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HERITIER , Francoise- Masculino-Feminino-o-pensamento-da-diferenca (capítulo 9 )

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FRANÇOISE HÉRITIER
•..
INSTITUTO
PIAGET
MASCULINO
FEMININO
o PENSAMENTO DA DIFERENÇA
CAPÍTULO 9
o SANGUE DO GUERREIRO
E O SANGUE DAS MULHERES* -
CONTROLO E APROPRIAÇÃO
DA FECUNDIDADE
Para qualquer observador da sociedade ocidental não
restam dúvidas de que ela está marcada por um gritante
domínio masculino.
A subordinação feminina é evidente nos domínios do
político, do econômico e do simbólico.
Há poucas representantes femininas da nação, nos órgãos
locais ou centrais do governo (decisão e administração).
No plano económico, as mulheres estão a maior parte
das vezes confinadas à esfera doméstica, de onde elas
nunca chegam a sair: com efeito, as mulheres que têm um
trabalho assalariado devem combinar as duas actividades.
Quando têm actividades fora do campo doméstico, é raro
poderem aceder ao topo, aos postos de responsabilidade,
de direcção, de prestígio, na sua profissão.
No plano 'sirnbólico, passando pela tradição e pela educa-
ç50 dada aos filhos, as actividades valorizadas e prezadas
são as realizadas pelos homens.
Para mais, um conjunto de julgamento de valores coloca
em evidência características apresentadas como naturais e
logo irremediáveis, observáveis no comportamento, nas
>I- Cahiers du GRIF, Inverno de 1984-1985. A versão original apareceu sob
o título «Maschille/Femminile» na Enciclopedia Einaudi, torno VIII,
Turim, 1979
195
196 197
•..
capacidades, nas «qualidades» ou «defeitos» femininos consi-
derados como marcados sexualmente de maneira típica.
Um discurso negativo apresenta as mulheres como cria-
turas irracionais e ilógicas, desprovidas de espírito crítico,
curiosas, indiscretas, tagarelas, incapazes de guardar um
segredo, rotineiras, pouco inventivas, pouco criativas princi-
palmente nas actividades de tipo intelectual ou estético,
medrosas e frouxas, escravas do seu corpo e dos seus senti-
mentos, pouco aptas a dominar e a controlar as suas paixões,
inconsequentes, histéricas, inconstantes, pouco fiáveis
mesmo traiçoeiras, astutas, invejosas, incapazes de serem
boas camaradas entre si, indisciplinadas, desobedientes,
impúdicas, perversas ...Eva, Dalila, Galateia, Afrodite ...
Existe um outro conjunto de discursos, aparentemente
menos negativo. Frágeis, caseiras, pouco dotadas para a
aventura intelectual e física, doces, emotivas, procurando
a paz, a estabilidade e '0 conforto do lar, fugindo das res-
ponsabilidades, sem espírito de decisão ou de abstracção,
crédulas, intuitivas, sensíveis, ternas e pudicas, 'as mulhe-
res têm por natureza necessidade de ser submissas, dirigi-
das E: controladas pelo homem.
Em ambos os casos, e sem ligar às contradições entre as
duas versões (a mulher ardente, a mulher fria; a mulher
pura, a mulher impura), este discurso simbólico apela a
uma natureza feminina, morfológica, biológica, psicológica.
Estas séries qualitativas são marcadas negativamente
ou de maneira desvalorizada, enquanto as séries qualitativas
masculinas correspondentes são positivas ou valorizadas.
A diferença entre os sexos é, sempre e em todas as socie-
dades, ideologicamente traduzida numa linguagem binária
e hierarquizada. Hierarquizada, enquanto se deveria logica-
mente esperar que os dois pólos estivessem equidistantes
de um meio termo que seria positivo. Mas o meio termo não
é positivo e está frequentemente ausente. O tépido existe
entre o quente e o frio, e a combinação dos dois poderá ou
não ser positiva.
Sóum dos dois pólos é valorizado; estranhame~t~"é .mui-
tas vezes valorizado o aspecto considerado moralmente
cQE'0..n~g~ti~?~_~contraf'i-ºA_~sv~Qrizad.9 ~Q, aspectopcsitivo
de umJ).él(~e oposições. Por exemplo, todos os homens em
so.~iedadedizem'pretem apaz-a guerra, ffiã'S,"no entanto, por
todo o lado um homem é mais bem visto se se revelar valo-
roso no combate e não «efeminado. (este termo foi escolhido
de propósito). A valorização do pólo negativo dá conta de
uma relação de forças. O que é moralmente o melhor pode
ser socialmente desacreditado ou ter um estatuto negativo.
John Ingham apresenta um exemplo notável a partir de
um estudo sobre a medicina e a caracteriologia nas comu-
nidades mexicanas". Como sucede entre os Samo, o quente
vai com o seco, o frio com o húmido, os homens estão do
lado quente, as mulheres do lado frio, e um certo número
de qualidades são assim marcadas. Deste modo, ser macho
ou ser avarento é ser quente; ser bom, generoso, ingénuo é
ser frio; o meio certo, o homem que estaria envolvido em
relações equilibradas com outrem sem ser nem demasiado
macho nem demasiado ingénuo deveria se!' um ideal. Mas
tal homem não existe. Apenas existem o macho e o tonto, o
imbecil, que é na realidade o generoso e o ingénuo. No
imaginário popular, é bom ser macho e mal ser tonto. Em
principio, a generosidade é preferível à dureza, a chuva à
seca, a paz à guerra. Mas a realidade dos julgamentos e dos
actos desmente esses princípios morais.
Há então um sexo maior e um sexo menor, um sexo «forte»
e um sexo «fraco», um espírito «forte», um espírito «fraco».
Será esta «fraqueza» natural, congénita, das mulheres que
legitimaria a sua sujeição até no que diz respeito ao seu corpo.
Não levantaremos aqui a questão de saber se a relação
desigual dos sexos na sociedade ocidental pode e deve
mudar e, em caso afirmativo, em que modalidades, mas
duas questões inteiramente diferentes.
Pod~E10Sdizer que este domínio masculino é universal?
Se sim, onde se 'situa a origem, a explicação desta desigual-
dade profunda entre os .sexos?
1 John Ingham, «On Mexican folk medicine», American Anthropologist
12, 1970, pp. 76·87.
.'
•..
Nas grandes sociedades actuais, observaríamos um
nivelamento cujo ponto central é um domínio de tipo
patriarcal, tendo as mulheres sido despojadas de direitos
ou de situações privilegiadas que anteriormente detinham,
sob a influência de vários fâctores: as religiões reveladas
judaico-cristãs e islâmica; o desenvolvimento do comércio e
da indústria privilegiando actividades de tipo novo e pertur-
bando as situações adquiridas; a incidência do colonia-
lismo veiculando e agravando estes dois félctores n as
regiões onde foi aplicado
Retorquiremos que não vemos muito bem como é que
as religiões reveladas que privilegiavam o papel do homem
teriam podido nascer e desenvolver-se numa coritracor-
rente absoluta da ideologia dominante nesses tempos. Da
mesma maneira, não vemos bem porquê, se em dado lugar
elas tinham sido dominantes política, económica e ideolo-
gicamente, as mulheres teriam sido incapazes de se adaptar
às transformações sociais implica das pela mudança de
ordem económica ou pela colonização.
Em todos os casos, o nivelamento em questão traduziu-se
verosimilmente pelo agravamento, não pela inversão pro-
gressiva de um estatuto.
eminentes são os dos homens nascidos em grupos de filia-
ção definidos por mulheres, ou a situações míticas como a
das Amazonas.
Com efeito, nas sociedades matrilineares, a posse da
terra, a transmissão dos bens, os poderes políticos (poderes
locais ou políticos mais alargados) pertencem aos homens.
Mas tanto nesse caso, como numa sociedade patrilinear, os
pais que transmitem bens e poderes aos filhos, são os irmãos
da mãe, os tios maternos, que os transmitem aos seus sobri-
nhos.
Houve efectivamente mulheres guerreiras, as Amazonas.
É verdade, pois, que em certas sociedades ameríndias as
mulheres acompanhavam os homens na caça e na guerra.
Não os comandavam. Acompanhavam os homens. Como
de resto faziam na Gália as jovens concubinas. Uma
mulher casada tinha filhos e ficava no lar; mas, entre as
jovens púberes ainda não casadas, algumas viviam em
concubinagem com os chefes, por exemplo, e tinham o
direito de participar nas caçadas e nas operações guer-
reiras, embora não tivessem adquirido o estatuto normal
da rnu lher casada. Isto no entanto não significa que a
civilização gaulesa alguma vez se tivesse aproximado do
matriarcado.
Do mesmo modo que não eram matriarcais as socieda-
des micénicas só por reverenciarem deusas-mães. O deus
principal era uma deusa, a Terra. Os cultoseram dirigidos
à fecundidade, à fertilidade, por intermédio desta deusa-
-mãe; Zeus só foi introduzido mais tarde. Mas as crenças
religiosas não implicam que o corpo da. organização social
esteja em harmonia total com uma ou outra das suas impli-
cações.
Uma representação arcaizante e mística das origens fala
uma linguagem ideológica e não realista.
Na África Ocidental, esta representação arcaizante das
origens fala directamente sob a forma de um mito da sepa-
ração dos sexos. Na origem, pois, nada de um comunismo
primitivo, mas uma separação espacial dos sexos, com uma
gestão social separada: no fim de contas, não existia nem
o TEMA DO MATRIARCADO PRIMITIVO
A segunda versão do argumento baseado na História
reenvia-nos para a teoria evolucionista bem conhecida do
matriarcado primitivo, derivada das teses de Bachofen
(1861), segundo a qual teria existido um estado inicial da
humanidade marcado pela ignorância da paternidade fisio-
lógica, o culto das deusas-mães e do domínio feminino,
político, económico e ideológico, sobre os homens.
Este não é o lugar para fazer a crítica das teorias evolu-
cionistas da humanidade; diremos apenas que o termo de
matriarcado, implicando a ideia do poder feminino, foi e
continua a ser frequentemente utilizado para se referir de
facto a situações reais de matrilinearidade, onde os direitos
.-
200 201
patriarcado nem matriarcado. Um deus superior proibia-os
de se verem. Tinha estendido sobre o solo, entre os homens
e as mulheres, um grande tapete de folhas secas, de maneira
que lhes fosse impossível encontrarem-se sem fazerem
barulho e assinalar ao deus as infracções à regra. Mas os
homens desejavam tanto encontrar-se com as mulheres que
rastejavam sobre o solo deitando água à sua frente para
humedecer as folhas, impedindo-as assim de fazer barulho.
Um dia, foram surpreendidos pelo seu deus, que se sujeitou
então perante os factos: já que não se conseguiam manter os
sexos separados, iriam então viver em conjunto daí para a
frente, com todos os inconvenientes que isso significava.
O que era lamentável, era a existência de dois sexos: o
mundo teria sido muito mais fácil de organizar se houvesse
só um.
Para construir a sociedade, as primeiras regras são as
que se referem ao parentesco e ao casamento. Ora, por
haver dois sexos, parentesco e casamento não podem con-
duzir senão a relações de inversão entre os sexos e não de
simetria. Reparemos por exemplo no que se passa no caso
de dado casamento preferencial: se um homem deve despo-
sar a filha do irmão da sua mãe, a situação recíproca para
uma mulher fá-Ia desposar o filho da irmã do seu pai.
Percebe-se uma inversão fundamental entre os sexos
sem ser claramente enunciada sob a forma seguinte: a
mulher age sempre ao contrário do homem. É esse o escân-
dalo principal. Em nenhuma sociedade é costume homens
e mulheres agirem de maneira totalmente paralela ou simé-
trica. De princípio há a binaridade, depois tudo é distri-
buído em dois e afectado a um sexo ou a outro, segundo
dois pólos que são dirigidos como se fossem opostos.
dada por numerosos autores, desde o célebre trabalho do
jesuíta Lafitau (1724) e a história da vida de Mary jemison
publicada por Seaver em 1880.
Nas seis nações iroquesas, as mulheres não eram tratadas
com uma deferência ou um respeito particulares e parece,
segundo Lewis Morgan, que os homens se consideravam
superiores, consagrando todas as suas actividades à caça
de longa duração (uma campanha podia durar um ano) ou
à. guerra. Mas as mulheres, ou pelo rnerios algumas delas,
gozavam de direitos ou de poderes raramente igualados.
A regra de filiação passava pelas mulheres e a residência
era matrilocal. As mulheres pertencentes à mesma linha
viviam na mesma casa, grande, com os seus esposos e os
seus filhos, sob a tutela de «rnatronas» que, infelizmente,
não se sabe com exactidão como eram escolhidas.
Essas matronas, que comandavam e dirigiam a vida das
grandes casas, dirigiam igualmente o trabalho feminino agrí-
cola, apanágio das mulheres, realizado em comum nas terras
co~ectivas, propriedade das mulheres da linhagem. As pró-
pnas matronas faziam a redistribuição dos alimentos cozidos,
por cada lar, pelos hóspedes ê pelos membros do Conselho.
Estas matronas eram representadas, senão no Grande
Conselho das Seis Nações iroquesas, pelo menos no Con-
selho dos Anciãos de cada nação, por um representante
masculino que falava ern seu nome e fazia ouvir a sua voz.
De facto, essa voz não era negligenciável, uma vez que
as matronas dispunham de um direito de veto no que dizia
respeito à guerra, se o projecto guerreiro não lhes agradava.
. J?odiam sempre impedir a realização de um projecto de
guerra que não tivesse o seu acordo, proibindo simples-
mente às mulheres que fornecessem aos guerreiros a provi-
são de alimentos secos ou concentrados que eles necessi-
tassem de levar.
Para J.udith Brown, as matronas iroquesas deviam o seu
estatuto elevado ao facto de controlarem a organização
económica da tribo (são também elas que redisfribuem o
produto da caça masculina), O que é possível, tendo em
conta uma estrutura social matrilinear favorável, porque a
o CASO DOS IROQUESES
A sociedade humana que, do ponto de vista da antropo-
logia, parece ter sido a mais próxima da definição do
matriarcado, é a dos Iroqueses (Judith Brown, 1970), estu-
.'
202 203
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~'''-.'- ",;,",,;'f1
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actividade produtora fundamentalmente das mulheres, isto
é, a agricultura de enxada, não era incompatível com a
possibilidade de se ocuparem das crianças.
Segundo o mesmo autor, parece, de maneira interes-
sante, que só existem três tipos de actividades económicas
que permitem esse acumular de tarefas: a colheita, a agri-
cultura de enxada e o comércio tradicional (o que não quer
dizer que todas estas sociedades que praticam estas formas
de actividade oferecem às mulheres situações privilegiadas).
Resta assim afirmar que não era indiferente que fossem
as matronas a possuir um alto estatuto entre os Iroqueses.
Voltaremos mais tarde a este assunto.
DA QUASE-IGUALDADE
À QUASE-ESCRAVATURA
A busca de uma verdade original apoia-se no estudo
das sociedades que consideramos como as mais primitivas
(embora elas tenham também uma história), isto é, as socie-
dadesde caçadores-recolectores, essas populações que não
praticam nem a agricultura nem a criação de animais, e
vivem por antecipação directa dos frutos da natureza, da
caça, da pesca, da apanha de insectos e pequenos animais,
da colheita de bagas, frutos e gramíneas selvagens.
Haverá actualmente uma trintena de sociedades de
caçadores-recolectores. Elas não oferecem uma visão
comum das relações homens/mulheres que poderemos
supor ser a sobrevivência de um único modelo arcaico.
Mas todas, parece, manifestam a existência de uma supre-
macia masculina, com enormes variações no entanto, que
vão da quase-igualdade dos dois sexos entre certos grupos
índios de pescadores (como os Anaskapis do Canadá) à
quase-escravatura das mulheres nos Ona (ou Selk'nam) da
Terra do Fogo (Arme Chapman).
É verdade que em certas sociedades de caçadores-
-recolectores (nomeadamente na Austrália e em África) as
mulheres gozavam de uma grande autonomia. Maurice
i~
I
1
I
204
Godelier explica isso pelo facto de não existir então dife-
rença entre ~conomia doméstica e economia pública, por
causa da ~,:sencia da propriedade privada, e porque a uni-
dade familiar não é estritamente conjugal. Os homens não
exercem aí c?ns~rangime~tos físicos; os trajectos do grupo
em deslocaçao sao escolhidos para combinar uma boa caça
e uma boa colheita; as mulheres têm liberdade de movi-
mentos e dispõem de si mesmas.
Mas estes pontos de vista «idílicos» não devem fazer
esquecer. a existência de outros grupos pertencentes ao
mesmo tipo económico, e onde as relações dos homens e
das mulheres são marca das pela violência.
Anne Chapman descreveu, por exemplo, uma socie-
dad~ onde as mulheres não têm nenhum direito, onde um
mando pode bater, ferir e até matar a sua esposa sem incorrer
em nenhumas~n~ão, onde as mulheres, desprezadas, só
co~e~em quotidianamenm a brutalidade na sujeição, e,
}Jenod!camente, aguando das sessões da sociedade de ini-
ciação masculina que podiam durar vários meses o terror e
a violência infligidos pelos mascarados. É in;eressante
neste caso notar que urn mito de origem justifica este
estado de dependência.
. Na origem, conta Anne Chapman, os homens, em
situaçâo de abjecta submissão, eram obrigados a executar
todos os trabalhos, incluindo os domésticos, e serviam as
esposas, de onde saíam os rugidos de máscaras aterra-
doras.
A Lua dirigia as mulheres. Isso durou até ao dia em que o
Sol, ho~~~ ,e~tre os homens, que trazia a caça para junto da
:abana iruciática para alimentar as mulheres, surpreendeu as
Jovens a troçar da credulidade dos homens e compreendeu
que as máscaras não eram a emanação dos poderes sobre-
~aturais dirigidos contra os homens, mas um subterfúgio
Inventado e utilizado pelas mulheres para os manter em
estado de dependência.
Os homens estrangularam então todas as mulheres à
e~cepção das raparigas mais jovens com a memória virgem,
e Inverteram os papéis.
-»
205
206 207
,.•
A Lua voltou ao Céu onde procura sempre vingar-se do
Sol: sendo prova disso os eclipses do Sol. Essa alteração das
coisas justifica o poder masculino absoluto.
As mulheres são mantidas na ignorância da situação
original, o mito só é efectivamente transmitido aos hom-ens
durante os períodos de iniciação; como os homens, elas
vêem na lua e nos seres que lhe estão associados inimigos
do género humano, na medida em que sabem que eles são
hostis aos seus irmãos, aos seus filhos, aos seus maridos.
Encontramos por vezes a narração de uma inversão
fundadora a partir de premissas bem diferentes, porque o
facto estrutural é precisamente o tema da inversão funda-
dora, o mito de um m,undo ao contrário que é preciso endi-
reitar, e não o conteúdo particular de cada história.
Assim, entre os povos lagunares da Costa do Marfim, as
sociedades ma trilineares de poder masculino evocam
igualmente nos seus mitos um estado original inverso,
baseado desta vez em instituições total e harmoniosamente
pa trilineares.
O Rio reclama ao grupo o sacrifício de uma criança antes
de se deixar atravessar. A mulher do chefe recusa dar o
seu filho, enquanto a irmã do chefe dá o seu, para salvar
o seu irmão e o grupo inteiro. O chefe decide então que daí
para a frente a transmissão de poderes e de bens far-se-á
não para o filho do homem, mas para o filho da irmã, sobri-
nho uterino.
No entanto, aí não é exercida nenhuma violência femi-
nina sobre os homens para lhes tomar uma parte das suas
prerrogativas. Duas mulheres: a esposa e a irmã; duas ati-
tudes femininas consideradas diametralmente opostas, e a
partir das quais o chefe decreta a nova lei da filiação; o
egoísmo da esposa-estrangeira, o altruísmo e devotamento
da irmã-consanguínea.
Contudo, já o chefe é macho e o estatuto de chefe per-
manece masculino. E neste endireitar as coisas, são a filia-
ção e a sucessão agnáticas que estão ao contrário, não a
supremacia masculina.
É que o mito não fala da História: veicula uma mensa-
gem. A sua função é legitimar a ordem social existente.
Os exemplos acima dos Ona, Baruya, Dogon, explicam
que a ordem social, encarnada na proeminência do masculino,
baseia-se numa violência original feita às mulheres. O mito
declara explicitamente que toda a cultura, toda a sociedade
se baseia na des~gualdade sexual e que esta desigualdade é
uma violência. E necessário então acreditar em actos reais
intencionais de violência inicial, como actos fundadores da
ordem social?·
«MATRlARCADO PRIMITIVO»
E FUNÇÃO SOCIAL DOS MITOS
Magnífico exemplo da natureza mítica, isto é, pura-
mente ideológica, do tema do matriarcado primitivo numa
sociedade patriarcal do tipo mais «primitivo».
Não é um exemplo isolado. Entre os Baruya da Nova
Guiné, que não são caçadores-recolectores mas horricultores,
e que também praticam iniciações masculinas, ensina-se aos
homens, aquando desses estágios iniciáticos, que foram as
mulheres que originalmente inventaram o arco e as flautas
cerimoniais.
Os homens roubaram-lhas penetrando na cabana mens-
trual onde esses objectos estavam escondidos. Desde então,
só eles se sabem servir delas - a flauta é o meio de comu-
nicação com o mundo sobrenatural dos espíritos -, o que
lhes confere uma supremacia absoluta (Godelier).
Entre oa-Dogon, da África Ocidental, o mito conta um
despojamento similar do poder das mulheres sobre o uni-
verso do sagrado, tendo os homens roubado as saias das
máscaras de fibras tingidas de vermelho.
Em todos estes casos, trata-se de sociedades com um
marcado poder masculino, que justificam a sua organização
social em relação a um estado mítico matriarcal original.
Porém, não se creia que o mito do matriarcado original é
universal e que esta universalidade prova o carácter histó-
rico do assunto, confortando assim as teorias evolucionistas.
208 209
•..
É necessário crer num despojamento histórico, ou trata-se
apenas do discurso justificativo que a sociedade tem de si
própria para dar conta de uma situação produzida por um
conjunto de causas não intencionais, objectivas? Mais tarde,
voltaremos a este ponto essencial.
Já dissemos que o mito legitima a ordem social. No
entanto, nem todas as sociedades elaboraram mitologias
propriamente ditas para «fundar» o domínio masculino,
para dar-lhe sentido, Mas todas têm um discurso ideoló-
gico, um corpo de pensamento simbólico com esta mesma
função de justificar a supremacia do homem aos olhos de
todos os membros da sociedade, tanto mu lheres como
homens, pois ambos participam por definição da mesma
ideologia, inculcada desde a infância.
UM CORPO SÓLIDO
DE PENSA:t-v1ENTO SIMBÓLICO
do húmido que não têm em si mesmos fortes valores posi- 'j
tivos ou negativos, mas assumem-nos em associação em!
diferentes contextos.
Assim, na ordem do corpo, o quente e o húmido estão do
lado da vida, da alegria, do conforto, logo do positivo,
enquanto o seco e o frio estão do lado da morte, logo do
negativo (os mortos estão sedentos). Mas na ordem das esta-
ções, o seco está do lado positivo com O quente do Verão, o
húmido está do lado negativo com O frio do Inverno.
No que diz respeito à sexualidade, as mulheres, corpos
vivos, logo quentes e húmidos que arrefecem e secam com
as perdas dos mênstruos, deveriam então ser mais secas
que os homens.
Ora, o masculino é quente e seco, associado ao fogo e ao
valor positivo, o feminino é frio, húmido, associado à água
e ao valor negativo (Empédocles, Aristóteles, Hipócrates).
É que se trata, diz Aristóteles, de uma diferença de natu-
reza na aptidão de «cozer» o sangue: os mênstruos da
mulher são a forma inacabada e imperfeita do esperma.
A relação perfeição/imperfeição, pureza/impureza, que
é a do esperma e dos mênstruos, logo do masculino e do
feminino, encontra por consequência em Aristóteles a sua
origem numa diferença fundamental, apresentada como
«natural», biológica, que é uma construção do espírito, a
aptidão para a cocção: é porque o homem é à partida
quente e seco que resulta perfeitamente o que a mulher,
por ser naturalmente fria e húmida, só consegue imperfei-
tamente, nesses momentos de mais forte calor, sob a forma
do leite. À partida, postula-se que a característica binária
de dois pólos conotados de ~aneira negativa e positiva,
característica que estabelece a desigualdade ideológica e
social entre os sexos.
Esse discurso médico-filosófico, que dá uma forma--
sábia às crenças populares, é como O mito um discurso
propriamente ideológico. As correlações das oposições
binárias entre si não se enraízam numa realidade biológica
qualquer, mas unicamente nos valores positivo ou negativo
atribuídos desde a partida aos próprios termos. Tal como o
I
II
I
Estes discursos simbólicos são construídos sobre um sis-
tema de categorias binárias, de pares dualistas, que opõem
face a face séries como Sol e Lua, alto e baixo, direito e
esquerdo, claro e escuro, brilhante e sombrio, leve e pesado,quente e frio, seco e húmido, masculino e feminino, supe-
rior e inferior.
Reconhecemos aqui a armação simbólica do pensa-
mento filosófico e médico grego, tal como a encontramos
em Aristóteles, Anaximandro, Hipócrates, onde tanto o
equilíbrio do mundo como o do corpo humano e dos seus
humores se baseia numa harmoniosa mistura desses con-
trários, toda excesso num domínio que gera desordem
e/ou doença.
No pensamento grego, as categorias centrais são as do
quente e do frio, do seco e do húmido, directamente asso-
ciadas à masculinidade (o quente e o seco) e à feminilidade
(o frio e o húmido) e, de maneira aparentemente inexplicá-
vel, afectadas de valores positivos por um lado, negativos
por outro, embora haja uma certa ambivalência do seco e .
210 211
,.
mito, a sua função é justificar a ordem do mundo como
ordem social.
Assim, num conjunto perfeito que une o mito, a classifica-
ção dos vegetais e a relação ideológica dos sexos é-nos expli-
cado por Mareei Détienne (1977), a partir de histórias
mitológicas da concepção por Hera apenas, sem a presença
de sêmen, de Ares e de Juventa, porque a alface, erva hortí-
cola fria e húmida, é consumida pelas mulheres: é excelente
pac"C\"a vindi'l das rnenstruações e pam o bom escoamento do
sangue, mas o seu corolário é a frustração do prazer. Por essa
razão, os homens nunca a consomem, por medo da impotên-
cia e da privação do desejo e do prazer (foi ela que tornou
Adónis impotente). Como o prazer sexual pertence de direito
aos homens, as mulheres devem contentar-se em procriar e
preparar-se para isso consumindo alimentos adequados.
mos em presença «o frio, o cru e a natureza estão do lado do
homem, o quente, o cozido e a cultura do lado da mulher»,
o mito de origem faz das mulheres nada mais que «homens
fendidos»: foi de um homem que saiu a primeira mulher, e
a mulher procriadora não é mais que um saco, um reci-
piente que abriga temporariamente uma vida humana criada
pelo homem. Sempre remetida para O espaço doméstico, ela
não pode sair da ordem masculina a que está confinada
él n;:ín ser por l1mél e":'1";;;O no sentido pr0!")rio, no de"prto de
gelo e de neve, que a conduz à morte por esgotamento.
Podiam ser propostos muitos outros exemplos, africanos,
indonésios, americanos, etc .. Em todos os casos, conjuntos de
reduções simbólicas dão o seu sentido às práticas sociais.
Naturalmente, noutras culturas, outros sistemas binários
além do baseado no quente e no frio podem designar as
mesmas práticas ou antes, COlTIO nos Inuit, um sistema
binário baseado no quente e no frio pode inverter toda ou
parte da série das associações coriexas.
Com efeito, não há nessas escolhas, racionalidade baseada
numa apreensão objectiva de um dado natural, por mais
que pareçam naturalmente legítimas. É preciso considerar
estas oposições binárias corno sinais culturais e não como
portadores de um sentido universal - o sentido reside na
própria existência destas oposições e não no seu conteúdo, é a
linguagem do jogo social e do poder.
o TRABALHO SIMBÓLICO
E A LÓGICA DOS CONTRÁRIOS
AS APARÊNCIAS DA RAZÃO
Não há dúvida de que o pensamento grego condicionou
a nossa própria cultura ocidental, como vamos ver.
Mas como explicar, a não ser pelas constantes próprias
do trabalho simbólico a partir do mesmo material, isto é, o
dado anatómico e fisiológico dos sexos e a relação social
invertida que se segue em certas situações, que esta mesma
lógica dos contrários, das oposições binárias de valores
positivo e negativo, se encontra em sociedades onde a
influência do pensamento grego não se fez sentir?
Assim, no pensamento chinês, o yin e o yang são os
dois princípios constitutivos do universo, cuja existência
harmoniosa se baseia na união bem sentida dos contrários.
Yin é o feminino, a terra, o frio, a sombra, o norte, a chuva,
O inferior. O yang é o masculino, o céu, o calor, o sol, o sul,
a impetuosidade, o superior.
Nos Inuit do Árctico Central (Saladin d'Anglure, 1978),
onde a Lua é homem e o Sol a sua irmã é mulher, onde, ao
contrário dos exemplos gregos e chinês para alguns dos ter-
I "-. O discurso da ideologia tem em todo o lado e sempre
todas as aparências da razão.
O nosso próprio discurso cultural, herdado de Aristóteles,
baseia-se também nas diferenças biológicas, numa pretensa
natureza eterna, numa relação social instituída.
Sob esse ponto de vista, é interessante considerar o dis-
curso científico e médico do século XIX, tal como ele é
expresso, por exemplo, nos escritos de Julien Virey (Yvonne
Knibiehler,1976).
"
212 213
,.
Por deslizes sucessivos, passa de uma caracterização
dos sexos do tipo binário para a legitimação do domínio de
um sexo sobre o outro, sob a cobertura da argumentação
científica mais moderna, objectiva, racional, extraída da
argumentação de um dado biológico. Contudo, nada nos é
aqui restituído a não ser o discurso de Aristóteles, ou dos
Inuit, ou o dos Baruya da Nova Guiné.
Para Virey, o casal ideal é «um macho moreno, peludo,
seco, quente e impetuoso, [que] encontra o outro sexo
delicado, húmido, liso e branco, tímido e pudico».
É a energia do esperma que dá a segurança e a audácia
às mulheres casadas: «É certo que o esperma masculino
impregna o organismo da mulher, que aviva todas as suas
funções e as aquece.»
A mulher tem uma sensibilidade «delicada» devida aos
seus tegumentos leves e finos e a uma ramificação mais
intensa que os nervos e os vasos sanguíneos intradérmicos
no homem. Esta sensibilidade delicada dá-lhe uma aptidão
particular para o prazer, uma inflamação fácil das paixões,
logo, uma tendência natural para a desvergonha, para a
depravação, para a impossibilidade de se concentrar e de
reflectir, actos que são, quanto a eles, eminente e essencial-
mente masculinos. Esta mesma sensibilidade que designa
por natureza a mulher pelos cuidados dados às crianças,
aos velhos, gera também paixões temíveis, razão pela qual
o homem tem de a controlar estreitamente.
Virey escreveu: «Se a mulher é fraca pela sua própria
constituição, a natureza quis então torná-Ia submissa e
dependente na união sexual; ela nasçeu então para a doçura,
para a ternura e mesmo para a paciência, para a docilidade:
deve então suportar sem murmúrio o jugo das dificuldades,
para manter a concórdia na família pela sua submissão
(sublinhado nosso)» (De l'éducation, 1802).
Ao contrário do que pensa Yvonne Knibiehler, não se
trata de um pensamento individual «ingenuamente» falo-
crático influenciado pelos estereótipos da sua época, mas
ao contrário da expressão construída, sob uma forma sábia,
de arquétipos comummente partilhados.
Este texto traduz, de maneira racional e «científica», os
juízos de valor popular do tipo dos enumerados no começo
deste capítulo. Está no prolongamento do pensamento de
Aristóteles, que elaborou racionalmente arquétipos muito
anteriores, e prefigura o discurso dos médicos alienistas e
higienistas do século XIX, nomeadamente sobre a histeria
feminina, ou sobre o tratamento da masturbação.
O discurso simbólico legitima sempre, acabámos de o
ver, o poder masculir.c, q:lc:- pela razão das violências iniciais
míticas que as mulheres teriam feito sofrer aos homens, e
logo de um mau uso do poder quando elas o detinham nas
suas mãos (mito Ona da Terra do Fogo), quer pela impossi-
bilidade «natural», biológica, onde elas se encontram, de
aceder ao grau superior, o do homem.
Em todos os casos o homem é a medida natural de
todas as coisas; ele cria a ordem social.
Os Baruya da Nova Guiné (Godelier) exprimem directa-
mente esta mesma ideia: as mulheres são a desordem, são
certamente mais criativas que os homens, mas de maneira
atarantada, desordenada, impetuosa, irreflectida. Assim, na
aurora dos tempos, como já vimos, elas inventaram as flautas
e o arco que os homens furtaram em seguida e que são o
sinal do seu poder. Mas elas tinham montado o arco ao con-
trário e matavam às cegas, de maneira anárquica, à sua
volta. Os homens depois de o terem roubado montaram o
arco correctamente: o que faz com que de futuro matem
com plena consciência.Onde as mulheres criadoras trazem
a desordem, o homem traz a ordem, a medida racional de
todas as coisas. Assim falam o mito e o discurso simbólico.
Como explicar então o estatuto tão particular, entre
outros exemplos, das matronas iroquesas?
Judith Brown (1970) declara que as fontes antigas não
permitem conhecer o modo de designação das «matronas»,
chefes de grandes casas. Mas ela, parafraseando outros
autores, designa-as com o termo de decanas domésticas
(<<elderlyheads ofhouseholds»).
Postularemos que se tratava verosimilmente de mulhe-
res avançadas em idade e, se a vez de chefia da casa não
r
surgia automaticamente por simples sucessão, de mulhe-
res de idade mais poderosas que outras, em carácter, em
força de alma, em autoridade.
Avançaremos assim a hipótese de que o termo «matro-
nas», utilizado pelos autores antigos, designa as mulheres
de idade, logo, dizendo as coisas de outro modo, na sua
verdade fisiológica, mulheres que tenham ultrapassado ou
atingido a idade da menopausa.
A menopausa não é um assunto sobre o qual pússalHo6
encontrar muitas informações na literatura antropoló-
gica: assunto no qual não se pensa, assunto constrangedor,
assunto censurado para não dizer assunto tabu. Fala-se da
avançada em idade, da velhice, como estado de vida, mas
nunca do limiar em que tudo oscila.
Contudo, surge de maneira geral, nos relatórios antro-
pológicos, quando se trata de mulheres, cujo estatuto indi-
vidual tem tendência a mudar na sua velhice - para falar
claramente, quando elas atingem a menopausa - ou se são
estéreis, isto é, nas situações em qué as mulheres não o são
ou já não são capazes de conceber.
Conduzem os seus próprios negócios sem interferência nem
apoio dos homens e, por vezes, nem deixam o seu marido
intrometer-se no que quer que seja sem o seu assentimento.
Pensa-se que são activas sexualmente e não convencionais
no amor, mas elas próprias pretendem ter mais virtude que
as outras mulheres. Em caso de adultério, não temem ser
arrastadas pela praça pública porque acusam-nas de estarem
prontas a defender-se por meio de feitiçaria. Não temem
sequer as conscquências místicas dos seus actos.
Por fim, tal como os homens, têm o direito de organizar
danças do Sol e de participar nos julgamentos por ordália.
Elas têm a «força».
Entre os Piegan, o que é então preciso para ser-se
reconhecida como mulher com coração de homem?
Oscar Lewis indica que é necessária a combinação de
duas características: é preciso ser rica, ter uma posição
social elevada; e é preciso ser casada.
É igualmente melhor ter mostrado na sua infância sinais
precursores, ter sido a filha preferida do pai, rica em cava-
los. Uma mulher pobre será derrotada e ridicularizada se
pretender ter comportamentos de mulher com coração de
homem. .
Algumas mulheres só se tornam «coração de homem»
depois de vários casamentos e viuvezes sucessivas de onde
herdaram uma parte dos bens dos seus defuntos esposos.
Tornadas «coração de homem», desposam - esquema mas-
culino - maridos mais jovens que elas (entre 5 a 26 anos,
segundo as estatísticas de Oscar Lewis) que elas dominam
em todos os aspectos.
O casamento é pois uma necessidade absoluta para ter
«coração de homem» e é dele que provêm a riqueza e o
estatuto elevado.
É pena não se saber mais do sistema de pensamento dos
Piegan, mas é muito provável que as ideias aristotélicas do
tipo das que Virey desenvolve estejam bastante próximas
das suas (va mulher casada tem alguma coisa de mais viril,
de mais masculino, de mais seguro, de mais atrevido que a
virgem tímida e delicada ... Vemos vulgarmente raparigas
i,
MULHERES «COM CORAÇÃO DE HOMEM»
Um artigo muito interessante de Oscar Lewis (1941) fala
daquelas que os Índios Piegan canadianos designam de
mulheres «com coração de homem».
Nesta sociedade descrita como perfeitamente patriarcal, o
comportamento feminino ideal é feito de submissão, reserva,
doçura, pudor e humildade. Existe no entanto um tipo reco-
nhecido de mulheres que não se comportam com a reserva e
a modéstia do seu sexo, mas com agressividade, arrogância e
atrevimento. Não são contidas nas palavras nem nos actos:
algumas urinam publicamente, como os homens, cantam
cânticos de homens, intervêm nas conversas masculinas.
Este comportamento anda a par de um domínio perfeito
das tarefas tanto masculinas como femininas que elas exe-
cutam. Fazem tudo mais depressa e melhor que as outras.
214 215-»
216 217
A PEDRA DE TOQUE DA FECUNDIDADE
perigosa, que acumula o calor e contra a qual se arrisca a
acusação de feitiçaria, sobretudo se for pobre e viúva, logo
sem «força» para responder a isso e poder defender-se.
Não é o contrário do exemplo dos Piegan, mesmo que
uma rápida olha dela nos levasse a pensar isso, porque a
mulher «com coração de homem» que, inversamente, se ri
das acusações de toda a ordem porque tem a «força» para
lhes responder impunemente com a feitiçaria, deve ser rica
e casada.
Na maior parte das populações ditas primitivas, a este-
rilidade - feminina, entenda-se, porque a masculina não é
em geral reconhecida - é a abominação absoluta. Mas nem
sempre.
Assim, nos Nuer da África Ocidental, uma mulher,
quando é reconhecida como estéril, isto é, depois de ter sido
casado e ter ficado sem filhos durante um certo número
de anos (até à menopausa, talvez?), regressa à sua família de
origem onde é daí em diante considerada como um homem:
«irmão» dos seus irmãos, «tio» paterno para os filhos dos
seus irmãos.
Vai poder constituir um rebanho COfüO urn homem, com
a parte que lhe vem do título de tio, sobre o gado distribuido
como preço do noivado pelas suas sobrinhas. Com esse
rebanho e o fruto da sua indústria pessoal, adquirirá por
sua vez, como se fosse um homem, o preço do noivado
para procurar uma ou várias esposas.
É corno marido que ela entra nessas relações matrimo-
niais institucionais. As suas esposas servem-na, trabalham
para ela, honram-na, testemunham-lhe as marcas do respeito
devidas a um marido.
Ela recruta um servidor de uma outra etnia, Dinka a
maior parte das vezes, a quem pede, entre outras prestações
de serviços, o serviço sexual para a sua ou suas esposas. Os
filhos nascidos dessas relações são seus, chamam-na de
«pai» e tratam-na como se trata um pai-homem. O papel
do progenitor é de todo subalterno: talvez ligado afectiva-
mente aos produtos que procriou, não é mais que um servi-
dor, tratado como tal pela mulher-marido, mas também
gordas perder a sua boa disposição com o casamento como
se a energia do esperma imprimisse mais rijeza e secura às
suas fibras», De la femme). o homem, a qualidade do
esp~rma do homem, faz a mulher, a qualidade da mulher.
Entretanto, é necessário que uma condição suplementar
seja preenchida para ser-se mulher «com coração de
homem». Não faz explicitamente parte das condições enume-
radas pelos informadores, o que não nos deve admirar pois
que se trata de urna condição sitie quú fLUI/. é necessário ter
uma idade avançada.
Sobre as 109 mulheres casadas da amostra de Oscar
Lewis, 14 são do tipo «com coração de homem». Uma tem
45 anos, outra 49, as restantes entre 52 e 80 anos. Entre-
tanto, apenas uma tem 32 anos. Em consequência, Lewis
acrescenta aos dois critérios precedentes o da maturidade.
Mas a palavra é sem dúvida fraca. Para a maior parte da
amostra, trata-se de mulheres fora do seu período de
fecundidades, menopáusicas.
Em nenhuma delas se faz alusão aos filhos que elas
tenham posto no mundo, o que é lamentável, pois teria
sido interessante saber se a mulher de 32 anos considerada
mulher «com coração de homem» tinha conhecido gravide- .
zes ou não.
Em todo o caso, o próprio Oscar Lewis declara que os
desacordos dos informa dores quanto ao assunto da carac-
terística «coração de homem» desta ou daquela mulher só
diziam respeito às mais novas.
Menopausa e esterilidade suscitam imaginários, atitu-
des e instituições extremamente contrastadas segundo as
sociedades, e contudo explicáveis segundo a mesma lógica
simbólica.
Se o modelo iroquês ou piegan não é raro no que diz res-
peitoa mulheres de idade, outras sociedades, principal-
mente africanas, fazem da mulher menopáusica "Umamulher
"
218 219
,.
pelas esposas e pelos filhos. Será remunerado pelos seus
serviços com a oferta de 'uma vaca, «preço da procriação»
sempre que se casar uma das filhas que tiver procriado.
Assim, seja absoluta ou relativa - isto é, devido à
idade, à menopausa -, a esterilidade e o corpo social das
instituições e comportamentos que ela suscita podem selT'.pre
explicar-se segundo os esquemas das representações simbó-
licas atrás analisadas.
pelo controlo: apropriação das próprias mulheres ou dos
produtos da sua fecundidade, repartição das mulheres
entre os homens.
As mulheres são fecundas, inventivas, criam a vida; em
contrapartida, vimos' como ao homem pertence manter a
ordem, a regulamentação, impor limites, determinar esferas,
inscrever a política.
Esse controlo possibilitado pelo handicap que duplica o
poder da fecundidade: a mulher g:nívidél m' (1'-1E' aleita está
menos apta para a mobilidade que o homem. Podemos
assim mostrar que nos Bosquímanos, caçadores-recolecto-
res-nómadas, sem animais domésticos para fornecer leite,
um homem percorre entre cinco e seis mil quilómetros por
ano, uma mulher entre dois mil e quinhentos e três mil.
Sucede, CITl todo o caso, que a mulher estéril não é, ou já
não é, uma mulher propriamente dita. De maneira negativa
ou positiva, mulher imperfeita ou homem imperfeito, está
mais próxima do homem que da mulher.
Assim, não é o sexo, mas a fecundidade, que faz a diferença
real entre masculino e feminino, e o domínio masculino, que
convém agora tentar compreender, é fundamentalmente o
controlo, a apropriação da fecundidade da mulher, enquanto
ela for fecunda.
O resto, a saber, as componentes psicológicas, as aptidões
particulares que compõem as figuras da masculinidade e da
feminilidade segundo as sociedades e que supostamente
justificam o domínio de um sexo por outro, é um produto da
educação, logo da ideologia.
«Não se nasce mulher, torna-se», escreveu Simone de
Beauvoir (corno se torna homem ou pai em certas socie-
dades da Nova Guiné, cf. capítulo VIII). Assim, não existe
instinto materno no sentido em que por norrna o entende-
mos, isto é, a maternidade seria assunto puramente bioló-
gico e que, determinada pela sua natureza, a mulher tenha
vocação para tratar dos filhos e, além do mais, ser dona de
casa.
A maternidade é tanto um facto social como biológico
(o mesmo diremos da paternidade; Nicole Mathieu, 1974),
e nada existe no próprio facto biológico que explique o
encadeamento inevitável que, através do «instinto mater-
nal», vote a mulher às tarefas domésticas e a um estatuto
de subordinação.
A apropriação da fecundidade no corpo masculino está
votada ao revés: aí.só pode haver simulacro. Passará então
OS DOIS PILARES
DA DESIGUALDADE SEXUAL
O entrave à mobilidade não implica no entanto urna
inferioridade das aptidões físicas - nem, a fortiori, das
aptidões intelectuais -, no entanto, gerou um certo tipo de
repartição de tarefas, no seio das sociedades pré-históricas
de homens selvagens, caçadores-recolectores, que depen-
diam unicamente da natureza (sabemos que a agricultura e
a criação de animais são invenções relativamente recentes
da história da humanidade).
Aos homens cabia a caça dos grandes animais e a pro-
tecção dos indefesos contra os predadores de todo o
género; às mulheres cabia a vigilância dos bebês não des-
mamados e a recolha dos recursos alirnentares de acesso
mais fácil que a caça grossa (não se caça facilmente com um
bebé preso ao flanco): repartição que nasceu de dificulda-
des objectivas e não de predisposições psicológicas de
ambos os sexos às tarefas que lhe calharam por acaso, nem
de uma dificuldade física imposta por um sexo ao outro.
Repartição que não comporta em si nenhum princípio de
valorização.
.-
••
221
o controlo social da fecundidade das mulheres e a divi-
são do trabalho entre os sexos são verosimilmente os dois
pilares da desigualdade sexual.
.Ainda convém apoderar-se dos mecanismos que fazem
dessa desigualdade uma relação valorizada de domínio /
/sujeição.
O parentesco é a matriz geral das relações sociais.
O homem é um ser que vive em sociedade; esta não existe
senão dividida em grupos, baseados no parentesco c ultra-
passando esta divisão original pela cooperação. A instituição
primária que abre à solidariedade entre os grupos é o casa-
mento. Um grupo que só contasse com as suas forças inter-
nas para se reproduzir biologicamente, que praticasse o
incesto e apenas o incesto, estaria condenado a desaparecer,
pela rarefacção dos seus membros: um irmão e uma irmã,
cônjuges, só dão uma descendência em lugar de duas. A troca
das mulheres entre os grupos é a troca da vida, uma vez
que as mulheres dão os filhos e o seu poder de fecundidade
a outros além dos que lhes são próximos.
A ligação fundamental do domínio masculino, articulada
sobre as dificuldades económicas da repartição das tarefas,
está sem dúvida presente: na renúncia mútua dos homens
em beneficiar da fecundidades das suas filhas e das suas
irmãs, das mulheres do seu grupo, em benefício de grupos
estranhos. A lei da exogamia que fundamenta toda a socie-
dade deve ser entendida como lei da troca das mulheres e
do seu poder de fecundidade entre os homens.
O importante é a constância como a qual existe sempre,
através das regras de filiação e de aliança particulares, apro-
priação inicial pelos homens do poder específico de repro-
dução das mulheres do seu grupo, como das que lhes são
dadas em troca das suas. É só a esse respeito que a violên-
cia, a força, podem ser invocadas como explicação última.
A apropriação do poder de fecundidade das mulheres,
poder que é vital para a constituição e a sobrevivência de
toda a sociedade e que se procura pela troca das mulheres
entre grupos, é acompanhado pelo confinamentos das
mulheres no papel materno. Tem-se a Mãe e a mãe de leite.
É bastante mais fácil que a criança seja alimentada ao seio
durante longos meses. O desmame, nas sociedades que não
conhecem o aleitamento artificial e as técnicas modernas de
alimentação dos bebés, tem lugar por volta dos dois anos e
meio ou três anos. Durante esses anos, a criança só conhece à.
mãe como ama de leite e continuará a ir até ela uma vez des-
mamado para ser alimentado, e isso dá-se tanto mais «natu-
ralmente» quanto tiver ocorrido o confinamento social no
pnpp] dE' nnl<11l1entéld0Fl, de g1.1i1rdiã e de m?nutenção.
A mãe pode ser elevada mais alto, considerada num ele-
v~d~ grau -.é/o.caso das deusas-mães -, idealizada, o que
nao e contradltono com a própria noção de poder masculino.
A apropriação e o controlo da fecundação das mulheres,
o confinamento das mulheres no papel de amas, facilitado
pela dependência alimentar da criança, foram acompa-
nhados pela criação de saber-fazer técnico especializado,
isto é, o uso exclusivo pelo sexo masculino de certas técni-
cas que necessitam de uma aprendizagem real ou falsa-
mente sofisticada, mas que em nada, na constituição física
teminina, explica que a mulher não lhes tenha acesso.
Constitui-se assim em contrapartida um domínio reser-
vado masculino, o da reprodução biológica, como há um
domínio reservado, inacessível às mulheres.
Tomemos ainda o exemplo de povos caçadores-recolec-
tores: nos Ona da Terra do Fogo (Anne Chapman), a caça
com arco é da competência do homem. Ele aprende a fabri-
car arco, flechas, eventualmente veneno. Aprende desde
jovem a atirar ao arco e esta aprendizagem está-lhe exclusi-
vamente reservada.
A. Chapman mostra que, sem aprendizagem idóriea, as
mulheres adultas não podem, no sentido físico do termo,
servir-se deste objecto, tal como um homem que não a
tenha adquirido na infância.
O domínio reservado do saber-fazer técnicas altamente
especializa das, corolário de uma repartição sexual das tare-
fas primárias e baseada em constrangimentos objectivos,
tem por efeito um outro confinamento das mulheres a tare-
fas que exigem também um conhecimento e um saber-fazer
220
TI(não próprios de um sexo: os homens também podem
colher em período de penúria), mas que nunca serão do
domínio reservado masculino.
Mesmo que aconteça que as mulheres venham a pene-
trar no dorrúnio reservado, ouque uma parte desse domínio
seja progressivamente invadido por elas, o importante é que
o domínio reservado continue sempre a existir, mesmo
modificando-se .
CAPITULO 10
FIGURAS DO CELIBATO*
ESCOLHA, SACRÍFICIO,
PERVERSIDADE
.•.6!.,. esse respeito introduz-se o trabalho do F'ens?1T!f-'\nt0, ?
criação ideológica que vimos em acção nos simbolismos
expostos mais atrás: atribui-se um valor desigual às tarefas
cumpridas, que não obtêm a quantidade de trabalho forne-
cido nem o domínio da sua execução.
A parte das mulheres na colheita representa por vezes
mais de 70 por cento dos recursos alimentares do grupo
nas sociedades de caçadores-recolectores. mas isso não tem
importância: o verdadeiro prestígio é concedido à função
de caçador.
Eis-nos confrontados' com um último enigma. Como me
parece que a matéria-prima do simbólico é o corpo, lugar
ideal de observação dos dados sensíveis, e como em todo o
problema complexo não pode haver soluções que não
recorram às explicações cujo encadeamento remonte a
dados cada vez mais simples até atingirem evidências ele-
mentares, eu avançaria que a razão é talvez uma caracterís-
tica própria do corpo feminino (e não a «incapacidade para
a cocção do esperma»).
O que é então valorizado pelo homem, do lado do
homem, é sem dúvida ele não poder fazer correr o seu san-
gue, arriscar a sua vida, tornar a dos outros, por decisão do
seu livre arbítrio; a mulher «vê» correr o seu sangue para
fora do corpo (em francês, não se costuma dizer «ver» com
o significado de «ter as suas menstruações» 7) e dá a vida
(e morre por vezes ao Iazê-lo) sem necessariamente o querer
nem o poder impedir.
Está talvez nesta diferença a competência fundamental
de todo o trabalho simbólico inserido nas origens sobre a
relação dos sexos.
Há algumas sociedades, ou melhor, algmnas grandes
civilizações coexistentes com uma certa ideia religiosa,
que preconizam o celibato, enquanto meio de atingir a
castidade, para todos quantos consagram a vida ao seu
deus ou a uma ideia, qucr entrando em ordens religiosas,
quer tornando-se sacerdotes do culto.
É o caso de algumas correntes cristãs e também do
budismo. Para só falar das motivações explícitas da relizião
c~tólica, o celibato é então apresentado como um impera-
tiv o puramente transcendente e como uma questão de
dogma: é posto como sendo evidente que a vida no além,
cuja existência necessária se postula, é uma vida na qual
toda a sexualidade e afectividade estão ausentes por estarem
inteiramente viradas para Deus; a sexualidade, embora
ne~e.ssá~ia à sobrevivência da espécie, lõtna-se o lugar
prrvilegiado do pecado, o protótipo de toda a concupis-
cência, isto é, dos desejos que fazem passar as realidades
da vida terrestre muito à frente dos imperativos da salva-
ção da alma no além.
I ~
I
* In Auirement, 32, Junho de 1981, pp. 116-123.
,- 223222

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