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FRANÇOISE HÉRITIER •.. INSTITUTO PIAGET MASCULINO FEMININO o PENSAMENTO DA DIFERENÇA CAPÍTULO 9 o SANGUE DO GUERREIRO E O SANGUE DAS MULHERES* - CONTROLO E APROPRIAÇÃO DA FECUNDIDADE Para qualquer observador da sociedade ocidental não restam dúvidas de que ela está marcada por um gritante domínio masculino. A subordinação feminina é evidente nos domínios do político, do econômico e do simbólico. Há poucas representantes femininas da nação, nos órgãos locais ou centrais do governo (decisão e administração). No plano económico, as mulheres estão a maior parte das vezes confinadas à esfera doméstica, de onde elas nunca chegam a sair: com efeito, as mulheres que têm um trabalho assalariado devem combinar as duas actividades. Quando têm actividades fora do campo doméstico, é raro poderem aceder ao topo, aos postos de responsabilidade, de direcção, de prestígio, na sua profissão. No plano 'sirnbólico, passando pela tradição e pela educa- ç50 dada aos filhos, as actividades valorizadas e prezadas são as realizadas pelos homens. Para mais, um conjunto de julgamento de valores coloca em evidência características apresentadas como naturais e logo irremediáveis, observáveis no comportamento, nas >I- Cahiers du GRIF, Inverno de 1984-1985. A versão original apareceu sob o título «Maschille/Femminile» na Enciclopedia Einaudi, torno VIII, Turim, 1979 195 196 197 •.. capacidades, nas «qualidades» ou «defeitos» femininos consi- derados como marcados sexualmente de maneira típica. Um discurso negativo apresenta as mulheres como cria- turas irracionais e ilógicas, desprovidas de espírito crítico, curiosas, indiscretas, tagarelas, incapazes de guardar um segredo, rotineiras, pouco inventivas, pouco criativas princi- palmente nas actividades de tipo intelectual ou estético, medrosas e frouxas, escravas do seu corpo e dos seus senti- mentos, pouco aptas a dominar e a controlar as suas paixões, inconsequentes, histéricas, inconstantes, pouco fiáveis mesmo traiçoeiras, astutas, invejosas, incapazes de serem boas camaradas entre si, indisciplinadas, desobedientes, impúdicas, perversas ...Eva, Dalila, Galateia, Afrodite ... Existe um outro conjunto de discursos, aparentemente menos negativo. Frágeis, caseiras, pouco dotadas para a aventura intelectual e física, doces, emotivas, procurando a paz, a estabilidade e '0 conforto do lar, fugindo das res- ponsabilidades, sem espírito de decisão ou de abstracção, crédulas, intuitivas, sensíveis, ternas e pudicas, 'as mulhe- res têm por natureza necessidade de ser submissas, dirigi- das E: controladas pelo homem. Em ambos os casos, e sem ligar às contradições entre as duas versões (a mulher ardente, a mulher fria; a mulher pura, a mulher impura), este discurso simbólico apela a uma natureza feminina, morfológica, biológica, psicológica. Estas séries qualitativas são marcadas negativamente ou de maneira desvalorizada, enquanto as séries qualitativas masculinas correspondentes são positivas ou valorizadas. A diferença entre os sexos é, sempre e em todas as socie- dades, ideologicamente traduzida numa linguagem binária e hierarquizada. Hierarquizada, enquanto se deveria logica- mente esperar que os dois pólos estivessem equidistantes de um meio termo que seria positivo. Mas o meio termo não é positivo e está frequentemente ausente. O tépido existe entre o quente e o frio, e a combinação dos dois poderá ou não ser positiva. Sóum dos dois pólos é valorizado; estranhame~t~"é .mui- tas vezes valorizado o aspecto considerado moralmente cQE'0..n~g~ti~?~_~contraf'i-ºA_~sv~Qrizad.9 ~Q, aspectopcsitivo de umJ).él(~e oposições. Por exemplo, todos os homens em so.~iedadedizem'pretem apaz-a guerra, ffiã'S,"no entanto, por todo o lado um homem é mais bem visto se se revelar valo- roso no combate e não «efeminado. (este termo foi escolhido de propósito). A valorização do pólo negativo dá conta de uma relação de forças. O que é moralmente o melhor pode ser socialmente desacreditado ou ter um estatuto negativo. John Ingham apresenta um exemplo notável a partir de um estudo sobre a medicina e a caracteriologia nas comu- nidades mexicanas". Como sucede entre os Samo, o quente vai com o seco, o frio com o húmido, os homens estão do lado quente, as mulheres do lado frio, e um certo número de qualidades são assim marcadas. Deste modo, ser macho ou ser avarento é ser quente; ser bom, generoso, ingénuo é ser frio; o meio certo, o homem que estaria envolvido em relações equilibradas com outrem sem ser nem demasiado macho nem demasiado ingénuo deveria se!' um ideal. Mas tal homem não existe. Apenas existem o macho e o tonto, o imbecil, que é na realidade o generoso e o ingénuo. No imaginário popular, é bom ser macho e mal ser tonto. Em principio, a generosidade é preferível à dureza, a chuva à seca, a paz à guerra. Mas a realidade dos julgamentos e dos actos desmente esses princípios morais. Há então um sexo maior e um sexo menor, um sexo «forte» e um sexo «fraco», um espírito «forte», um espírito «fraco». Será esta «fraqueza» natural, congénita, das mulheres que legitimaria a sua sujeição até no que diz respeito ao seu corpo. Não levantaremos aqui a questão de saber se a relação desigual dos sexos na sociedade ocidental pode e deve mudar e, em caso afirmativo, em que modalidades, mas duas questões inteiramente diferentes. Pod~E10Sdizer que este domínio masculino é universal? Se sim, onde se 'situa a origem, a explicação desta desigual- dade profunda entre os .sexos? 1 John Ingham, «On Mexican folk medicine», American Anthropologist 12, 1970, pp. 76·87. .' •.. Nas grandes sociedades actuais, observaríamos um nivelamento cujo ponto central é um domínio de tipo patriarcal, tendo as mulheres sido despojadas de direitos ou de situações privilegiadas que anteriormente detinham, sob a influência de vários fâctores: as religiões reveladas judaico-cristãs e islâmica; o desenvolvimento do comércio e da indústria privilegiando actividades de tipo novo e pertur- bando as situações adquiridas; a incidência do colonia- lismo veiculando e agravando estes dois félctores n as regiões onde foi aplicado Retorquiremos que não vemos muito bem como é que as religiões reveladas que privilegiavam o papel do homem teriam podido nascer e desenvolver-se numa coritracor- rente absoluta da ideologia dominante nesses tempos. Da mesma maneira, não vemos bem porquê, se em dado lugar elas tinham sido dominantes política, económica e ideolo- gicamente, as mulheres teriam sido incapazes de se adaptar às transformações sociais implica das pela mudança de ordem económica ou pela colonização. Em todos os casos, o nivelamento em questão traduziu-se verosimilmente pelo agravamento, não pela inversão pro- gressiva de um estatuto. eminentes são os dos homens nascidos em grupos de filia- ção definidos por mulheres, ou a situações míticas como a das Amazonas. Com efeito, nas sociedades matrilineares, a posse da terra, a transmissão dos bens, os poderes políticos (poderes locais ou políticos mais alargados) pertencem aos homens. Mas tanto nesse caso, como numa sociedade patrilinear, os pais que transmitem bens e poderes aos filhos, são os irmãos da mãe, os tios maternos, que os transmitem aos seus sobri- nhos. Houve efectivamente mulheres guerreiras, as Amazonas. É verdade, pois, que em certas sociedades ameríndias as mulheres acompanhavam os homens na caça e na guerra. Não os comandavam. Acompanhavam os homens. Como de resto faziam na Gália as jovens concubinas. Uma mulher casada tinha filhos e ficava no lar; mas, entre as jovens púberes ainda não casadas, algumas viviam em concubinagem com os chefes, por exemplo, e tinham o direito de participar nas caçadas e nas operações guer- reiras, embora não tivessem adquirido o estatuto normal da rnu lher casada. Isto no entanto não significa que a civilização gaulesa alguma vez se tivesse aproximado do matriarcado. Do mesmo modo que não eram matriarcais as socieda- des micénicas só por reverenciarem deusas-mães. O deus principal era uma deusa, a Terra. Os cultoseram dirigidos à fecundidade, à fertilidade, por intermédio desta deusa- -mãe; Zeus só foi introduzido mais tarde. Mas as crenças religiosas não implicam que o corpo da. organização social esteja em harmonia total com uma ou outra das suas impli- cações. Uma representação arcaizante e mística das origens fala uma linguagem ideológica e não realista. Na África Ocidental, esta representação arcaizante das origens fala directamente sob a forma de um mito da sepa- ração dos sexos. Na origem, pois, nada de um comunismo primitivo, mas uma separação espacial dos sexos, com uma gestão social separada: no fim de contas, não existia nem o TEMA DO MATRIARCADO PRIMITIVO A segunda versão do argumento baseado na História reenvia-nos para a teoria evolucionista bem conhecida do matriarcado primitivo, derivada das teses de Bachofen (1861), segundo a qual teria existido um estado inicial da humanidade marcado pela ignorância da paternidade fisio- lógica, o culto das deusas-mães e do domínio feminino, político, económico e ideológico, sobre os homens. Este não é o lugar para fazer a crítica das teorias evolu- cionistas da humanidade; diremos apenas que o termo de matriarcado, implicando a ideia do poder feminino, foi e continua a ser frequentemente utilizado para se referir de facto a situações reais de matrilinearidade, onde os direitos .- 200 201 patriarcado nem matriarcado. Um deus superior proibia-os de se verem. Tinha estendido sobre o solo, entre os homens e as mulheres, um grande tapete de folhas secas, de maneira que lhes fosse impossível encontrarem-se sem fazerem barulho e assinalar ao deus as infracções à regra. Mas os homens desejavam tanto encontrar-se com as mulheres que rastejavam sobre o solo deitando água à sua frente para humedecer as folhas, impedindo-as assim de fazer barulho. Um dia, foram surpreendidos pelo seu deus, que se sujeitou então perante os factos: já que não se conseguiam manter os sexos separados, iriam então viver em conjunto daí para a frente, com todos os inconvenientes que isso significava. O que era lamentável, era a existência de dois sexos: o mundo teria sido muito mais fácil de organizar se houvesse só um. Para construir a sociedade, as primeiras regras são as que se referem ao parentesco e ao casamento. Ora, por haver dois sexos, parentesco e casamento não podem con- duzir senão a relações de inversão entre os sexos e não de simetria. Reparemos por exemplo no que se passa no caso de dado casamento preferencial: se um homem deve despo- sar a filha do irmão da sua mãe, a situação recíproca para uma mulher fá-Ia desposar o filho da irmã do seu pai. Percebe-se uma inversão fundamental entre os sexos sem ser claramente enunciada sob a forma seguinte: a mulher age sempre ao contrário do homem. É esse o escân- dalo principal. Em nenhuma sociedade é costume homens e mulheres agirem de maneira totalmente paralela ou simé- trica. De princípio há a binaridade, depois tudo é distri- buído em dois e afectado a um sexo ou a outro, segundo dois pólos que são dirigidos como se fossem opostos. dada por numerosos autores, desde o célebre trabalho do jesuíta Lafitau (1724) e a história da vida de Mary jemison publicada por Seaver em 1880. Nas seis nações iroquesas, as mulheres não eram tratadas com uma deferência ou um respeito particulares e parece, segundo Lewis Morgan, que os homens se consideravam superiores, consagrando todas as suas actividades à caça de longa duração (uma campanha podia durar um ano) ou à. guerra. Mas as mulheres, ou pelo rnerios algumas delas, gozavam de direitos ou de poderes raramente igualados. A regra de filiação passava pelas mulheres e a residência era matrilocal. As mulheres pertencentes à mesma linha viviam na mesma casa, grande, com os seus esposos e os seus filhos, sob a tutela de «rnatronas» que, infelizmente, não se sabe com exactidão como eram escolhidas. Essas matronas, que comandavam e dirigiam a vida das grandes casas, dirigiam igualmente o trabalho feminino agrí- cola, apanágio das mulheres, realizado em comum nas terras co~ectivas, propriedade das mulheres da linhagem. As pró- pnas matronas faziam a redistribuição dos alimentos cozidos, por cada lar, pelos hóspedes ê pelos membros do Conselho. Estas matronas eram representadas, senão no Grande Conselho das Seis Nações iroquesas, pelo menos no Con- selho dos Anciãos de cada nação, por um representante masculino que falava ern seu nome e fazia ouvir a sua voz. De facto, essa voz não era negligenciável, uma vez que as matronas dispunham de um direito de veto no que dizia respeito à guerra, se o projecto guerreiro não lhes agradava. . J?odiam sempre impedir a realização de um projecto de guerra que não tivesse o seu acordo, proibindo simples- mente às mulheres que fornecessem aos guerreiros a provi- são de alimentos secos ou concentrados que eles necessi- tassem de levar. Para J.udith Brown, as matronas iroquesas deviam o seu estatuto elevado ao facto de controlarem a organização económica da tribo (são também elas que redisfribuem o produto da caça masculina), O que é possível, tendo em conta uma estrutura social matrilinear favorável, porque a o CASO DOS IROQUESES A sociedade humana que, do ponto de vista da antropo- logia, parece ter sido a mais próxima da definição do matriarcado, é a dos Iroqueses (Judith Brown, 1970), estu- .' 202 203 ;~ ,ê ~'''-.'- ",;,",,;'f1 '~ !',? ,.• l' actividade produtora fundamentalmente das mulheres, isto é, a agricultura de enxada, não era incompatível com a possibilidade de se ocuparem das crianças. Segundo o mesmo autor, parece, de maneira interes- sante, que só existem três tipos de actividades económicas que permitem esse acumular de tarefas: a colheita, a agri- cultura de enxada e o comércio tradicional (o que não quer dizer que todas estas sociedades que praticam estas formas de actividade oferecem às mulheres situações privilegiadas). Resta assim afirmar que não era indiferente que fossem as matronas a possuir um alto estatuto entre os Iroqueses. Voltaremos mais tarde a este assunto. DA QUASE-IGUALDADE À QUASE-ESCRAVATURA A busca de uma verdade original apoia-se no estudo das sociedades que consideramos como as mais primitivas (embora elas tenham também uma história), isto é, as socie- dadesde caçadores-recolectores, essas populações que não praticam nem a agricultura nem a criação de animais, e vivem por antecipação directa dos frutos da natureza, da caça, da pesca, da apanha de insectos e pequenos animais, da colheita de bagas, frutos e gramíneas selvagens. Haverá actualmente uma trintena de sociedades de caçadores-recolectores. Elas não oferecem uma visão comum das relações homens/mulheres que poderemos supor ser a sobrevivência de um único modelo arcaico. Mas todas, parece, manifestam a existência de uma supre- macia masculina, com enormes variações no entanto, que vão da quase-igualdade dos dois sexos entre certos grupos índios de pescadores (como os Anaskapis do Canadá) à quase-escravatura das mulheres nos Ona (ou Selk'nam) da Terra do Fogo (Arme Chapman). É verdade que em certas sociedades de caçadores- -recolectores (nomeadamente na Austrália e em África) as mulheres gozavam de uma grande autonomia. Maurice i~ I 1 I 204 Godelier explica isso pelo facto de não existir então dife- rença entre ~conomia doméstica e economia pública, por causa da ~,:sencia da propriedade privada, e porque a uni- dade familiar não é estritamente conjugal. Os homens não exercem aí c?ns~rangime~tos físicos; os trajectos do grupo em deslocaçao sao escolhidos para combinar uma boa caça e uma boa colheita; as mulheres têm liberdade de movi- mentos e dispõem de si mesmas. Mas estes pontos de vista «idílicos» não devem fazer esquecer. a existência de outros grupos pertencentes ao mesmo tipo económico, e onde as relações dos homens e das mulheres são marca das pela violência. Anne Chapman descreveu, por exemplo, uma socie- dad~ onde as mulheres não têm nenhum direito, onde um mando pode bater, ferir e até matar a sua esposa sem incorrer em nenhumas~n~ão, onde as mulheres, desprezadas, só co~e~em quotidianamenm a brutalidade na sujeição, e, }Jenod!camente, aguando das sessões da sociedade de ini- ciação masculina que podiam durar vários meses o terror e a violência infligidos pelos mascarados. É in;eressante neste caso notar que urn mito de origem justifica este estado de dependência. . Na origem, conta Anne Chapman, os homens, em situaçâo de abjecta submissão, eram obrigados a executar todos os trabalhos, incluindo os domésticos, e serviam as esposas, de onde saíam os rugidos de máscaras aterra- doras. A Lua dirigia as mulheres. Isso durou até ao dia em que o Sol, ho~~~ ,e~tre os homens, que trazia a caça para junto da :abana iruciática para alimentar as mulheres, surpreendeu as Jovens a troçar da credulidade dos homens e compreendeu que as máscaras não eram a emanação dos poderes sobre- ~aturais dirigidos contra os homens, mas um subterfúgio Inventado e utilizado pelas mulheres para os manter em estado de dependência. Os homens estrangularam então todas as mulheres à e~cepção das raparigas mais jovens com a memória virgem, e Inverteram os papéis. -» 205 206 207 ,.• A Lua voltou ao Céu onde procura sempre vingar-se do Sol: sendo prova disso os eclipses do Sol. Essa alteração das coisas justifica o poder masculino absoluto. As mulheres são mantidas na ignorância da situação original, o mito só é efectivamente transmitido aos hom-ens durante os períodos de iniciação; como os homens, elas vêem na lua e nos seres que lhe estão associados inimigos do género humano, na medida em que sabem que eles são hostis aos seus irmãos, aos seus filhos, aos seus maridos. Encontramos por vezes a narração de uma inversão fundadora a partir de premissas bem diferentes, porque o facto estrutural é precisamente o tema da inversão funda- dora, o mito de um m,undo ao contrário que é preciso endi- reitar, e não o conteúdo particular de cada história. Assim, entre os povos lagunares da Costa do Marfim, as sociedades ma trilineares de poder masculino evocam igualmente nos seus mitos um estado original inverso, baseado desta vez em instituições total e harmoniosamente pa trilineares. O Rio reclama ao grupo o sacrifício de uma criança antes de se deixar atravessar. A mulher do chefe recusa dar o seu filho, enquanto a irmã do chefe dá o seu, para salvar o seu irmão e o grupo inteiro. O chefe decide então que daí para a frente a transmissão de poderes e de bens far-se-á não para o filho do homem, mas para o filho da irmã, sobri- nho uterino. No entanto, aí não é exercida nenhuma violência femi- nina sobre os homens para lhes tomar uma parte das suas prerrogativas. Duas mulheres: a esposa e a irmã; duas ati- tudes femininas consideradas diametralmente opostas, e a partir das quais o chefe decreta a nova lei da filiação; o egoísmo da esposa-estrangeira, o altruísmo e devotamento da irmã-consanguínea. Contudo, já o chefe é macho e o estatuto de chefe per- manece masculino. E neste endireitar as coisas, são a filia- ção e a sucessão agnáticas que estão ao contrário, não a supremacia masculina. É que o mito não fala da História: veicula uma mensa- gem. A sua função é legitimar a ordem social existente. Os exemplos acima dos Ona, Baruya, Dogon, explicam que a ordem social, encarnada na proeminência do masculino, baseia-se numa violência original feita às mulheres. O mito declara explicitamente que toda a cultura, toda a sociedade se baseia na des~gualdade sexual e que esta desigualdade é uma violência. E necessário então acreditar em actos reais intencionais de violência inicial, como actos fundadores da ordem social?· «MATRlARCADO PRIMITIVO» E FUNÇÃO SOCIAL DOS MITOS Magnífico exemplo da natureza mítica, isto é, pura- mente ideológica, do tema do matriarcado primitivo numa sociedade patriarcal do tipo mais «primitivo». Não é um exemplo isolado. Entre os Baruya da Nova Guiné, que não são caçadores-recolectores mas horricultores, e que também praticam iniciações masculinas, ensina-se aos homens, aquando desses estágios iniciáticos, que foram as mulheres que originalmente inventaram o arco e as flautas cerimoniais. Os homens roubaram-lhas penetrando na cabana mens- trual onde esses objectos estavam escondidos. Desde então, só eles se sabem servir delas - a flauta é o meio de comu- nicação com o mundo sobrenatural dos espíritos -, o que lhes confere uma supremacia absoluta (Godelier). Entre oa-Dogon, da África Ocidental, o mito conta um despojamento similar do poder das mulheres sobre o uni- verso do sagrado, tendo os homens roubado as saias das máscaras de fibras tingidas de vermelho. Em todos estes casos, trata-se de sociedades com um marcado poder masculino, que justificam a sua organização social em relação a um estado mítico matriarcal original. Porém, não se creia que o mito do matriarcado original é universal e que esta universalidade prova o carácter histó- rico do assunto, confortando assim as teorias evolucionistas. 208 209 •.. É necessário crer num despojamento histórico, ou trata-se apenas do discurso justificativo que a sociedade tem de si própria para dar conta de uma situação produzida por um conjunto de causas não intencionais, objectivas? Mais tarde, voltaremos a este ponto essencial. Já dissemos que o mito legitima a ordem social. No entanto, nem todas as sociedades elaboraram mitologias propriamente ditas para «fundar» o domínio masculino, para dar-lhe sentido, Mas todas têm um discurso ideoló- gico, um corpo de pensamento simbólico com esta mesma função de justificar a supremacia do homem aos olhos de todos os membros da sociedade, tanto mu lheres como homens, pois ambos participam por definição da mesma ideologia, inculcada desde a infância. UM CORPO SÓLIDO DE PENSA:t-v1ENTO SIMBÓLICO do húmido que não têm em si mesmos fortes valores posi- 'j tivos ou negativos, mas assumem-nos em associação em! diferentes contextos. Assim, na ordem do corpo, o quente e o húmido estão do lado da vida, da alegria, do conforto, logo do positivo, enquanto o seco e o frio estão do lado da morte, logo do negativo (os mortos estão sedentos). Mas na ordem das esta- ções, o seco está do lado positivo com O quente do Verão, o húmido está do lado negativo com O frio do Inverno. No que diz respeito à sexualidade, as mulheres, corpos vivos, logo quentes e húmidos que arrefecem e secam com as perdas dos mênstruos, deveriam então ser mais secas que os homens. Ora, o masculino é quente e seco, associado ao fogo e ao valor positivo, o feminino é frio, húmido, associado à água e ao valor negativo (Empédocles, Aristóteles, Hipócrates). É que se trata, diz Aristóteles, de uma diferença de natu- reza na aptidão de «cozer» o sangue: os mênstruos da mulher são a forma inacabada e imperfeita do esperma. A relação perfeição/imperfeição, pureza/impureza, que é a do esperma e dos mênstruos, logo do masculino e do feminino, encontra por consequência em Aristóteles a sua origem numa diferença fundamental, apresentada como «natural», biológica, que é uma construção do espírito, a aptidão para a cocção: é porque o homem é à partida quente e seco que resulta perfeitamente o que a mulher, por ser naturalmente fria e húmida, só consegue imperfei- tamente, nesses momentos de mais forte calor, sob a forma do leite. À partida, postula-se que a característica binária de dois pólos conotados de ~aneira negativa e positiva, característica que estabelece a desigualdade ideológica e social entre os sexos. Esse discurso médico-filosófico, que dá uma forma-- sábia às crenças populares, é como O mito um discurso propriamente ideológico. As correlações das oposições binárias entre si não se enraízam numa realidade biológica qualquer, mas unicamente nos valores positivo ou negativo atribuídos desde a partida aos próprios termos. Tal como o I II I Estes discursos simbólicos são construídos sobre um sis- tema de categorias binárias, de pares dualistas, que opõem face a face séries como Sol e Lua, alto e baixo, direito e esquerdo, claro e escuro, brilhante e sombrio, leve e pesado,quente e frio, seco e húmido, masculino e feminino, supe- rior e inferior. Reconhecemos aqui a armação simbólica do pensa- mento filosófico e médico grego, tal como a encontramos em Aristóteles, Anaximandro, Hipócrates, onde tanto o equilíbrio do mundo como o do corpo humano e dos seus humores se baseia numa harmoniosa mistura desses con- trários, toda excesso num domínio que gera desordem e/ou doença. No pensamento grego, as categorias centrais são as do quente e do frio, do seco e do húmido, directamente asso- ciadas à masculinidade (o quente e o seco) e à feminilidade (o frio e o húmido) e, de maneira aparentemente inexplicá- vel, afectadas de valores positivos por um lado, negativos por outro, embora haja uma certa ambivalência do seco e . 210 211 ,. mito, a sua função é justificar a ordem do mundo como ordem social. Assim, num conjunto perfeito que une o mito, a classifica- ção dos vegetais e a relação ideológica dos sexos é-nos expli- cado por Mareei Détienne (1977), a partir de histórias mitológicas da concepção por Hera apenas, sem a presença de sêmen, de Ares e de Juventa, porque a alface, erva hortí- cola fria e húmida, é consumida pelas mulheres: é excelente pac"C\"a vindi'l das rnenstruações e pam o bom escoamento do sangue, mas o seu corolário é a frustração do prazer. Por essa razão, os homens nunca a consomem, por medo da impotên- cia e da privação do desejo e do prazer (foi ela que tornou Adónis impotente). Como o prazer sexual pertence de direito aos homens, as mulheres devem contentar-se em procriar e preparar-se para isso consumindo alimentos adequados. mos em presença «o frio, o cru e a natureza estão do lado do homem, o quente, o cozido e a cultura do lado da mulher», o mito de origem faz das mulheres nada mais que «homens fendidos»: foi de um homem que saiu a primeira mulher, e a mulher procriadora não é mais que um saco, um reci- piente que abriga temporariamente uma vida humana criada pelo homem. Sempre remetida para O espaço doméstico, ela não pode sair da ordem masculina a que está confinada él n;:ín ser por l1mél e":'1";;;O no sentido pr0!")rio, no de"prto de gelo e de neve, que a conduz à morte por esgotamento. Podiam ser propostos muitos outros exemplos, africanos, indonésios, americanos, etc .. Em todos os casos, conjuntos de reduções simbólicas dão o seu sentido às práticas sociais. Naturalmente, noutras culturas, outros sistemas binários além do baseado no quente e no frio podem designar as mesmas práticas ou antes, COlTIO nos Inuit, um sistema binário baseado no quente e no frio pode inverter toda ou parte da série das associações coriexas. Com efeito, não há nessas escolhas, racionalidade baseada numa apreensão objectiva de um dado natural, por mais que pareçam naturalmente legítimas. É preciso considerar estas oposições binárias corno sinais culturais e não como portadores de um sentido universal - o sentido reside na própria existência destas oposições e não no seu conteúdo, é a linguagem do jogo social e do poder. o TRABALHO SIMBÓLICO E A LÓGICA DOS CONTRÁRIOS AS APARÊNCIAS DA RAZÃO Não há dúvida de que o pensamento grego condicionou a nossa própria cultura ocidental, como vamos ver. Mas como explicar, a não ser pelas constantes próprias do trabalho simbólico a partir do mesmo material, isto é, o dado anatómico e fisiológico dos sexos e a relação social invertida que se segue em certas situações, que esta mesma lógica dos contrários, das oposições binárias de valores positivo e negativo, se encontra em sociedades onde a influência do pensamento grego não se fez sentir? Assim, no pensamento chinês, o yin e o yang são os dois princípios constitutivos do universo, cuja existência harmoniosa se baseia na união bem sentida dos contrários. Yin é o feminino, a terra, o frio, a sombra, o norte, a chuva, O inferior. O yang é o masculino, o céu, o calor, o sol, o sul, a impetuosidade, o superior. Nos Inuit do Árctico Central (Saladin d'Anglure, 1978), onde a Lua é homem e o Sol a sua irmã é mulher, onde, ao contrário dos exemplos gregos e chinês para alguns dos ter- I "-. O discurso da ideologia tem em todo o lado e sempre todas as aparências da razão. O nosso próprio discurso cultural, herdado de Aristóteles, baseia-se também nas diferenças biológicas, numa pretensa natureza eterna, numa relação social instituída. Sob esse ponto de vista, é interessante considerar o dis- curso científico e médico do século XIX, tal como ele é expresso, por exemplo, nos escritos de Julien Virey (Yvonne Knibiehler,1976). " 212 213 ,. Por deslizes sucessivos, passa de uma caracterização dos sexos do tipo binário para a legitimação do domínio de um sexo sobre o outro, sob a cobertura da argumentação científica mais moderna, objectiva, racional, extraída da argumentação de um dado biológico. Contudo, nada nos é aqui restituído a não ser o discurso de Aristóteles, ou dos Inuit, ou o dos Baruya da Nova Guiné. Para Virey, o casal ideal é «um macho moreno, peludo, seco, quente e impetuoso, [que] encontra o outro sexo delicado, húmido, liso e branco, tímido e pudico». É a energia do esperma que dá a segurança e a audácia às mulheres casadas: «É certo que o esperma masculino impregna o organismo da mulher, que aviva todas as suas funções e as aquece.» A mulher tem uma sensibilidade «delicada» devida aos seus tegumentos leves e finos e a uma ramificação mais intensa que os nervos e os vasos sanguíneos intradérmicos no homem. Esta sensibilidade delicada dá-lhe uma aptidão particular para o prazer, uma inflamação fácil das paixões, logo, uma tendência natural para a desvergonha, para a depravação, para a impossibilidade de se concentrar e de reflectir, actos que são, quanto a eles, eminente e essencial- mente masculinos. Esta mesma sensibilidade que designa por natureza a mulher pelos cuidados dados às crianças, aos velhos, gera também paixões temíveis, razão pela qual o homem tem de a controlar estreitamente. Virey escreveu: «Se a mulher é fraca pela sua própria constituição, a natureza quis então torná-Ia submissa e dependente na união sexual; ela nasçeu então para a doçura, para a ternura e mesmo para a paciência, para a docilidade: deve então suportar sem murmúrio o jugo das dificuldades, para manter a concórdia na família pela sua submissão (sublinhado nosso)» (De l'éducation, 1802). Ao contrário do que pensa Yvonne Knibiehler, não se trata de um pensamento individual «ingenuamente» falo- crático influenciado pelos estereótipos da sua época, mas ao contrário da expressão construída, sob uma forma sábia, de arquétipos comummente partilhados. Este texto traduz, de maneira racional e «científica», os juízos de valor popular do tipo dos enumerados no começo deste capítulo. Está no prolongamento do pensamento de Aristóteles, que elaborou racionalmente arquétipos muito anteriores, e prefigura o discurso dos médicos alienistas e higienistas do século XIX, nomeadamente sobre a histeria feminina, ou sobre o tratamento da masturbação. O discurso simbólico legitima sempre, acabámos de o ver, o poder masculir.c, q:lc:- pela razão das violências iniciais míticas que as mulheres teriam feito sofrer aos homens, e logo de um mau uso do poder quando elas o detinham nas suas mãos (mito Ona da Terra do Fogo), quer pela impossi- bilidade «natural», biológica, onde elas se encontram, de aceder ao grau superior, o do homem. Em todos os casos o homem é a medida natural de todas as coisas; ele cria a ordem social. Os Baruya da Nova Guiné (Godelier) exprimem directa- mente esta mesma ideia: as mulheres são a desordem, são certamente mais criativas que os homens, mas de maneira atarantada, desordenada, impetuosa, irreflectida. Assim, na aurora dos tempos, como já vimos, elas inventaram as flautas e o arco que os homens furtaram em seguida e que são o sinal do seu poder. Mas elas tinham montado o arco ao con- trário e matavam às cegas, de maneira anárquica, à sua volta. Os homens depois de o terem roubado montaram o arco correctamente: o que faz com que de futuro matem com plena consciência.Onde as mulheres criadoras trazem a desordem, o homem traz a ordem, a medida racional de todas as coisas. Assim falam o mito e o discurso simbólico. Como explicar então o estatuto tão particular, entre outros exemplos, das matronas iroquesas? Judith Brown (1970) declara que as fontes antigas não permitem conhecer o modo de designação das «matronas», chefes de grandes casas. Mas ela, parafraseando outros autores, designa-as com o termo de decanas domésticas (<<elderlyheads ofhouseholds»). Postularemos que se tratava verosimilmente de mulhe- res avançadas em idade e, se a vez de chefia da casa não r surgia automaticamente por simples sucessão, de mulhe- res de idade mais poderosas que outras, em carácter, em força de alma, em autoridade. Avançaremos assim a hipótese de que o termo «matro- nas», utilizado pelos autores antigos, designa as mulheres de idade, logo, dizendo as coisas de outro modo, na sua verdade fisiológica, mulheres que tenham ultrapassado ou atingido a idade da menopausa. A menopausa não é um assunto sobre o qual pússalHo6 encontrar muitas informações na literatura antropoló- gica: assunto no qual não se pensa, assunto constrangedor, assunto censurado para não dizer assunto tabu. Fala-se da avançada em idade, da velhice, como estado de vida, mas nunca do limiar em que tudo oscila. Contudo, surge de maneira geral, nos relatórios antro- pológicos, quando se trata de mulheres, cujo estatuto indi- vidual tem tendência a mudar na sua velhice - para falar claramente, quando elas atingem a menopausa - ou se são estéreis, isto é, nas situações em qué as mulheres não o são ou já não são capazes de conceber. Conduzem os seus próprios negócios sem interferência nem apoio dos homens e, por vezes, nem deixam o seu marido intrometer-se no que quer que seja sem o seu assentimento. Pensa-se que são activas sexualmente e não convencionais no amor, mas elas próprias pretendem ter mais virtude que as outras mulheres. Em caso de adultério, não temem ser arrastadas pela praça pública porque acusam-nas de estarem prontas a defender-se por meio de feitiçaria. Não temem sequer as conscquências místicas dos seus actos. Por fim, tal como os homens, têm o direito de organizar danças do Sol e de participar nos julgamentos por ordália. Elas têm a «força». Entre os Piegan, o que é então preciso para ser-se reconhecida como mulher com coração de homem? Oscar Lewis indica que é necessária a combinação de duas características: é preciso ser rica, ter uma posição social elevada; e é preciso ser casada. É igualmente melhor ter mostrado na sua infância sinais precursores, ter sido a filha preferida do pai, rica em cava- los. Uma mulher pobre será derrotada e ridicularizada se pretender ter comportamentos de mulher com coração de homem. . Algumas mulheres só se tornam «coração de homem» depois de vários casamentos e viuvezes sucessivas de onde herdaram uma parte dos bens dos seus defuntos esposos. Tornadas «coração de homem», desposam - esquema mas- culino - maridos mais jovens que elas (entre 5 a 26 anos, segundo as estatísticas de Oscar Lewis) que elas dominam em todos os aspectos. O casamento é pois uma necessidade absoluta para ter «coração de homem» e é dele que provêm a riqueza e o estatuto elevado. É pena não se saber mais do sistema de pensamento dos Piegan, mas é muito provável que as ideias aristotélicas do tipo das que Virey desenvolve estejam bastante próximas das suas (va mulher casada tem alguma coisa de mais viril, de mais masculino, de mais seguro, de mais atrevido que a virgem tímida e delicada ... Vemos vulgarmente raparigas i, MULHERES «COM CORAÇÃO DE HOMEM» Um artigo muito interessante de Oscar Lewis (1941) fala daquelas que os Índios Piegan canadianos designam de mulheres «com coração de homem». Nesta sociedade descrita como perfeitamente patriarcal, o comportamento feminino ideal é feito de submissão, reserva, doçura, pudor e humildade. Existe no entanto um tipo reco- nhecido de mulheres que não se comportam com a reserva e a modéstia do seu sexo, mas com agressividade, arrogância e atrevimento. Não são contidas nas palavras nem nos actos: algumas urinam publicamente, como os homens, cantam cânticos de homens, intervêm nas conversas masculinas. Este comportamento anda a par de um domínio perfeito das tarefas tanto masculinas como femininas que elas exe- cutam. Fazem tudo mais depressa e melhor que as outras. 214 215-» 216 217 A PEDRA DE TOQUE DA FECUNDIDADE perigosa, que acumula o calor e contra a qual se arrisca a acusação de feitiçaria, sobretudo se for pobre e viúva, logo sem «força» para responder a isso e poder defender-se. Não é o contrário do exemplo dos Piegan, mesmo que uma rápida olha dela nos levasse a pensar isso, porque a mulher «com coração de homem» que, inversamente, se ri das acusações de toda a ordem porque tem a «força» para lhes responder impunemente com a feitiçaria, deve ser rica e casada. Na maior parte das populações ditas primitivas, a este- rilidade - feminina, entenda-se, porque a masculina não é em geral reconhecida - é a abominação absoluta. Mas nem sempre. Assim, nos Nuer da África Ocidental, uma mulher, quando é reconhecida como estéril, isto é, depois de ter sido casado e ter ficado sem filhos durante um certo número de anos (até à menopausa, talvez?), regressa à sua família de origem onde é daí em diante considerada como um homem: «irmão» dos seus irmãos, «tio» paterno para os filhos dos seus irmãos. Vai poder constituir um rebanho COfüO urn homem, com a parte que lhe vem do título de tio, sobre o gado distribuido como preço do noivado pelas suas sobrinhas. Com esse rebanho e o fruto da sua indústria pessoal, adquirirá por sua vez, como se fosse um homem, o preço do noivado para procurar uma ou várias esposas. É corno marido que ela entra nessas relações matrimo- niais institucionais. As suas esposas servem-na, trabalham para ela, honram-na, testemunham-lhe as marcas do respeito devidas a um marido. Ela recruta um servidor de uma outra etnia, Dinka a maior parte das vezes, a quem pede, entre outras prestações de serviços, o serviço sexual para a sua ou suas esposas. Os filhos nascidos dessas relações são seus, chamam-na de «pai» e tratam-na como se trata um pai-homem. O papel do progenitor é de todo subalterno: talvez ligado afectiva- mente aos produtos que procriou, não é mais que um servi- dor, tratado como tal pela mulher-marido, mas também gordas perder a sua boa disposição com o casamento como se a energia do esperma imprimisse mais rijeza e secura às suas fibras», De la femme). o homem, a qualidade do esp~rma do homem, faz a mulher, a qualidade da mulher. Entretanto, é necessário que uma condição suplementar seja preenchida para ser-se mulher «com coração de homem». Não faz explicitamente parte das condições enume- radas pelos informadores, o que não nos deve admirar pois que se trata de urna condição sitie quú fLUI/. é necessário ter uma idade avançada. Sobre as 109 mulheres casadas da amostra de Oscar Lewis, 14 são do tipo «com coração de homem». Uma tem 45 anos, outra 49, as restantes entre 52 e 80 anos. Entre- tanto, apenas uma tem 32 anos. Em consequência, Lewis acrescenta aos dois critérios precedentes o da maturidade. Mas a palavra é sem dúvida fraca. Para a maior parte da amostra, trata-se de mulheres fora do seu período de fecundidades, menopáusicas. Em nenhuma delas se faz alusão aos filhos que elas tenham posto no mundo, o que é lamentável, pois teria sido interessante saber se a mulher de 32 anos considerada mulher «com coração de homem» tinha conhecido gravide- . zes ou não. Em todo o caso, o próprio Oscar Lewis declara que os desacordos dos informa dores quanto ao assunto da carac- terística «coração de homem» desta ou daquela mulher só diziam respeito às mais novas. Menopausa e esterilidade suscitam imaginários, atitu- des e instituições extremamente contrastadas segundo as sociedades, e contudo explicáveis segundo a mesma lógica simbólica. Se o modelo iroquês ou piegan não é raro no que diz res- peitoa mulheres de idade, outras sociedades, principal- mente africanas, fazem da mulher menopáusica "Umamulher " 218 219 ,. pelas esposas e pelos filhos. Será remunerado pelos seus serviços com a oferta de 'uma vaca, «preço da procriação» sempre que se casar uma das filhas que tiver procriado. Assim, seja absoluta ou relativa - isto é, devido à idade, à menopausa -, a esterilidade e o corpo social das instituições e comportamentos que ela suscita podem selT'.pre explicar-se segundo os esquemas das representações simbó- licas atrás analisadas. pelo controlo: apropriação das próprias mulheres ou dos produtos da sua fecundidade, repartição das mulheres entre os homens. As mulheres são fecundas, inventivas, criam a vida; em contrapartida, vimos' como ao homem pertence manter a ordem, a regulamentação, impor limites, determinar esferas, inscrever a política. Esse controlo possibilitado pelo handicap que duplica o poder da fecundidade: a mulher g:nívidél m' (1'-1E' aleita está menos apta para a mobilidade que o homem. Podemos assim mostrar que nos Bosquímanos, caçadores-recolecto- res-nómadas, sem animais domésticos para fornecer leite, um homem percorre entre cinco e seis mil quilómetros por ano, uma mulher entre dois mil e quinhentos e três mil. Sucede, CITl todo o caso, que a mulher estéril não é, ou já não é, uma mulher propriamente dita. De maneira negativa ou positiva, mulher imperfeita ou homem imperfeito, está mais próxima do homem que da mulher. Assim, não é o sexo, mas a fecundidade, que faz a diferença real entre masculino e feminino, e o domínio masculino, que convém agora tentar compreender, é fundamentalmente o controlo, a apropriação da fecundidade da mulher, enquanto ela for fecunda. O resto, a saber, as componentes psicológicas, as aptidões particulares que compõem as figuras da masculinidade e da feminilidade segundo as sociedades e que supostamente justificam o domínio de um sexo por outro, é um produto da educação, logo da ideologia. «Não se nasce mulher, torna-se», escreveu Simone de Beauvoir (corno se torna homem ou pai em certas socie- dades da Nova Guiné, cf. capítulo VIII). Assim, não existe instinto materno no sentido em que por norrna o entende- mos, isto é, a maternidade seria assunto puramente bioló- gico e que, determinada pela sua natureza, a mulher tenha vocação para tratar dos filhos e, além do mais, ser dona de casa. A maternidade é tanto um facto social como biológico (o mesmo diremos da paternidade; Nicole Mathieu, 1974), e nada existe no próprio facto biológico que explique o encadeamento inevitável que, através do «instinto mater- nal», vote a mulher às tarefas domésticas e a um estatuto de subordinação. A apropriação da fecundidade no corpo masculino está votada ao revés: aí.só pode haver simulacro. Passará então OS DOIS PILARES DA DESIGUALDADE SEXUAL O entrave à mobilidade não implica no entanto urna inferioridade das aptidões físicas - nem, a fortiori, das aptidões intelectuais -, no entanto, gerou um certo tipo de repartição de tarefas, no seio das sociedades pré-históricas de homens selvagens, caçadores-recolectores, que depen- diam unicamente da natureza (sabemos que a agricultura e a criação de animais são invenções relativamente recentes da história da humanidade). Aos homens cabia a caça dos grandes animais e a pro- tecção dos indefesos contra os predadores de todo o género; às mulheres cabia a vigilância dos bebês não des- mamados e a recolha dos recursos alirnentares de acesso mais fácil que a caça grossa (não se caça facilmente com um bebé preso ao flanco): repartição que nasceu de dificulda- des objectivas e não de predisposições psicológicas de ambos os sexos às tarefas que lhe calharam por acaso, nem de uma dificuldade física imposta por um sexo ao outro. Repartição que não comporta em si nenhum princípio de valorização. .- •• 221 o controlo social da fecundidade das mulheres e a divi- são do trabalho entre os sexos são verosimilmente os dois pilares da desigualdade sexual. .Ainda convém apoderar-se dos mecanismos que fazem dessa desigualdade uma relação valorizada de domínio / /sujeição. O parentesco é a matriz geral das relações sociais. O homem é um ser que vive em sociedade; esta não existe senão dividida em grupos, baseados no parentesco c ultra- passando esta divisão original pela cooperação. A instituição primária que abre à solidariedade entre os grupos é o casa- mento. Um grupo que só contasse com as suas forças inter- nas para se reproduzir biologicamente, que praticasse o incesto e apenas o incesto, estaria condenado a desaparecer, pela rarefacção dos seus membros: um irmão e uma irmã, cônjuges, só dão uma descendência em lugar de duas. A troca das mulheres entre os grupos é a troca da vida, uma vez que as mulheres dão os filhos e o seu poder de fecundidade a outros além dos que lhes são próximos. A ligação fundamental do domínio masculino, articulada sobre as dificuldades económicas da repartição das tarefas, está sem dúvida presente: na renúncia mútua dos homens em beneficiar da fecundidades das suas filhas e das suas irmãs, das mulheres do seu grupo, em benefício de grupos estranhos. A lei da exogamia que fundamenta toda a socie- dade deve ser entendida como lei da troca das mulheres e do seu poder de fecundidade entre os homens. O importante é a constância como a qual existe sempre, através das regras de filiação e de aliança particulares, apro- priação inicial pelos homens do poder específico de repro- dução das mulheres do seu grupo, como das que lhes são dadas em troca das suas. É só a esse respeito que a violên- cia, a força, podem ser invocadas como explicação última. A apropriação do poder de fecundidade das mulheres, poder que é vital para a constituição e a sobrevivência de toda a sociedade e que se procura pela troca das mulheres entre grupos, é acompanhado pelo confinamentos das mulheres no papel materno. Tem-se a Mãe e a mãe de leite. É bastante mais fácil que a criança seja alimentada ao seio durante longos meses. O desmame, nas sociedades que não conhecem o aleitamento artificial e as técnicas modernas de alimentação dos bebés, tem lugar por volta dos dois anos e meio ou três anos. Durante esses anos, a criança só conhece à. mãe como ama de leite e continuará a ir até ela uma vez des- mamado para ser alimentado, e isso dá-se tanto mais «natu- ralmente» quanto tiver ocorrido o confinamento social no pnpp] dE' nnl<11l1entéld0Fl, de g1.1i1rdiã e de m?nutenção. A mãe pode ser elevada mais alto, considerada num ele- v~d~ grau -.é/o.caso das deusas-mães -, idealizada, o que nao e contradltono com a própria noção de poder masculino. A apropriação e o controlo da fecundação das mulheres, o confinamento das mulheres no papel de amas, facilitado pela dependência alimentar da criança, foram acompa- nhados pela criação de saber-fazer técnico especializado, isto é, o uso exclusivo pelo sexo masculino de certas técni- cas que necessitam de uma aprendizagem real ou falsa- mente sofisticada, mas que em nada, na constituição física teminina, explica que a mulher não lhes tenha acesso. Constitui-se assim em contrapartida um domínio reser- vado masculino, o da reprodução biológica, como há um domínio reservado, inacessível às mulheres. Tomemos ainda o exemplo de povos caçadores-recolec- tores: nos Ona da Terra do Fogo (Anne Chapman), a caça com arco é da competência do homem. Ele aprende a fabri- car arco, flechas, eventualmente veneno. Aprende desde jovem a atirar ao arco e esta aprendizagem está-lhe exclusi- vamente reservada. A. Chapman mostra que, sem aprendizagem idóriea, as mulheres adultas não podem, no sentido físico do termo, servir-se deste objecto, tal como um homem que não a tenha adquirido na infância. O domínio reservado do saber-fazer técnicas altamente especializa das, corolário de uma repartição sexual das tare- fas primárias e baseada em constrangimentos objectivos, tem por efeito um outro confinamento das mulheres a tare- fas que exigem também um conhecimento e um saber-fazer 220 TI(não próprios de um sexo: os homens também podem colher em período de penúria), mas que nunca serão do domínio reservado masculino. Mesmo que aconteça que as mulheres venham a pene- trar no dorrúnio reservado, ouque uma parte desse domínio seja progressivamente invadido por elas, o importante é que o domínio reservado continue sempre a existir, mesmo modificando-se . CAPITULO 10 FIGURAS DO CELIBATO* ESCOLHA, SACRÍFICIO, PERVERSIDADE .•.6!.,. esse respeito introduz-se o trabalho do F'ens?1T!f-'\nt0, ? criação ideológica que vimos em acção nos simbolismos expostos mais atrás: atribui-se um valor desigual às tarefas cumpridas, que não obtêm a quantidade de trabalho forne- cido nem o domínio da sua execução. A parte das mulheres na colheita representa por vezes mais de 70 por cento dos recursos alimentares do grupo nas sociedades de caçadores-recolectores. mas isso não tem importância: o verdadeiro prestígio é concedido à função de caçador. Eis-nos confrontados' com um último enigma. Como me parece que a matéria-prima do simbólico é o corpo, lugar ideal de observação dos dados sensíveis, e como em todo o problema complexo não pode haver soluções que não recorram às explicações cujo encadeamento remonte a dados cada vez mais simples até atingirem evidências ele- mentares, eu avançaria que a razão é talvez uma caracterís- tica própria do corpo feminino (e não a «incapacidade para a cocção do esperma»). O que é então valorizado pelo homem, do lado do homem, é sem dúvida ele não poder fazer correr o seu san- gue, arriscar a sua vida, tornar a dos outros, por decisão do seu livre arbítrio; a mulher «vê» correr o seu sangue para fora do corpo (em francês, não se costuma dizer «ver» com o significado de «ter as suas menstruações» 7) e dá a vida (e morre por vezes ao Iazê-lo) sem necessariamente o querer nem o poder impedir. Está talvez nesta diferença a competência fundamental de todo o trabalho simbólico inserido nas origens sobre a relação dos sexos. Há algumas sociedades, ou melhor, algmnas grandes civilizações coexistentes com uma certa ideia religiosa, que preconizam o celibato, enquanto meio de atingir a castidade, para todos quantos consagram a vida ao seu deus ou a uma ideia, qucr entrando em ordens religiosas, quer tornando-se sacerdotes do culto. É o caso de algumas correntes cristãs e também do budismo. Para só falar das motivações explícitas da relizião c~tólica, o celibato é então apresentado como um impera- tiv o puramente transcendente e como uma questão de dogma: é posto como sendo evidente que a vida no além, cuja existência necessária se postula, é uma vida na qual toda a sexualidade e afectividade estão ausentes por estarem inteiramente viradas para Deus; a sexualidade, embora ne~e.ssá~ia à sobrevivência da espécie, lõtna-se o lugar prrvilegiado do pecado, o protótipo de toda a concupis- cência, isto é, dos desejos que fazem passar as realidades da vida terrestre muito à frente dos imperativos da salva- ção da alma no além. I ~ I * In Auirement, 32, Junho de 1981, pp. 116-123. ,- 223222
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