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Coagulopatias hereditárias O processo de hemostasia envolve uma rede de fenômenos biológicos coordenados como resposta imediata à lesão de um vaso sanguíneo no intuito de impedir uma hemorragia – lesão que tecnicamente ocorre a todo o momento no nosso organismo. Esse mecanismo inclui processos de hemostasia primária, coagulação ou hemostasia secundária e fibrinólise, sendo dependente da interação íntima entre a parede vascular, as plaquetas circulantes – originadas pelos megacariócitos – e os fatores de coagulação do sangue. Hemostasia primária: logo após um evento de lesão vascular o organismo fornece mecanismos locais de vasoconstrição, vasodilatação dos vasos tributários, alteração da permeabilidade vascular provocando edema e adesão das plaquetas. Quando as plaquetas são ativadas elas liberam o conteúdo dos seus grânulos citoplasmáticos como ADP, serotonina e tromboxano A2. O ADP ativa outras plaquetas e modifica sua forma de discoide para esférica, facilitando a agregação para formar um tampão primário no local da lesão. A agregação plaquetária ocorre pela ligação cruzada das plaquetas por meio de receptores ativos de GPIIb/IIIa nas plaquetas, do fator de von Willebrand ou fator VIII (produzido pelos megacariócitos e pelas células endoteliais, sendo armazenado pelas plaquetas) e de pontes de fibrinogênio. Nesse estágio, as plaquetas exteriorizam o fator plaquetário 3 (PF3), esse que participa de inúmeras reações da cascata de coagulação. Além disso, o PDGF dos grânulos das plaquetas estimula a multiplicação de células musculares lisas dos vasos, o que acelera a cicatrização da lesão vascular. Hemostasia secundária ou coagulação: é um processo dependente da conversão de pró-enzimas em enzimas, essas que são denominadas como fatores de coagulação (do I ao XIII). O produto final dessa cascata será a trombina enzima que atuará conversão de uma proteína solúvel do sangue (fibrinogênio) em um polímero insolúvel (fibrina). A fibrina, por sua vez, infiltra nos agregados plaquetários e consolida o tampão primário, que se transforma em um tampão hemostático estável. Os fatores II, VII, IX e X são dependentes da vitamina K. De modo geral, esse processo inicia com a lesão vascular, em decorrência da exposição do fator tecidual (FT ou FIII) ligado à membrana, esse que interage com o fator VII plasmático. O complexo FVIIa-FT ativa os fatores IX e X, sendo que essa pequena quantidade de fator Xa – juntamente com o fator Va – converte uma pequena quantidade de protrombina em trombina. Todavia, se o fator Xa dissociar-se da superfície celular, ele é inativado pelo inibidor da via do fator tecidual (TFPI). Se essa resposta precisa ser amplificada, a pequena quantidade de trombina gerada ativa mais plaquetas, inibe a fibrinólise e ativa os fatores V, VIII e XI na superfície das plaquetas. O fator VIIIa se junta com o IXa e forma um complexo tenase, responsável por ativar o fator X, que se junta com o Va e forma o complexo protrombinase. Assim, a produção de trombina é intensificada, tendo muita conversão de fibrinogênio em fibrina. Além disso, o fator XIII é ativado pela trombina para estabilizar o coágulo. Todo esse processo é dependente de fatores como presença de cálcio e produção de energia. Vasoconstrição: reduz o fluxo no local lesionado, tornando preferencial o fluxo pelos vasos tributários dilatados Edema intersticial: diminui gradiente de pressão entre o interior do vaso e seu entorno, promovendo um tamponamento natural Adesão das plaquetas: ocorre após contato do sangue com o colágeno subendotelial, na presença do FvW Fibrinólise: o sistema de coagulação é contido e inibido por anticoagulantes fisiológicos específicos como TFPI, proteína C, proteína S e antitrombina III, a fim de que a produção de trombina não escape do controle. Além disso, para evitar a progressão desnecessária da trombose, tem-se fatores como o fator tecidual do plasminogênio (TPA), que é liberado pelo endotélio e circunda a área da lesão – podendo converter o plasminogênio em plasmina, molécula que lisa a rede de fibrina e dissolve o coágulo. Em contraposição, a antiplasmina combina-se com o excesso de plasmina liberada e impede uma fibrinólise generalizada, mantendo o equilíbrio durante todo o processo. As coagulopatias hereditárias – hemofilia A, hemofilia B e doença de von Willebrand – são doenças hemorrágicas decorrentes da deficiência de um ou mais fatores da cascata de coagulação sanguínea, afetando o controle hemostásico do indivíduo. Elas se caracterizam pela ocorrência de hemorragias de gravidade variável, de forma espontânea ou pós-traumática. 1) Hemofilia A É a mais comum das deficiências hereditárias de fatores de coagulação, sendo por deficiência do fator VIII. Possui herança ligada ao sexo recessiva, apesar de até 1/3 dos pacientes não terem história familiar. Todos os homens que herdam tem a doença, mas nem todas as mulheres desenvolvem (mesmo sendo portadoras), já que elas têm a inativação aleatória do cromossomo X, em que a expressão pode ser variada dependendo da quantidade de X com a mutação inativado naquele tecido que produz o fator VIII. O gene do fator VIII é localizado próximo da ponta do braço longo do cromossomo X, sendo extremamente grande e, portanto, mais susceptível à mutação. No caso da hemofilia A, o defeito é a ausência ou um baixo nível plasmático de fator VIII, prejudicando a cascata de coagulação e a formação de trombina. Existe uma mutação do tipo flip-tip, em que o gene do fator VIII é quebrado por inversão na extremidade do cromossomo X. Assim, a gravidade da hemofilia depende do grau de expressão do gene e, consequentemente, de produção do fator VIII. Quadro clínico: lactentes podem ter hemorragia em articulações e tecidos moles, hemartrose dolorosa, hematomas musculares, maior susceptibilidade a equimoses, sangramentos prolongados e até mesmo espontâneos, entre outros. Achados laboratoriais: TTPA e dosagem do fator VIII anormais, mas com TP normal. Tratamento: é feito por uma equipe multidisciplinar, em que episódios de sangramento são tratados com reposição do fator VIII, sendo geralmente controlado com aumento de 30 a 50% dos níveis do fator. Todavia, para grandes cirurgias, tratamento pós-traumático sério ou hemorragia em local perigoso realiza-se o aumento do fator para 100%, conforme as diretrizes. O fator é disponibilizado por infusão, podendo ser derivado de plasma doador ou recombinante produzido em laboratório. Alguns pacientes produzem anticorpos anti- FVIII, de modo que se necessita de um tratamento adjunto com imunossupressores. A desmopressina (DDAVP) pode ser utilizada em casos mais leves, sendo um análogo da vasopressina que aumenta os níveis plasmáticos de fator VIII. Pode ser administrada por via intravenosa, nasal ou subcutânea. 2) Hemofilia B ou doença de Christmas É a deficiência de fator IX, tendo herança e aspectos clínicos semelhantes à hemofilia A. O fator IX é codificado por um gene junto do fator VIII, em que sua síntese também depende de vitamina K. Sua prevalência é de 1/5 dos casos totais de hemofilia. Achados laboratoriais: TTPA e dosagem do fator IX anormais, mas com TP normal. 3) Doença de von Willebrand Nessa doença tem-se a diminuição do nível plasmático ou função anormal do fator de von Willebrand, resultante de ampla variedade de mutações em várias partes do gene. O FVW tem ação na adesão plaquetária, além de ser a molécula portadora do fator VIII, protegendo-o de destruição prematura. Tem-se três tipos de doença de von Willebrand conforme a porcentagem de produção desse fator, em que o tipo 2 possui quatro subtipos. Em geral, a herança é autossômica dominante e a gravidade do sangramento varia conforme o tipo de mutação e expressão fenotípica em outros genes, que possam influenciar no prognóstico da doença – como o grupo sanguíneo ABO.Quadro clínico: sangramento de mucosas, perda sanguínea excessiva depois de cortes e escoriações superficiais, hemorragia operatória, pós-operatória e pós-traumática. Casos de hemartrose e hematomas são raros, exceto no tipo 3, com deficiência completa. Achados laboratoriais: tempo se sangramento anormal, baixos níveis de fator VIII e FVW, TTPA prolongado, contagem de plaquetas normal (exceto no subtipo 2B, que está baixa). Tratamento: é feito por medidas locais e agentes fibrinolíticos como o ácido tranexâmico, infusão de DDAVP (em paciente do tipo 1) e concentrados de FVW de alta pureza para pacientes com níveis muitos baixos desse fator (são usados apenas FVW derivados de plasma). Todas as demais deficiências genéticas de fatores de coagulação (deficiências de fibrinogênio, protrombina, fatores V, VII, combinação V e VIII, fatores X, XI, XIII ou mutações da trombomodulina) são raras. A herança é autossômica recessiva em todas, menos na deficiência de fator XI, onde há penetrância variável. Existem algumas mutações que podem contribuir para fatores de hipercoagulabilidade, como: Mutação no fator V: aumento da produção de fator V, de modo que a resposta da cascata de coagulação é aumentada, gerando aumento no risco de trombose venosa e arterial. Nesse caso a proteína C não consegue degradar o FVa, fato que aumenta a produção de trombina e, consequente, a formação de coágulos. Mutação do fator II: aumento da produção de protrombina, que fica muito ativa e aumenta, consequentemente, o risco para desenvolvimento de trombose – principalmente se amplificado por fatores ambientais. Testes de função hemostática São exames feitos para avaliar se a hemostasia defeituosa é decorrente de um distúrbio vascular, distúrbio de função plaquetária ou defeito na coagulação do sangue. Dentre eles pede-se: Hemograma completo: deve incluir contagem de plaquetas e exame microscópico da distensão sanguínea. Tempo de protrombina (TP): avalia os fatores VII, X, V, protrombina e fibrinogênio, sendo o tempo médio normal para coagulação de 10 a 14 segundos. Tempo de tromboplastina parcial ativada (TTPA): avalia os fatores VIII, IX, XI e XII, além dos fatores X, V, protrombina e fibrinogênio. O tempo normal para coagulação é de 30 a 40 segundos. O prolongamento no tempo de coagulação no TP e no TTPA, quando causado por deficiência de fator, é corrigido pela adição de plasma normal ao plasma em exame (50:50). Se não houver correção, ou se a correção com plasma normal for incompleta, suspeita-se da presença de um inibidor da coagulação. Tempo de protrombina (TT): é sensível à deficiência de fibrinogênio ou à inibição da trombina, sendo que o tempo de coagulação é de 14 a 16 segundos em plasma normal. Teste de função plaquetária: mede a queda na absorção da luz no plasma rico em plaquetas à medida que as plaquetas se agregam. Teste de fibrinólise: por uma trombelastografia ou trombelastometria avalia-se a presença de um estado hiperfibrinolítico. Dosagem de D-dímero: avalia presença de produtos de degradação de fibrina, que se aumentados indicam uma atividade sequencial de trombina e plasmina. Dosagem específica de fatores de coagulação
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