Buscar

O-resgate-do-feminino-PDF(1)

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 3, do total de 110 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 6, do total de 110 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 9, do total de 110 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Prévia do material em texto

1 
 
O resgate do feminino 
A força da sensibilidade e ternura em homens e mulheres 
 
Isabelle Ludovico 
 
2 
 
Dedicatória 
 
A meu marido, Osmar, porque foi na alteridade da nossa relação que descobri o mistério 
do masculino/feminino, a inteligência do coração, a coragem da vulnerabilidade... 
 
À minha mãe, que me transmitiu o contentamento de ser mulher e soube construir com 
meu pai uma relação prazerosa e multifacetada. 
 
A meus filhos, que desenvolvem outras dimensões: Priscila resgata o prazer das 
atribuições tradicionalmente femininas (cozinhar, costurar, bordar...), sem deixar de ser 
desbravadora e original. Jonathan conjuga masculino com ternura e criatividade. 
3 
 
Agradecimento 
 
A minha amiga e colega Rosângela Correia, pela leitura atenta do rascunho. 
4 
 
Sumário 
 
Prefácio 
Introdução 
1. O princípio feminino 
2. O princípio feminino na História 
3. O princípio feminino e a espiritualidade 
4. O princípio feminino como missão 
5. A dança do masculino e do feminino na relação conjugal 
6. O princípio feminino como atitude 
7. O princípio feminino na alteridade 
8. O princípio feminino como expressão 
9. O princípio feminino como força 
10. O princípio feminino como sabedoria 
Uma palavra final 
 
5 
 
Prefácio 
Difícil falar da obra de alguém tão íntimo. Principalmente porque este livro trata de 
assuntos que são tão próximos de nós dois, da nossa individualidade como homem e 
mulher, mas também de nossa convivência de mais de trinta anos de casados. 
É preciso certa distancia para perceber o conjunto; quando estamos muito perto 
vemos mais os detalhes. Por isso a tarefa de escrever este prefácio demorou alguns 
meses depois do livro estar pronto. O que me chamou a atenção em tudo isto é que 
Isabelle em momento nenhum me cobrou ou demonstrou ansiedade. 
Primeiro expresso minha gratidão pela vida da Isabelle; com ela e nela tenho 
visto as expressões mais fecundas e significativas da graça de Deus na minha 
experiência humana. 
Com ela entendi o significado de deixar pai e mãe, unir-se e tornar-se uma só 
carne. 
Nela contemplei o mistério da criatura, imagem e semelhança de Deus. 
Com ela aprendi que um conflito pode desembocar em perdão e reconciliação. 
Nela descobri o feminino humano, que me ajudou a melhor perceber o feminino 
divino. E também a encontrar, no fundo da minha alma, aspectos por mim relegados, 
como a criatividade e a ternura. 
Neste livro estão presentes a honestidade e a aplicação da Isabelle. Honestidade 
na sua pesquisa científica, na sua observação clínica e na sua erudição, frutos de muitas 
leituras nas áreas teológica e psicológica. Os resultados de suas reflexões provêm de 
uma mente arguta e sensível, e conseguem ser didáticos e comoventes. 
Eu fui o primeiro grande beneficiado desta leitura; um caminho passo a passo 
em direção à aventura de ser homem. E de integrar, no casamento e na vida pessoal, 
estes polos complementares: o feminino e o masculino. 
Eu sou da geração que viveu o movimento da emancipação feminina. Sou 
testemunha desse período da história em que, depois de séculos de opressão e 
discriminação, a mulher desfruta de conquistas, respeito e igualdade sem precedentes. 
Como um grande lago represado, a emancipação feminina eclodiu em nossa 
geração; ao lado das conquistas, o movimento feminista trouxe também alguns 
desdobramentos negativos. Muitas mulheres, nesse processo, perderam a feminilidade e 
se tornaram masculinizadas, autônomas e castradoras. 
E assim nos casamos; Isabelle, francesa emancipada; eu, brasileiro culturalmente 
machista. 
Confesso que, no início, não sabia muito bem como lidar com esta supermulher 
articulada e independente, e me percebia perplexo sem saber como agir. Ora tinha 
ímpetos misóginos, ora me sentia frágil. Ela, por outro lado, mostrava-se forte, resoluta. 
Percebemos que tínhamos um caminho a percorrer: o de encontrar a nossa verdadeira 
identidade no secreto: ser homem e ser mulher; e aprender um com o outro a integrar e 
não, a competir; não somente no casamento, mas também em nossa própria identidade 
sexual. 
Ao ler o livro de Isabelle, posso então ver quanto ele contém da nossa própria 
história, desta relação construída ao longo dos anos, não sem dificuldade, mas sem 
nunca desistir; com muitas desconstruções, alguns desencontros, mas com muita 
alegria; aprendendo a abrir mão do poder na relação, para encontrar 
complementaridade, compreensão, afetividade. 
Estamos juntos nesta maravilhosa aventura humana de ser homem e de ser 
mulher. Homem, que consegue integrar aspectos do feminino e mulher, que resgata a 
dimensão do masculino. Sem perder a identidade, ao contrário, quanto mais nos 
integramos, mais somos nós mesmos, mais somos um casal. 
6 
 
Estou feliz por prefaciar o livro da Isabelle. Boa leitura! 
Osmar Ludovico da Silva 
Cabedelo, janeiro de 2008 
7 
 
Introdução 
 
 Bem-vindo você que reservou este momento para me acompanhar nesta 
reflexão. Alegro-me por esta oportunidade de encontro. Sente-se confortavelmente, 
respire fundo, acolha esse seu corpo que registrou fielmente toda sua história. Presente 
para você e para Deus, este momento torna-se um presente desfrutado e registrado. 
Deixe de lado a tirania do ativismo para permitir-se usufruir um tempo de quietude e 
gestação. 
Ao distanciar-se da vida agitada, você poderá rever algumas escolhas e 
identificar “a melhor parte”, de forma a tornar sua vida mais significativa. Eu costumo 
ler com uma caneta à mão para poder sublinhar as passagens que encontram acolhida 
em meu coração. De qualquer forma, esteja atento às repercussões das palavras em 
você. Uma vez receptivo consigo, estará em boa companhia e, juntos, poderemos 
plantar sementes de vida abundante. 
Este livro é fruto de um caminho pessoal para transcender condicionamentos 
culturais e alcançar o desenvolvimento integral, reconciliando em mim características 
exacerbadas ou sufocadas por uma educação tipicamente francesa, que privilegia a 
razão em detrimento da emoção. Na juventude, eu me afastei de Deus por considerá-lo 
machista, sem perceber que o machismo é fruto da leitura preconceituosa das Escrituras, 
e não uma praga de um deus vingativo. 
Graças a Osmar, fui desafiada a buscar pessoalmente respostas para meus muitos 
questionamentos, até que o Espírito Santo me fez cair de joelhos diante da revelação do 
amor imensurável de Deus. De repente, a cruz que eu considerava uma loucura fez 
sentido como o caminho determinado por Deus para denunciar o equívoco e a 
presunção do homem de querer escolher o próprio caminho para chegar a Deus. O preço 
pago para possibilitar essa reconciliação foi proporcional ao amor necessário para cobrir 
a imensidão da minha própria arrogância. 
À medida que eu conhecia Cristo através das Escrituras, descobria, comovida, 
sua atitude respeitosa em relação às mulheres e sua insistência em pontuar para os 
homens a dignidade e o valor delas. Assim, fui me apaixonando por um Deus que criara 
o homem e a mulher para uma relação de parceria e respeito mútuo, como reflexo de 
sua própria relação, na Trindade, que estende para cada um. 
Casei com Osmar e fomos aprendendo, um com o outro, ao longo destes 33 
anos. Como francesa, criada para confiar exclusivamente na razão, seguindo o famoso 
“penso, logo existo” de Descartes, descobri que poderia consultar igualmente meu 
coração e minha intuição. Aliás, as duas decisões mais importantes de minha vida, 
entregar-me a Deus e casar, foram vitórias do coração sobre a razão, que insistia em 
argumentar e encontrar empecilhos. 
A partir daí, trilhei um longo caminho, tanto interior quanto relacional. Pude 
perceber também, na prática clínica, o tamanho do estrago causado em adultos por uma 
cultura machista e por experiências diversas de abuso físico, sexual, psicológico e até 
espiritual. 
Assim, este livro é um grito de alerta diante da grave crise relacional neste 
mundo pós-moderno,que se reflete em todas as áreas da vida: familiar, profissional, 
afetiva e social, colocando em risco até a própria sobrevivência pelo esgotamento dos 
recursos naturais. 
Este livro é também um convite para que homens e mulheres, movidos pelo 
desejo de resgatar o projeto original de Deus, libertem-se de condicionamentos 
mutiladores e resgatem em si o prazer de serem pessoas íntegras, completas, em 
processo de restauração e, consequentemente, agentes de cura pessoal e de 
8 
 
transformação social. 
 Esse desafio só pode ser alcançado a partir de uma espiritualidade madura. E 
espiritualidade, é preciso deixar claro, não é religião, mas um vínculo afetivo com Deus, 
consigo e com o outro. “Nós amamos porque ele nos amou primeiro” (1Jo 4:19), e esse 
amor incondicional nos permite assumir nossa sombra, essa parte negada ou ignorada 
do nosso ser, e olhar com ternura para nós mesmos, de forma a aceitar também o outro 
com sua luz e sua sombra. 
A Palavra afirma que a qualidade do amor pelo outro depende da qualidade da 
autoaceitação, pois somos chamados a amar o outro como a nós mesmos (Mt 22:39). 
Espiritualidade diz respeito, portanto, à possibilidade de construir, em primeiro lugar, 
uma relação de intimidade com Deus, a quem temos acesso por meio do sacrifício de 
Cristo e da revelação do Espírito Santo. 
Na Bíblia, conhecer a Deus implica “amá-lo de todo coração, alma e 
entendimento”. Quanto mais conhecer a Deus, mais o amarei, e só posso conhecê-lo por 
meio do coração, pois ele transcende minha capacidade mental. É um mistério 
insondável, incognoscível, inesgotável. Trata-se de construir uma relação que envolve 
todo nosso ser, toda nossa capacidade racional e todas as emoções. Criados à imagem e 
semelhança de Deus, somos chamados a uma comunhão trinitária. 
Nossa identidade é, portanto, essencialmente relacional, já que somos fruto do 
amor de um Deus trino. Aliás, apenas um Deus trino poderia ser amor, tendo outros de 
igual dignidade para amar com um amor não simbiótico, mas aberto à pluralidade. Essa 
relação pessoal permite duplo conhecimento: quanto mais descubro quem é Deus, mais 
encorajada me sinto para reconhecer quem sou. 
Diante do amor incondicional de Deus posso admitir minhas qualidades e meus 
defeitos, reconciliar-me comigo e ir ao encontro do outro para abençoá-lo, em vez de 
tentar usá-lo para suprir meu desejo de reconhecimento e afirmação. Como diz Osmar: 
“priorizar os relacionamentos não é opção, mas o centro do evangelho”.1 E Carlos 
Queiroz ecoa: “amar a Deus, construir relacionamentos comunitários profundos e servir 
o próximo é a essência da vida cristã”.2 
 Assim, este livro não é apenas um grito de alerta, é também uma proposta. Não 
apenas denuncia os equívocos das escolhas passadas, mas anuncia um caminho de 
superação. Aponta algumas características que facilitam uma relação mais íntima com 
Deus e que, por isso, precisam ser resgatadas. São características que foram 
desdenhadas por uma sociedade que privilegia o consumismo (concupiscência dos 
olhos), o hedonismo (concupiscência da carne) e o individualismo (soberba da vida).3 
É importante frisar, no entanto, que qualidades como receptividade, 
sensibilidade, afetividade e doçura, tradicionalmente associadas à mulher, não são 
exclusividade dela. Portanto, não se trata de fazer apologia à mulher, mas de redescobrir 
aspectos que foram negados aos homens e que as próprias mulheres, movidas pelo 
desejo equivocado de se equiparar aos homens, tendem a desprezar. 
 Espero que este livro toque não apenas sua capacidade mental, mas também 
mobilize suas faculdades emocionais, intuitivas e sensitivas, de forma a integrar estas 
reflexões ao âmago de sua existência, até que modifiquem sua maneira de ver o mundo 
e de se relacionar. 
 Vamos começar considerando o princípio feminino e a evolução histórica da 
relação homem/mulher, comparando-a com o projeto original de Deus. Então, 
identificaremos as características do feminino que favorecem a compreensão empática e 
 
1
 Osmar LUDOVICO. Meditatio, p. 27. 
2
 Ser é o bastante: Felicidade à luz do sermão do monte , p. 36. 
3
 1João 1:16. 
9 
 
encarnada da revelação cristã. 
10 
 
Capítulo um — O princípio feminino 
 
Uma grande contribuição do psicólogo Carl Gustav Jung foi mostrar que tanto o homem 
quanto a mulher possuem um princípio masculino e um feminino. Ele chamou de anima 
o princípio feminino no homem e de animus o princípio masculino na mulher. Leonardo 
Boff pondera: 
 
A grande tarefa civilizacional, talvez a mais urgente nos dias atuais, consiste no 
resgate do princípio feminino. Chamo atenção para o fato de que não falo de 
categoria feminino/masculino, mas de princípio feminino/masculino [...]. O 
masculino não diz respeito somente ao homem, mas também à mulher. O 
feminino não ganha corpo apenas na mulher, mas também no homem. Esse 
feminino representa o princípio de vida, de criatividade, de receptividade, de 
enternecimento, de interioridade e de espiritualidade no homem e na mulher. 
Portanto, trata-se de um princípio inclusivo e seminal que entra na constituição 
da realidade humana. 
O resgate do princípio feminino junto com o do masculino propicia uma 
nova inteireza à humanidade, ao transcender as distorções na relação homem-
mulher e ao ultrapassar o sexo biológico de pertença. Significa não somente 
libertação dos humanos, especialmente da mulher, mas também da natureza e 
das culturas não estruturadas no eixo do poder-dominação, equiparadas ao fraco 
e ao frágil — portanto, ao feminino cultural. A recuperação do princípio 
feminino permite um processo de libertação mais integral e verdadeiramente 
includente, pois parte do feminino oprimido. O oprimido tem um privilégio 
histórico e epistemológico pelo fato de possuir uma percepção mais alta que 
inclui o opressor enquanto ser humano. O opressor exclui o oprimido, pois o 
considera uma coisa ou um ser humano menor, subordinado e dependente. A 
libertação deve começar pelo oprimido para acabar com o opressor. Só então 
ambos se encontram sobre o mesmo chão comum, como humanos, construindo 
juntos, na igualdade e na diferença, a sociedade e a história.
4
 
 
O resgate do princípio feminino, portanto, diz respeito tanto ao homem quanto à 
mulher. Essa proposta que, para muitos, pode parecer ousada encontra eco na literatura 
francesa de 16 anos atrás! Provém de uma terapeuta de família e de uma professora de 
filosofia: 
 
Nascemos num corpo sexuado, mas temos que descobrir que nosso psiquismo é 
bissexuado. E, quanto mais aceitamos essa bissexualidade, mais evoluímos. 
Na medida em que minha percepção e consciência me permitem enriquecer 
meu encontro exterior com um encontro interior com minha anima ou animus 
[...]não me inclino para você para me tornar você [...] eu não sou devorado por 
você, eu não o devoro. 
Cada parceiro é confrontado com a necessidade interior de entrar em contato 
com sua anima ou seu animus e é tentado a buscá-lo fora enquanto não o 
desenvolveu bastante interiormente.
5
 
 
Para Joyce McDougall, todos os seres humanos deveriam fazer um trabalho de 
luto entre a bissexualidade psíquica e a monossexualidade corporal.6 
O resgate da bissexualidade psíquica é um processo ainda mais difícil para os 
homens devido aos preconceitos machistas. Como diz Dan Kindlon, autor do livro 
 
4
 A força da ternura, p. 47. 
5
 Paule SALOMON, La sainte folie du couple, p. 210, 215, 253. 
6
 Anne Ancelin SCHÜTZENGERGER, Ces enfants malades de leurs parents, p. 115. 
11 
 
Alpha Girls, fruto de uma pesquisa junto à nova geração: “As meninas hoje podem ser 
duronas ou dóceis, flexíveis ou inflexíveis, de acordo com a necessidade”.7 
Nesse aspecto os meninos estão em desvantagem porque ainda se envergonham 
de explorar características femininas. Há, no entanto, alguns precursores, como Carlos 
Queiroz, que dedica seu livro Ser é o bastante a sua mãee a sua tia por lhe ensinarem 
que, na vida, basta SER. Ou seja, o aspecto do feminino é revelado pela própria vida, e 
foi assim que elas lhe ensinaram. Já o masculino em nós tende a racionalizar e ensinar 
por meio do discurso. 
Na realidade precisamos reconciliar esses dois princípios, como fez Jesus, que 
não apenas ensinou, mas viveu o que ensinou. A fé cristã não se resume em acatar uma 
reta doutrina acerca de Deus. A verdade não é uma declaração verdadeira, mas o próprio 
Cristo, Logos de Deus, palavra encarnada. O cristianismo é um estilo de vida a partir de 
um vínculo com Deus, como Senhor e Salvador. Só existe quando se traduz em 
transformação interior e atitude frente à vida, no gesto simples do cotidiano. 
Em outras palavras, cristianismo requer a disposição de caminhar em direção à 
“plena varonilidade de Cristo”, de perseverar nesse processo de santificação que nos 
torna cada vez mais parecidos com ele. Nossa peregrinação espiritual vai da persona, 
esse personagem construído para agradar, ao self, o eu verdadeiro criado à imagem de 
Deus e deformado pelo pecado cometido contra mim e por mim: o mal que me fizeram 
e o mal que eu fiz a mim e aos outros em reação ao mal que me fizeram. 
O caminho de volta para casa passa por esse processo de restauração do projeto 
original de Deus através do Espírito Santo que habita em mim. É a bondade de Deus 
que me permite tirar as máscaras, me desnudar e reconhecer minha verdade, para 
desenvolver a luz e confessar e deixar a sombra. O melhor de mim aflora e desabrocha 
diante de um Deus que me acolhe incondicionalmente. 
O ser humano como ser sexualmente neutro não existe; trata-se de um conceito 
abstrato que se sustenta apenas em teoria. Nascemos com características biológicas 
masculinas ou femininas, com pênis ou com útero. Mas o ser humano é 
primordialmente um ser cultural, e não natural. 
Nossa herança cultural, reforçada até por Freud, tende a considerar o macho o 
ser humano propriamente dito, e a fêmea um ser derivado dele e a ele subordinado. 
Assim, a construção do masculino e do feminino é um produto cultural, fruto da 
elaboração psicossocial das diferenças biológicas. No amplo universo de 
potencialidades herdadas por cada ser humano, seja homem ou mulher, algumas serão 
trazidas à consciência e estimuladas, enquanto outras continuarão relegadas ao 
inconsciente. 
 
A fixação de qualidades caracteristicamente femininas ou masculinas é uma 
clara consequência da divisão de papéis convencionada pela sociedade. Com 
toda certeza, ela não decorre necessária e naturalmente da constituição corporal, 
pois existem sociedades em que as mulheres desenvolvem, segundo nossos 
critérios, características “masculinas”, e os homens, características “femininas” 
[...]. Podemos exemplificar com as famosas amazonas, que atrofiavam o seio 
direito para atirar as flechas com mais eficiência. O mito foi personificado entre 
tribos do Amazonas (originalmente rio das Amazonas), em que as mulheres 
combatiam com tanta intrepidez quanto os homens. Em certas tribos indígenas, 
são os homens que ficam de resguardo depois do parto enquanto as mulheres 
vão caçar. Assim, é impossível deduzir diretamente das funções corporais 
masculinas e femininas qualidades de caráter ou formas comportamentais 
 
7
 Revista Época, de 26/03/2007. 
12 
 
“naturais e permanentes”.
8
 
 
O ser humano é, além disso, um ser essencialmente relacional. Assim, a 
definição do que é ser homem ou mulher não pode ser respondida, a não ser na 
alteridade com o outro. Na perspectiva sistêmica, que focaliza as relações, podemos 
perceber que o ser humano se move em função do contexto, das atitudes e expectativas 
do meio. Assim, a sociedade vai estimular nos meninos alguns comportamentos 
considerados “masculinos”, como o famoso “homem não chora” e, por contraste, as 
meninas serão incentivadas a desenvolver comportamentos complementares. Nesse 
caso, ela é encorajada a chorar por dois. Ele é cabeça e ela coração. Ela sente por ele e 
ele pensa por ela. 
Esse condicionamento mutilou ambos, aprisionando-os num roteiro 
estereotipado que os privou do equilíbrio saudável e estimulante. Uma homenagem à 
mulher, publicada no Jornal do Brasil, em 1994, por ocasião do Dia Internacional da 
Mulher, estampava a foto de uma atriz francesa loira, de olhos azuis, colocando para a 
mulher brasileira um padrão de beleza europeu e excludente da miscigenação. Além 
disso, pontuava: Ser mulher é: ter a cabeça bem aberta, encher os olhos de lágrimas, 
seguir seus próprios instintos, enfrentar o mundo com um sorriso e nunca perder o 
charme. 
O mais incrível é que esses paradigmas eram considerados elogios. Fiquei 
pensando o que se diria do homem: Ser homem é: saber o que deseja, controlar as 
lágrimas, seguir sua cabeça, enfrentar o mundo com competência e nunca perder a 
pose! 
Podemos citar também o famoso poema de Victor Hugo, que transitou na 
Internet, mostrando sua aceitação atual: 
 
O homem é forte pela razão. 
A mulher é invencível pelas lágrimas; 
A razão convence, as lágrimas comovem. 
 
Ou seja, o homem desenvolve a capacidade de raciocinar e a mulher, de 
manipular! 
 
O homem é capaz de todos os heroísmos. 
A mulher de todos os martírios, 
O heroísmo enobrece; 
O martírio sublima. 
 
Ou seja, o homem é corajoso, vence e conquista; a mulher se sacrifica, se 
entrega e abre mão! 
 
O homem pensa. 
A mulher sonha. 
Pensar é ter cérebro, 
Sonhar é ter na fronte uma auréola. 
 
Mais uma vez, o homem enfrenta a realidade; à mulher só resta fugir na fantasia. 
Para compensar tanta abnegação, a mulher precisa ser endeusada! 
Como se vê, a discriminação da mulher é compensada pelo título honorífico de 
“rainha do lar” e pelo mito da mãe perfeita, atualizado a cada Dia das Mães por 
 
8
 E. S. GERTENBERGER e W. SCHRAGE, Mulher e homem, p. 9. 
13 
 
declarações enfáticas sobre o amor materno. Provérbios como “No coração de mãe, 
sempre cabe mais um” ilustram tal idealização, que, por sua vez, exige um sacrifício, 
pois “ser mãe, é padecer no paraíso”! “Cadê” o pai? Até parece que os filhos são apenas 
das mulheres e que a responsabilidade de amá-los e cuidar deles é exclusividade delas! 
É fácil perceber como essas exigências foram restritivas e deformadoras tanto 
para os homens quanto para as mulheres. A mulher tem de ser boazinha e sedutora, o 
homem, forte e determinado. Ela deve silenciar a mente e concentrar-se na aparência 
para alcançar padrões de beleza muito distantes de sua herança familiar. Ele precisa 
reprimir as emoções e ser vencedor. Ambos só conseguem o reconhecimento social 
amputando uma parte essencial de si mesmos, abrindo mão da inteireza e dependendo 
um do outro para se complementarem. 
Existe uma imagem famosa que compara homem e mulher a anjos aos quais 
falta uma asa e, por isso, só podem voar abraçados. Outras imagens, menos românticas, 
falam da tampa da panela, da outra metade. São metáforas que enaltecem a dicotomia 
como ideal, mas Deus não criou seres pela metade, se não o que seria dos solteiros! 
Essa codependência gera expectativas e exigências que acabam minando a relação. Uma 
poetisa expressou esse desencontro e o anseio por restauração: 
 
Uma nova aliança 
Meu corpo geme 
Com as dores deste parto, 
o nascimento de um novo homem. 
Eu te peço companheirismo, 
E me ofereces o machismo. 
Eu te peço cooperação, 
E me ofereces exploração. 
Eu te peço carinho, 
E me ofereces o falo. 
Eu te quero homem, 
E te ofereces macho. 
Eu te quero emoção, 
E te ofereces razão. 
Eu te ofereço caminhada, 
E tu preferes acomodação. 
Eu quero a alegria da partilha, 
E tu vives como uma ilha. 
Acorda, homem! 
Estende-me a mão, 
Deixa-me ajudar-te 
A encontrar o teu coração.
9
 
 
O homem não é, no entanto, o único responsável por essa dicotomia. É a mulher 
que cria filhos machistas e perpetua o modelo. Aliás, ela oscila entre a profissionalambiciosa que “trabalha como um homem” e a menina dependente que se sente vítima. 
As duas negligenciaram a beleza e a força do feminino, que se nutre da interioridade, da 
relação com Deus, da reconciliação com a natureza, do desabrochar da intuição e da 
criatividade. 
O princípio feminino e masculino está em cada um, homem e mulher, para um 
casamento interior harmonioso e frutífero que permite uma relação reconciliada com o 
outro, diferente e complementar. 
 
9
 Maria Helena Oliveira CARDOSO. Canto de mulher, p. 41. 
14 
 
Deus fez pessoas inteiras que se unem para mútuo enriquecimento, e não para se 
tornarem bengala uma da outra. Aliás, quanto mais unidas, mais podem desenvolver a 
individualidade. E aí reside o mistério: tornar-se uma só carne sem perder a identidade. 
Sim, porque o amor dá segurança para aventurar-se além das fronteiras, ampliar os 
horizontes, desenvolver facetas até então atrofiadas que são agora fertilizadas pela 
relação com o outro, diferente, único, expressão exclusiva da Imago Dei. 
Deus criou a mulher para ser “auxiliadora” do homem. Em português esta 
palavra remete à ideia de “auxiliar”, levando à errônea interpretação de um ser 
subalterno. Essa leitura focaliza, de forma unilateral, a submissão da mulher em relação 
ao homem, enquanto somos chamados, na verdade, a submeter-nos uns aos outros no 
temor do Senhor. 
No entanto, a despeito dessa interpretação incorreta, a palavra “auxiliadora”, 
ezer, não traz nenhuma conotação hierárquica, já que, em outras passagens (p. ex. Dt 
33:7,26,29), ela é atribuída ao próprio Deus, como auxiliador do homem. Então não se 
trata de hierarquia, mas de uma contribuição única. 
“Auxiliadora” tampouco significa preencher o vazio do outro, pois há no ser 
humano um desejo de amor absoluto, incondicional, que só Deus pode suprir. Trata-se, 
sim, de reconhecer o chamado para cada um desenvolver seu potencial de forma 
equilibrada e abrangente, reconciliando mente e razão, sensações e intuição, com 
sabedoria, isto é, humildade e dependência de Deus, uma vez que o temor do Senhor, ou 
seja, a reverência da criatura diante do Criador, é o princípio que permite crescer nessa 
direção. 
É, portanto, contemplando o Senhor, como por espelho, que somos 
transformados a sua imagem. É admirando-o pelo que revela de si que desejamos 
desenvolver em nós aquilo que enxergamos. Deus nos criou macho e fêmea, mas 
tornar-se homem e mulher é um processo, fruto da contemplação do Senhor, que nos 
transforma à sua imagem. 
 
Não nos chama a atenção apenas a atitude de Jesus ante o feminino, 
mas, sim, o feminino em Jesus. O Jesus dos Evangelhos viveu uma integração 
profunda e harmônica entre sua masculinidade e sua anima, entre o masculino e 
o feminino que compunham sua humanidade. Sua ternura, compaixão e 
delicadeza revelam um amor que assume desejos, gestos e expressões não só 
paternos, mas também maternos e fraternos.
10
 
 
 
10
 Maria Clara BINGEMER. Experiência de Deus em corpo de mulher. 
15 
 
Capítulo dois — O princípio feminino na História 
 
O significado de ser homem ou de ser mulher tende a variar tendo em conta épocas e 
culturas. Simone de Beauvoir concluiu: “Não se nasce mulher, torna-se mulher”.11 E, 
denunciando o machismo da cultura ocidental, a escritora francesa Benoîte Groult 
acrescentou: 
 
É preciso sarar de ser mulher; não de ter nascido mulher, mas de ter sido criada 
mulher num universo de homens; de ter vivido cada etapa e cada ato de nossa 
vida através do olhar dos homens, conforme os critérios dos homens.
12
 
 
Como símbolo ilustrativo da nossa herança cristã, podemos citar o sermão 322 
de Agostinho: “Homem, tu és o mestre, a mulher é tua escrava, Deus assim o quis”. É 
dele também a conclusão: “A mulher sozinha não é imagem de Deus; porém, o homem 
sozinho é imagem de Deus tão plena e completamente quanto a mulher junto do 
homem”. 
Tomás de Aquino, por sua vez, complementou: “Como indivíduo, a mulher é um 
ser medíocre e defeituoso”.13 No Concílio de Mâcon, em 485, foi discutido se a mulher 
podia ser qualificada como criatura humana; e a votação para concluir se tinha alma só 
lhe foi favorável com uma pequena margem. 
O patriarcado não oprimiu apenas as mulheres; mutilou também os homens. É 
significativo que, para obrigá-lo a sufocar sua afetividade e sensibilidade, os ritos de 
passagem de menino para homem sejam geralmente cruéis. Citemos como exemplo a 
ida a um prostíbulo para início da vida sexual. 
A fim de dominar a mulher, o homem precisou romper sua relação com o 
feminino. A queda instaurou uma relação de desconfiança com ela, com Deus e com os 
demais homens. Essa atitude predatória manifesta-se inclusive na relação com a 
natureza. A dicotomia, fruto da queda, é diabólica no sentido literal, pois nos dilacera. A 
queda foi movida pela ânsia de poder. Reconciliar-se com Deus e tornar-se discípulo é 
abrir mão do poder e, em troca, tornar-se apto a servir. 
O homem e a mulher, no entanto, podem voltar a ser um e a desfrutar a parceria, 
respeitando as diferenças e aprendendo com elas. Olhar-se mutuamente com admiração 
faz desabrochar o melhor do outro. Assim como ocorre na união sexual — a concepção 
de um novo ser —, a união do masculino e feminino também gera algo novo: um 
vínculo tão sublime que remete ao mistério da aliança de Deus com a humanidade, ao 
transcendente, ao sagrado. Essa aliança deu-se em Jesus, que redime o masculino e o 
feminino. 
 
Razão versus emoção 
 Segundo o Paul Tournier,14 a Renascença foi responsável por um grande evento 
psicológico, uma escolha: o descrédito do sentimento em benefício da razão, do corpo 
em benefício do intelecto, da pessoa em benefício das coisas. Mais ainda, houve uma 
espécie de sufocamento da afetividade, sensibilidade, emoções, ternura, benevolência, 
respeito ao outro, relacionamento pessoal, comunhão mística e, por extensão, da mulher, 
a quem todos esses termos estão ligados por associação de ideia espontânea. 
As mulheres foram sistematicamente impedidas de ingressar no mundo do saber. 
 
11
 Le deuxième sexe 1, p. 285-286. 
12
 Ainsi soit-elle, p. 34. 
13
 Suma teológica XCII:1. 
14
 A missão da mulher. 
16 
 
Mais recentemente, até Freud definiu a mulher a partir do homem, a quem ele 
considerava norma, padrão, parâmetro e referência. Ele associou feminilidade a 
passividade, narcisismo, instinto, desejo e prazer, enquanto a masculinidade foi 
associada ao ideal humano, à razão, sublimação, moralidade e saúde mental. 
Freud construiu a identidade feminina a partir do paradigma da falta, da inveja 
do pênis, sem considerar que seria mais lógico primeiramente o homem sentir falta dos 
seios que o amamentaram e do útero que o carregou. A primeira referência da criança é 
a mãe e, por comparação, o menino poderia se perceber incompleto. Mas aqui não se 
trata de lógica, e sim de interpretação da realidade feita por um adulto, e, por sinal, um 
homem. Freud olhou para a mulher de forma preconceituosa. 
Assim, numa sociedade machista, que valoriza o homem, a mulher é induzida a 
desejar esse símbolo de poder, enquanto os seios são símbolos de amor e doação. Ela 
quer o status e a preferência que a sociedade confere ao sexo masculino. 
Essa problemática está presente, de certa forma, em casa. A vida do homem e da 
mulher é determinada, em grande parte, pelas condições de existência do grupo primário 
ou família. A industrialização gerou uma mudança estrutural no seio da família, 
separando definitivamente moradia e local de trabalho, e subtraindo da família a 
autonomia econômica. 
A dicotomia entre vida pública (fora de casa), reservada ao homem, e vida 
privada (no lar), a cargo da mulher, acabou se tornando uma armadilha que limitou a 
realização de ambos. Enquanto o exercício privado da religião passou a ser “coisa de 
mulher”, o homem concentrou as funções e os deveres jurídicose sociais. Mulheres e 
crianças costumavam ir à missa, enquanto os homens se encontravam no bar. As 
mulheres ficaram confinadas ao lar e nem eram consultadas a respeito de questões que 
envolvessem o bem comum. 
Descartar a participação da mulher teve consequências drásticas para o mundo 
ocidental, tão aperfeiçoado, “desenvolvido”, poderoso, eficiente, mas também tão frio, 
duro e violento. Um mundo onde são vencidas doenças controláveis por meio de estudo 
objetivo, mas onde se multiplicam as neuroses ligadas à falta de amor; onde foram 
conquistadas muitas melhorias de ordem prática, mas onde se tem deteriorado a 
qualidade dos relacionamentos, que pertencem à esfera dos sentimentos. 
Assim, vivemos a ambiguidade de ter UTIs cada vez mais sofisticadas, enquanto 
aumenta o número de cardiopatias, revelando a angústia do ser humano, sobrecarregado, 
estressado pela violência, pela competição profissional, pela solidão. Cresce 
assustadoramente o número de divórcios e de pessoas solitárias. Os consultórios estão 
abarrotados de pessoas com síndrome de pânico, depressão, crise existencial. 
 
A crise nos relacionamentos 
 No mundo da tecnologia, da instantaneidade, das novidades fugazes, as pessoas 
trocaram o convívio pessoal pela internet, que permite comunicação com o mundo 
inteiro, enquanto nem sequer conhecemos nosso vizinho. Recebemos mensagens lindas 
sobre amizade, temos muitas relações virtuais, mas poucos amigos verdadeiros. 
Encontramos muitas pessoas, mas poucos conhecem nosso coração. Por ter poucos 
vínculos, acabamos exigindo deles, e principalmente do cônjuge, que supram nossa 
carência afetiva. 
Ao exacerbar tal expectativa, geramos frustração e desencontro, pois queremos 
uma relação intensa, apaixonada, como nos filmes românticos. Mas a vida real não é 
assim. E os desencontros nos fazem sentir fracassados. Por ser imediatistas, não 
percebemos que a intimidade requer confiança e se constrói aos poucos, com paciência 
e dedicação, com flexibilidade e capacidade de perdoar. Separamo-nos, achando que o 
17 
 
outro é o culpado, em vez de perceber nossa própria contribuição; assim, acabamos 
repetindo a mesma dinâmica com o próximo eleito do coração. 
As relações, portanto, tornam-se descartáveis. Um exemplo claro e atual é o 
famoso “ficar”, que na verdade é um paradoxo. Não “se fica” com alguém, mas passa-se 
de um ao outro, sem compromisso nem envolvimento emocional. 
 
A crise conceitual na sociedade ocidental 
A crise atual decorre de uma visão de mundo fragmentada e excludente, que, como 
vimos, separa corpo e mente, razão e emoção, matéria e espírito, privilegiando sempre o 
primeiro elemento destes pares. A necessidade imperativa de reorientação da sociedade 
já é reconhecida até pelos próprios cientistas. 
Os físicos das primeiras décadas do século XX, ao mergulharem cada vez mais 
fundo no interior da matéria em busca dos segredos do átomo, tiveram de romper com a 
física clássica newtoniana e com o pensamento cartesiano, racional e analítico, para 
conseguir entender o universo físico não visível e não palpável: o universo das 
partículas subatômicas, objeto de estudo da física quântica. Ao evidenciar que o átomo 
se manifesta ao mesmo tempo como onda e como partícula, percebeu-se que a realidade 
não é linear e excludente, mas sistêmica, ou seja, existem vários níveis de realidade. 
A lógica ocidental não dá conta de realidades mais complexas, como o campo 
social ou político, onde ela age como lógica de exclusão: direita ou esquerda, feminino 
ou masculino, branco ou preto. A perspectiva da complexidade, por sua vez, permite 
enxergar que A e não-A estão unidos num nível superior de realidade. 
Assim, faz sentido que, em Cristo, não haja mais homem e mulher, servo e 
mestre. O amor é inclusivo, considera o ser humano, a essência de cada um, além das 
diferenças biológicas e sociais. Os diferentes níveis de realidade são acessíveis por meio 
de diferentes níveis de percepção. 
Numa percepção mais abrangente, homem e mulher são unidos e 
interdependentes na construção de uma humanidade nova, que reflete seu caráter de 
criaturas à imagem de Deus. Ambos contribuem e fertilizam-se mutuamente, 
aprendendo um com o outro, de forma a desenvolver um potencial até então reprimido 
pelo preconceito social e pela luta pelo poder, que gerou exclusão e amputação. 
Passar da compreensão linear e excludente para a compreensão sistêmica e 
inclusiva é uma mudança fundamental de paradigma, que permite perceber a 
complexidade da teia da vida. Nela, homem e mulher têm seu lugar, assim como a 
própria natureza, que foi explorada de forma predatória e hoje está à beira do colapso. 
 
Novo paradigma sistêmico 
Nossa compreensão da natureza passou por três grandes etapas: a natureza mágica, a 
natureza máquina e a morte da natureza. A ciência nos forneceu ferramentas que 
ampliaram a capacidade dos órgãos dos sentidos. Em seguida, nos permitiu um 
deslocamento horizontal e, mais tarde, vertical. 
Com o mundo quântico, vimos que a exploração vai do visível para o além do 
visível, os objetos microscópicos. Perceber o mundo quântico requer primeiro um 
silêncio interior desconcertante, percebido como desestabilizador.15 É um saber que 
integra teoria e experiência. A palavra “teoria” encontra, assim, seu sentido etimológico, 
o da “contemplação”. A lógica linear é substituída pela causalidade circular aberta: “o 
caminho se faz ao andar”, e instaura a era dos caminhantes, contrapondo-se à era dos 
comerciantes, que acirrou a violência e gerou ricos cada vez mais ricos e pobres cada 
vez mais pobres. 
 
15
 Basarab NICOLESCU. O manifesto da transdisciplinaridade, p. 71. 
18 
 
Fez-se necessário integrar interioridade e exterioridade, masculino e feminino, 
contemplação e ação. A visão sistêmica ampliou o paradigma mecanicista por meio de 
uma abordagem inter-relacional. A Teoria Geral dos Sistemas apontou características 
comuns a todos os sistemas vivos e propiciou uma visão do mundo como um conjunto 
de sistemas interdependentes. 
Elaborada por Ludwig von Bertalanffy, por volta de 1950,16 a teoria afirma que 
todo sistema vivo é essencialmente dinâmico e aberto, a fim de se adaptar às mudanças 
internas e externas. Cada unidade básica obedece a um paradoxo: quanto maior sua 
integração no sistema, maior sua autonomia em relação a ele. 
Essa nova percepção sistêmica inclui a dimensão do desconhecido, do 
inesperado e do imprevisível (que obriga a reconhecer o lugar de Deus). Diante do 
crescimento exponencial da tecnologia frente a um ser interior cada vez mais 
empobrecido pela priorização do material e diante da complexidade do nosso mundo e 
do risco gerado pelo capitalismo selvagem, a visão ecológica gera uma revisão dos 
valores da sociedade, imprescindível também para que se evite a destruição do planeta. 
A mudança conceitual, de um modelo mecanicista para uma percepção 
sistêmica, leva a uma mudança existencial, passando do intrapsíquico para o inter-
relacional, do individualismo excessivo para a interdependência, do crescimento 
predatório para o desenvolvimento sustentável, da competição para a cooperação, da 
quantidade para a qualidade, do modelo autoafirmativo inspirado no “penso, logo 
existo!”, de Descartes, para o modelo integrativo na rede de interconexões. 
Afirma-se a percepção de que somos interligados e que nossas ações têm 
múltiplos desdobramentos, muito além do famoso binômio estímulo/resposta. Caminhar 
da linearidade reducionista e fragmentada para a complexidade holística, da estabilidade 
para a instabilidade e da objetividade para a intersubjetividade nos torna mais humildes. 
Desenvolver uma leitura sistêmica que considere a rede de interconexões requer, 
portanto, integrar conhecimentos antropológicos, sociológicos, etnológicos, ecológicos, 
psicológicos, entre outros. Face ao desequilíbrio entre o desenvolvimento tecnológico e 
o colapso das relações interpessoais,a Teoria Geral dos Sistemas aponta a importância 
de alguns elementos básicos da ecologia: interdependência, reciclagem, parceria, 
flexibilidade, diversidade e sustentabilidade. 
Em seu livro A teia da vida, Capra declara: “A sobrevivência da humanidade 
dependerá de nossa alfabetização ecológica, da nossa capacidade para entender esses 
princípios da ecologia e viver em conformidade com ele.17 
Numa reunião patrocinada pelo CNPq e o Banco Mundial, em 1987, cientistas 
do mundo inteiro concluíram: 
 
Conceitos como espírito, intuição e emoção terão de ser incluídos na visão 
ocidental do mundo se a civilização moderna quiser superar a profunda crise em 
que se encontra, onde se misturam inflação, desemprego, contaminação de 
alimentos, desastres ecológicos e violência social crescente, múltiplas facetas 
de uma crise única: uma crise de percepção.
18
 
 
A emancipação do homem e da mulher 
A mudança de paradigma gerada pela crise do modelo clássico e patriarcal teve 
repercussões no campo da relação homem/mulher. Num primeiro momento, o 
movimento feminista levantou a bandeira legítima da luta pela igualdade de direitos 
 
16
 Teoria geral dos sistemas. 
17
 P. 
18
 Jornal do Brasil, 10/05/1987. 
19 
 
com o homem, mas, para provar seu valor, acabou instaurando uma espécie de 
competição com ele. 
Com isso, a mulher conquistou muitos espaços tradicionalmente reservados 
apenas aos homens, mas se tornou muitas vezes uma caricatura dele, inclusive na forma 
de exercer liderança e até de se vestir. Só recentemente a mulher está alcançando 
autoestima suficiente para promover a afirmação de valores e expressões do feminino. 
Tendo provado sua capacidade de desempenhar papéis tradicionalmente masculinos, ela 
pode afinal redescobrir e resgatar qualidades que teve de inibir para ser bem-sucedida 
social e profissionalmente. 
Ao acolher sua sensibilidade, afetividade e intuição, a mulher pode não apenas 
reabilitar essa dimensão relacional, como ajudar o homem a integrá-la a sua própria 
existência. Trata-se de características que foram atribuídas socialmente à mulher, mas 
que fazem parte da essência de todo ser humano, já que fomos criados para amar. A 
competição homem/mulher pode então ceder lugar à complementação e cooperação, em 
que cada um aprende com o outro de forma a desenvolver aspectos até então censurados 
ou reprimidos. 
A psicologia analítica, desenvolvida por Jung, dá sustentação a essa dinâmica, 
mostrando a necessidade de integrar o masculino e o feminino em cada ser humano. 
Trata-se, para o homem, de desenvolver a sua anima, enquanto a mulher precisa integrar 
o seu animus. Esses aspectos tendem a ficar inconscientes, e, como tudo o que é 
inconsciente, são projetados e vividos através da identificação com as pessoas do sexo 
oposto. Ao longo da vida, essas projeções vão sendo eliminadas à medida que tais 
aspectos vão-se desenvolvendo no próprio indivíduo. Nos contos de fadas, a mulher 
espera passivamente que um homem a desperte. Hoje, a mulher percebe que seu 
despertamento não é externo, mas interno. 
Portanto, assim como o corpo contém biologicamente genes masculinos e 
femininos, também no plano psíquico temos reações, atitudes e comportamentos que 
pertencem a esses dois polos. A anima tem a função de facilitar a relação entre a 
consciência do homem e seu inconsciente. 
 
Quando uma figura do inconsciente é negada, rejeitada ou ignorada, ela se volta 
contra nós e mostra seu lado negativo. Quando ela é aceita, compreendida e 
alvo de relacionamento, seu lado positivo tende a aparecer.
19
 
 
A anima é o arquétipo da vida. Ela desperta no ser masculino respeito renovado 
pelo mundo do coração, pelos relacionamentos, pela alma, pela busca de sentido 
existencial, pela dimensão transcendente da vida. O masculino é o princípio de 
diferenciação mais voltado para a objetividade pragmática, o lado esquerdo do cérebro, 
enquanto o feminino é o princípio de agregação, mais voltado para a percepção 
gestáltica e subjetiva, global, o lado direito do cérebro. 
O processo de desenvolvimento ou individuação, portanto, consiste em ordenar 
o consciente e o inconsciente em torno do self, que é o núcleo central da psique. Esse 
processo se dá através da conscientização da sombra, bem como do animus, pela 
mulher, e da anima, pelo homem. 
Durante o período de onipotência, no auge do movimento feminista, em que a 
mulher virou a mesa, repeliu o papel de Amélia e quis provar sua capacidade de 
desempenhar todos os papéis que foram privilégio do homem, a relação homem/mulher 
ficou abalada, e o príncipe encantado virou sapo. 
Em vez de promover a libertação requerida por elas, o movimento promoveu a 
 
19
 John A. SANFORD. Os parceiros invisíveis, p. 85. 
20 
 
exacerbação das características do princípio masculino. Acuados, os homens se 
protegeram dessa mulher fálica enveredando pela homossexualidade ou por relações 
superficiais e descompromissadas, o famoso “ficar”. 
A mulher passou a exigir seus direitos, inclusive na área sexual, reivindicando o 
direito ao orgasmo, transformando assim um presente numa cobrança assustadora para o 
homem. Ela foi estudar e trabalhar, acumulou as atribuições em relação a filhos e casa 
com as exigências da carreira profissional, acarretando sobrecarga, estresse e mal-
humor pela dupla jornada de trabalho. 
O homem, destituído do trono e das prerrogativas de provedor, sentiu-se 
ameaçado e foi se afastando, magoado. A princesa virou bruxa! A supermulher ficou só 
e foi sendo confrontada com as próprias limitações. 
Iniciou-se, então, o resgate do homem/mulher real, sem realeza, ambos despidos 
das nobres roupagens institucionais e idealizadas. Os títulos de rainha do lar e herói 
foram então percebidos como engodos, armadilhas que custaram muito caro, pois 
exigiram comportamentos estereotipados que não respeitavam os anseios e talentos 
individuais. 
De um lado, a mulher não tinha poder de decisão, era apenas escrava das 
múltiplas e inesgotáveis atribuições de uma mãe e dona de casa, mas que não lhe 
permitiam ser dona de sua própria vida. De outro lado, o homem tinha de arcar, sozinho, 
com o sustento da família, tendo a obrigação de ser bem-sucedido e render-se às 
exigências do mercado para não correr o risco de ficar desempregado. 
Assim ambos ficaram à mercê de terceiros e privados das compensações de cada 
lado. A mulher não tinha o prazer de contribuir para a construção da sociedade e o 
homem não convivia com os filhos, nem tinha acesso à cozinha e à decoração da casa. 
A nova mulher, mais consciente de suas aspirações e de seus limites, brincou de 
esconde-esconde com o novo homem, ambos desejosos e temerosos do encontro. À 
medida que ela foi tendo coragem para encarar os próprios medos, desejos e conflitos, 
passou a aceitar também os do homem e favoreceu o encontro com ele. Assim, a 
emancipação da mulher levou à emancipação do homem, que perdeu uma escrava, mas 
reencontrou uma companheira na cumplicidade, na ternura, na estima mútua. 
Essa nova mulher visou não apenas à parceria em pé de igualdade com o 
homem, mas à restauração de valores femininos, como intuição, perspicácia e 
imaginação. Entendeu que o caminho da individuação, válido para ambos, supõe a 
busca do desenvolvimento harmonioso de todos os aspectos da personalidade: 
pensamento e sentimento, sensação e intuição. 
Tendo se libertado da tutela do homem e da tirania da heroína, a mulher 
percebeu que sua única obrigação como ser humano é SER HUMANA! É usar a 
criatividade para trilhar novos caminhos em busca da saúde integral, escapando assim à 
compulsão à repetição e aos papéis estereotipados, que são sintomas de patologia. 
As mulheres fazem agora uso da palavra, expressam e compartilham desejos e 
dúvidas, formam grupos de troca, de comunhão, de aprendizagem. Demonstram grande 
capacidade de aprendizagem e curiosidade aguçada pelos progressosjá experimentados. 
Essa nova mulher permite que o “verdadeiro homem”, ou machão, seja 
substituído pelo “homem de verdade”, ou real, um homem que pode se permitir ser 
também frágil, sensível, carente, inseguro, ambíguo. Um homem que também está 
tateando em busca da verdadeira identidade, saindo da toca afetiva onde se tinha 
refugiado e dispondo-se a usufruir os espaços da casa que a mulher vai cedendo: o 
prazer de cozinhar, de curtir os filhos sem precisar ser o bicho-papão: “Você vai ver 
quando seu pai chegar!”. 
 
21 
 
A nova relação homem/mulher 
Agora, homem e mulher podem experimentar, juntos o exercício da liberdade na 
dialética aprendizado/ensino, vivência/elaboração, mudança/tradição, vida 
interior/partilha, individuação/intimidade, público/privado, emoção/razão, 
solitário/solidário, objetivo/subjetivo, individual/social. Só pode ensinar quem está 
disposto a aprender. Trata-se de educar um ao outro, no sentido etimológico do termo: 
extrair, desentranhar a essência humana pelo resgate da complementaridade 
masculino/feminino. 
Nesse momento, as mudanças não são lineares, mas, como uma dança, com 
avanços e retrocessos, dois passos adiante e um para trás. A mulher ocupa cargos 
públicos, até no poder executivo, e o homem cuida mais das crianças, ajuda nas tarefas 
de casa, vai às reuniões da escola, leva-as ao parque. A mulher começa a ler jornal e o 
homem, romances e a escrever poesias. Ela está ampliando o horizonte além dos limites 
domésticos, e ele está encontrando na casa um novo espaço de lazer e aconchego. Ele se 
interessa pela decoração da casa e frequenta aulas de culinária. 
Há necessidade de muito diálogo para entender o processo de cada um, respeitar 
o ritmo de cada um, perceber a herança que cada um carrega. É um caminho individual 
que tem grandes repercussões na relação, ou seja, exige solitude, um espaço para 
enxergar-se por inteiro, e aproximação, um espaço para enxergar o outro e o ponto de 
vista do outro. Ambos pisam em terras virgens, e cada um precisa sinalizar claramente 
quando se sente invadido ou pressionado pelo outro. 
Essas mudanças individuais já são percebidas no nível social: a mulher está 
presente em todas as esferas do poder público, mesmo em redutos antes exclusivamente 
masculinos, como o Supremo Tribunal Federal! A multiplicação de ONGs é, em grande 
parte, iniciativa de mulheres que partem de alguma experiência prática para uma 
atuação mais profissional. 
Os homens, por sua vez, questionam sua trajetória profissional e se permitem 
mudar de rumo. Abrem espaço na agenda para cursos de poesia e até para cuidar da 
aparência física. Percebe-se na prática que a iniciativa da mudança é, em geral, da 
mulher, mas o homem tem a prerrogativa de acolher a mudança ou resistir-lhe. Assim, 
sua resposta ao movimento iniciado pela mulher é determinante para o futuro da relação 
e para a possibilidade de crescimento mútuo. Se resiste, ele tende a regredir, podendo 
até se tornar violento e destrutivo. Pode também adoecer ou se isolar, aprisionado na 
condição autoimposta de vítima. 
 
A relação com Deus 
A qualidade da relação homem/mulher depende da qualidade da relação com Deus. Em 
seu livro O futuro de uma ilusão, Freud profetizava o desaparecimento da religião à 
medida que a ciência respondesse a todos os questionamentos do homem. 
Já nessa época, seu amigo e discípulo, pastor Oskar Pfister, respondeu20 que a 
ciência não poderia atender à necessidade espiritual do homem. A característica 
principal da pós-modernidade é justamente a desilusão em relação à ciência e esse 
descrédito deu margem à uma verdadeira onda mística, na qual o homem busca 
experiências sobrenaturais para apaziguar seus questionamentos existenciais. 
Uma vez amenizada nossa onipotência, que chegou ao apogeu quando Nietzsche 
tentou esvaziar o céu ao declarar: “Deus está morto”, devemos ter o cuidado de não cair 
num relacionamento primitivo, irracional e quase animista com o sobrenatural. Em 
certas igrejas, o louvor é mais uma catarse coletiva que um culto a Deus. O foco está 
nas sensações de bem-estar da plateia, levada ao delírio por um dirigente carismático e 
 
20
 Die Illusion einer Zukunft [A ilusão de um futuro]. 
22 
 
por músicas com declarações irreais. 
Enquanto a tendência atual é tentar substituir a razão pela experiência, em busca 
de êxtases para suprir a necessidade de sentido, nós, cristãos praticantes, precisamos 
voltar aos fundamentos do evangelho, construir uma relação íntima com o Criador e 
viver os valores do Reino, de amor, justiça e paz. O grande equívoco religioso é ter um 
discurso muito maior que a prática. O testemunho fica enfraquecido pela falta de 
coerência entre o que pregamos e como vivemos. 
Alguns homens e mulheres, precursores, já abriram caminho para um 
relacionamento criativo de parceria e união, respeitando as próprias características e 
dispostos a aprender um com o outro. Assim, cada casal pode encontrar seu equilíbrio 
distribuindo responsabilidades segundo as aptidões da cada um. 
A grande maioria, entretanto, permanece presa ao modelo hierárquico, 
estereotipado, que determina as responsabilidades segundo o sexo. Esse machismo nega 
o mandato cultural dado por Deus a ambos para, juntos, governarem a terra. O modelo 
divino entra em choque com os valores da sociedade e se torna cada vez mais 
insustentável, consolidando-se pelo aumento assustador do número de divórcios em 
nosso meio. 
A resistência a questionar esse modelo machista é sintoma da nossa dificuldade 
de lidar com as diferenças e mostra que continuamos submissos à maldição da queda, 
em vez de nos apropriarmos da libertação que Cristo conquistou por nós na cruz. Nosso 
comportamento revela que o referencial continua atrelado à queda, em vez de se pautar 
na salvação e na restauração do projeto original, em Cristo. 
Em síntese, propomos uma evolução que é, na realidade, um retorno ao 
princípio. Em face dos estragos causados pela dominação do homem sobre a mulher, o 
que gerou um mundo tecnologicamente desenvolvido, mas cada vez mais desumano, 
somos convidados a voltar à essência do que significa ser homem e ser mulher, 
conforme o projeto original de Deus. 
 
23 
 
Capítulo três — O princípio feminino e a espiritualidade 
 
A essência do princípio feminino não é percebida pelo estudo intelectual e acadêmico. 
Trata-se de um mistério do qual podemos nos aproximar pela linguagem simbólica e 
metafórica. Deus criou duas luzes: uma para reger o dia e outra, a noite. O sol, 
associado ao princípio masculino, é o soberano do dia, da consciência, do trabalho e da 
realização, do entendimento e da discriminação, o Logos. A lua, o princípio feminino, é 
a soberana da noite, do inconsciente, do instinto, o Eros.21 
Conforme o costume judaico do Shabat, é prerrogativa da mulher acender as 
velas ao cair do sol da sexta-feira. A mulher é aquela que dá à luz. A vela ilumina com 
suavidade o ambiente, mostrando com precisão o próximo passo. Não é como a luz 
cósmica e masculina do sol, que ilumina tudo ao mesmo tempo. 
Diante de algum desafio, a maneira feminina — da anima no homem ou da 
mulher — é esperar até que algo dentro dela lhe conceda os meios, o caminho e a 
coragem. Ela é receptiva, não passiva. A passividade é a deformação dessa 
característica, pois o princípio feminino, como o masculino, é ambivalente. Assim, 
algumas mulheres abdicam da autonomia e entregam as rédeas de sua vida a um 
homem. É o famoso “complexo de Cinderela”, que leva algumas mulheres a regredir 
logo que encontram alguém que as assuma. Com isso, vão murchando e tornando-se 
apenas a sombra daquele a quem delegam a responsabilidade por sua felicidade. Esse 
processo geralmente acaba em frustração, seja porque o homem se cansa e as abandona, 
seja porque ele impõe sua vontade unilateral. 
 O aspecto luminoso, maternal, nutriente e fertilizador do feminino não consegue 
esconder o lado sombrioda voracidade, que precisa ser redimido. Todo Édipo, 
representando o menino apaixonado pela mãe, tem uma Jocasta possessiva que alimenta 
essa simbiose e requer exclusividade. 
 A lua é também sinal de instabilidade emocional, que se manifesta na mulher 
“lunática” subjugada por emoções violentas e ambivalentes. Sua vulnerabilidade pode 
suscitar um algoz e levá-la a desenvolver mecanismos de defesa, como manipulação e 
sedução. Sua pessoalidade transforma-se facilmente em maledicência. Algumas revistas 
sustentam-se com base nessa atração por fofocas. 
 A Bíblia menciona ainda a mulher “rixosa”, que se queixa, murmura, reclama 
sem tomar providências, enquanto o homem é mais propenso a agir. Na relação com 
Deus, ao ter de renunciar à possessividade, a mulher amadurece e se transforma, 
aprendendo a amar incondicionalmente. 
 O desejo de possuir, próprio do Eros, é então substituído pela capacidade de 
amar com o amor Ágape, um amor desinteressado, altruísta, que deixa o outro livre, que 
não quer controlar nem mudar o outro, mas o aceita como é. Os filhos, à medida que 
crescem e se tornam independentes, também nos desafiam a ampliar nossa capacidade 
de amar, quando fazem escolhas diferentes das nossas, quando nos questionam e 
rejeitam, como na adolescência. 
 Um feminino atrofiado e um animus superdesenvolvido produziram essa 
supermulher, arrogante, caricatura do machão. Lia Luft adverte: 
 
Tudo, menos ambicionar ser a mulher-maravilha: ela é inevitavelmente uma 
chata. Somos assolados pela propaganda dessa figura assustadora: um Monte 
Everest de perfeições, linda e competente, sensual e grande profissional, 
independente mas disponível, romântica mas vigilante, devotada, abnegada, 
vítima [...]. Não parece alguém que a gente possa amar, com quem se possa dar 
 
21
 Maria Esther HARDING. Os mistérios da mulher, p. 68-69. 
24 
 
risada, jogar conversa fora, namorar, aconchegar-se, fazer descobertas 
desafiadoras ou sofrer perdas dolorosas, caminhar pela vida, até, quem sabe, 
envelhecer.
22
 
 
De fato, essa mulher consegue êxito profissional, mas é execrada e solitária. Sua 
vida afetiva é um fracasso, pois constrói relações competitivas que desqualificam o 
outro. Nessa dinâmica de luta pelo poder, de dominador/dominado, de algoz e vítima, é 
impossível dar lugar ao amor, que pressupõe igualdade e reciprocidade, 
companheirismo e respeito. 
Como vimos, o estigma que pesa sobre a mulher não é recente. A supremacia do 
homem se deu à custa da desvalorização da mulher. O homem se encarregou, sozinho, 
da construção do mundo e confinou a mulher à esfera privada, gerando uma dicotomia 
empobrecedora para ambos. A mulher se anulou para atender às expectativas do 
“príncipe encantado”, dedicando-se ao cuidado dos filhos e da casa. 
Esse trabalho não remunerado resultou na dependência econômica, que se 
transferiu para o plano emocional. Reproduzindo o modelo da própria mãe, a mulher 
confundiu gradualmente sua identidade com a função materna. Até seu marido passou a 
chamá-la, com frequência, de “mãe”. Assim, quando os filhos se tornam independentes 
(apesar dela, diga-se de passagem), ela tem de enfrentar a pior crise: a “síndrome do 
ninho vazio”. 
A essa altura, a relação conjugal se dissolveu e foi substituída pelos papéis 
parentais, que já não têm razão de ser. O marido investiu sua energia no trabalho e 
enfrentou desafios que o levaram a crescer, enquanto ela estagnou num universo 
restrito, delimitado pelos famosos quatro “C‟s”: casa, comida, criança e criada. 
Restaram-lhe a solidão, frustração e ressentimento pela falta de gratidão do marido e 
dos filhos. 
Essa Amélia vivia à sombra do marido por medo de se aventurar fora do casulo 
da casa, que servia de proteção, mas também de prisão. Seu potencial foi tolhido 
enquanto desenvolvia mecanismos manipuladores para compensar a exigência de 
submissão, estabelecendo assim, com o marido, uma relação de mútua desconfiança. 
A partir da década de 1960, esse modelo foi rejeitado por muitas mulheres. Elas 
reivindicaram a emancipação e partiram em busca de novos horizontes. Na ânsia de 
compensar o tempo perdido, a mulher quis desempenhar todas as funções ao seu 
alcance. 
Essa mulher-maravilha inaugurou um período em que a luta pela autorrealização 
se travou no terreno da competição com o homem: universidade, profissionalização, 
mas também dupla jornada de trabalho. Não deixou de ser mãe e dona de casa, talvez 
para provar a si mesma ser capaz de brilhar em todas as áreas e conciliar todos os papéis 
ou quem sabe por exigência do parceiro, que, em mensagem dupla, incentivou suas 
conquistas profissionais desde que o equilíbrio familiar não fosse alterado. 
Assim, ela fez o possível para se encaixar no mundo frio, objetivo e racional 
construído pelos homens, abdicando, para isso, de parte fundamental de sua 
personalidade: ternura, subjetividade, sensibilidade, instinto, empatia. Conseguiu êxito 
profissional em detrimento da relação amorosa e do bem-estar dos filhos, sem 
mencionar o estresse que a acompanha. Tendo investido muito na autorrealização, 
sentiu-se, pela segunda vez, frustrada e solitária. Passou radicalmente da passividade e 
resignação para uma atitude onipotente. 
O resultado é um mundo doente, à beira da destruição, porque o ser humano, na 
ânsia de poder, rompeu a comunhão com Deus e com o outro. A união entre o homem e 
 
22
 Revista Veja, de 06/09/2006. 
25 
 
a mulher transformou-se em desconfiança e acusações, que os levaram a desenvolver 
vários mecanismos de defesa. O homem aproveitou a supremacia física para dominar a 
mulher e confinou-a ao espaço privado, enquanto tratava de construir o mundo. Por 
isso, hoje estamos padecendo do excesso do princípio masculino em relação ao 
princípio feminino. 
O mundo é extraordinariamente desenvolvido do ponto de vista tecnológico e 
pragmático, mas carece de solidariedade e afeto. A mulher virou a mesa, mas 
conquistou seu lugar no mundo em detrimento do princípio feminino, tornando-se uma 
caricatura do masculino. 
É tempo de a mulher se reconciliar com sua feminilidade e de ajudar o homem a 
descobrir sua anima, o seu lado feminino, para que ambos integrem em si próprios esses 
dois princípios. Agora a mulher alcança a grande oportunidade de verdadeira libertação, 
mas, para tanto, precisa encarar os conflitos e os antagonismos com que convive 
interiormente e do que tentou fugir pelo ativismo desenfreado. Eles são frutos da 
coexistência interna de modelos modernos e tradicionais: 1) a dependência de um 
poder-saber externo (pai, marido, médico), apesar da descoberta de seus próprios 
recursos; e 2) a expectativa incoerente de uma atitude dócil e frágil na relação afetiva, 
contrastando com a força e a determinação necessárias na vida profissional. 
É um momento de reflexão que pode dar início a uma nova fase integradora: 
resgatar a relação com o parceiro e os filhos, e renunciar à competição em favor da 
cooperação e do companheirismo. Ao encarar corajosamente medos, limitações, raivas, 
desejos, a mulher poderá também respeitar os mesmos sentimentos no homem. 
Depois de confundir a identidade com a função de mãe e, posteriormente, com o 
desempenho profissional, a mulher quer ser reconhecida não pelo que faz, mas pelo que 
é. Ela não visa apenas à igualdade de direitos com o homem, mas a restauração dos 
valores “femininos”. E o processo de restauração passa pela reconciliação da criatura 
com o Criador. 
A história do povo de Deus é uma história de andanças. Somos peregrinos 
chamados a nos desinstalar. Assim foi com Abraão e Sara, com José e Maria. Sem 
propriedade, sem bagagem, sem outro projeto que o de ir, em abertura incondicional, ao 
encontro de Deus, de si mesmo e do outro. 
Viver no Reino de Deus é uma escolha diária, e ela parte da espiritualidade que 
restaura a relação com o Deus trino: inspirada em Jesus, na força do Espírito Santoe 
sob o senhorio de Deus. Um Deus que integra em si mesmo o princípio masculino e 
feminino, e nos ajuda a descobrir a integralidade de nosso ser, com seus aspectos ativo e 
passivo, expressivo e receptivo. 
Nossa caminhada é movida pela fé encarnada e coerente, vivenciada no gesto 
simples do cotidiano, que resgata vínculos de intimidade com Deus, conosco e com o 
próximo. Uma fé que nos torna mais humanos, conscientes de nossos limites, mas 
também dos recursos da graça manifesta na cruz. 
Quero, com Maria Clara Bingemer, “reafirmar a indissolubilidade e vocação, da 
mulher, como mistério. Participando do mistério inerente a todo ser humano, a mulher 
tem uma maneira própria de viver e de „ser‟ esse mistério”.23 Ela leva consigo essa 
maneira misteriosa quando se propõe a falar sobre o mistério de Deus. 
À teologia, que muitas vezes se viu carente de mistério por excesso de 
racionalidade, a mulher hoje traz a água renovada de sua estreita aliança com a 
misteriosa fonte da vida e do ser, dando testemunho de que o beber dessa fonte, 
acessível a homens e mulheres, transforma-se em fonte de água viva, jorrando para a 
vida eterna. 
 
23
 O mistério de Deus na mulher, p. 91. 
26 
 
O mistério, no entanto, só pode ser apreendido com temor e reverência. Ele é 
percebido pela intuição, sensibilidade, empatia e paixão, qualidades tidas como 
essencialmente femininas, o que não significa que apenas mulheres têm acesso a Deus. 
Ele é facilitado quando as mulheres resgatam a feminilidade e quando os homens 
conseguem integrar sua anima. 
Em uma sociedade machista, tal proposta pode parecer extremamente 
ameaçadora para os homens que temem o fantasma do homossexualismo. No entanto, 
machismo e homossexualismo são duas caricaturas correlatas, consequência de uma 
relação deturpada com o feminino. Trata-se, sim, de um convite aos homens de 
seguirem o exemplo de Cristo, que se permitiu chorar, acolheu crianças e estabeleceu 
um diálogo profundo com as mulheres. Ao aceitarem tal convite, os homens 
descobrirão, e desfrutarão um lado muito precioso de sua personalidade, que inclui 
criatividade, poesia e ternura, além de poder aprofundar o vínculo de intimidade com 
nosso Criador e Salvador. 
A mulher, em contrapartida, precisa da relação dialética com o masculino para 
levar adiante o processo de individuação. Por meio do animus, a faceta masculina da 
alma feminina, ela pode desenvolver qualidades inerentes ao homem: sua capacidade de 
realizar e ordenar, formular, discriminar e generalizar. Pode aprender a ser seletiva, 
determinada e assertiva; a enxergar um horizonte mais amplo e a ser luz, não apenas na 
esfera das relações íntimas, mas na construção do mundo. “O componente masculino da 
personalidade, tanto masculina quanto feminina, lida com o mundo exterior; o feminino, 
com o interior”.24 Portanto, ambos são tão imprescindíveis quanto os dois lados da 
mesma moeda. 
É na relação amorosa que a mulher, pelo fato de ser mulher, diz ao homem que 
ele é homem; do mesmo modo, o homem desperta na mulher a consciência de ser 
mulher. O amor é revelação recíproca das diferenças. À medida que a relação entre eles 
se aprofunda e desenvolve, o homem vai percebendo aspectos de sua anima: seus 
sentimentos, sua sensibilidade. Bem-aventurados aqueles que desenvolvem uma atitude 
de respeito pelo outro, ao mesmo tempo diferente e complementar, pois assim 
conseguem integrar em si os aspectos masculinos e femininos, Eros e Logos, amor e 
verdade, tornando-se pessoas íntegras, completas. 
A autonomia da mulher, portanto, não gera isolamento. Ao invés disso, permite 
relações maduras fundamentadas no desejo do enriquecimento mútuo. O outro não é 
uma bengala, alguém que precisa ser manipulado para preencher nossos vazios; é, antes, 
um ser livre com quem podemos construir vínculos afetivos saudáveis e prazerosos. 
Nossa identidade básica não se origina no desempenho. Deixar a correria e o 
ativismo para perceber-nos na presença de Deus permite-nos descobrir o que somos na 
ociosidade. O que sobra de nós quando deixamos de lado os múltiplos papéis e quando 
ninguém precisa de nós. Perceber nossa pequenez diante de um Deus soberano agride 
nosso narcisismo onipotente. Mas, quando reconhecemos não merecer o acolhimento 
amoroso de Deus, somos tomados por uma alegria sem par, por nos saber amados 
incondicionalmente. 
O valor do homem e da mulher já não depende de esforços para atender 
expectativas alheias, mas se fundamenta na sua identidade de filhos criados e perdoados 
por Deus. A Bíblia lembra que nada pode nos separar desse amor, apenas nós mesmos, 
quando nos afastamos dessa identidade em busca de outras fontes de reconhecimento, 
que acabam por nos fazer retornar à relações escravistas. 
Temos o desejo de amor absoluto e incondicional, de pertencimento e de 
transcendência que só Deus pode preencher. Todo êxito humano, toda tentativa de 
 
24
 Robert A. JOHNSON. She, p. 65. 
27 
 
preencher esse desejo sem Deus trazem sentimento de frustração e vazio. 
Em Deus podemos viver numa dimensão que nos liberta da tirania do 
desempenho e nos conecta com a eternidade. Em vez de correr atrás do tempo e usá-lo 
para fugir da morte, somos convidados a fazer parte de um Reino eterno, que começa 
aqui e acontece onde a vontade de Deus é respeitada. 
Deus abençoou o sétimo dia e fê-lo santo. Nesse dia, criou a quietude, a 
celebração e a paz. Mais que uma pausa, é uma restauração. Deus não descansou porque 
estava exausto ou sem inspiração para criar. Ele se permitiu desfrutar sua criação. 
Significa dar um basta a nossa voracidade e experimentar nossa suficiência em Deus. É 
a nossa vocação: “não apenas um interlúdio, mas o clímax do viver”,25 uma prévia das 
bodas do Cordeiro, uma iniciação à apreciação da vida eterna. As coisas criadas nos seis 
primeiros dias são boas e muito boas; o sétimo é santo. Nos seis primeiros dias focamos 
a natureza; no sétimo, o Criador da natureza. 
O que somos depende do que é para nós o Shabat, que por sua vez ajuda a passar 
da mentalidade de escravo para a de filho. Ele reforça nossa identidade espiritual, que 
nos livra do domínio das coisas e das pessoas. Supridos por essa comunhão, podemos ir 
ao encontro das pessoas e usufruir as coisas sem criar dependência. No lugar, em nós, 
onde Deus habita, estamos sãos e salvos, livres da pressão dos outros, livres da 
compulsão do ter e do fazer, livres para sermos nós mesmos. 
O anelo pelo Shabat revela o anelo pela vida eterna. Deseje a intimidade com 
Deus em vez de cobiçar os bens do próximo. A verdade em que acreditamos não é um 
dogma ou uma relação de preceitos, mas é Cristo que nos convida a conhecer seu pai 
por meio dele. Nessa relação, vamos desenvolvendo a imagem de Deus em nós. Esse é 
o processo de santificação, que ocorre a partir do Shabat e permeia toda a nossa 
existência. A consciência da presença acolhedora de Deus passa a acompanhar-nos em 
outros dias da semana, capacitando-nos a desenvolver nosso potencial, enxergar as 
circunstâncias na perspectiva da eternidade e saborear a vida abundante que Cristo veio 
nos dar. Assim, podemos ser férteis e agentes de restauração! 
 
25
 Abraham Joshua HESCHEL. O shabat, seu significado para o homem moderno , p. 21. 
28 
 
Capítulo quatro — O princípio feminino como missão 
 
A Palavra é clara ao afirmar que Deus criou o homem, macho e fêmea, a sua própria 
imagem (Gn 1:26). Deus não apenas os criou mulher e homem; ele também os projetou 
e designou um para o outro. Assim, o homem e a mulher são iguais ontologicamente, 
isto é, na essência, mas diferentes e complementares na sexualidade. Adão se assume 
varão tão logo reconhece a mulher, criada para livrá-lo da solidão. Ao chamar a mulher 
de Hischa, ele a define como igual, companheira, irmã, alguém que se percebe na 
relação, à medida que o outro é um espelho que evidencia semelhançase diferenças. 
Nossa identidade vem do reconhecimento do outro como alguém diferente de 
nós. Assim, o bebê se enxerga primeiro no olhar da mãe, e sua autoestima vem da 
emoção transmitida pelo olhar que o saudou. Mas ele passa a se entender por gente, a 
dizer “eu”, quando se percebe separado da mãe. Igualmente, a mulher não é apenas 
parte do homem, seu osso, sua outra metade, mas um ser completo, edificado por Deus 
para ser auxiliadora do homem, para enriquecê-lo com suas características. 
Ao reconhecer a mulher como semelhante e diferente, o homem pode enxergar a 
si mesmo.26 “[...] Estavam nus, e não se envergonhavam” (Gn 2:25). De que poderiam 
se envergonhar a não ser da diferença? O pecado original, simbolizado pelo fruto 
mordido, é tido geralmente como sexual. Mas, embora tenha consequências em nível 
sexual, ele é primeiramente um desejo de ser “como Deus”, ou seja, uma luta com Deus 
pelo poder, que desencadeia uma luta pelo poder entre o homem e a mulher. Eles 
passam a tentar dominar um ao outro, em vez de, juntos, dominarem a terra. 
“A árvore do bem e do mal” pode ser traduzida literalmente por “a árvore do 
bem e do mal conhecer”. O conhecimento a serviço do desejo de onipotência se torna 
uma arma para controlar o outro e para benefício próprio. A proibição de comer do fruto 
da árvore do conhecimento é um limite a minha voracidade, que permite ao outro 
existir. A árvore se torna árvore porque a experiência do limite coloca em xeque minha 
onipotência, abrindo espaço para a existência do outro, a quem já não posso controlar e 
impor minha vontade. 
Ela é também a árvore da palavra que substitui o objeto e permite o diálogo. A 
palavra permite conhecer o que está além de nós. A proibição preserva o lugar do outro, 
da alteridade. O Deus trino é um ser relacional que oferece ao homem e à mulher a 
possibilidade de desfrutar essa comunhão, com ele, e um com o outro. Somos chamados 
a fazer parte dessa comunidade e a participar do mistério da unidade que respeita a 
diferença. 
Assim como o Pai, o Filho e o Espírito Santo são um sem perder suas 
características. Também o homem e a mulher tornam-se uma só carne sem que um 
absorva o outro, sem fusão simbiótica, sem perder a própria identidade. Quanto mais 
unidos, mais podem ser eles mesmos. Deus não procura controlar nem possuir. Ele é 
Emanuel, “Deus conosco”. 
É importante observar, ainda, que “a especificidade” do casal humano não se 
fundamenta no “sede fecundos, multiplicai-vos”, que foi dito primeiro aos animais (Gn 
1:22), mas na capacidade de diálogo.27 No entanto, os olhos do homem e da mulher, 
abertos a partir de um conhecimento mau, motivado por desconfiança, ambição e inveja, 
lançam um sobre o outro o olhar da concupiscência, que os leva a “comer com os 
olhos”, ou possuir. 
Adão e Eva “comeram” o limite que lhes teria permitido respeitar a diferença. 
Sentindo-se invadidos pelo olhar possessivo do outro, eles passaram a esconder com 
 
26
 Marie BALMARY. Le sacrifice interdit, p. 251. 
27
 Christianne MEROZ. Des femmes libres, p. 67. 
29 
 
folhas a nudez subitamente devassada. Por isso, a queda deturpou a relação entre o 
homem e a mulher, e a relação de ambos com a natureza. A relação se tornou 
ameaçadora, pois a diferença complementar, vista a partir de um “conhecimento mau”, 
tornou-se falha, gerou frustração e desejo de possuir. Isso despertou o medo de ser 
engolido ou usado pelo outro, bem como vários mecanismos de defesa, entre eles a 
projeção: “a mulher que me deste por esposa, ela me deu da árvore, e eu comi” (Gn 
3:12). 
Eva comeu e depois deu do fruto ao homem: não foi uma refeição 
compartilhada, em contraste com a última Ceia, quando o homem comeu porque Deus 
lhe ofereceu. O ato foi resgatado. O que havia sido usurpado foi doado. O pão foi 
abençoado e partido, o sangue foi vertido: símbolos da aliança que restaura sem 
prender. 
Em Cristo, homem e mulher são chamados à submissão mútua. O modelo 
hierárquico foi substituído pelo modelo de corpo e interdependência. Assim, os cristãos 
se tornam “corpo de Cristo”, em que cada membro, como no corpo humano, é 
importante e depende dos demais. Cada cristão recebe dons específicos para a 
edificação do corpo. 
Ao abrir mão do desejo narcisista de fazer do outro nossa imagem, podemos ser 
enriquecidos com sua contribuição específica e enriquecê-lo com a nossa. A unidade 
com o outro, que respeita as diferenças, é manifestação de Cristo em nós, como está 
escrito em Gálatas 3:28. 
 
O princípio feminino na Bíblia 
Em vez de falar de feminino como sinônimo de mulher, dissemos entender como 
feminino o princípio que se encontra de forma latente no homem e que é assumido pela 
mulher conforme padrões reforçados culturalmente. É interessante notar, por exemplo, 
que as virtudes cristãs de humildade, obediência, discrição e serviço são prestigiosas 
para a mulher, não para o homem! Maria foi exaltada por essas características, enquanto 
coragem, determinação e discernimento profético foram ignorados. 
A Bíblia traz para a mulher uma mensagem de libertação que, no entanto, tem 
sido usada, muitas vezes, para reforçar padrões culturais distorcidos. Desse modo, 
apesar de a Palavra afirmar, em Gálatas 3:28, a unidade ontológica entre homem e 
mulher, a igreja se valeu de um conselho específico do apóstolo à igreja de Corinto (cf. 
1Co 14:34), para silenciar a mulher. 
Se, na época de Cristo a participação das mulheres podia ser motivo de 
escândalo, hoje é sua omissão que o mundo considera anacrônica. Em vez de a mulher 
cristã encabeçar o movimento de libertação da mulher, de forma a questionar certas 
reivindicações equivocadas das feministas, como, por exemplo, o aborto e o 
lesbianismo, elas continuam a reboque da sociedade. 
Hoje, homens e mulheres cristãos de todo o mundo dispõem-se a fazer, juntos, 
uma leitura renovada da Bíblia, despida dos preconceitos sexuais, de forma a resgatar os 
valores do reino. Eventos como o Encontro Anual da Fraternidade Teológica Latino-
Americana, cujo tema em 1992 foi Masculino/feminino: em busca de saúde e 
obediência, pontuam a contribuição recente da teologia elaborada por mulheres e a 
importância de ouvir uns aos outros em favor de uma perspectiva mais abrangente e 
mais alinhada com o princípio bíblico da igualdade. 
A Bíblia aponta algumas características desse princípio feminino, presentes na 
relação entre Deus e a mulher, e evidenciadas de forma concreta nos encontros de Jesus 
com algumas mulheres. As Escrituras também apontam Cristo como modelo de 
santidade para homens e mulheres. Sim, Jesus, que chora sobre Jerusalém e com a 
30 
 
morte de Lázaro, que pega as crianças no colo, que deixa João reclinar a cabeça em seu 
peito, que permite a uma mulher beijar-lhe os pés, que tem medo e fica angustiado, que 
privilegia relacionamentos e intimidade. 
Vemos também outros homens trilharem esse caminho, tanto no Antigo como 
no Novo testamento. Davi escreveu poesias, chorou a morte de Jônatas, comparou-se a 
um pássaro sob as asas da mãe, reconheceu seus medos, suas dúvidas e inseguranças, 
pegou sua alma no colo e a ninou como a mãe faz com o filho. Paulo comparou-se, em 
seu ministério de mentoria, à mulher que sofre dores de parto. 
À luz dessa releitura da Palavra, somos convidados a reconciliar o masculino e o 
feminino em cada um de nós. O homem, que desenvolveu traços socialmente 
estimulados de racionalidade e pragmatismo, precisa complementar sua identidade com 
aspectos emocionais e relacionais, tradicionalmente atribuídos à mulher. A mulher, que 
foi privada de exercitar sua capacidade intelectual e de autonomia, precisa reconciliar-se 
com sua capacidade afetiva e intuitiva, sem deixar de usufruir os espaços conquistados 
recentemente e que lhe permitem exercitar sua inteligência racional. 
Ambos, homem e mulher, podem hoje reconciliar esses polos, desenvolvendo, 
por exemplo, a inteligência emocional, que

Outros materiais