade do ser humano, quando do seu nascimento. Do ponto de vista psíquico, temos um aparelho que não é capaz de dominar o aumento de tensão. Conceito e princípios da imagem pessoal2 Necessitamos entender esse estado de desamparo que o ser humano expe- rimenta ao nascer, com sua total incapacidade de lidar com a abundância de estímulos e com suas próprias forças remover o excesso através da satisfação. Essa é uma das principais tarefas atribuídas à psique, que o acompanhará ao longo de sua vida. É nesse cruzamento entre uma progressiva invasão de estímulos e a sua inaptidão de evadir-se deles por suas próprias forças, que o estado de desamparo se torna um constructo teórico, sendo essa posição, segundo Feres (2009, p. 18), o requisito para o “tornar-se humano ou, simples- mente, para humanizar-se [...] a incapacidade do humano frente a si mesmo e frente ao mundo está intimamente ligada ao desamparo (Hilflosigkeit), que é a abertura à estruturação do psiquismo”. Nesse estado de desamparo, podemos imaginar uma situação com total inexistência de compreensões ou interpretações ou concepções, como se não existisse ninguém (nem corpo e nem psiquismo pré-estabelecido), e é este estádio, segundo Freud, que possibilita o caminho rumo ao campo do humano. Para tanto, há a neces- sidade de que outro ser humano já instituído auxilie (papel geralmente da mãe) para que o recém-nascido possa introduzir-se no mundo que já existe, ou seja, possibilite o desenvolvimento do seu próprio eu (FERES, 2009). A partir de 1920, com a segunda tópica de Freud, o termo “eu”, que inicialmente era a sede da consciência na primeira tópica que abrangia o consciente, pré-consciente e o inconsciente, no seu processo de identificação (com o outro) pode constituir-se com este traço, e ter uma alteração por essa imagem /referência desse outro. Portanto, o eu é a parte do que foi modifi- cado pela interferência do outro, ou seja do mundo externo, via os sistemas percepção-consciência. Nesta sua segunda teoria do aparelho psíquico, Freud introduziu os conceitos de id, ego e superego para referir-se à estrutura da personalidade. É uma estrutura dinâmica que possui interação interna e com o mundo externo, com forças e instintos que motivam o comportamento. O id é a instância inconsciente, sendo o reservatório das energias psíquicas, onde se localizam as pulsões, os instintos, os desejos. São impulsos com uma torrente de energia ilimitada que exerce pressão contínua sobre a per- sonalidade, cujo objetivo é a satisfação imediata para reduzir a tensão, pois é regido pelo princípio do prazer (a realidade impede esta descarga) e está presente desde o nascimento. A realidade é representada pelo ego. O ego tenta equilibrar as demandas do id com as exigências da realidade do mundo externo e as ordens do superego. É a instância que busca manter a segurança do indivíduo e ajuda na integração com a sociedade. O ego é regido pelo prin- cípio da realidade, sendo um regulador com as funções básicas de percepção, memória, sentimento e pensamento. Ele representa a personalidade, é o eu 3Conceito e princípios da imagem pessoal do indivíduo, que toma decisões e controla ações considerando as condições objetivas da realidade (sociedade) e se desenvolve desde o nascimento. Durante o desenvolvimento da infância, outra instância da personalidade se forma: o superego. Com a internalização das proibições, dos limites e da autoridade imposta pelos pais e professores — em conformidade com a realidade. Quando estas exigências sociais e culturais são internalizadas, ninguém mais necessita “dizer não”, a proibição já está dentro de si, o que gera muitos conflitos internos (FELDMAN, 2015). Para Bock, Furtado e Teixeira (2001, p. 101), O ego e, posteriormente, o superego, são diferenciações do id, o que demonstra uma interdependência entre estes três sistemas, retirando a ideia de sistemas separados. Oid refere-se ao inconsciente, mas o ego e o superego têm, também, aspectos ou “partes” inconscientes. Essas instâncias comportam as experiências pessoais de cada um e expres- sam o estádio de desenvolvimento que está no momento. Em decorrência disso, o psicólogo investiga a história pessoal em relação à história dos familiares e dos demais grupos sociais, os quais também se inscrevem nos valores e crenças da sociedade que nos cerca. Posteriormente a Freud, a noção do eu, sua concepção, suas funções, teriam uma nova abordagem e interpretação. Em 1936, Jacques Lacan (1901- 1981), um dos psicanalistas mais contemporâneos, fez uma releitura da teoria freudiana e situou o eu como instância do imaginário, ou seja, no campo do desconhecido, da ilusão e da alienação, cuja fase denominou de “estádio do espelho”, o formador da função do eu. Esse estádio ocorre entre os seis e dezoito meses, quando o bebê, diante do espelho, oportuniza um espetáculo fascinante, onde ainda não controla a marcha (parte motora) e nem possui uma postura equilibrada/ereta, mas com algum apoio de um andador, por exemplo, reconhece sua imagem quando está na frente de um espelho, sustentando sua postura. Segundo Lacan (1998, p. 97), o bebê “supera, numa azáfama jubilatória, os entraves desse apoio, para sustentar sua postura numa posição mais ou menos inclinada e resgatar, para fixá-lo, um aspecto instantâneo da imagem”. Durante conferência no XVI Congresso Internacional de Psicanálise (Zurique, 1949), Lacan expôs sua tese sobre o estádio do espelho: Basta compreender o estádio do espelho como uma identificação [....] como a transformação produzida no sujeito quando ele assume uma imagem - cuja predestinação para esse efeito de fase é suficientemente indicada pelo uso, na Conceito e princípios da imagem pessoal4 teoria, do antigo termo imago. A assunção jubilatória de sua imagem especular por esse ser ainda mergulhado na impotência motora e na dependência da amamentação que é o filhote do homem nesse estádio de infans parecer-nos- -á pois manifestar, numa situação exemplar, a matriz simbólica em que o [eu] se precipita numa forma primordial, antes de se objetivar na dialética da identificação com o outro e antes que a linguagem lhe restitua, no universal, sua função de sujeito (LACAN, 1998, p. 97). Disso decorre, que o sujeito antevê, em uma ilusão, a sua maturação. Ao se reconhecer na própria imagem, existe um fascínio pelo que surge no espelho, um sorriso que indica o reconhecimento e ao mesmo tempo a busca de uma autorização quanto a esse reconhecimento, ou seja, ele busca algo fora do espelho, uma confirmação através do outro (que pode ser a figura materna) de que ele fez uma conquista de que aquela imagem é sua, mas tem que haver alguma coisa que venha de um outro lugar, que intervenha nesse auto-reconhecimento. Nesse sentido, o eu é o produto de uma identificação com o outro, de um reconhecimento de uma posição que antes era uma posição do outro. Podemos entender também que o espelho dessa experiência, não é simplesmente um espelho, mas tudo aquilo que é capaz de devolver para a criança a sua imagem, podendo ser uma superfície que possibilita que ela se reconheça e se distinga do outro, ou o grupo ou o olhar do outro. Essa experiência se desdobra em muitas situações e se torna um modelo para seu corpo numa ilusão de unicidade, seu eu antes de sua determinação social. Porém, essa forma total do corpo é concedida externamente, numa imagem que se torna também a base simbólica. O estádio do espelho fundamentalmente trata do momento de constituição do eu, da identidade, do momento em que se estabelece a diferenciação entre o eu e o outro, em que ocorre também o delineamento das bordas e dos limites do nosso corpo. Lacan retoma a teoria freudiana de como o eu é constituído, e o estádio do espelho demonstra que essa não parte de um amadurecimento biológico, mas se constitui pela intermediação de uma relação em que o eu se apresenta precipitado, como resultado. Com relação ao reconhecimento da própria imagem pela criança, Roudi- nesco e Plon explicam: A criança se reconhece em sua própria imagem, caucionada neste movimento pela presença e pelo olhar do outro (a mãe ou um substituto) que a identifica, que a reconhece simultaneamente nessa imagem. Nesse instante, porém o eu [je] é como que captado por esse eu [moi] imaginário: de fato, o sujeito, que não sabe o que é, acredita ser aquele eu [moi] a quem vê no espelho (ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 212). 5Conceito e princípios da imagem pessoal Imagem e representação social pela ótica da psicologia social As representações sociais se constituem uma perspectiva teórica da psicologia social, que é atributo do conhecimento e da compreensão do contexto social. São elementos cognitivos (imagens, conceitos, categorias, teorias) socialmente desenvolvidos e compartilhados, que auxiliam na construção de uma realidade comum, favorecendo dessa forma a comunicação, ou seja, são fenômenos sociais que devem ser entendidos a partir do contexto em que foram gerados. As representações sociais abrangem três questões fundamentais: a comuni- cação, a construção de uma realidade e o domínio do mundo. A comunicação se torna facilitada pela unicidade e codificação da história individual e coletiva. Na construção da realidade, em função da comunicação da história, esta é interpretada e reinterpretada e dessa forma possibilita a reconstrução da realidade cotidiana através de posicionamentos e ações. Sendo um conjunto de conhecimentos sociais, possibilita que as pessoas se situem e dominem uma realidade (TORRES; NEIVA, 2011). A teoria das representações sociais tem como objetivo elucidar os diver- sos fenômenos coletivos, sem desconsiderar o ponto de vista individual. As representações sociais são suportadas pelo saber do senso comum das expe- riências vivenciadas rotineiramente, que podem se apoderar de significados consolidados no decorrer da sua história. Consequentemente, são decorrências do apoderamento de constructos estruturados em diferentes períodos crono- lógicos e produzidos nos novos contextos. O seu propósito é converter algo não familiar em familiar através do modo operante de classificar, tipificar, estereotipar e denominar novos eventos e convicções, para torná-los compre- ensivos a partir de ideias e teorias preexistentes e incorporados no momento em que são amplamente respeitados pela sociedade. Segundo, Torres e Neiva (2011, p. 292): Como saber do senso comum, elas ainda orientam os comportamentos e as práticas: intervém na definição da finalidade da situação e antecipam ou prescrevem práticas obrigatórias, na medida em que definem o que é aceitável em dado contexto social. Isso permite corroborar e fundamentar comportamentos e tomadas de de- cisão que rompem com os conhecimentos científicos. A temática é apreendida das falas individuais e coletivas, dos pontos de vista, atitudes e das práticas do cotidiano que são expressas nas mídias e redes sociais. Conceito e princípios da imagem pessoal6 As representações podem e conseguem induzir sentidos aos comporta- mentos, inclui-los em redes sociais. Para Tonin e Azubel (2017, p. 130), “as representações sociais possuem duas funções primordiais”: convencionalização e caráter prescritivo: [Na convencionalização temos que a] forma de saber do senso comum, as representações permitem categorizar ideias, indivíduos e acontecimentos, na matriz da cultura, e produzir uma série de classificações que vão dina- mizar os critérios e mecanismos de inclusão/exclusão, bem como balizar as formas do ajustamento, graduando a relação identidade/alteridade (TONIN; AZUBEL, 2017, p. 130). [Com seu caráter prescritivo], as representações são concebidas como fe- nômeno histórico, “produto de uma sequência completa de elaborações e mudanças que ocorrem no decurso do tempo e são o resultado de sucessivas gerações” (MOSCOVICI, 2003, p. 3 apud TONIN; AZUBEL, 2017,p. 131), elas se impõem com uma força irresistível, resultado da combinação de uma sólida estrutura prévia ao pensamento e de uma tradição capaz de estabelecer o que deve ser pensado (TONIN; AZUBEL, 2017, p. 131). Nas convenções das representações sociais, uma realidade que é estabe- lecida pelo socialmente adotado, existindo uma opressão pertinente, onde há a possibilidade de inclusão/exclusão meramente por se enquadrar ou não ao modelo instituído. E como determinam o que deve ser pensado, é possível perceber o quanto regulam a área de comunicações e definem as interações humanas, capazes de instaurar uma consciência coletiva (TONIN; AZUBEL, 2017). Assim como temos as representações sociais, temos também as represen- tações de uma experiência perceptiva não-presente, que a psicologia cognitiva concebe como uma imagem mental. Segundo Santaella e Nöth (2008, p. 30): Piaget define imagem como “esquema representativo” de um acontecimento externo e vê nela uma “imitação interiorizada” e uma transformação de um tal acontecimento [...] esta é a capacidade do ser humano de representar algo através de um signo ou um símbolo ou um objeto. A representação mental de imagens gerou discussão entre os cientistas da psicologia cognitiva que estudam o processamento de informação a respeito do pensamento: pensamento como codificado simbolicamente versus pensamento em forma de imagens. A imagem tem um caráter de esquema, um mapa cognitivo e uma disposição espacial. O ato da compreensão cognitiva se dá a partir da vivência pessoal, 7Conceito e princípios da imagem pessoal interna, que possibilita uma síntese perceptual-sensorial dos elementos da consciência, que são organizados e constituídos de uma forma singular que tem interferência interna e externa, que são concepções mentais que originarão o pensamento cognitivo e seus vínculos lógico-didáticos. Como podemos explicar as capacidades do ser humano de absorver, lembrar e compreender imensas informações como a sua história, lugares, vivências, sem a presença de esquemas corporificados, imagens, modelos mentais e representações que constituem, estabelecem, incorporam e preservam grandes quantidades de informações, conhecimentos de sensações e memórias? Conforme Pallasmaa (2013, p. 28), Uma recente pesquisa psicolinguística confirmou, de modo convincente, o uso de imagens mentais e modelos neurais em processo de pensamento e fala. [...] as descobertas dessa pesquisa apoiam a suposição de que modelos mentais corpóreos contêm conhecimento e também são usados em vários sistemas de símbolos. A função das imagens na formação e sustentação das representações sociais é manifestada pela respectiva estrutura da representação que contêm um elemento imaginário. Nas ciências sociais e humanas iremos encontrar a palavra imagem para indicar uma figura, uma imagem mental ou um con- junto de opiniões de um grupo social. Na psicologia social existem vários campos de estudo dedicados à investigação de imagens e sua utilização em pesquisas sociais têm apresentado resultados significativos para o estudo da vida social. A inserção de elementos visuais em pesquisas de representações sociais oportuniza o acesso a temáticas que não são explicitadas verbalmente e que se encontram na estrutura da representação, como a investigação de imagens publicitárias veiculadas nos diversos meios de comunicação (TERRA; NASCIMENTO, 2016). Podemos dizer que as imagens são entidades quase palpáveis que se movimentam, se entrelaçam e se solidificam continuamente no nosso coti- diano. São ao mesmo tempo culturais, transculturais, temporais, atemporais e simbólicas. Imagem do corpo na constituição do sujeito A imagem do corpo na psicanálise é um dos registros mais significantes na constituição do sujeito. O corpo para a psicanálise não é o corpo biológico e sim Conceito e princípios da imagem pessoal8 o corpo erógeno de Freud, que em função da evolução do sujeito nos estádios de desenvolvimento, passa por quatro zonas erógenas em quatros regiões do corpo. Para Lacan, o corpo é visto em três dimensões, o corpo como imagem (imaginário), o corpo assinalado pelo significante (simbólico) e o corpo como sinônimo de gozo (real) dentro dos três registros fundamentais na constituição do sujeito. Nas abordagens de Freud e Lacan, existe a análise da conexão do corpo com o eu e a sua influência no narcisismo e nas identificações primárias. Segundo Amparo, Magalhães e Chatelard (2013, p. 518), [...] para que o sujeito possa, a partir dessa imagem, [...] existir como su- jeito do desejo, sujeito falante e sujeito do inconsciente, é fundamental o cruzamento simultâneo entre a imagem especular e a palavra enquanto lei mediadora. [...] Dessa forma, haveria uma articulação do corpo com o espaço e a linguagem. Na constituição do sujeito, o corpo é um elemento de fundamental im- portância no acesso ao mundo subjetivo, no atributo primordial de todo o ser humano - a sua subjetividade, conduzindo-o ao mundo afetivo e simbólico e sua conexão com a constituição psíquica e existencial. Para Freud, o eu é antes de tudo um eu corporal, pois é a projeção de sua exterioridade. Ao nascer, a criança não distingue os limites de seu corpo, o que é interno ou externo, pois ainda está num estado de confusão. A imagem corporal será construída a partir da percepção do seu corpo (mundo interior) e do mundo externo. No corpo biológico advêm as sensações externas e internas: tato, audição, olfato, paladar e visão. Como também as sensações de dor (nocicepção), o sentido de localização corporal (propriocepção). Mas o sentido de maior importância para a constituição do eu é a visão, pois é através do olhar que o outro é conhecido, onde partes do corpo tem o contorno definido e onde o se olhar no espelho cria a imagem que Freud chamou de imagem especular, que foi originada desde o ato de olhar a si próprio no espelho, olhar para o outro e do olhar do outro (CAMPOS, 2007). Outros sentidos desempenham um papel especial na formação do eu, o tato e a nocicepção (sensação de dor). Freud refere que o corpo de uma pessoa, ou seja, mais precisamente a sua superfície, pode gerar sensações tanto internas quanto externas (percebemos o objeto que toca nossa pele e simultaneamente sentimos nossa pele sendo tocada). O tato produz duas espécies de sensações, e uma delas pode ser interna. Com a sensação de dor, atingimos um conhecimento de nossos órgãos internos durante uma doença que provoque dor, nos levando a concepção de nosso corpo (FREUD, 1996a). Segundo Amparo, Magalhães 9Conceito e princípios da imagem pessoal e Chatelard (2013, p. 504), “[...] a dialética dentro/fora, não é simplesmente efeito de processos fisiológicos, mas produto, principalmente, da constituição do imaginário ligado ao corpo e da capacidade de representar a si e ao outro enquanto entidade separada de si mesmo”. Devemos considerar, também, na constituição do eu freudiano, a fun- ção das pulsões. Desde o nascimento se faz presente um complexo universo sensório além dos sentidos oriundos do corpo biológico, que relaciona os estímulos externos provenientes do mundo externo e neste momento a figura materna é uma representante importante, com as excitações pulsionais (inter- nas), requerendo um sistema percepção-consciência capacitado para tornar o que é sentido, vivido e compreendido/percebido em traços ou referências de percepção e, mais tarde, em traços de memória (mnêmicos). Essas seriam as primeiras reproduções inconscientes da experiência somática no espaço psíquico originário, e a influência dessas forças pulsionais necessita, para serem mediadas e simbolizarem-se, da experiência de satisfação atingida da ligação com o objeto (externa-figura materna) (LEO; VILHENA, 2010). Segundo Freud (1996b, p. 73): Se agora nos dedicarmos a considerar a vida mental de um ponto de vista biológico, [uma pulsão] nos aparecerá como sendo um conceito situado na fronteira entre o mentale o somático, como o representante psíquico dos es- tímulos que se originam dentro do organismo e alcançam a mente, como uma medida da exigência feita à mente no sentido de trabalhar em conseqüência de sua ligação com o corpo. Inicialmente, na experiência neonatal, o bebê ainda não alcança a percepção na sua totalidade de si e nem dos objetos externos (mãe). A percepção de seu corpo e do corpo da mãe ocorre de forma desmembrada, segmentada em diversas partes separadas como objetos parciais (mão, boca, seio, fezes). So- mente mais tarde essas percepções espedaçadas, que são próprias da atividade autoerótica do narcisismo primordial, abrandam e dão lugar a uma percepção do conjunto (LEO; VILHENA, 2010). O narcisismo primário/ primordial, ocorre na fase em que a criança ainda não é capaz de se voltar para objetos externos, e ela própria é seu objeto de amor, que Freud situou como o primeiro estado da vida, anterior à constituição do eu, cuja fase é caracterizada por um período em que o eu e o inconsciente são indiferenciados. É esse narcisismo primário que fundamentou a teoria lacaniana do estádio do espelho e dá início à constituição do eu (ROUDINESCO; PLON, 1998). Conceito e princípios da imagem pessoal10 Narcisismo O termo “narcisismo”, na tradição grega, significa o amor de uma pessoa por si mesma. A lenda e o protagonista chamado Narciso foram afamados por Ovídio na terceira parte de suas Metamorfoses. Diz a lenda: Narciso era de uma beleza singular, filho do deus Césifo, protetor do rio de mesmo nome, e da ninfa Liríope. Atraía várias ninfas, entre elas Eco, a quem rechaçou. Eco, no desespero, suplicou à deusa Nêmesis que a vingasse. Numa caçada, Narciso parou para se refrescar numa fonte de águas claras e quando percebeu seu reflexo na água, pensou inicialmente estar vendo outra pessoa; ficou paralisado, não conseguia desviar os olhos daquele rosto que era o seu. Mergulhou os braços na água para abraçar aquela imagem que não parava de se distanciar. Estava apaixonado por si mesmo e esse era um desejo impossível. Chorou e percebeu que ele era o objeto de seu amor. Quis, então, desesperadamente se separar de sua própria pessoa e se feriu até sangrar e morrer. Fonte: Roudinesco e Plon (1998, p. 530). O estádio do espelho estabelece um delineamento inicial do eu fundamen- tado na imagem unificada do corpo na presença efetiva do outro, que presencia, por meio do olhar, a forma do semelhante. Para Lacan, essa é a primeira e crucial identificação, efetivada com a imagem ideal de si. Nesse início imaginá- rio, no qual a criança é presa, o eu irá se constituir ligado à imagem do corpo, marcando o início da instância imaginária, o eu-imaginário. Ao mesmo tempo, também marca um momento inédito, no qual a criança começa a diferenciar o seu corpo e o mundo externo a partir de sua imagem corporal. E é neste momento que a imagem do corpo concede ao sujeito o primeiro modo que lhe permite posicionar o que é e o que não é do eu. A identificação do sujeito com a imagem proporciona à criança transpor o momento pré-especular, com a imagem do corpo segmentado, constituindo uma subjetividade, pois a criança conquista nesse momento a autenticação e o reconhecimento dessa imagem como de um sujeito (CUKIERT; PRISZKULNIK, 2002). Uma nova ótica: a imagem inconsciente do corpo As abordagens psicanalíticas sobre a concepção das representações do corpo, nas décadas de 1940-1950, se canalizaram em torno da tese de Freud sobre o narcisismo e em Lacan com a tese sobre o estádio do espelho, baseando uma nova ótica quanto à função da imagem do corpo na constituição do eu. Em 11Conceito e princípios da imagem pessoal 1984, a psicanalista Françoise Dolto (1908-1988) apresenta uma nova visão sobre a imagem do corpo, trazendo a perspectiva de um registro do incons- ciente como traço estrutural, como sendo uma parte da história emocional da relação do ser humano com o outro desde a sua concepção. Essa concepção da imagem do corpo inconsciente caracteriza-a, segundo Amparo, Magalhães e Chatelard (2013, p. 512), “[...] como uma representação psíquica primária, precoce, sem figuração no instante em que é elaborada, só sendo possível sua representação num momento posterior”. Dolto (1984 apud LEO; VILHENA, 2010, p. 163), especifica diferenças fundamentais entre a imagem do corpo e o esquema corporal. O esquema corporal caracteriza o indivíduo como representante da espécie humana, não importando o lugar, a época ou as circunstâncias em que vive. É ele que desempenha o papel ativo ou passivo da imagem do corpo, no sentido de que propicia a objetivação de uma intersubjetividade, de uma relação da linguagem com os outros. Sem esta sustentação que ele representa, o indivíduo continuaria eternamente um fantasma não comunicável. É inconsciente, pré-consciente e consciente, evolutivo no tempo e no espaço, estruturando-se pela experiência e pela aprendizagem, imputando o corpo atual no espaço à experiência imediata, sendo independente da linguagem, ou seja, independente da história relacional do sujeito com os outros (DOLTO, 2008). O uso da linguagem pela espécie humana possibilita distinguir o esquema e a imagem do corpo, pois é pela palavra que a humanização se efetiva, viabilizando a transição do imediato para mediatização. Assim, a imagem do corpo se institui sendo da ordem simbólica (AMPARO; MAGALHÃES; CHATELARD, 2013). Dolto (2008) caracteriza a imagem do corpo como sendo específica de cada indivíduo, estando associada ao sujeito e à sua história, sendo peculiar de uma libido em situação dinâmica, de um tipo de relação libidinal. A imagem do corpo é inconsciente, podendo tornar-se em parte pré-consciente, apenas quando se vincular à linguagem consciente, em que são utilizadas as metá- foras e metonímias relacionadas à imagem do corpo, tal qual as mímicas e na linguagem verbal. Ela se estrutura pela comunicação entre os sujeitos. A imagem do corpo, segundo Dolto (2008, p. 14-15): [...] é a síntese viva de nossas experiências emocionais: inter-humanas, re- petitivamente vividas através das sensações erógenas eletivas, arcaicas ou atuais. Ela pode ser considerada como a encarnação simbólica inconsciente do sujeito desejante e, isto, antes mesmo que o indivíduo em questão seja capaz de designar-se a si mesmo pelo pronome pessoal eu e saiba dizer eu [...] o sujeito inconsciente desejante em relação ao corpo existe desde a concepção. Conceito e princípios da imagem pessoal12 A imagem do corpo é, a cada momento, memória inconsciente de todo o vivido relacional e, ao mesmo tempo, ela é atual, viva, em situação dinâmica, simultaneamente narcísica e inter-relacional: camuflável ou atualizável na relação aqui e agora, por qualquer expressão linguageira, desenho, modelagem, invenção musical, plástica, assim como mímica e gestos. Segundo a autora, a comunicação interpessoal é possibilitada em função da imagem do corpo ser sustentada e cruzada com o esquema corporal. Toda a comunicação é implicitamente compreendida pela imagem do corpo, pois é na imagem do corpo, alicerce do narcisismo, que o tempo se entrelaça com o espaço, e que o estado pregresso inconsciente repercute na relação presente. A imagem do corpo é estruturada pela comunicação entre os indivíduos e os fragmentos, no dia a dia, e memorizado, reprimido ou proibido. Ela pode se independizar do esquema corporal, pois se articula com ele pelo narcisismo, gerado na carnalização do sujeito na concepção. A visão de mundo de uma criança está de acordo à sua imagem atual do corpo e depende desta. Portanto, será por intermediação dessa imagem do corpo que podemos entrar em contato com ela. Desde o nascimento são palavras e fonemas que conviveram com os contatos captados pelo corpo. Imagem do corpo e caso particular do nome, segundo Dolto (2008): O nome, desde o nascimento, é ligado ao corpo e à presença do outro, contribuindo determinantemente para a estruturação das imagens do corpo,incluindo as imagens mais primitivas. “O prenome é o ou os fonemas que acompanham o sensório da criança, inicialmente em sua relação com os pais, mais tarde com o outro, do nascimento à morte” (DOLTO, 2008, p. 35). O prenome, quando pronunciado no sono profundo de uma pessoa, a despertará, assim como quando estiver em coma é provável que abra os olhos. O prenome é o primeiro e último fonema que está em relação com a própria vida e com o outro, e que a sustenta, pois foi também, desde o nascimento, o significante da relação com a mãe, desde que esta não tenha sempre chamado a criança de “meu lindinho”, ”meu amorzinho”, o que esclarece porque não se pode e não se deve trocar o prenome de uma criança sem correr um grave risco. Fonte: Dolto (2008, p. 35). A imagem do corpo é realizada como uma “rede de segurança linguageira com a mãe”, nos diz Dolto (2008, p. 122). O pré-eu da criança advém na dialética presença-ausência materna, que é continuamente legitimada de 13Conceito e princípios da imagem pessoal uma percepção que é gradualmente concatenada com a presença prometida, esperada, reencontrada e pela memorização em linguagem. Segundo a autora, A criança que ouve conhece a si mesma por quem lhe fala; e, dia após dia, este encontro personaliza, sendo ela representada, auditivamente, através de fonemas de seu nome pronunciado por esta voz, pelas percepções que ela reconhece e que fazem a especificidade daquela pessoa (a mãe) repetidamente reencontrada (DOLTO, 2008, p. 122). Como vimos, o estudo do corpo na psicanálise é complexo e possui diferen- tes pontos de vista e de abordagens teóricas. Destaca-se a posição pulsional do corpo, a dimensão imaginária, sua correlação com o eu e com o narcisismo. A imagem do corpo se constitui no campo das identificações, na imagem refletida, sob o olhar do outro, tal como o estádio do espelho, sendo de fundamental importância na constituição do eu e da constituição psíquica. Finalizando, o estudo do corpo e da sua imagem possui abordagens que se diferenciam e que se complementam na psicanálise, que contribuem para o entendimento da constituição do sujeito, de sua imagem e do seu corpo. AMPARO, D. M. do; MAGALHÃES, A. C. R. de; CHATELARD, D. S. O corpo: identificações e imagens. Revista Mal-estar e Subjetividade, Fortaleza, v. 13, n. 3-4, p. 499-520, set./ dez. 2013. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/pdf/malestar/v13n3-4/03.pdf>. Acesso em: 18 out. 2018. BOCK, A. M. B.; FURTADO, O.; TEIXEIRA, M. de L. T. Psicologias: uma introdução ao estudo de Psicologia. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. CAMPOS, S. C. da S. A imagem corporal e a constituição do eu. Reverso, Belo Horizonte, v. 29, n. 54, p. 63-70, set. 2007. 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