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Eduardo Viveiros de Castro - A Prorpiedade do Conceito

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ANPOCS 2001 / ST 23: Uma notável reviravolta: antropologia (brasileira) e filosofia
(indígena)
A propriedade do conceito
Eduardo Viveiros de Castro
A ciência geral é simplesmente a ciência daquilo que é pensável universalmente
enquanto tal. Isso inclui não apenas o que até aqui foi visto como lógica, mas
também a arte da descoberta, juntamente com o método ou meio de disposição,
síntese e análise, didática ou a ciência do ensinar, a gnostologia (a assim chamada
noologia), a arte da reminiscência ou mnemônica, a arte dos caracteres ou dos
símbolos, a arte da combinação, a arte da sutileza, a gramática filosófica; a arte de
Lull, a Cabala dos sábios, e a magia natural. Talvez inclua também a ontologia, ou a
ciência de algo e de nada, do ser e do não-ser, da coisa e de seus modos, da
substância e do acidente. Não faz muita diferença como dividimos as ciências, pois
elas são um corpo contínuo como o oceano.
(Leibniz, Introdução a uma enciclopédia secreta)
As páginas a seguir foram extraídas da primeira parte (inacabada) de um livro (em
preparação). O núcleo temático desse livro acha-se esboçado em dois artigos já
dados à luz: “Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio” (Viveiros
de Castro 1996a) e “Atualização e contra-efetuação do virtual na socialidade
amazônica: o processo do parentesco” (idem 2000). O que se apresenta abaixo
procura explicitar a concepção de antropologia que estava implícita nessas análises.
Trata-se, em suma, de meu modo de tentar responder à questão: “o que é a
antropologia?” Ou, pelo menos, de sugerir uma das coisas que ela pode ser. No
caso: uma metafísica experimental.
Sobre Lévi-Strauss e vice-versa
Uma maneira de situar este estudo sobre o pensamento dos povos nativos da
floresta amazônica — um ‘pensamento selvagem’ — é dizer que seus temas estão
radicados no estruturalismo, mas que seus problemas são, ao menos em parte,
outros, pois outros são os tempos, e outro o estado do conhecimento etnológico.
Digamos, então, que seu ponto de partida é o ponto de chegada de Lévi-Strauss, o
estado a que ele soube levar a etnologia americana. Por isso, pareceu-me
apropriado abrir este prólogo por uma conclusão — de Lévi-Strauss. Nas linhas
finais do posfácio a um volume recente de L’Homme, dedicado aos avanços na
teoria do parentesco, o decano do americanismo observa:
É digno de nota que, a partir de uma análise crítica da noção de afinidade,
concebida pelos índios sul-americanos como ponto de articulação entre termos
opostos: humano e divino, amigo e inimigo, parente e estrangeiro, nossos colegas
brasileiros tenham vindo a extrair o que se poderia chamar de uma metafísica da
2
predação. Os sul-americanistas presentes neste volume (…) não ficaram atrás.1
Sem dúvida, essa abordagem não está livre dos perigos que ameaçam qualquer
hermenêutica: que nos ponhamos insidiosamente a pensar no lugar daqueles que
acreditamos compreender, e que os façamos dizer mais, ou outra coisa, que aquilo
que eles pensam. Ninguém pode negar, porém, que ela tenha transformado os
termos em que se punham certos grandes problemas, como os do canibalismo ou
da caça de cabeças. Dessa corrente de idéias, resulta uma impressão de conjunto:
quer nos regozijemos, quer nos inquietemos, a filosofia está novamente no centro
do palco antropológico. Não mais a nossa filosofia, aquela de que minha geração
queria se livrar com a ajuda dos povos exóticos; mas, em uma notável reviravolta,
a deles (Lévi-Strauss 2000: 719–20).
Não sei se todos os colegas brasileiros em que pensava o autor
reconheceriam-se em tal retrato. Mas este colega, ao menos, não saberia resumir
melhor a origem do percurso que o levou até aqui, os perigos envolvidos na
empresa, e a ambição que o tenta. O presente livro consiste exatamente em um
esforço de formulação dos pressupostos ontológicos da socialidade amazônica (que
incluem o que Lévi-Strauss chamou de uma metafísica da predação, mas não se
reduzem a ela), e seu propósito último é, de fato, lançar alguma luz sobre a
dimensão propriamente filosófica do pensamento indígena.
É perigoso tentar uma ‘hermenêutica’ da passagem acima; pode-se acabar
fazendo-a dizer mais, ou outra coisa, que aquilo em que seu autor estava
pensando. Mas não há negar que ela transpira uma certa ambiguidade. Esta não diz
respeito aos riscos do uso do discurso indireto livre e da interpretação anagógica,
que são apontados sem rebuço, e são bem reais (o que não quer dizer que não
valha a pena corrê-los). Sem dúvida, poderíamos recordar que o próprio Lévi-
Strauss já achou necessário precaver-se contra a suspeita de projeção
interpretativa. Mas sua argumentação não nos protegeria: ela apelava para a
unidade última do espírito humano, tema que não desempenha qualquer papel nas
páginas a seguir.2 Para este livro, ao contrário, a divergência entre o pensamento
ameríndio e a vulgata cosmológica de que se alimenta a antropologia é justamente
 
1 I. Daillant, D. Karadimas, A. Surralès, A.–C. Taylor. A menção de Lévi-Strauss aos
pesquisadores brasileiros alude às referências presentes nos artigos destes americanistas
franceses.
2 Penso no célebre argumento de O cru e o cozido: “No uso que fazemos do método,
seremos certamente acusados de interpretar e simplificar excessivamente. À parte o fato de
que, repita-se, não pensamos que todas as soluções propostas tenham o mesmo valor…
seria hipócrita não ir até o fim em nosso modo de pensar. Responderíamos, então, a nossos
criticos eventuais: que importa? Pois, se a finalidade última da antropologia é contribuir para
um melhor conhecimento do pensamento objetivado e de seus mecanismos, tanto faz, para
este livro, que seja o pensamento dos índios sul-americanos que tome forma sob a ação do
meu, ou o meu sob a ação do deles. O que importa é que o espírito humano, indiferente à
identidade de seus mensageiros ocasionais, manifeste uma estrutura cada vez mais
inteligível, à medida em que progride a operação duplamente reflexiva de dois pensamentos
agindo um sobre o outro, e dos quais ora um, ora outro, pode ser a mecha ou a fagulha de
cujo contato brotará sua comum iluminação” (L.–S. 1964: 21).
3
um dos problemas a explorar. O perigo, neste caso, é menos o de fazer os índios
dizerem outra coisa que o que eles pensam, e mais o de insistir que eles dizem
outra coisa que o que nós pensamos.
A ambiguidade da passagem citada está na sentença final, e envolve, ali
como em tantos outros momentos de sua obra, a relação de Lévi-Strauss com a
noção de ‘filosofia’. Sabe-se como esse antropólogo sempre guardou suas
distâncias face à academia filosófica; como, desde cedo, contrapôs seu entusiasmo
pelas ciências do inconsciente a seu desprezo pelas filosofias da consciência; e
como, há pouco, ele exprimiu sua consternação diante das tentativas de
recuperação antropológica de temas e estilos filosóficos que lhe pareciam haver
sido sepultados pelo estruturalismo (L.–S. 1998). A idéia de que a filosofia tenha
voltado ao proscênio antropológico é-lhe certamente mais inquietante que
alvissareira. E inquietante, talvez, mesmo que não seja a nossa que tenha voltado,
mas a daqueles povos exóticos que o haviam ajudado a livrar-se dela.3 Pois é difícil
que a filosofia desses povos passe ao primeiro plano sem que à nossa isso não
acabe aproveitando; e de qualquer modo, de que serviria ter-se livrado de uma
filosofia, se era para cair nos braços de outra?
Ambiguidade indubitável, portanto, frente à reviravolta notável. Isso posto,
dar à observação de Lévi-Strauss uma interpretação ‘a favor’ do objetivo visado no
presente livro não é, penso, pôr-se a pensar insidiosamente em seu lugar. Pois foi
ele mesmo quem insistiu sobre a necessidade de se abrir espaço, no centro do
palco, para uma filosofia selvagem:
Entre a absurdidade radicaldas práticas e crenças primitivas proclamada por
Frazer, e sua validação especiosa pelas evidências de um pretenso senso comum
invocado por Malinowski, há lugar para toda uma ciência e toda uma filosofia (L.–S.
1962b: 99).
Resta que, entre essa ciência e essa filosofia, Lévi-Strauss sempre optou
pela primeira. Ela é o tema privilegiado, por exemplo, de O pensamento selvagem,
livro que procede a uma série de paralelos entre a ciência moderna e a ciência
primitiva, e que pode ser lido como uma espécie de ‘epistemologia do concreto’
(tomando-se ‘epistemologia’ no sentido francês). Já a filosofia selvagem
propriamente dita, enquanto atividade intelectual distinta da ciência, movida por
outras intenções e operando com outros objetos, recebeu um tratamento bem
 
3 A expressão “uma notável reviravolta” da passagem citada — no original, “un frappant
retour des choses” — não deixa de trazer à mente o título da resposta de seu autor, dois
anos antes, a um artigo que pretendia jogar-lhe contra Merleau-Ponty: “Voltas atrás”,
4
menos sistemático por parte do autor. No caso do livro citado, o lado ‘não-
científico’ dessa filosofia (seu pólo sacrificial antes que seu pólo totêmico, digamos)
vê-se assimilado à religião, dimensão que constitui, aos olhos de Lévi-Strauss, um
verdadeiro império do não-senso. Entre a ciência e a religião, em suma, o lugar da
filosofia selvagem na obra lévi-straussiana parece bastante instável.4
Há porém um momento, e largo, dessa obra no qual se pode entrever a
perspectiva de uma filosofia selvagem em particular: a dos povos indígenas
americanos. Refiro-me ao momento representado pelos quatro volumes das
Mitológicas e os três livros que as completam.5 Digo que se pode, apenas, entrevê-
la, porque tal perspectiva permanece em estado não-cristalizado, é uma
virtualidade difusa ou dispersa nas análises mitológicas empreendidas nesses
estudos. À parte certos motivos recorrentes — como o problema do contínuo e do
discreto que atravessa a tetralogia, ou as referências ao desequilíbrio dinâmico das
oposições acionadas pelos mitos —, a significação filosófica da mitologia americana
encontra-se como que imprensada entre, de um lado, a minuciosa contextualização
etnográfica do conteúdo das narrativas, e, de outro, a demonstração de seus
valores formais e de sua combinatória intertextual.
O propósito do presente livro é cristalizar essa perspectiva e atualizar essa
significação virtual. Trata-se de formular os problemas filosóficos adequados a
certos temas sociológicos e cosmológicos identificados nas Mitológicas, entre os
quais se encontram, para evocarmos a citação que abria este prólogo, a questão da
afinidade e o motivo da ‘predação’. É essencial que tais problemas encontrem apoio
na etnografia e permitam dar sentido a outras dimensões, não-discursivas ou não-
mitológicas, isto é, que sejam, eles próprios, problemas indígenas. Com efeito,
como observou Lévi-Strauss, é a filosofia ‘deles’, não a ‘nossa’, que está em cena,
ainda que seja preciso utilizar algo do vocabulário da segunda para poder falar da
primeira.
Ao tentar fazer isso, entretanto, estaremos necessariamente nos afastando
dos limites que Lévi-Strauss se impôs. Pois a relativa ausência de foco sobre a
filosofia ameríndia nas Mitológicas é o resultado de uma posição firmada de seu
autor, segundo a qual “os mitos não dizem nada capaz de nos instruir sobre a
ordem do mundo, a natureza do real, a origem do homem ou o seu destino” (L.–S
1971: 571; eu grifo). Em troca, prossegue ele, os mitos nos ensinam muito sobre
 
Retours en arrière (L.–S. 1998). Título ele próprio ambíguo, evocando tanto uma lamentável
regressão intelectual como uma recordação saudosa de personagens e debates do passado.
4 O que talvez reflita uma imagem tradicional da da filosofia não-selvagem, que faz dela uma
etapa evolutiva entre a Religião e a Ciência.
5
as sociedades de onde provêm, e, sobretudo, sobre certos modos fundamentais (e
universais) de operação do espírito humano (loc.cit.). Vale notar que tal afirmação
é feita no contexto de uma resposta particularmente dura a certas críticas
filosóficas dirigidas ao estruturalismo; ou talvez devéssemos dizer, a certas críticas
teológicas, pois é em Paul Ricœur que o autor parece, aqui, estar pensando.
Essa idéia de que os mitos não nos dizem nada de instrutivo sobre seu
objeto (a ordem do mundo, a origem do homem, a natureza do real) mas apenas
sobre seu sujeito (a sociedade indígena e a mente humana) é muito complicada.
Em primeiro lugar, a sociedade e o espírito são, como Lévi-Strauss não cansa de
lembrar, parte do mundo e da natureza. Em seguida, e mais importante, a questão
de saber o que os mitos dizem de proveitoso para os sujeitos que os contam, antes
que apenas sobre eles, permanece em aberto; resolvê-la afirmando que os mitos
existem para resolver contradições (L.–S [1955]: 254) é certamente insuficiente.
Por fim, e sobretudo, a alternativa proposta é demasiado drástica. Para fazer com
que os mitos nos ensinem algo sobre a sociedade e a mente, não é necessário
decretar primeiro que eles não nada nos ensinam sobre o mundo e o real — como
se, caso o fizessem, estivessem então a validar alguma verdade transcendente, um
sentido oculto e numinoso. Não se pode esperar dos mitos, continua nosso autor
(1971: loc.cit.), “nenhuma complacência metafísica; eles não virão em socorro de
ideologias extenuadas”. Com certeza, não se pode esperar nenhuma complacência
dos mitos indígenas para com a nossa metafísica; mas daí não se segue que se
possa esperar deles que não exprimam suas próprias exigências metafísicas, nem
que estas não sejam um objeto antropológico e filosófico interessante. Tão
interessante, por exemplo, quanto nossa já algo extenuada ideologia da Ciência, e
suas idéias metafisicas sobre uma “ordem do mundo” e uma “natureza do real”.6
Lévi-Strauss ofereceu uma formulação bem mais instigante em seu famoso
artigo de 1955 sobre a estrutura dos mitos. Em lugar, diz ele, de opor a
mentalidade primitiva e o pensamento científico como se dois modos
qualitativamente diferentes de pensar os mesmos objetos — o mesmo mundo —, é
preciso pôr a diferença no mundo. Pois não são as “operações intelectuais” que
diferem, mas “a natureza das coisas sobre as quais incidem essas operações”:
 
5 A via das máscaras, A oleira ciumenta e História de Lince.
6 Note-se que o último livro mitológico do autor, o História de Lince, é introduzido por uma
declaração que não deixa de destoar daquela de 1971, parecendo assumir a idéia de uma
filosofia especificamente ameríndia, distinta do, digamos, metabolismo basal do pensamento
selvagem: “[C]reio que é possível, hoje, recuar até a fonte filosófica e ética do dualismo
ameríndio” (1991: 16). Uma notável reviravolta?
6
Descobri-se-á, quem sabe, um dia, que a mesma lógica subjaz ao pensamento
mítico e ao pensamento científico, e que o homem sempre pensou igualmente bem.
O progresso — se é que o termo poderia, nesse caso, aplicar-se — não teria, então,
a consciência como seu teatro, mas o mundo, onde uma humanidade dotada de
faculdades constantes se encontraria, no decorrer de sua longa história,
constantemente às voltas com novos objetos (L.S. [1955]: 255).7
Não seria assim a consciência que varia, mas o mundo. Ora, como veremos,
os mitos amazônicos ‘dizem’ exatamente isso. E vão mesmo adiante, pois a idéia
de um sujeito dotado de “faculdades constantes” a braços com uma diversidade
objetiva é generalizada, por eles, para além da espéciehumana como personagem
e da história como palco. O que nos leva a especular que os mitos dizem, afinal,
algo de instrutivo, sobre a ordem do mundo e sobre o espírito humano. Esta,
então, nossa questão: antes que as “operações intelectuais” do pensamento
ameríndio, trata-se de tentar divisar a natureza das coisas que ele pensa, seus
objetos — isto é, seus conceitos —, e o mundo descrito por esses conceitos. Em
outras palavras, trata-se de prestar atenção ao que dizem os discursos amazônicos
sobre a ordem do mundo e a natureza do real, o que inclui o que eles dizem sobre
a sociedade e o espírito humanos: não indiretamente e como que à sua revelia, em
benefício de nossas filosofias do espírito humano, mas textualmente e como que
deliberadamente, para o governo filosófico dos povos que os enunciam. E o que
eles dizem — se preferir o leitor, o que eles ensinam — é que não há por que
escolher, pois não há como separar, entre a natureza do real e o espírito humano,
a ordem do mundo e o movimento da sociedade.
O que vem a ser outra idéia muito complicada. Este livro consiste em seu
desenvolvimento, defesa e ilustração.
(…)
A imagem do vínculo e o mundo de outrem
O presente livro versa sobre os pressupostos do pensamento indígena
americano. Ele procura discernir as intuições instauradoras que, a montante do
 
7 Formulação que recorda uma passagem de Les deux sources de la morale et de la religion:
“[A] estrutura do espírito permanecendo a mesma, a experiência adquirida pela gerações
sucessivas, depositada no meio social e devolvida por este meio a cada um de nós, deve
bastar para explicar por que não pensamos como o não-civilizado, por que o homem de
outrora diferia do homem atual. O espírito funciona do mesmo modo nos dois casos, mas ele
7
pensado, definem o pensável, o que há a pensar para esse pensamento. Mais
particularmente, seu foco é a imaginação conceitual nas culturas nativas da
Amazônia, e sua abordagem é antropológica, pois descreve tal imaginação do ponto
de vista das relações sociais que ela implica.
Os capítulos desta primeira parte tentam precisar os termos — as palavras e
os limites — de semelhante declaração de intenções, a natureza do experimento
intelectual que ela propõe, e o campo de problemas em que ela se situa.
Comecemos diretamente por algumas palavras do parágrafo acima.
Pela última, por exemplo: o verbo ‘implicar’, que começa por excluir uma
alternativa pouco interessante. Este livro não trata as relações sociais como causa
ou sujeito da imaginação amazônica, menos ainda como seu objeto ou efeito; isto
é, ele não distingue entre ‘sociedade’ e ‘cultura’, e assim não as ordena
causalmente. As relações sociais são tomadas como dimensão intrínseca ao
exercício dessa imaginação, o espaço implícito que ela percorre. Dito de outro
modo, elas não são uma ordem transcendente ao pensamento, mas seu elemento
imanente: nem contexto, nem texto, formam a contextura própria do pensamento
indígena.
Em seguida, tais relações vão qualificadas de ‘sociais’ somente em atenção
preliminar às nossas convenções cosmológicas, pois o que se tenciona apreender é
o conceito geral de relação imaginado pelo pensamento indígena, e a constituição
deste pensamento como imaginação relacional. O esquema ou figura de tal conceito
radica-se, decerto, em uma intuição da socialidade como implicada na própria
trama do cosmos; mas é por isso mesmo que a expressão ‘relação social’ é, a rigor,
um pleonasmo, de utilidade apenas temporária. As concepções indígenas sugerem,
ademais, uma idéia da relação como consistindo em um tipo de dinamismo mais
que em um tipo de atributo. As relações são aqui virtualidades relacionantes,
relações que acionam e diferenciam relações; mais precisamente, elas envolvem a
existência de uma diferença de potencial que se atualiza em seus termos, ou
relações relacionadas. Os termos (substâncias e propriedades) serão interpretados
como resíduos das relações que os constituem, aquilo que surge e sobra quando
estas se consumam e se consomem. Mas resta sempre, como veremos, uma
virtualidade relacional irredutível nesse resíduo, algo que ele não pôde atualizar.
Uma relação, em particular — justamente porque ela não é uma relação
particular —, funciona como fio condutor das páginas que seguem. Um dos temas
 
não se aplica, talvez, à mesma matéria, provavelmente porque a sociedade não tem, aqui a
lá, as mesmas necessidades” (Bergson [1932]: 107).
8
centrais do livro, e é a isso que eu me referia ao falar na intuição de uma
socialidade cósmica, é o sentido da relação de alteridade no pensamento ameríndio.
Há muito que os etnólogos interessados na Amazônia, o autor entre eles, vêm
insistindo sobre a importância da alteridade na economia simbólica dos povos dessa
região. Essa importância foi por vezes atribuída a um certo estilo cognitivo
panamericano (quiçá ‘primitivo’ em geral), que privilegiaria as classificações
dualistas e as oposições binárias. Cuido que semelhante propensão, se podemos
realmente chamá-la assim, é antes um fenômeno derivado, uma repercussão
abstrata de algo que pouco tem de cognitivo, de classificatório, ou de simplesmente
binário — algo de que os dualismos indígenas são o limite inferior ou a versão
reduzida, e que lhes imprime um viés característico (Lévi-Strauss 1991). As
dualidades tão frequentes nas cosmologias amazônicas formam apenas as
margens, incessantemente desfeitas e refeitas, entre as quais flui o pensamento
nativo. Longe de ser o avatar de um Dois a obcecar a razão indígena, a alteridade
está situada, como diria Guimarães Rosa, na terceira margem desse rio.
Em outras palavras, a alteridade se inscreve nos pressupostos da
imaginação amazônica como o campo próprio do pensável.8 Ela é a marca da
presença de Outrem enquanto relação a priori ou condição geral de atualização dos
estados de coisas e corpos que povoam o mundo. Tal condição se reflete na
cosmopraxis indígena sob a forma de um esquema conceitual virtual, que rotulei de
perspectivismo, devido a algumas analogias com as orientações filosóficas assim
denominadas.9 A idéia básica (que não é uma idéia simples) do perspectivismo,
tanto o indígena como seu análogo ocidental, é que toda posição de realidade
especifica um ponto de vista, e que todo ponto de vista especifica um sujeito —
nessa ordem. No caso indígena, tal especificação é em primeiro lugar uma
especiação, pois a diferença de ponto de vista entre humanos e não-humanos é ali
uma questão fundamental, e a realidade assim posta compreende a realidade
reflexiva do sujeito, individual ou coletivo, pois toda posição de auto-identidade
envolve a “perspectiva do Outro” (Taylor 1993: 673) como um momento
 
8 Nota terminológica. A variação entre os determinativos ‘amazônico’ e ‘indígena’, nas
páginas que seguem, não é rigorosa. Em certos momentos, ‘amazônico’ refere-se apenas
aos povos da floresta homônima; em outros, ele é uma sinédoque que designa todas as
culturas das chamadas ‘terras baixas’ da América do Sul; em outros, enfim, ele indica
apenas o foco principal do livro — ou os limites de minha ignorância etnográfica —, sem
implicar a exclusão de outros povos americanos. O pressuposto de base é a existência de
uma unidade histórico-cultural profunda de toda a América indígena.
9 Viveiros de Castro 1996a. O perspectivismo filosófico a que me refiro está associado
originalmente ao nome de Leibniz, mas se acha variamente presente em pensadores como
Nietzsche, Tarde, Whitehead e Deleuze; este último, como ficará claro, é minha referência
principal para o conceito.
9
constitutivo.O perspectivismo implica portanto a alteridade: a diferença como
ponto de vista, o ponto de vista como diferença — e a diferença como positiva, nos
dois sentidos da palavra. A alteridade não é uma dentre as várias categorias
formais impostas arbitrariamente pelo espírito sobre um mundo preexistente, em
vista de sua ordenação, mas a condição imanente de categorização da experiência
real, e, ao mesmo tempo, um vínculo necessário que dá corpo aos termos que
efetua, pondo-os no mundo e assim pondo o mundo.
Nesse sentido, o perspectivismo amazônico poderia ser descrito como uma
ontologia relacional, isto é, como uma imagem do ser na qual a relação ocupa o
lugar da substância enquanto ‘categoria’ primeira. Uma ontologia relacional,
ademais, onde a relação primeira é o nexo de alteridade, a diferença ou ponto de
vista implicado em Outrem. Não bastaria dizer então, com Gilbert Simondon
([1964]: 30, 126), que a relação tem o estatuto de ser, é uma modalidade do ser,
uma relação no ser. Aqui, é o ser que teria o estatuto de relação: a substância é
uma modalidade da relação, os termos são a relação em seu estado explicado, e a
relação é a diferença ou disparidade entre os termos em que ela se desenvolve.10
Tudo isso, é claro, se admitirmos que a imagem do ser — o ser como
imagem — constitui uma alegoria adequada à imaginação indígena, e portanto que
a noção de ontologia se justifica nesse contexto.11 Talvez a ousada sugestão de
Gabriel Tarde ([1893]: 86-88), de abandonarmos o conceito irremediavelmente
solipsista de Ser e recomeçarmos a metafísica a partir do Ter (ou Haver: Avoir), no
que este implica de transitividade intrínseca, de abertura originária a uma
exterioridade, seja mais interessante para o caso amazônico, onde o processo que
chamei de predação ontológica faz as vezes de princípio geral de subjetivação.12
Não obstante, conservei a linguagem da ontologia por um motivo, digamos,
tático. Ela toma a contrapelo uma manobra frequente contra o pensamento
indígena, que consiste no bloqueio desrealizante desse pensamento através de sua
redução às dimensões de um conhecer ou representar, isto é, a uma
 
10 Formulação que leva adiante uma sugestão do mesmo Simondon, quando recomendava
uma apreensão realista das relações e nominalista dos termos (op.cit.: 82), de modo a
compensar o viés inverso de nossa metafisica. A tese de Simondon sobre o processo de
individuação forneceu vários dos instrumentos utilizados neste livro.
11 Ou em qualquer outro contexto não-ocidental. A questão é levantada, e respondida
negativamente, por François Jullien a propósito da China, para cujo pensamento esse autor
reivindica, aliás, um mesmo “primado da relação” (Jullien & Marchaisse 2000: 12–13,
265–67, 308, 352) — e, convém recordar, um uso particularmente sofisticado da dualidade
(Jullien 1993).
12 Viveiros de Castro 1993a, 1996b. O capítulo @@ abaixo, onde se retoma a monadologia
de Tarde (e a de Whitehead), trata da preensão ontológica — conceito que hoje me parece
preferível ao de predação — como dinamismo característico da socialidade amazônica.
10
‘epistemologia’ ou a uma ‘visão de mundo’ — como se o que houvesse a conhecer
ou a ver já estivesse resolvido de antemão; e resolvido, é claro, a favor de nossa
ontologia (Latour 2000a). A noção de ontologia, portanto, não é empregada aqui
para sugerir que o pensamento indígena exprime mais uma metafísica do Ser (dizer
que o ‘ser’ é relação já é indicar o contrário de uma Ontologia), mas sim para
sublinhar que esse pensamento é inseparável de uma realidade que constitui o seu
exterior. A manobra que se pretende neutralizar foi bem resumida por Roy Wagner,
na linguagem mais classicamente antropológica da natureza e da cultura:
Quando usamos desse modo os controles, não-convencionalizados e diferenciantes,
da natureza, nós objetificamos e recriamos nossa Cultura coletiva com sua
ideologia básica do ‘natural’ versus o ‘cultural’ e artificial.13 Quando usamos esses
controles no estudo de outros povos, inventamos suas culturas não como análogos
de nosso esquema cultural e conceitual em seu todo, mas somente de parte dele.
Inventamos essas culturas como análogos da Cultura (como ‘regras’, ‘normas’,
‘gramáticas’, ‘tecnologias’), isto é, como a parte consciente, coletiva e ‘artificial’ de
nosso mundo, em relação a uma única ‘realidade’ natural universal. Assim, essas
culturas não contrastam com nossa cultura, ou oferecem contra-exemplos dela
enquanto um sistema total de conceitualização, mas, antes, sugerem uma
comparação como se elas fossem ‘outros modos’ de tratar nossa própria realidade.
Incorporamos esses povos dentro de nossa realidade, e assim, incorporamos seus
modos de vida dentro de nossa própria auto-invenção. Aquilo que conseguimos
perceber das realidades que eles aprenderam a inventar e habitar é relegado ao
‘sobrenatural’ ou despachado como ‘meramente simbólico’ (Wagner 1981: 142;
grifos originais).
O comparativismo usual poderia ser descrito, então, como um jogo de dois
contra um, ou como uma discussão onde um dos interlocutores é ao mesmo tempo
juiz e parte: de um lado, nossa cultura e nossa natureza; do outro, a cultura do
nativo. A natureza do nativo é vista como interna à sua cultura, ao passo que a
natureza do antropólogo é vista como externa a todas as culturas. Mas assim,
como se diz, é covardia.14
Wagner está distinguindo, na passagem acima, entre um conceito de cultura
como plano de imanência, com suas duas faces dadas simultaneamente — uma
 
13 Veremos adiante o significado das noções wagnerianas de controle, convenção e
diferenciação.
14 Outro modo assimétrico de jogar esse jogo é o praticado pelos antropólogos ‘cognitivistas’
— mas também por autores como Ingold (2000), embora com os sinais invertidos. Se a
crítica de Wagner à comparação pseudo-relativista, de tipo ‘dois contra um’, visava a idéia
de que nós temos natureza e cultura, os selvagens tendo só cultura, quando passamos aos
especialistas na ‘natureza humana’ a distribuição muda: os selvagens são só natureza (suas
culturas exprimem imediata e diretamente as disposições cognitivas ou existenciais do Homo
sapiens), os ocidentais somos natureza e cultura (a ciência, a escrita, etc.). Para os
cognitivistas, essa cultura nos dá um acesso privilegiado à natureza das coisas, corrigindo as
ilusões (necessárias) inscritas evolucionariamente na constituição mental da espécie; para
Ingold, ao contrário, tal cultura é uma perversão que nos expulsa da morada do Ser,
compartilhada pelos demais humanos.
11
imagem do pensamento e uma matéria do ser —, de um conceito de cultura como
doxa, como conjunto particular de representações referidas a um mundo exterior
universal.15 Neste segundo e mais corrente sentido da noção de cultura, a
democracia epistemológica professada pela antropologia, quando afirma a
diversidade cultural dos significados, revela-se, como outras democracias que
conhecemos tão bem, muito relativa, pois se apóia ‘em última instância’ em uma
monarquia ontológica absoluta, onde se impõe a unidade referencial da natureza.16
No primeiro sentido da noção de cultura, porém, não há última instância: o oposto
da cultura não é a natureza, mas o nada, pois ‘atrás’ da cultura não há nada. Ou,
talvez, tudo — isto é, o caos.
Tentando contornar a piedosa hipocrisia relativista de nossa disciplina, e em
acordo com o conceito de cultura proposto por Wagner, o presente livro advoga o
direito à autodeterminação ontológica das culturas indígenas. Autodeterminação,
aliás, é exatamente a palavra, pois estaremos falando de conceitos — da
imaginação conceitual nessas culturas.
(…)
Dissemos acima que há um razoável consenso do discurso americanista no tocante
à importância do vínculo de alteridade.Como todo consenso, este também repousa
sobre um mal-entendido, e envolve um processo de esvaziamento semântico. Um
dos objetivos do presente livro é tentar uma tematização mais rigorosa da ‘questão
do outro’ no pensamento amazônico. Não por via de uma compilação de suas
diversas incidências na literatura disponível, ou do exame em profundidade de um
 
15 Para o conceito de plano de imanência, a que retornaremos, ver Deleuze & Guattari 1991:
38–59. Seria também possível pensar o contraste entre os dois sentidos de cultura em
Wagner nos termos da diferença entre Weltbild e Weltanschauung feita pelo ‘último’
Wittgenstein. A analogia entre os conceitos de Weltbild e de plano de imanência foi avançada
em um magnífico artigo de Bento Prado Jr (1998: 317-ss).
16 O recurso a tal ultima ratio é analisado por Bruno Latour em vários trabalhos recentes
(Latour 1996b, 1999, 2000). A cultura de Wagner, no sentido de “sistema total de
conceitualização” que inclui tanto a ‘cultura’ como a ‘natureza’, poderia corresponder ao que
Latour ([1991], 1999) chama de Constituição, embora possa ser igual ou talvez mais
adequadamente aproximada, na medida em que só existe como complexo de ação e
motivação atualizado em uma coletividade humana concreta, dos conceitos latourianos de
natureza-cultura e de coletivo. Latour e Wagner são duas influências capitais sobre este
livro; seus trabalhos (desenvolvidos de modo independente) mostram uma clara mas pouco
notada convergência, em particular Nous n’avons jamais été modernes (Latour [1991]) e
The invention of culture (Wagner 1981). Além disso, eles me parecem completar-se bastante
bem, com o primeiro sendo nitidamente mais forte quando se trata de descrever a
Constituição da modernidade, e o segundo, muito mais rico na caracterização dos regimes
ontológicos de tipo extra-moderno.
12
caso etnográfico, mas de um esforço para lhe dar consistência conceitual, isto é,
para situá-la em um campo problemático bem definido.
Para tanto, é necessário desenvolver a mútua implicação dos conceitos de
perspectivismo e de alteridade, e distingui-los inequivocamente de dois ‘falsos
amigos’ com os quais costumam ser confundidos. Trata-se de mostrar, de um lado,
como o perspectivismo indígena (uma ontologia da relação) pouco tem a ver com o
relativismo moderno (uma epistemologia do relativo), e, de outro, como a
alteridade amazônica (o Eu e o Outro como efeitos da relação-Outrem) resiste a
uma tradução no vocabulário da ‘intersubjetividade’ (o Eu e o Outro como
conteúdos da forma-Sujeito).
A distinção entre perspectivismo e relativismo já fora esboçada nos textos
reelaborados neste livro, e é aqui aprofundada; mas a ‘irredução’ do regime de
alteridade amazônico a um tipo de intersubjetivismo é algo cuja necessidade só se
me tornou clara recentemente, obrigando-me a rever algumas formulações, e
mesmo, como logo veremos, o próprio nome dessa relação que vou chamando
‘alteridade’. Tal revisão tem consequências para o conceito de perspectivismo, pois
permite evitar sua trivialização em uma forma de idealismo intersubjetivo ou de
construcionismo social. Mas ela se impôs, em primeiro lugar, em vista de um
melhor entendimento dos dispositivos de subjetivação indígena, e de uma
imaginação mais precisa das relações — ou melhor, da relação — referidas pela
etnologia americanista pelos termos de ‘troca’ e ‘reciprocidade’, ‘predação’ e
‘inimizade’.
A revisão se mostrou necessária, acima de tudo, para dissipar qualquer
conotação de transcendência que tenha alguma vez sido dada, pelo autor inclusive,
à idéia de ‘Outro’ no mundo amazônico: que os deuses araweté sejam outros, por
exemplo (Viveiros de Castro 1986), não significa que o Outro araweté seja Deus. A
alteridade é indubitavelmente um dispositivo transcendental do pensamento
indígena, mas não projeta nenhuma imagem do transcendente; trata-se, ao
contrário, da modalidade mesma de imanência desse pensamento.17 Ela é a versão
amazônica daquilo que Roy Wagner, em um contexto melanésio, chamou de
“mundo da humanidade imanente” (1981: 86-89), onde a ‘cultura’ é da ordem do
fato, e a ‘natureza’, do feito. Este mundo da humanidade imanente, advirta-se,
está nas antípodas de qualquer forma de humanismo, assim como o mundo da
 
17 Recordo a diferença, de origem kantiana, entre o ‘transcendental’ (cujo antônimo é
‘empírico’), que remete às condições de possibilidade da experiência, situando-se aquém
desta, e o ‘transcendente’ (cujo antônimo é ‘imanente’), que se refere ao que está além da
toda experiência possível, isto é, ao supra-sensível ou às coisas-em-si.
13
alteridade imanente está nas antípodas de qualquer forma de altruísmo. Há bem
mais sujeitos, no mundo amazônico, que os sujeitos humanos; em certo sentido,
há mais humanos nesse mundo que os membros da espécie epônima; mas isso só
faz tornar as concepções indígenas de sujeito e de humanidade ainda mais avessas
a qualquer interpretação em termos de razão comunicacional ou de consenso
dialógico.
Para distinguir a função amazônica de alteridade da problemática da
intersubjetividade, um ponto de apoio decisivo para mim foi o conceito acima
evocado, o de Outrem como estrutura a priori. Ele foi inicialmente proposto no
conhecido comentário de Gilles Deleuze ao Vendredi de Michel Tournier.18 Lendo o
livro de Tournier como a descrição ficcional de uma experiência metafísica — o que
é um mundo sem outrem? —, Deleuze procede a uma indução dos efeitos da
presença desse outrem a partir dos efeitos causados por sua ausência. Outrem
aparece, assim, como a condição do campo perceptivo: o mundo fora do alcance da
percepção atual tem sua possibilidade de existência garantida pela presença virtual
de um outrem por quem ele é percebido; o invisível para mim subsiste como real
por sua visibilidade para outrem.19 A ausência de outrem acarreta a desaparição da
categoria do possível; caindo esta, desmorona o mundo, que se vê reduzido à pura
superfície do imediato, e o sujeito se dissolve, passando a coincidir com as coisas-
em-si (ao mesmo tempo em que estas se desdobram em duplos fantasmáticos).
Outrem, porém, não é ninguém, nem sujeito nem objeto, mas uma estrutura ou
relação, a relação absoluta que determina a ocupação das posições relativas de
sujeito e de objeto por personagens concretos, bem como sua alternância: outrem
designa a mim para o outro Eu e o outro eu para mim.20 Outrem não é um
elemento do campo perceptivo; é o princípio que o constitui, a ele e a seus
conteúdos. Outrem não é, portanto, um ponto de vista particular, relativo ao
 
18 Esse comentário está publicado em apêndice a Logique du sens (Deleuze 1969a: 350–72;
ver também id. 1969b: 333–35, 360). O conceito de Outrem pertence à fase que se poderia
chamar de estruturalista da obra de Deleuze; mas ele é retomado, em termos praticamente
idênticos, em seu quase-último texto, Qu’est-ce que la philosophie? (Deleuze & Guattari
1991: 21–24, 49), e justamente como o primeiro exemplo do que vem a ser um conceito
filosófico.
19 “[O]utrem para mim introduz o signo do não-percebido naquilo que percebo,
determinando-me a apreender o que não percebo como perceptível para outrem” (Deleuze
1969a: 355).
20 Utilizo aqui e doravante o substantivo ‘(o) Eu’ (e o pronome oblíquo ‘mim’), com inicial
maiúscula, para traduzir o francês (le) Moi ou o inglês (the) Self, e a forma ‘(o) eu’, com
minúscula, para traduzir o francês ‘le Je’ ou o inglês ‘the I’. A noção deleuziana de Outrem
dá conta precisamente da diferença entre o eu e o Eu, o Je e o Moi, diferença esta tanto
externa (outrem sou eu para um outro Eu e vice-versa) como interna (o eu é um outro que o
Eu). Tais ‘questões pessoais’ terão importância na parteIII do livro, quando discutiremos a
deixis cosmológica e seus pronomes.
14
sujeito (o ‘ponto de vista do outro’ em relação ao meu ponto de vista ou vice-
versa), mas a possibilidade de que haja ponto de vista — ou seja, é o conceito de
ponto de vista. Ele é o ponto de vista que permite que o Eu e o Outro acedam a um
ponto de vista.21
Deleuze prolonga aqui criticamente a famosa análise de Sartre sobre o
‘olhar’, afirmando a existência de uma estrutura anterior à reciprocidade de
perspectivas do regard sartriano. O que é essa estrutura? Ela é a estrutura do
possível: Outrem é a expressão de um mundo possível. Um possível que existe
realmente, mas que não existe atualmente fora de sua expressão em outrem. O
possível exprimido está envolvido ou implicado no exprimente (que lhe permanece
entretanto heterogêneo), e se acha efetuado na linguagem ou no signo, que é a
realidade do possível enquanto tal — o sentido. O Eu surge então como explicação
desse implicado, atualização desse possível, ao tomar o lugar que lhe cabe (o de
‘eu’) no jogo de linguagem. O sujeito é assim efeito, não causa; ele é o resultado
da interiorização de uma relação que lhe é exterior — ou antes, de uma relação à
qual ele é interior: as relações são originariamente exteriores aos termos, porque
os termos são interiores às relações. “Há vários sujeitos porque há outrem, e não o
contrário” (op.cit.: 22).22
O conceito deleuziano de Outrem mostra várias facetas importantes para
este livro. Em primeiro lugar, sua indução (ou abdução) a partir de um exame do
campo perceptivo visual — onde não apenas o sujeito e o objeto são dispostos por
Outrem, mas também o contraste entre a forma e o fundo, a latitude e a longitude,
o ‘texto’ e o ‘contexto’ — é rica em sugestões para uma análise do perspectivismo
indígena, que faz um uso intenso de esquematismos ligados à visão. A relação
entre figura e fundo, por exemplo, será útil para a reconceituação da diferença
entre a ‘alma’ e o ‘corpo’ amazônicos.
Em segundo lugar, a idéia de outrem como condição de posição da realidade
(que, nesses termos, certamente não se origina com Deleuze; pense-se em
Husserl) permite discernir o que há de insatisfatório no modelo perceptivo clássico,
que continua a servir de paradigma da ‘cognição’ para a maioria das abordagens
 
21 Esse ‘ele’ que é Outrem não é uma pessoa, uma terceira pessoa diversa do eu e do tu, à
espera de sua vez no diálogo, mas também não é uma coisa, um ‘isso’ de que se fala.
Outrem seria mais bem a “quarta pessoa do singular” — situada, digamos assim, na terceira
margem do rio —, anterior ao jogo perspectivo dos pronomes pessoais (Deleuze ([1979]:
79).
22 A idéia de uma realidade própria do possível — o possível tomado como realidade
implicada em sua expressão — é o que Deleuze ([1966]: 96ss; 1969b: 269ss) chama, via
Bergson, de virtual, por oposição ao atual. A distinção entre os pares virtual/atual e
15
psico-antropológicas contemporâneas. Este modelo parte de um sujeito individuado
diante de um objeto a individuar, ou vice-versa. Uma vez fechada em torno desse
dualismo, a questão se resume a saber se o sujeito dispõe de categorias inatas ou
adquiridas, se ele é um tipo de objeto ou algo mais especial, se as determinações
do objeto são intrínsecas ou projetadas pelo sujeito, o que acontece quando o
objeto é um outro sujeito, e por aí vai — não muito longe. Ao afirmar, contra isso,
que “não é o Eu, é outrem como estrutura que torna a percepção possível” (1969a:
358), Deleuze remete ao transcendental, como imanência e virtualidade, aquilo que
Durkheim havia reificado como substância transcendente — a socialidade, que
deixa assim de ser Sujeito molar coletivo e passa a Relação distributiva e molecular
de subjetivação —, ao mesmo tempo em que transforma o sujeito e o objeto pré-
individuados em termos atualizados de uma virtualidade pré-individual.23 Não cabe
então perguntar como Outrem ‘aparece’ ou se ‘apresenta’ no campo cognitivo ou
perceptivo: à maneira do tio materno no átomo de parentesco de Lévi-Strauss
([1945]: 56–57), ele não aparece no campo — ele sempre esteve lá, como sua
condição heterogênea exterior.24
 
possível/real, a que voltaremos, é importante para a rediscussão do conceito amazônico de
afinidade, feita na parte II deste livro, e para a análise do ‘tempo mítico’ feita na parte III.
23 Se o estruturalismo de Lévi-Strauss foi rotulado de “kantismo sem sujeito transcendental”
(Ricœur 1963: 618) — a fórmula foi assumida por Lévi-Strauss (1963: 633; 1964: 19) —,
poderíamos dizer que a sociologia durkheimiana é um kantismo com sujeito transcendente, e
a antropologia cognitiva contemporânea um kantismo com sujeito empírico (a rigor, um
inatismo de tipo cartesiano), ao passo que a filosofia de Deleuze sugeriria um peculiar
‘kantismo com outrem transcendental’, que positiva o kantismo negativo estruturalista em
uma direção duplamente oposta à de sua empirização cognitiva. Digo que o ‘kantismo’
deleuziano é peculiar, porque, como observam alguns comentadores (Zourabichvili 1994:
46–47; Lebrun 1998), seu campo transcendental não é concebido como uma figura da
interioridade, isto é, não é ‘decalcado’ da forma empírica da representação: ele não
pressupõe uma forma-sujeito do campo, mas uma relação impessoal e assubjetiva exterior a
seus termos, e a noção de condição não envolve uma semelhança retroprojetiva com o
condicionado, mas é um princípio heterogenético. O que equivale a dizer: contra os vários
racionalismos empíricos, ou kantismos sem o transcendental, um “materialismo
transcendental” (Stengers @@@), ou um transcendental sem Kant.
24 O ‘irmão da mãe’ é ao mesmo tempo exterior à família conjugal e o que a torna possível;
ele não é, portanto, um termo de mesma ordem que os membros da família (pai, mãe,
filho), mas uma relação diferenciante. O paralelo entre a estrutura de Outrem e o átomo de
parentesco não é apenas alegórico, como veremos na Parte II. Tal paralelo, note-se bem,
não passa por nenhuma noção de interdito ou de lei (que, entre outros defeitos, modela
indevidamente o constitutivo segundo a forma do regulativo): Outrem não é uma figura da
necessidade negativa, mas da possibilidade positiva.
Recorde-se que a relação avuncular é o que produz a diferença entre o ‘eu’ (o filho,
no átomo lévi-straussiano) e o ‘outro’ (o pai), bem como sua projeção temporal. O filho
difere do pai através do irmão da mãe. Na verdade, todas as posições familiares são criadas
pela função avuncular: além da díade pai-filho, ela distingue o marido de sua mulher (ao pô-
los como não-germanos), e o filho de sua mãe (via a posição do pai como diferente do irmão
desta). Não seria, então, por acaso que os Daribi da Nova Guiné definem o tio materno como
constituindo a ‘base’ ou ‘causa’ do sobrinho uterino (Wagner 1967): o pai pode ser o autor
eficiente da criança, mas o tio é sua razão suficiente.
16
Esse conceito, em suma, parece-me fornecer um instrumento interessante
de tradução do regime de alteridade amazônico; mais interessante, quero dizer,
que as hermenêuticas intersubjetivas visadas pela antropologia contemporânea
como alternativa aos positivismos disponíveis no mercado. Mais adequado,
também, que as interpretações dialéticas da alteridade como trabalho do negativo
no sujeito. Pois Outrem não é, enquanto tal, ‘o outro’, isto é, o outro (alter) do
sujeito; ele é um outro (aliud) que o sujeito, uma multiplicidade virtual de onde
emergem todo Eu e qualquer Outro. Outrem é a diferença relacional pura ou
molecular, anterior à sua molarização no par opositivo e relativo Eu/Outro. A
oposição, já ensinava Tarde, é a versão macroscópica, simplificada e normalizadada diferença, não o seu modelo; ela é o primeiro compromisso entre a diferença e a
identidade.
Aqui se começa a poder perceber, enfim, o que há de equívoco, ou pelo
menos de impreciso, na noção de alteridade: ela não permite distinguir entre o
outro e Outrem, o termo alterno ao sujeito e a relação que os altera a ambos. A
noção implica, além disso, uma extrinsicidade ou transcendência do Outro face ao
Eu, ao passo que no regime amazônico, como se depreende mais ou menos
claramente da etnografia, a “perspectiva do Outro” é uma determinação imanente
dos dispositivos de subjetivação nativos: trata-se de uma ‘alteridade interna’. Com
seu sufixo de estado ou de atributo, a forma ‘alteridade’ sugere ainda uma imagem
finalizada — literalmente, terminada — da relação, que a toma a partir de seus
termos, como relação relacionada e não como relação relacionante: oposição
extensiva antes que diferença intensiva. (Se há uma insuficiência importante na
metodologia antropológica que mais fez para afirmar o primado da relação
diferencial — o estruturalismo —, esta reside em sua concepção exclusivamente
extensivista da diferença.)
É preciso achar uma outra palavra. O termo que melhor caberia está,
infelizmente, ocupado há muito tempo, e por um locatário conceitual que não
poderia ser mais antagônico ao sentido aqui visado: alienação, que tem a tripla
vantagem de ser um nome de ação e não de estado, de estar mais próximo do
aliud latino e não do alter, e de designar uma diferença interna ao sistema
subjetivo ‘eu-Eu’. Mas é inútil insistir por aí, sob pena de criar toda sorte de mal-
entendidos. Assim, proponho que se distinga entre a alteridade, oposição extensiva
entre Eu e não-Eu, e a alteração, diferenciação intensiva característica da
estrutura-Outrem. A alteridade procede da alteração, a alteração se resolve ou
desenvolve em alteridade, mas não se confunde com esta: “Outrem é sempre
percebido como outro, mas em seu conceito ele é a condição de toda percepção,
17
para os outros como para nós” (Deleuze & Guattari 1991: 24). A alteração está
para a alteridade como uma relação virtual implicada está para os termos atuais
em que ela se explica. A alteração não é dada; o dado é a alteridade: mas a
alteração é aquilo pelo qual o dado se dá como alteridade.25
Não há alteridade sem alteração. Abstraída da potência de alteração de que
procede, a alteridade se congela em uma ‘relação’ meramente formal, e
frequentemente degenera em uma taxonomia de oposições diacríticas entre
posições constituídas. No caso da antropologia amazônica, isso muitas vezes se
traduz em uma “sociologia verbal” (Calavia 1995: 249) de categorias de identidade
e de autodesignações coletivas — uma étimo-sociologia mais que uma etno-
sociologia —, e em uma cartografia estática de círculos de distância social, quando
não em análises ‘cognitivas’ que reduzem toda diferença a uma classificação, todo
pensamento a um reconhecimento, todo conceito a um taxon: triunfo do extensivo,
anulação total das diferenças de intensidade portadas pela alteração.
Alteração, então, designaria o ‘processo’ de atualização da alteridade que é
o efeito próprio de Outrem como relação a priori. Escrevo ‘processo’ entre aspas
porque não se trata, a rigor, de um processo, ou não se trata apenas disso: o
processo de atualização da alteridade se dobra de um contra-processo involutivo,
um devir, que contra-efetua a alteração por outros caminhos, como se verá na
parte II deste livro.
Alteração, enfim, porque essa palavra evoca uma noção capital da
metafísica ameríndia, a de transformação intensiva ou metamorfose, comentada na
parte III deste livro. A real relação entre Eu e Outro, no mundo indígena, não é a
oposição analítica ou a negação dialética, mas a metamorfose como alteração
ontológica. Tensão, preensão, alteração.
(…)
O conceito de Outrem como relação a priori serviu-me, sobretudo, para formular de
modo mais claro a conexão entre as duas idéias centrais deste livro, a alteração-
alteridade e o perspectivismo.
Uma expressão prototípica de Outrem na tradição ocidental é a figura do
Amigo. O Amigo é outrem, mas outrem como ‘momento’ do Eu. Se me determino
como amigo do amigo, é apenas porque o amigo, na conhecida definição de
 
25 Isso parafraseia uma passagem de Deleuze: “A diferença não é o diverso. O diverso é o
dado. Mas a diferença é aquilo pelo qual o dado é dado. Aquilo pelo qual o dado é dado como
diverso” (1969b: 286).
18
Aristóteles, é um outro Eu.26 O Eu está lá desde o início: o amigo é a condição-
Outrem pensada retroprojetivamente sob a forma condicionada do sujeito. Como
observa Francis Wolff (2000: 169), essa definição aristotélica implica uma teoria
segundo a qual “toda relação com outrem, e por conseguinte toda forma de
amizade, encontra seu fundamento na relação do homem consigo mesmo”. O
vínculo social pressupõe a auto-relação como origem e modelo.
Mas o Amigo não funda somente uma ‘antropologia’. Dadas as condições
histórico-políticas de constituição da filosofia grega, o Amigo emerge como
indissociável de uma certa relação com a verdade: ele é uma condição de
possibilidade do pensamento em geral, uma “presença intrínseca … uma categoria
viva, um vivido transcendental” (Deleuze & Guattari 1991: 9). O Amigo é, em
suma, o que Deleuze chama de um personagem conceitual, o esquematismo de
Outrem próprio ao conceito. A filosofia exige o Amigo, a philia é o elemento do
saber.
Pois bem. O problema que se coloca, do ponto de vista do pensamento
indígena, é: como funciona a estrutura Outrem em um mundo onde é o Inimigo,
não o Amigo, que faz as vezes de vivido transcendental ou de protagonista
conceitual? Onde outrem não é concebido como um outro Eu, mas como um eu
Outro?27 Onde, em suma, não é a semelhança que funda a relação, e onde a
relação consigo mesmo não é primeira — mas onde é a diferença que liga, e onde é
a relação com o outro que permite a relação consigo mesmo? Este é o problema
que se procura tratar na parte II do livro: a imagem amazônica da Relação. Ele
exige a travessia de um campo clássico da antropologia social, o parentesco, pois o
inimigo e a diferença são determinações internas das ‘categorias vivas’ da
cosmopraxis indígena, e estas se exprimem antes de mais nada como categorias de
parentesco: o irmão e o cunhado, o pai e o sogro, a irmã e a prima cruzada…28
A questão do perspectivismo já se encontra formulada no problema acima.
Se Outrem é o conceito de ponto de vista, o que é um mundo constituído pelo
ponto de vista do inimigo (Viveiros de Castro 1992) como determinação
 
26 Ética a Nicômaco, 1170 b 6.
27 Reencontro — este livro está cheio de reinvenções do alheio — exatamente tal formulação
em Manuela Carneiro da Cunha (1978: 93-94), a propósito da diferença entre o companheiro
(um ‘outro Eu’) e o amigo formal (um ‘eu-Outro’) dos Timbira, figuras que são os
esquematismos rituais, respectivamente, das posições de irmão e de cunhado. Esse último
par (ou antes, as idéias que eles encarnam) é discutido na parte II a seguir.
28 Seria possível formular o problema a partir de uma outra tradição ocidental fundadora —
por exemplo, da figura evangélica do Próximo, aquele que devemos ‘amar como a nós
mesmos’. A convergência entre essas duas imagens tão diferentes, o Amigo (a philia) e o
Próximo (a agapè), só é pertinente do ponto de vista de seu comum contraste com o regime
amazônico da alteridade.
19
transcendental? Um mundo onde a ‘inimizade’ não é um mero complemento
privativo da ‘amizade’, nem uma simples facticidade negativa, mas uma estrutura
de direito do pensamento, e uma positividade? E por fim — que relação com o
saber, ou que regime de verdade, constitui-senesse elemento da diferença ou
distância positivas?
Para poder começar a dizer algo sobre este último ponto, é preciso percorrer
uma outra dimensão do pensamento indígena, formulável igualmente por contraste
com nossas configurações da alteridade. Pois Outrem não se manifestou na
tradição ocidental apenas na figura grega do Amigo — que continua bem viva entre
nós, apenas não mais como mediação maiêutica (o diálogo antigo conduzia a uma
essência transcendente), mas como condição hermenêutica (a verdade moderna se
tornou imanente ao diálogo). Outrem também é consubstancial a uma outra figura,
esta um pouco mais recente, um personagem conceitual completamente singular —
Deus. É difícil não ver em Deus a forma por excelência de Outrem em nossa
tradição: ele é ao mesmo tempo o grande Outro, garantia da realidade absoluta (o
Dado) face ao solipsismo da consciência, e o grande Eu, garantia da inteligibilidade
relativa (o Construído) do que o sujeito vê em torno de si. Com efeito, a função
maior de Deus, no que concerne ao destino do pensamento moderno, foi a de
demarcar a linha fundamental entre o dado e o construído, ao se instituir, enquanto
Criador, como seu horizonte de indiferenciação.
É verdade que Deus foi saindo aos poucos de nossa cena histórica, mas
antes de morrer ele tomou duas medidas propriamente providenciais: interiorizou-
se no foro íntimo dos homens como forma inteligível do Sujeito (a lei moral), e
exteriorizou-se em um Objeto sensível infinito, a natureza como campo total da
realidade substantiva (o céu estrelado).29 A Cultura e a Natureza, em suma, os dois
mundos (Ingold 2000: 1), o subjetivo e o objetivo, em que se dividiu a
Sobrenatureza como Outrem originário. Deus, portanto, também continuou entre
nós, na forma duplamente eficaz da ausência e da divisão.
Pois bem. Essas considerações algo ligeiras (para não dizer grosseiras)
visavam apenas introduzir nosso segundo problema.30 Como funciona a relação-
Outrem em um mundo radicalmente não-monoteísta, e que sempre passou ao
largo de uma teologia da criação? Problema ligeiramente diferente daquele que
 
29 Considerando-se que o Deus cristão é um híbrido greco-judaico, dir-se-ia (e Hegel deve
ter dito isso em algum lugar) que a parte que se interiorizou como Sujeito é a judaica, e a
que se exteriorizou como Natureza, a grega.
30 Considerações em parte inspiradas na história contada por Latour ([1991]: 50-53, passim)
sobre a “Constituição” dos modernos, e, pela mesma via, no livro de Funkenstein (1986)
sobre as relações entre teologia e imaginação científica na transição para a modernidade.
20
Deleuze lia em Tournier: não se trata aqui de saber o que é um mundo sem
outrem, mas o que é outrem em um mundo sem Deus. Não, note-se, um mundo
criado pela retirada catabática de Deus, como nosso mundo moderno, mas um
mundo incriado, na inexistência de uma divindade transcendente. Nesse regime de
alteração, o que garante a realidade para os sujeitos, que ‘percipiente’ virtual é
pressuposto para assegurar a transição entre os possíveis? Onde está Outrem,
como se distribuem — alteram-se e alternam-se — as posições do sujeito e do
objeto, do dado e do construído, da forma e do fundo?
Para responder a tais questões, será preciso rediscutir os termos da
oposição clássica entre Natureza e Cultura, região objetiva e região subjetiva do
existente, de modo a discernir a diferença propriamente ontológica do pensamento
indígena face ao nosso. Este é o tema da parte III do livro: a disseminação de
Outrem pelas dobras do mundo, sua manifestação sob a forma de uma infinidade
potencial de sujeitos não-humanos, e, reciprocamente, a presença do humano
como imanência absoluta.
Em outras palavras, estaremos discutindo a variante ameríndia do que
Latour (1991: passim) chamou de “velha matriz antropológica” da humanidade, a
matriz que a velha antropologia chamava, como se sabe, de ‘animismo’. Pode-se
dizer que o animismo, para defini-lo sucintamente mediante os conceitos de uma
tradição que se imagina ‘desanimista’, é uma imagem do mundo onde o objeto é
um caso particular do sujeito, isto é, onde todo objeto é um sujeito em potência. O
animismo de que se tratará aqui, entretanto, conhece uma inflexão crucial. No
mundo amazônico, o Eu é um caso particular do Outro, pois ali a relação com o
outro, o ‘inimigo’, funda a relação consigo mesmo. Um animismo, portanto,
alterado, uma alteridade que se animiza na medida exata em que se inimiza —
alteração. Um ‘inimismo’, então: o perspectivismo indígena, ou o mundo por
outrem.
(…)
O conceito de outrem como expressão de um mundo possível pode ser assim
extraído de seu terreno filosófico imediato e transferido para a antropologia. No que
diz respeito a este livro, ele se constitui, com efeito, como duas vezes
antropológico, pois permite perceber que o problema da antropologia enquanto
disciplina é o mesmo problema posto pelo pensamento indígena aqui comentado: a
relação com o mundo de outrem, o mundo possível que existe como virtual para
mim e atual para outrem. Outrem é, neste sentido, a condição de passagem entre
21
mundos possíveis, e o perspectivismo, o esquema conceitual que pensa tal
passagem. O que vale tanto para o perspectivismo ‘interno’ ao pensamento
indígena — onde ele especifica as coordenadas de transformação entre os mundos
dos vivos e dos mortos, dos parentes e dos inimigos, dos humanos e dos animais —
como para o perspectivismo ‘interfacial’ que relaciona o discurso antropológico ao
discurso do nativo. Isso significa que o regime de alteração característico do
pensamento amazônico inclui como mundo possível a relação externa entre esse
pensamento e o que podemos dizer sobre ele; e, reciprocamente, que uma teoria
antropológica sobre esse pensamento deve poder se pôr em continuidade com ele,
uma continuidade que exige a diferença entre os dois discursos, para poder
interiorizá-la conceitualmente. Pois o tema do livro é, enfim, precisamente este:
como funciona Outrem no mundo de outrem? O que é o possível nativo?
Isso nos leva a um segundo aspecto da declaração de intenções que abria
este capítulo. Dizia-se ali que a abordagem adotada no livro é antropológica, por se
aproximar de seu objeto do ponto de vista das relações sociais. Mas há outras
disciplinas além da antropologia que poderiam ser definidas em tais termos, e há
outros termos possíveis de definição desta disciplina. Para precisar o que se
entenderá aqui por ‘antropologia’, pareceu-me útil apresentar as regras do jogo de
linguagem usualmente praticado sob este nome.
As regras do jogo
O ‘antropólogo’ é alguém que discorre sobre o discurso de um ‘nativo’. O nativo não
precisa ser especialmente selvagem, ou tradicionalista, tampouco natural do lugar
onde o antropólogo o encontra; o antropólogo não precisa ser excessivamente
civilizado, ou modernista, sequer estrangeiro ao povo sobre que discorre. Os
discursos, o do antropólogo e sobretudo o do nativo, não precisam ser textos: são
quaisquer práticas de sentido.31 O essencial é que o discurso do antropólogo (o
‘observador’) estabeleça uma certa relação com o discurso do nativo (o
‘observado’). Essa relação é uma relação de sentido, ou, como se diz quando o
primeiro discurso pretende à Ciência, uma relação de conhecimento. Mas o
conhecimento antropológico é imediatamente uma relação social, pois é o efeito
 
31 O fato de que o discurso do antropólogo consista canônica e literalmente em um texto tem
muitas implicações, que não cabe desenvolver aqui. Elas foram objeto de atenção exaustiva
por parte de correntes recentes de reflexão auto-antropológica. O mesmo se diga do fato de
22
das relações que constituem reciprocamenteo sujeito que conhece e o sujeito que
ele conhece, e a causa de uma transformação (toda relação é uma transformação)
na constituição relacional de ambos:
O conhecimento não é uma conexão entre uma substância-sujeito e uma
substância-objeto, mas uma relação entre duas relações, das quais uma está no
domínio do objeto, e a outra no domínio do sujeito. … [A] relação entre duas
relações é ela própria uma relação (Simondon [1964]: 81).32
Essa (meta-)relação não é de identidade: o antropólogo sempre diz, e portanto faz,
outra coisa que o nativo, mesmo que pretenda não fazer mais que redizer
‘textualmente’ o discurso deste, ou que tente dialogar (noção duvidosa) com ele.
Tal diferença é o efeito de conhecimento do discurso do antropólogo, a relação
entre o sentido de seu discurso e o sentido do discurso do nativo.33
A alteridade discursiva se apóia, está claro, em um pressuposto de
semelhança. O antropólogo e o nativo são entidades de mesma espécie e condição:
são ambos humanos, e estão ambos instalados em suas culturas respectivas, que
podem, eventualmente, ser a mesma. Mas é aqui que o jogo começa a ficar
interessante, ou melhor, estranho. Ainda quando o antropólogo e o nativo
partilham a mesma cultura, a relação de sentido entre os dois discursos diferencia
tal comunidade: a relação do antropólogo com sua cultura e a do nativo com a dele
não é exatamente a mesma. O que faz do nativo um nativo é a pressuposição, por
parte do antropólogo, de que a relação do primeiro com sua cultura é natural, isto
é, intrínseca e espontânea, e, se possível, não-reflexiva; melhor ainda se for
inconsciente. O nativo exprime sua cultura em seu discurso. O antropólogo
também, mas, se ele pretende ser outra coisa que um nativo, deve poder exprimir
sua cultura culturalmente, isto é, reflexiva, condicional e conscientemente. Sua
cultura se acha contida, nas duas acepções da palavra, na relação de sentido que
seu discurso estabelece com o discurso do nativo. Já o discurso do nativo, esse está
 
que o discurso do nativo não seja, geralmente, um texto, e do fato de que ele tenha sido
frequentemente tratado como se o fosse.
32 Itálicos removidos. Traduzi por ‘conexão’ a palavra rapport, que Simondon distingue de
relation, ‘relação’: “podemos chamar de relação a disposição dos elementos de um sistema
que está além de uma simples visada arbitrária do espírito, e reservar o termo conexão para
uma relação arbitrária e fortuita… a relação seria uma conexão tão real e importante como
os próprios termos; poder-se-ia dizer, por conseguinte, que uma verdadeira relação entre
dois termos equivale, de fato, a uma conexão entre três termos” (id.: 66).
33 Veja-se M. Strathern 1987 para uma análise dos pressupostos relacionais desse efeito de
conhecimento. A autora argumenta que a relação do nativo com seu discurso não é, em
princípio, a mesma que a do antropólogo com o seu, e que tal diferença ao mesmo tempo
condiciona a relação entre os dois discursos e impõe limites a toda empresa de auto-
antropologia.
23
contido univocamente, encerrado em sua própria cultura. O antropólogo usa
necessariamente sua cultura; o nativo é suficientemente usado pela sua.
Tal diferença, é ocioso lembrar, não reside na assim chamada natureza das
coisas; ela é própria do jogo de linguagem que vamos descrevendo, e define as
personagens designadas (arbitrariamente no masculino) como ‘o antropólogo’ e ‘o
nativo’. Vejamos mais algumas regras desse jogo.
A idéia antropológica de cultura coloca o antropólogo em posição de
igualdade com o nativo, ao implicar que todo conhecimento antropológico de outra
cultura é culturalmente mediado. Entretanto, a igualdade propiciada pela noção de
cultura é, em primeira instância, simplesmente empírica ou de fato: ela diz respeito
à natureza cultural comum (no sentido de genérica) do antropólogo e do nativo. A
relação diferencial do antropólogo e do nativo com suas culturas respectivas, e
portanto com suas culturas recíprocas, é de tal ordem que a igualdade de fato não
implica uma igualdade de direito — uma igualdade no plano do conhecimento. O
antropólogo tem usualmente uma vantagem epistemológica sobre o nativo. O
discurso do primeiro não se acha situado no mesmo plano que o discurso do
segundo: o sentido que o antropólogo estabelece depende do sentido nativo, mas é
ele quem detém o sentido desse sentido — ele quem explica e interpreta, traduz e
introduz, textualiza e contextualiza, justifica e significa esse sentido. A matriz
relacional do discurso antropológico é hilemórfica: o sentido do antropólogo é
forma; o do nativo, matéria. O discurso do nativo não detém o sentido de seu
próprio sentido. De fato, como diria Geertz, “somos todos nativos”; mas de direito,
uns sempre são mais nativos que outros.
 Este livro tenta responder às perguntas seguintes.34 O que acontece se
recusarmos ao discurso do antropólogo sua vantagem estratégica sobre o discurso
do nativo? O que se passa quando o discurso do nativo funciona, dentro do discurso
do antropólogo, de modo a produzir reciprocamente um efeito de conhecimento
sobre este discurso? Quando a forma intrínseca à matéria do primeiro modifica a
matéria implícita na forma do segundo? Tradutor, traidor, diz-se; mas o que
acontece se o tradutor decidir trair sua própria língua? O que sucede se,
insatisfeitos com a mera igualdade passiva, ou de fato, entre os sujeitos desses
discursos, reivindicarmos uma igualdade ativa, ou de direito, entre os discursos
eles mesmos? Se a antropologia for tomada como uma prática de sentido em
continuidade epistêmica com as práticas sobre que discorre, como equivalente a
 
34 Elas são como pré-condições das perguntas feitas na seção anterior, sobre o regime de
Outrem no mundo de outrem.
24
elas? Se a disparidade entre os sentidos do antropólogo e do nativo, longe de
neutralizada por tal equivalência, for internalizada, introduzida em ambos os
discursos, e assim potencializada? Se, ao invés de admitir complacentemente que
somos todos nativos, levarmos às últimas, ou devidas, consequências a aposta
oposta — que somos todos ‘antropólogos’ (Wagner 1981: 36), e não uns mais
antropólogos que os outros, mas apenas cada um a seu modo, isto é, de modos
muito diferentes? Se aplicarmos a noção de ‘antropologia simétrica’ (Latour [1991])
à antropologia ela própria, não para condená-la por colonialista, exorcizar seu
exotismo, minar seu campo intelectual, mas para fazê-la dizer outra coisa? Outra
coisa não apenas que o discurso do nativo, pois isso é o que a antropologia não
pode deixar de fazer, mas outra que o discurso, em geral sussurrado, que o
antropólogo enuncia sobre si mesmo, ao discorrer sobre o discurso do nativo?35
Se fizermos tudo isso, eu diria que estaremos fazendo o que sempre se
chamou propriamente de ‘antropologia’, em vez de, por exemplo, ‘sociologia’ ou
‘psicologia’. Digo apenas diria, porque muito do que se fez e faz sob esse nome
supõe, ao contrário, que o antropólogo é aquele que detém a posse eminente das
razões que a razão do nativo desconhece. Ele tem a ciência das doses precisas de
universalidade e particularidade contida no nativo, e das ilusões que este entretém
a respeito de si próprio — ora manifestando sua cultura nativa acreditando
manifestar a natureza humana (o nativo ideologiza sem saber), ora manifestando a
natureza humana acreditando manifestar sua cultura nativa (ele cognitiza à
revelia).36 A relação de conhecimento é aqui concebida como unilateral, a
 
35 Somos todos nativos, mas ninguém é nativo o tempo todo. Como recorda Lambek (1998:
113) em um comentárioà noção de habitus e congêneres, “as práticas encorporadas são
realizadas por agentes capazes também de pensar contemplativamente: nada do que ‘não é
preciso dizer’ permanece não-dito para sempre” (nothing ‘goes without saying’ forever; a
alusão é a um artigo de M. Bloch [1992] cujo título fala do que ‘goes without saying’ para o
nativo, e que caberia ao antropólogo dizer em seu lugar). Pensar contemplativamente,
sublinhe-se, não significa pensar como pensam os antropólogos: as técnicas de reflexão
variam crucialmente. A antropologia reversa do nativo (o cargo cult melanésio, por exemplo;
Wagner 1981: 31–34) não é a auto-antropologia do antropólogo (Strathern 1987: 30–31):
uma antropologia simétrica feita do interior da tradição que gerou a antropologia não é
simétrica a uma antropologia simétrica feita de fora dela. A simetria não cancela a diferença,
pois a reciprocidade virtual de perspectivas em que penso aqui não é nenhuma ‘fusão de
horizontes’. Em suma, somos todos antropólogos, mas ninguém é antropólogo do mesmo
jeito: “está muito bem que Giddens afirme que ‘todos os atores sociais… são teóricos
sociais’, mas a frase é vazia se as técnicas de teorização têm pouca coisa em comum”
(Strathern, loc. cit.).
36 Via de regra, supõe-se que o nativo faz, sem saber o que faz, as duas coisas — a
raciocinação natural e a racionalização cultural —, em fases, registros ou situações diferentes
de sua vida. As ilusões do nativo são, acrescente-se, tidas por necessárias, no duplo sentido
de inevitáveis e úteis (são, dirão outros, evolucionariamente adaptativas). É tal necessidade
que define o ‘nativo’, e o distingue do ‘antropólogo’: este pode errar, mas aquele precisa se
iludir.
25
alteridade entre o sentido dos discursos do antropólogo e do nativo resolve-se em
um englobamento. O antropólogo conhece de jure o nativo, ainda que possa
desconhecê-lo de facto. Quando se vai do nativo ao antropólogo, dá-se o contrário:
ainda que ele conheça de facto o antropólogo (frequentemente melhor do que este
o conhece), não o conhece de jure, pois o nativo não é, justamente, antropólogo
como o antropólogo. A ciência do antropólogo é de outra ordem que a ciência do
nativo, e precisa sê-lo: a condição de possibilidade da primeira é a deslegitimação
das pretensões da segunda, seu “epistemocídio”, no forte dizer de Bob Scholte
(1984: 964). O conhecimento por parte do sujeito exige o desconhecimento por
parte do objeto.
Mas não é realmente preciso fazer um drama a respeito disso. Como atesta
a história da disciplina, esse jogo discursivo, com tais regras desiguais, disse muita
coisa instrutiva sobre os nativos. A experiência realizada no presente livro,
entretanto, consiste precisamente em recusá-lo. Não porque tal jogo produza
resultados objetivamente falsos, isto é, represente de modo errôneo a natureza do
nativo; o conceito de verdade objetiva (como os de representação e de natureza) é
parte das regras desse jogo, não do que se propõe aqui. De resto, uma vez dados
os objetos que o jogo clássico se dá, seus resultados são frequentemente
‘plausíveis’, e às vezes até convincentes. Recusar esse jogo significa apenas dar-se
outros objetos, compatíveis com as outras regras acima enunciadas.
O que estou sugerindo, em suma, é a incompatibilidade entre duas
concepções da antropologia, e a necessidade de escolher entre elas. De um lado,
temos uma imagem do conhecimento antropológico como resultando da aplicação
de conceitos extrínsecos ao objeto: sabemos de antemão o que são as relações
sociais, ou a cognição, o parentesco, a religião, a política etc., e vamos ver como
tais entidades se realizam nesse ou naquele contexto etnográfico — como elas se
realizam, é claro, pelas costas dos interessados. De outro lado (e este é o jogo aqui
proposto), uma idéia do conhecimento antropológico como envolvendo a
pressuposição fundamental de que os procedimentos que caracterizam a
investigação são conceitualmente de mesma ordem que os procedimentos
investigados.37 Tal equivalência no plano dos procedimentos, note-se bem, supõe e
acarreta uma não-equivalência radical de tudo o mais. Pois, se a primeira
 
37 É assim que interpreto a declaração de Wagner (1981: 35): “Estudamos a cultura através
da cultura, e portanto as operações, sejam quais forem, que caracterizam nossa investigação
devem ser também propriedades gerais da cultura.” Isso poderia ser aproximado da
passagem de Le cru et le cuit supracitada (ver nota 2), onde Lévi-Strauss fala da relação de
determinação recíproca entre o pensamento do nativo e o pensamento do antropólogo
(1964: 21).
26
concepção de antropologia imagina cada cultura ou sociedade como encarnando
uma solução específica de um problema genérico — ou como preenchendo uma
forma universal (o conceito antropológico) com um conteúdo particular —, a
segunda, ao contrário, suspeita que os problemas eles mesmos são radicalmente
diversos; sobretudo, ela parte do princípio de que o antropólogo não sabe de
antemão quais são eles. O que a antropologia, nesse caso, põe em relação são
problemas diferentes, não um problema único (‘natural’) e suas diferentes soluções
(‘culturais’). A “arte da antropologia” (Gell 1999), penso eu, é a arte de determinar
os problemas postos por cada cultura, não a de achar soluções para os problemas
postos pela nossa. E é exatamente por isso que o postulado da continuidade dos
procedimentos é um imperativo epistemológico.38
Dos procedimentos, note-se bem, não dos que os levam a cabo. Pois
tampouco se trata de condenar o jogo clássico por produzir resultados
subjetivamente falseados, ao não reconhecer a condição de sujeito do nativo: ao
mirá-lo com um olhar distanciado e carente de empatia, construí-lo como um
objeto exótico, diminuí-lo como um primitivo não-coevo ao observador, negar-lhe o
direito humano à interlocução — conhece-se a litania. Não é nada disso. Antes pelo
contrário, penso. É justo porque o antropólogo toma o nativo muito facilmente por
um outro sujeito que ele não consegue vê-lo como um sujeito outro, como uma
figura de Outrem que, antes de ser sujeito ou objeto, é a expressão de um mundo
possível. É por não aceitar a condição de não-sujeito (no sentido de outro que o
sujeito) do nativo que o antropólogo introduz, sob a capa de uma proclamada
igualdade de fato com este, sua sorrateira vantagem de direito. Ele sabe demais
sobre o nativo desde antes do início da partida; ele pré-define e circunscreve os
mundos possíveis expressos por esse outrem; a alteridade desse outrem foi
radicalmente separada de sua capacidade de alteração. O autêntico animista é o
antropólogo, e a observação participante é a verdadeira (ou seja, falsa)
participação primitiva.39
O problema não está, portanto, em ver o nativo como objeto, e a solução
não reside em pô-lo como sujeito. Que o nativo seja um sujeito, não há a menor
dúvida; mas o que pode ser um sujeito, eis precisamente o que o nativo obriga o
 
38 Ver, sobre isso, Jullien 1989: 312. Os problemas reais de outras culturas são problemas
apenas possíveis para a nossa; o papel da antropologia é o de dar a essa possibilidade
(lógica) o estatuto de virtualidade (ontológica), determinando — ou seja, construindo — sua
operação latente em nossa própria cultura.
39 Os nativos — aqueles que são o objeto deste livro — também são ‘animistas’, atribuindo
aos objetos sobre que pensam uma certa condição de sujeito. Mas, como veremos, seu
27
antropólogo a pôr em dúvida. Tal é a ‘cogitação’ especificamente antropológica; só
ela permite à antropologia assumir completamente a presença virtual de Outrem
que é sua condição — a condição de passagem de um mundo possível a outro —, e
que determina as posições derivadas e permutáveis de sujeito

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