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O Riso - Henri Bergson

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O que significa o riso? O que há no fundo do ri-
sível? O que haveria de comum entre uma careta de
palhaço, um jogo de palavras, um qüiproquó de vau-
deville, uma cena de comédia fina? Que destilação
nos dará a essência, sempre a mesma, da qual tantos
diferentes produtos extraem indiscreto odor ou deli-
cado perfume? Os maiores pensadores, desde Aristó-
teles, estiveram às voltas com esse probleminha, que
sempre se esquiva aos esforços, escorrega, escapa e
ressurge, impertinente desafio lançado à especulação
filosófica.
Nossa escusa, para abordar o problema, é que não
teremos em vista encerrar a invenção cômica numa
definição. Vemos nela, acima de tudo, algo vivo. Por
mais ligeira que seja, nós a trataremos com o respei-
to que se deve à vida. Nós nos limitaremos a vê-la
crescer e desabrochar. De forma em forma, por grada-
CAPÍTULO I
DA COMICIDADE EM GERAL/
A COMICIDADE DAS FORMAS
E A COMICIDADE DOS MOVIMENTOS/
FORÇA DE EXPANSÃO DA 
COMICIDADE
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ções insensíveis, diante de nossos olhos ela realizará
singulares metamorfoses. Não desprezaremos nada do
que virmos. Talvez, aliás, com esse contato assíduo
ganhemos alguma coisa mais flexível que uma defi-
nição teórica: um conhecimento prático e íntimo, co-
mo o que nasce de longa camaradagem. E talvez des-
cubramos também que, sem querer, travamos um co-
nhecimento útil. Razoável, a seu modo, até em seus
maiores desvios, metódica em sua loucura, sonhadora,
se me permitem, mas capaz de evocar em sonhos vi-
sões que são prontamente aceitas e compreendidas por
toda uma sociedade, por que a invenção cômica não
nos daria informações sobre os procedimentos de tra-
balho da imaginação humana e, mais particularmente,
da imaginação social, coletiva, popular? Oriunda da
vida real, aparentada com a arte, como não nos diria
ela também uma palavra sua acerca da arte e da vida?
Faremos de início três observações que considera-
mos fundamentais. Referem-se menos à comicidade
em si do que ao lugar onde esta deve ser procurada.
I
Vejamos agora o primeiro ponto para o qual cha-
maremos a atenção. Não há comicidade fora daqui-
lo que é propriamente humano. Uma paisagem pode-
rá ser bela, graciosa, sublime, insignificante ou feia;
nunca será risível. Rimos de um animal, mas por ter-
2 HENRI BERGSON
RISO002 2/1/08 11:09 AM Page 2
mos surpreendido nele uma atitude humana ou uma
expressão humana. Rimos de um chapéu; mas então
não estamos gracejando com o pedaço de feltro ou de
palha, mas com a forma que os homens lhe deram,
com o capricho humano que lhe serviu de molde. Co-
mo um fato tão importante, em sua simplicidade, não
chamou mais a atenção dos filósofos? Vários defi-
niram o homem como “um animal que sabe rir”.
Poderiam também tê-lo definido como um animal que
faz rir, pois, se algum outro animal ou um objeto
inanimado consegue fazer rir, é devido a uma seme-
lhança com o homem, à marca que o homem lhe
imprime ou ao uso que o homem lhe dá.
Cabe ressaltar agora, como sintoma não menos
digno de nota, a insensibilidade que ordinariamente
acompanha o riso. Parece que a comicidade só po-
derá produzir comoção se cair sobre uma superfície
d’alma serena e tranqüila. A indiferença é seu meio
natural. O riso não tem maior inimigo que a emoção.
Não quero com isso dizer que não podemos rir de uma
pessoa que nos inspire piedade, por exemplo, ou mes-
mo afeição: é que então, por alguns instantes, será
preciso esquecer essa afeição, calar essa piedade. Nu-
ma sociedade de puras inteligências provavelmente
não mais se choraria, mas talvez ainda se risse; ao
passo que almas invariavelmente sensíveis, harmoniza-
das em uníssono com a vida, nas quais qualquer acon-
tecimento se prolongasse em ressonância sentimental,
não conheceriam nem compreenderiam o riso. Que o
O RISO 3
RISO002 2/1/08 11:09 AM Page 3
leitor tente, por um momento, interessar-se por tudo
o que é dito e tudo o que é feito, agindo, em imagi-
nação, com os que agem, sentindo com os que sentem,
dando enfim à simpatia a mais irrestrita expressão:
como num passe de mágica os objetos mais leves lhe
parecerão ganhar peso, e uma coloração grave inci-
dirá sobre todas as coisas. Que o leitor agora se afas-
te, assistindo à vida como espectador indiferente:
muitos dramas se transformarão em comédia. Basta
taparmos os ouvidos ao som da música, num salão
de baile, para que os dançarinos logo nos pareçam ri-
dículos. Quantas ações humanas resistiriam a uma
prova desse gênero? E não veríamos muitas delas pas-
sar de chofre do grave ao jocoso, se as isolássemos
da música de sentimento que as acompanha? Por-
tanto, para produzir efeito pleno, a comicidade exige
enfim algo como uma anestesia momentânea do
coração. Ela se dirige à inteligência pura.
Mas essa inteligência deve permanecer em con-
tato com outras inteligências. Esse é o terceiro fato
para o qual desejamos chamar a atenção. Não sabo-
rearíamos a comicidade se nos sentíssemos isolados.
Parece que o riso precisa de eco. Ouçamo-lo: não é
um som articulado, nítido, terminado; é algo que gos-
taria de prolongar-se repercutindo de um ponto ao
outro, algo que começa com um estrépito para con-
tinuar em ribombo, assim como o trovão na monta-
nha. E no entanto essa repercussão não deve ir ao in-
finito. Ela pode caminhar no interior de um círculo
4 HENRI BERGSON
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tão amplo quanto se queira; nem por isso o círculo
deixa de ser fechado. Nosso riso é sempre o riso de
um grupo. Ao leitor talvez já tenha ocorrido ouvir,
em viagem de trem ou à mesa de hospedarias, histó-
rias que deviam ser cômicas para os viajantes que as
contavam, pois que os faziam rir com muito gosto.
O leitor teria rido como eles se pertencesse à socie-
dade deles. Mas, não pertencendo, não tinha vonta-
de alguma de rir. Um homem, a quem perguntaram
por que não chorava num sermão em que todos der-
ramavam muitas lágrimas, respondeu: “Não sou desta
paróquia.” O que esse homem pensava das lágrimas
seria ainda mais aplicável ao riso. Por mais franco que
o suponham, o riso esconde uma segunda intenção de
entendimento, eu diria quase de cumplicidade, com
outros ridentes, reais ou imaginários. Quantas vezes
já não se disse que o riso do espectador, no teatro, é
tanto mais largo quanto mais cheia está a sala; quan-
tas vezes não se notou, por outro lado, que muitos
efeitos cômicos são intraduzíveis de uma língua pa-
ra outra, sendo portanto relativos aos costumes e às
idéias de uma sociedade em particular? Mas foi por
não se ter entendido a importância desses dois fatos
que se viu na comicidade uma simples curiosidade
em que o espírito se diverte, e no próprio riso um fe-
nômeno estranho, isolado, sem relação com o resto
da atividade humana. Donde as definições que ten-
dem a fazer da comicidade uma relação abstrata en-
tre idéias percebida pelo espírito, “contraste intelec-
O RISO 5
RISO002 2/1/08 11:09 AM Page 5
tual”, “absurdidade sensível” etc., definições que,
mesmo convindo realmente a todas as formas da co-
micidade, não explicariam de modo algum por que o
que é cômico nos faz rir. Por que motivo, com efei-
to, essa relação lógica particular, tão logo percebida,
nos contrai, nos dilata, nos sacode, enquanto todas as
outras deixam nosso corpo indiferente? Não é por es-
se lado que abordaremos o problema. Para compreen-
der o riso, é preciso colocá-lo em seu meio natural,
que é a sociedade; é preciso, sobretudo, determinar
sua função útil, que é uma função social. Essa será –
convém dizer desde já – a idéia diretiva de todas as
nossas investigações. O riso deve corresponder a cer-
tas exigências da vida em comum. O riso deve ter uma
significação social.
Marquemos nitidamente o ponto para o qual con-
vergem nossas três observações preliminares. A co-
micidade nascerá, ao que parece, quando alguns ho-
mens reunidos em grupodirigirem todos a atenção
para um deles, calando a própria sensibilidade e exer-
cendo apenas a inteligência. Qual é então o ponto em
particular para o qual deverá dirigir-se a atenção de-
les? Em que será empregada a inteligência? Respon-
der a essas perguntas será já cercar mais o problema.
Mas é indispensável dar alguns exemplos.
6 HENRI BERGSON
RISO002 2/1/08 11:09 AM Page 6
II
Um homem, correndo pela rua, tropeça e cai: os
transeuntes riem. Não ririam dele, acredito, se fosse
possível supor que de repente lhe deu na veneta de
sentar-se no chão. Riem porque ele se sentou no chão
involuntariamente. Portanto, não é sua mudança brus-
ca de atitude que provoca o riso, é o que há de invo-
luntário na mudança, é o mau jeito. Talvez houvesse
uma pedra no caminho. Teria sido preciso mudar o
passo ou contornar o obstáculo. Mas, por falta de fle-
xibilidade, por distração ou obstinação do corpo, por
um efeito de rigidez ou de velocidade adquirida, os
músculos continuaram realizando o mesmo movimen-
to quando as circunstâncias exigiam outra coisa. Por
isso o homem caiu, e disso riem os transeuntes.
Temos agora uma pessoa que cuida de seus pe-
quenos afazeres com uma regularidade matemática.
Acontece que os objetos que a cercam foram troca-
dos por algum zombeteiro. Vai molhar a pena no tin-
teiro e lá encontra lama, pensa que está sentando nu-
ma cadeira firme e acaba deitada no assoalho; enfim,
age na contramarcha ou funciona no vazio, sempre
por um efeito de velocidade adquirida. O hábito
imprimira um impulso. Teria sido preciso deter o
movimento ou desviá-lo. Mas qual nada: continuou-
se maquinalmente em linha reta. A vítima de uma
farsa de gabinete está, portanto, em situação análo-
ga à de quem corre e cai. É cômica pela mesma ra-
O RISO 7
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zão. O que há de risível num caso e noutro é certa
rigidez mecânica quando seria de se esperar a ma-
leabilidade atenta e a flexibilidade vívida de uma pes-
soa. Há entre os dois casos uma única diferença: o
primeiro ocorreu sozinho, enquanto o segundo foi obti-
do artificialmente. O transeunte de há pouco apenas
observava; aqui, o zombeteiro experimenta.
Contudo, nos dois casos, é uma circunstância ex-
terior que determinou o efeito. A comicidade é, por-
tanto, acidental; está, por assim dizer, na superfície da
pessoa. Como penetrará no interior? Será necessário
que, para revelar-se, a rigidez mecânica já não pre-
cise de um obstáculo colocado diante dela pelo aca-
so das circunstâncias ou pela malícia do homem. Se-
rá preciso que ela extraia de seu próprio fundo, por
uma operação natural, a ocasião incessantemente re-
novada de manifestar-se exteriormente. Imaginemos,
pois, um espírito sempre voltado para o que acaba
de fazer, jamais para o que faz, como uma melodia
atrasada em relação ao acompanhamento. Imagine-
mos certa falta de elasticidade inata dos sentidos e
da inteligência, em virtude da qual se continua a ver
o que já não existe, a ouvir o que já não ressoa, a di-
zer o que já não convém, enfim a adaptar-se a uma
situação passada e imaginária quando seria preciso
moldar-se pela realidade presente. A comicidade se
situará, dessa vez, na própria pessoa: é a pessoa que
lhe fornecerá tudo, matéria e forma, causa e ocasião.
Será de surpreender que o distraído (pois essa é a per-
8 HENRI BERGSON
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sonagem que acabamos de descrever) tenha tentado
com freqüência a verve dos autores cômicos? Quando
encontrou esse caráter em seu caminho, La Bruyère
compreendeu, analisando-o, que tinha em seu poder
uma receita para a fabricação a granel de efeitos di-
vertidos. E abusou. Fez de Ménalque a mais longa e
minuciosa das descrições, recorrendo, insistindo e tei-
mando além da medida. A facilidade do tema o reti-
nha. Com a distração, de fato, talvez não estejamos na
fonte mesma da comicidade, mas com certeza esta-
mos dentro de certa corrente de fatos e idéias que pro-
vém diretamente da fonte. Estamos numa das gran-
des vertentes naturais do riso.
Mas o efeito da distração, por sua vez, pode ser
reforçado. Há uma lei geral – e acabamos de encon-
trar uma primeira aplicação sua – que assim formu-
laremos: quando certo efeito cômico deriva de certa
causa, o efeito nos parece tanto mais cômico quanto
mais natural consideramos a causa. Rimos já da dis-
tração que nos é apresentada como simples fato. Mais
risível será a distração que tivermos visto nascer e
crescer diante de nossos olhos, cuja origem conhe-
ceremos e cuja história poderemos reconstituir. Su-
ponhamos, pois, para tomar um exemplo preciso, que
um indivíduo tenha feito dos romances de amor ou
de cavalaria sua leitura habitual. Atraído, fascinado
por seus heróis, vai aos poucos destinando apenas a
eles pensamento e vontade. Ei-lo a circular entre nós
como um sonâmbulo. Suas ações são distrações. Só
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que todas essas distrações se vinculam a uma causa
conhecida e positiva. Já não são, pura e simplesmen-
te, ausências; são explicadas pela presença do indi-
víduo num meio bem definido, embora imaginário.
Sem dúvida uma queda é sempre uma queda, mas ou-
tra coisa é deixar-se cair num poço por estar olhan-
do sabe-se lá para onde, outra coisa é cair por estar
com o olhar fixo numa estrela. Era exatamente uma
estrela que Dom Quixote contemplava. Que profun-
da comicidade a do romanesco e do espírito quimé-
rico! E no entanto, se restabelecermos a idéia de dis-
tração que deve servir de intermediária, veremos
essa profundíssima comicidade vincular-se à comi-
cidade mais superficial. Sim, esses espíritos quimé-
ricos, esses exaltados, esses loucos tão estranhamente
razoáveis fazem-nos rir tocando as mesmas cordas
em nós, acionando o mesmo mecanismo interior que
era acionado pela vítima de uma farsa de gabinete ou
pelo transeunte a escorregar na rua. São eles também
corredores que caem e ingênuos que são mistifica-
dos, corredores do ideal que tropeçam nas realidades,
sonhadores cândidos que a vida espreita maliciosa-
mente. Mas são sobretudo grandes distraídos, supe-
riores aos outros porque sua distração é sistemática,
organizada em torno de uma idéia central, porque
suas desditas também são bem conexas, conexas pela
inexorável lógica que a realidade aplica para corrigir
o sonho, e porque assim provocam em torno de si,
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por meio de efeitos capazes de sempre somar-se uns
aos outros, um riso indefinidamente crescente.
Vamos agora dar mais um passo. Aquilo que a
rigidez da idéia fixa é para o espírito, não serão cer-
tos vícios para o caráter? Mau pendor da natureza ou
contratura da vontade, o vício muitas vezes se asse-
melha a uma curvidade da alma. Sem dúvida há ví-
cios nos quais a alma se instala profundamente com
tudo o que traz em si de pujança fecundante, carre-
gando-os, vivificados, num círculo móvel de transfi-
gurações. Esses são vícios trágicos. Mas o vício que
nos tornará cômicos é, ao contrário, aquele que nos
é trazido de fora como uma moldura pronta na qual
nos inseriremos. Ele nos impõe sua rigidez, em vez
de tomar-nos a maleabilidade. Não o complicamos:
é ele, ao contrário, que nos simplifica. Aí precisamen-
te parece estar – como tentaremos mostrar com por-
menores na última parte deste estudo – a diferença
essencial entre a comédia e o drama. Um drama, mes-
mo quando retrata paixões ou vícios que têm nome,
incorpora-os tão bem na personagem que esses no-
mes são esquecidos, que suas características gerais
se apagam, e que já não pensamos neles, mas sim na
pessoa que os absorve; por isso é que o título de um
drama quase não pode deixar de ser um nome pró-
prio. Ao contrário, muitas comédias têm como nome
um substantivo comum: O avarento, O jogador etc.
Se eu pedir ao leitor que imagine uma peça chama-
da O ciumento, por exemplo,ao seu espírito acudirá
O RISO 11
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Sganarelle, ou George Dandin, mas não Otelo; O ciu-
mento só pode ser título de comédia. É que o vício
cômico pode unir-se às pessoas tão intimamente quan-
to se queira, mas nunca deixará de conservar existên-
cia independente e simples; continua sendo persona-
gem central, invisível e presente, do qual as perso-
nagens de carne e osso ficam suspensas em cena. Às
vezes ele se diverte a arrojá-las com seu peso e fazê-
las rolar consigo ladeira abaixo. Mas na maioria das
vezes as irá tangendo como se tange um instrumen-
to, ou as irá manobrando como títeres. Olhando-se de
perto, ver-se-á que a arte do poeta cômico consiste em
fazer-nos conhecer tão bem esse vício, em introdu-
zir-nos, a nós, espectadores, a tal ponto em sua inti-
midade, que acabamos por obter dele alguns fios da
marionete que ele movimenta; é então nossa vez de
movimentá-la; uma parte de nosso prazer vem daí.
Portanto, também nesse caso, é uma espécie de auto-
matismo que nos faz rir. E é ainda um automatismo
muito próximo da simples distração. Para conven-
cer-se, basta notar que uma personagem cômica ge-
ralmente é cômica na exata medida em que ela se igno-
ra. O cômico é inconsciente. Como se usasse ao con-
trário o anel de Giges, torna-se invisível para si mesmo
ao tornar-se visível para todos. Uma personagem de
tragédia não mudará em nada a sua conduta ao saber
que a julgamos; poderá perseverar nela, mesmo com
a plena consciência do que é, mesmo com o senti-
mento nítido do horror que nos inspira. Mas um de-
12 HENRI BERGSON
RISO002 2/1/08 11:09 AM Page 12
feito ridículo, ao sentir-se ridículo, procura modifi-
car-se, pelo menos exteriormente. Se Harpagon nos
visse rir de sua avareza, eu não digo que se corrigiria,
mas a mostraria menos, ou a mostraria de outro modo.
Podemos dizer desde já: é nesse sentido, sobretudo,
que o riso “castiga os costumes”. Ele nos faz tentar
imediatamente parecer o que deveríamos ser, o que
sem dúvida acabaremos um dia por ser de verdade.
É supérfluo por ora levar adiante esta análise.
Daquele que corre e cai ao ingênuo mistificado, da
mistificação à distração, da distração à exaltação, da
exaltação às diversas deformações da vontade e do
caráter, acabamos de acompanhar o progresso pelo
qual a comicidade se instala cada vez mais profun-
damente na pessoa, sem cessar porém de nos lembrar,
em suas manifestações mais sutis, alguma coisa do
que percebíamos em suas formas mais grosseiras, um
efeito de automatismo e rigidez. Podemos agora ter
uma primeira visão – bem de longe, é verdade, vaga
e confusa ainda – do lado risível da natureza humana
e da função comum do riso.
O que a vida e a sociedade exigem de cada um
de nós é uma atenção constantemente vigilante, a dis-
cernir os contornos da situação presente, é também
certa elasticidade do corpo e do espírito, que nos dê
condições de adaptar-nos a ela. Tensão e elasticida-
de, aí estão duas forças complementares entre si que
a vida põe em jogo. Estão elas gravemente em falta
no corpo? Temos acidentes de todo tipo, deformida-
O RISO 13
RISO002 2/1/08 11:09 AM Page 13
des, doença. No espírito? Temos todos os graus de po-
breza psicológica, todas as variedades da loucura. No
caráter? Temos as inadaptações profundas à vida so-
cial, fontes de miséria, às vezes ensejo para o crime.
Uma vez afastadas essas inferioridades que dizem res-
peito ao lado sério da existência (e tendem a elimi-
nar-se por si mesmas naquilo a que se deu o nome
de luta pela vida), a pessoa pode viver, e viver em
comum com outras pessoas. Mas a sociedade exige
outra coisa ainda. Não lhe basta viver; ela faz ques-
tão de viver bem. O que tem agora por temer é que
cada um de nós, satisfeito em dar atenção àquilo que
concerne ao essencial da vida, se entregue quanto a
todo o resto ao automatismo fácil dos hábitos adqui-
ridos. O que ela deve temer também é que os mem-
bros de que se compõe, em vez de visarem a um equi-
líbrio cada vez mais delicado de vontades que se in-
siram cada vez mais exatamente umas nas outras, se
contentem com respeitar as condições fundamentais
desse equilíbrio: um acordo prévio entre as pessoas
não lhe basta, ela desejaria um esforço constante de
adaptação recíproca. Toda rigidez do caráter, do es-
pírito e mesmo do corpo será então suspeita para a
sociedade, por ser o possível sinal de uma atividade
adormecida e também de uma atividade que se iso-
la, que tende a afastar-se do centro comum em torno
do qual a sociedade gravita, de uma excentricidade
enfim. E no entanto a sociedade não pode intervir nis-
so por meio de alguma repressão material, pois ela não
14 HENRI BERGSON
RISO002 2/1/08 11:09 AM Page 14
está sendo materialmente afetada. Ela está em pre-
sença de algo que a preocupa, mas somente como sin-
toma – apenas uma ameaça, no máximo um gesto.
Será, portanto, com um simples gesto que ela res-
ponderá. O riso deve ser alguma coisa desse tipo, uma
espécie de gesto social. Pelo medo que inspira, o ri-
so reprime as excentricidades, mantém constantemen-
te vigilantes e em contato recíproco certas atividades
de ordem acessória que correriam o risco de isolar-se
e adormecer; flexibiliza enfim tudo o que pode res-
tar de rigidez mecânica na superfície do corpo social.
O riso, portanto, não é da alçada da estética pura, pois
persegue (de modo inconsciente e até imoral em mui-
tos casos particulares) um objetivo útil de aperfeiçoa-
mento geral. Tem algo de estético, todavia, visto que
a comicidade nasce no momento preciso em que a so-
ciedade e a pessoa, libertas do zelo da conservação,
começam a tratar-se como obras de arte. Em suma,
se traçarmos um círculo em torno das ações e dispo-
sições que comprometem a vida individual ou social
e que punem a si mesmas através de suas conseqüên-
cias naturais, fica fora desse terreno de emoção e de
luta, numa zona neutra em que o homem serve sim-
plesmente de espetáculo ao homem, uma certa rigi-
dez do corpo, do espírito e do caráter, que a sociedade
gostaria ainda de eliminar para obter de seus mem-
bros a maior elasticidade e a mais elevada sociabili-
dade possíveis. Essa rigidez é a comicidade, e o riso
é seu castigo.
O RISO 15
RISO002 2/1/08 11:09 AM Page 15
Abstenhamo-nos, porém, de esperar dessa fór-
mula simples uma explicação imediata de todos os
efeitos cômicos. Ela convém por certo a casos ele-
mentares, teóricos, perfeitos, em que a comicidade é
pura, sem mistura alguma. Mas desejamos, acima de
tudo, transformá-la no leitmotiv que acompanhará to-
das as nossas explicações. Cumprirá pensar sempre
nela, mas sem excessiva obstinação – mais ou me-
nos como o bom esgrimista deve pensar nos movi-
mentos descontínuos da lição enquanto seu corpo se
entrega à continuidade do assalto. Agora, é a própria
continuidade das formas cômicas que tentaremos res-
tabelecer, retomando o fio que vai das facécias do pa-
lhaço aos jogos mais refinados da comédia, seguin-
do esse fio em meandros muitas vezes imprevistos,
parando a intervalos para olhar ao redor, remontan-
do, enfim, se possível, ao ponto em que o fio está sus-
penso e de onde se nos mostrará talvez – pois a co-
micidade se equilibra entre a vida e a arte – o nexo
geral entre arte e vida.
III
Comecemos pelo mais simples. O que é uma fi-
sionomia cômica? O que origina a expressão ridícula
do rosto? E o que distingue comicidade e fealdade?
Assim formulada, a pergunta só pode ter sido respon-
dida arbitrariamente. Por mais simples que pareça, é
16 HENRI BERGSON
RISO002 2/1/08 11:09 AM Page 16
já sutil demais para deixar-se abordar de frente. Se-
ria preciso começar definindo a fealdade e depois
procurar o que a comicidade lhe acrescenta: ora, a
fealdade não é muito mais fácil de analisar que a be-
leza. Mas vamos experimentar um artifício que nos
servirá amiúde. Vamosespessar o problema, por as-
sim dizer, engordando o efeito até tornar visível a cau-
sa. Agravemos a fealdade, levando-a até a deformida-
de, e vejamos como se passa do disforme ao ridículo.
É incontestável que certas deformidades têm em
relação às outras o triste privilégio de, em certos ca-
sos, poder provocar o riso. É ocioso entrar em por-
menores. Pedimos apenas ao leitor que passe em re-
vista as deformidades diversas e que depois as divida
em dois grupos: de um lado as que a natureza orien-
tou para o risível e de outro as que fogem absoluta-
mente a ele. Acreditamos que acabará por depreen-
der a seguinte lei: pode tornar-se cômica toda defor-
midade que uma pessoa bem-feita consiga imitar.
Porventura o corcunda não dará a impressão de
portar-se mal? De alguém cujas costas tivessem con-
traído um mau costume? Por obstinação material, por
rigidez, ele persistiria no hábito contraído. Que o lei-
tor tente apenas ver com os olhos. Que não reflita e, so-
bretudo, não raciocine. Que, apagando o que é apren-
dido, saia em busca da impressão primária, imediata,
original. Obterá uma visão desse tipo. De um homem
que quis enrijecer-se em certa atitude e, se nos for per-
O RISO 17
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mitido, de um homem que quis fazer uma careta com
o corpo.
Voltemos agora ao ponto que queríamos esclare-
cer. Atenuando a deformidade risível, deveremos obter
a fealdade cômica. Portanto, uma expressão risível do
rosto será aquela que nos leve a pensar em algo rígi-
do, congelado, por assim dizer, na mobilidade ordi-
nária da fisionomia. Um cacoete consolidado, um es-
gar fixado, eis o que veremos. Alguém dirá que toda
expressão habitual do rosto, mesmo sendo graciosa e
bela, nos dá essa mesma impressão de vezo contraí-
do para sempre. Mas há que se fazer aí uma distinção
importante. Quando falamos de beleza e mesmo de
fealdade expressivas, quando dizemos que um rosto
tem expressão, trata-se de uma expressão estável tal-
vez, mas que adivinhamos móvel. Ela conserva, em
sua fixidez, uma indecisão na qual se desenham con-
fusamente todos os matizes possíveis do estado d’alma
que exprime, tal como as cálidas promessas do dia já
são respiradas em certas manhãs vaporosas de pri-
mavera. Mas uma expressão cômica do rosto é a que
não promete nada mais que aquilo que dá. É um es-
gar único e definitivo. Parece que toda a vida moral
da pessoa se cristalizou em tal sistema. Por isso é
que um rosto é tanto mais cômico quanto mais nos
sugere a idéia de alguma ação simples, mecânica, em
que a personalidade estaria absorvida para todo o sem-
pre. Há rostos que parecem ocupados a chorar o tem-
po todo; outros, a rir ou a assobiar; outros a assoprar
18 HENRI BERGSON
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eternamente uma trombeta imaginária. São os mais
cômicos de todos. Também aí se verifica a lei segun-
do a qual o efeito é mais cômico quando podemos ex-
plicar de modo mais natural a sua causa. Automatis-
mo, rigidez, vezo contraído e mantido: aí está por que
uma fisionomia nos faz rir. Mas esse efeito ganha
intensidade quando podemos vincular tais caracte-
rísticas a uma causa profunda, a certa distração fun-
damental da pessoa, como se a alma se tivesse dei-
xado fascinar, hipnotizar, pela materialidade de uma
ação simples.
Entende-se agora a comicidade da caricatura. Por
mais regular que seja uma fisionomia, por mais har-
moniosa que suponhamos serem suas linhas, por mais
graciosos os movimentos, seu equilíbrio nunca é abso-
lutamente perfeito. Nela sempre se discernirá o indí-
cio de um vezo que se anuncia, o esboço de um esgar
possível, enfim uma deformação preferida na qual se
contorceria a natureza. A arte do caricaturista é cap-
tar esse movimento às vezes imperceptível e, am-
pliando-o, torná-lo visível para todos os olhos. Faz ca-
retear seus modelos como eles mesmos o fariam se
chegassem até o extremo de seu esgar. Adivinha, por
trás das harmonias superficiais da forma, as revoltas
profundas da matéria. Realiza desproporções e defor-
mações que deveriam existir na natureza em estado
de veleidade, mas que não puderam concretizar-se,
porque reprimidas por uma força melhor. Sua arte,
que tem algo de diabólico, reergue o demônio que o
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anjo subjugara. Sem dúvida é uma arte que exagera,
mas define-a muito mal quem lhe atribui o exagero
por objetivo, pois há caricaturas mais parecidas com
o modelo do que o são os retratos, caricaturas nas
quais o exagero mal é perceptível; e, ao contrário, po-
de-se exagerar ao extremo sem obter um verdadeiro
efeito de caricatura. Para ser cômico, o exagero não
pode aparecer como o objetivo, mas como um sim-
ples meio utilizado pelo desenhista para manifestar
aos nossos olhos as contorções que ele vê preparar-se
na natureza. É essa contorção que importa, é ela que
interessa. Por isso será procurada até nos elementos
da fisionomia que são incapazes de movimento, na
curvatura de um nariz e mesmo na forma de uma ore-
lha. É que a forma é, para nós, o desenho de um mo-
vimento. O caricaturista que altera a dimensão de um
nariz, mas que respeita seu formato, que o prolonga,
por exemplo, no mesmo sentido em que já o prolon-
gava a natureza, de fato está fazendo esse nariz care-
tear: a partir de então nos parecerá que o original tam-
bém quis prolongar-se e fazer a careta. Nesse senti-
do, pode-se dizer que a própria natureza tem muitas
vezes o sucesso de um caricaturista. No movimento
com que fendeu certa boca, estreitou um queixo, in-
chou uma bochecha, parece que conseguiu ir até o
extremo de seu esgar, iludindo a vigilância modera-
dora de uma força mais racional. Rimos então de um
rosto que é em si mesmo, por assim dizer, sua pró-
pria caricatura.
20 HENRI BERGSON
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Em resumo, seja qual for a doutrina à qual nos-
sa razão adira, nossa imaginação tem sua filosofia
inabalável: em toda forma humana ela percebe o es-
forço de uma alma a modelar a matéria, alma infini-
tamente maleável, eternamente móvel, livre da gra-
vidade porque não é a terra que a atrai. De sua leve-
za alada essa alma comunica alguma coisa ao corpo
que anima: a imaterialidade que passa assim para a
matéria é aquilo a que se dá o nome de graça. Mas
a matéria resiste e obstina-se. Puxa tudo para si, gos-
taria de converter à sua própria inércia e fazer dege-
nerar em automatismo a atividade sempre desperta
desse princípio superior. Gostaria de fixar os movi-
mentos inteligentemente variados do corpo em vezos
estupidamente incorporados, solidificar em esgares
duradouros as expressões móveis da fisionomia, im-
primir enfim a toda a pessoa uma atitude tal que a
faça parecer imersa e absorvida na materialidade de
alguma ocupação mecânica, em vez de se renovar in-
cessantemente em contato com um ideal vivo. Quan-
do a matéria consegue espessar assim exteriormente
a vida da alma, congelar seu movimento e contrariar
sua graça, obtém um efeito cômico do corpo. Se, pois,
quiséssemos definir aqui a comicidade aproximando-a
de seu contrário, caberia opô-la à graça, mais do que
à beleza. É mais rigidez que fealdade.
O RISO 21
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IV
Vamos passar do cômico das formas ao dos ges-
tos e movimentos. Enunciaremos desde já a lei que
nos parece governar os fatos desse gênero. Ela é dedu-
zida sem dificuldade das considerações que acaba-
mos de ler.
As atitudes, os gestos e os movimentos do corpo
humano são risíveis na exata medida em que esse cor-
po nos faz pensar numa simples mecânica.
Não seguiremos essa lei nas minúcias de suas
aplicações imediatas. Elas são inúmeras. Para verifi-
cá-la diretamente, bastaria estudar de perto a obra dos
desenhistas cômicos, sem considerar a caricatura, à
qual dedicamos uma explicação especial, e deixando
de lado também a parcela de comicidade que não se-ja inerente ao desenho em si. Pois não nos enganemos:
a comicidade do desenho é muitas vezes uma comi-
cidade de empréstimo, cujo principal cabedal está na
literatura. Queremos dizer que o desenhista pode ser
ao mesmo tempo um autor satírico e até um autor de
vaudeville, e que rimos bem menos dos desenhos em
si do que da sátira ou da cena de comédia que ali es-
tá representada. Mas, se nos ativermos ao desenho com
a firme vontade de só pensar no desenho, descobri-
remos, assim nos parece, que o desenho geralmente é
cômico na medida da nitidez e também da discrição
com que nos leva a ver no homem um fantoche arti-
culado. É preciso que essa sugestão seja nítida, e que
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percebamos claramente, como por transparência, um
mecanismo desmontável dentro da pessoa. Mas tam-
bém é preciso que a sugestão seja discreta, e que o
conjunto da pessoa, na qual cada membro foi enrije-
cido em peça mecânica, continue a nos dar a impres-
são de um ser que está vivo. O efeito cômico será mais
marcante, a arte do desenhista será mais consumada
quanto mais inseridas estas duas imagens estiverem
uma na outra: a imagem de pessoa e a de mecanismo.
E a originalidade de um desenhista cômico poderia
ser definida pelo tipo específico de vida que ele co-
munique a um simples fantoche.
Mas deixaremos de lado as aplicações imediatas
do princípio e aqui só insistiremos em conseqüências
mais remotas. A visão de um mecanismo a funcio-
nar dentro da pessoa é coisa que abre para uma mul-
tidão de efeitos engraçados; no mais das vezes, po-
rém, é visão fugaz, que se perde logo em seguida no
riso que provoca. É preciso um esforço de análise e
reflexão para fixá-la.
Vejamos por exemplo, num orador, o gesto a ri-
valizar com a palavra. Com ciúme da palavra, o ges-
to corre atrás do pensamento e exige servir também
de intérprete. Vá lá; mas que se restrinja então a se-
guir o pensamento nas minúcias de suas evoluções.
Idéia é coisa que cresce, brota, floresce, amadurece, do
começo ao fim do discurso. Nunca pára, nunca se re-
pete. Precisa mudar a todo instante, pois parar de mu-
dar seria parar de viver. Que o gesto, pois, se anime
O RISO 23
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como ela! Que aceite a lei fundamental da vida, que
é jamais se repetir! Mas eis que certo movimento do
braço ou da cabeça, sempre o mesmo, parece-me vol-
tar periodicamente. Se observar se ele basta para me
distrair, se o espero e se ele chega quando o espero, rio
involuntariamente. Por quê? Porque tenho agora dian-
te de mim um mecanismo que funciona automatica-
mente. Já não é vida, é automatismo instalado na vi-
da, imitando a vida. É comicidade.
Por isso certos gestos, dos quais não pensamos
em rir, tornam-se risíveis quando alguém os imita.
Houve quem buscasse explicações bem complicadas
para esse fato simplíssimo. Por menos que se reflita,
ver-se-á que nossos estados d’alma mudam a todo ins-
tante, e que, se nossos gestos seguissem fielmente
nossos movimentos interiores, se vivessem como vi-
vemos, não se repetiriam: por isso, desafiariam qual-
quer imitação. Portanto, só começamos a ser imitáveis
quando deixamos de ser nós mesmos. Quero dizer que
de nossos gestos só pode ser imitado o que eles têm
de mecanicamente uniforme e, por isso mesmo, de es-
tranho à nossa personalidade viva. Imitar uma pessoa
é depreender a parcela de automatismo que esta dei-
xou introduzir-se em si. Logo, por definição mesmo,
é torná-la cômica, e não é de surpreender que a imi-
tação provoque o riso.
Mas, se já é risível por si mesma, a imitação dos
gestos provoca ainda mais riso quando se empenha
em inflectir os gestos, sem os deformar, no sentido de
24 HENRI BERGSON
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alguma operação mecânica, como por exemplo de ser-
rar madeira, bater numa bigorna ou puxar incansavel-
mente um cordão de campainha imaginária. Não que
a vulgaridade seja a essência da comicidade (embo-
ra certamente faça parte dela), mas é que o gesto per-
cebido parece mais francamente maquinal quando po-
de ser vinculado a uma operação simples, como se
estivesse destinado a ser mecânico. Sugerir essa in-
terpretação mecânica deve ser um dos procedimentos
favoritos da paródia. Acabamos de fazer uma dedu-
ção a priori, mas os cômicos certamente têm intuição
disso há muito tempo.
Assim se resolve o pequeno enigma proposto por
Pascal num trecho de seus Pensamentos: “Dois ros-
tos semelhantes, que não provocam riso separadamen-
te, fazem rir quando juntos, devido à sua semelhança.”
Diríamos também: “Os gestos de um orador, que não
provocam riso separadamente, fazem rir devido à sua
repetição.” É que a vida bem viva não deveria repe-
tir-se. Quando há repetição, similitude completa, sus-
peitamos do mecanismo a funcionar por trás do que
está vivo. Que o leitor analise sua impressão diante
de dois rostos que se assemelhem demais: pensará
em dois exemplares tirados de um mesmo molde,
ou em duas impressões do mesmo cunho, ou em duas
reproduções do mesmo clichê; enfim, num procedi-
mento de fabricação industrial. Essa inflexão da vida
na direção da mecânica é a verdadeira causa do riso.
O RISO 25
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E o riso será bem mais intenso ainda se não nos
forem apresentadas em cena apenas duas persona-
gens, como no exemplo de Pascal, porém várias, o
maior número possível, todas semelhantes, persona-
gens que vão e vêm, dançam, mexem-se juntas, assu-
mindo ao mesmo tempo as mesmas atitudes, gesti-
culando da mesma maneira. Aí pensaremos distinta-
mente em marionetes. Fios invisíveis nos parecerão
interligar os braços de uma aos de outra, as pernas de
uma às de outra, cada músculo de uma fisionomia ao
músculo análogo da outra: a inflexibilidade da corres-
pondência faz que a maleabilidade das formas se soli-
difique por si mesma diante de nossos olhos e que
tudo endureça em mecanismos. Tal é o artifício des-
se divertimento um tanto grosseiro. Os que o executam
talvez não tenham lido Pascal, mas com certeza o que
fazem é tão-somente levar ao extremo uma idéia que o
texto de Pascal sugere. E, se no segundo caso a causa
do riso é a visão de um efeito mecânico, ela já deve-
ria sê-lo, porém mais sutilmente, no primeiro.
Continuando agora por essa via, percebemos con-
fusamente conseqüências cada vez mais remotas, ca-
da vez mais importantes também, da lei que acabamos
de formular. Pressentimos visões ainda mais fugazes
de efeitos mecânicos, visões sugeridas pelas ações
complexas do homem e não já simplesmente por seus
gestos. Adivinhamos que os artifícios usuais da co-
média, a repetição periódica de uma palavra ou de uma
cena, a inversão simétrica dos papéis, o desenvolvi-
26 HENRI BERGSON
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mento geométrico dos qüiproquós e muitos outros jo-
gos poderão extrair força cômica da mesma fonte, con-
sistindo talvez a arte do autor de vaudeville em nos
apresentar uma articulação visivelmente mecânica de
acontecimentos humanos ao mesmo tempo que con-
serva seu aspecto exterior de verossimilhança, ou se-
ja, a flexibilidade aparente da vida. Mas não anteci-
pemos resultados que o progresso da análise deverá ir
depreendendo metodicamente.
V
Antes de irmos mais longe, convém descansar por
um momento e olhar ao redor. Já pressentíamos no
início deste trabalho: seria quimérico querer extrair
todos os efeitos cômicos de uma única fórmula sim-
ples. A fórmula existe, sim, em certo sentido; mas não
se desenrola regularmente. Queremos dizer que a de-
dução deve deter-se de vez em quando em alguns efei-
tos dominantes, e que esses efeitos aparecem, cada
um deles, como modelos em torno dos quais se dis-
põem, em círculo, novos efeitos que se lhes asseme-
lham. Estes últimos não se deduzem da fórmula, mas
são cômicos por terem parentesco com os que dela
são deduzidos. Para citar Pascalmais uma vez, defi-
niremos aqui a marcha do espírito com a curva que
esse geômetra estudou com o nome de roleta, a curva
descrita por um ponto da circunferência de uma ro-
O RISO 27
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da quando o carro avança em linha reta: esse ponto
gira como a roda, mas também avança como o car-
ro. Ou então pensaremos numa grande estrada a cor-
tar florestas, com cruzamentos ou encruzilhadas que
a demarcam a espaços: a cada encruzilhada daremos
uma volta no cruzamento, faremos um reconhecimen-
to dos caminhos que se abrem, e após isso voltaremos
à direção inicial. Estamos numa dessas encruzilhadas.
Mecânico sobreposto ao vivo, eis um cruzamento on-
de é preciso parar, imagem central a partir da qual a
imaginação irradia em direções divergentes. Quais são
essas direções? Percebemos três principais. Vamos se-
gui-las uma após a outra, e depois retomaremos nosso
caminho em linha reta.
I. Em primeiro lugar, essa visão de mecânica e
vida inseridas uma na outra nos faz tomar um cami-
nho oblíquo rumo à imagem mais vaga de uma rigi-
dez qualquer aplicada sobre a mobilidade da vida,
tentando desajeitadamente seguir suas linhas e imitar
sua flexibilidade. Adivinhamos então como é fácil
que um traje se torne ridículo. Poderíamos quase di-
zer que toda moda é risível por algum motivo. Mas,
quando se trata da moda atual, estamos tão habitua-
dos a ela que o traje nos parece formar um corpo só
com os corpos que o vestem. Nossa imaginação não
destaca um do outro. Já não nos ocorre a idéia de opor
a rigidez inerte do envoltório à flexibilidade viva do
objeto envolvido. Portanto, aí a comicidade está em
28 HENRI BERGSON
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estado latente. No máximo conseguirá emergir quan-
do a incompatibilidade natural for tão profunda entre
o que envolve e o que é envolvido que uma aproxi-
mação, ainda que secular, não conseguirá consolidar
sua união: esse é o caso da cartola, por exemplo. Mas
suponhamos um originalão que se vista hoje de acor-
do com a moda de antigamente: nossa atenção recai
sobre o traje, nós o distinguimos absolutamente da
pessoa, dizemos que a pessoa está fantasiada (como
se toda roupa não fosse uma fantasia), e o lado risível
da moda passa da sombra à luz.
Começamos a entrever aqui algumas das grandes
dificuldades de detalhe que o problema da comici-
dade suscita. Uma das razões que devem ter inspira-
do muitas teorias errôneas ou insuficientes acerca do
riso é que muitas coisas são cômicas de direito sem
o serem de fato, uma vez que a continuidade do uso
extinguiu nelas a virtude cômica. É preciso uma so-
lução brusca de continuidade, uma ruptura com a
moda, para que essa virtude ressurja. Acredita-se en-
tão que essa solução de continuidade dá origem à co-
micidade, ao passo que ela se limita a nos fazer no-
tá-la. O riso é então explicado pela surpresa, pelo con-
traste etc., definições que se aplicariam também a
uma infinidade de casos diante dos quais não temos
nenhuma vontade de rir. A verdade não é tão simples.
Mas eis que chegamos à idéia de fantasia ou dis-
farce. Como acabamos de mostrar, ela tem de pleno
O RISO 29
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direito o poder de fazer rir. Não será em vão que pro-
curaremos saber como o utiliza.
Por que rimos de uma cabeleira que passou do
castanho ao loiro? De onde provém a comicidade de
um nariz rubicundo? E por que se ri de um negro?
Pergunta difícil, parece, pois psicólogos como Hecker,
Kraepelin e Lipps a formularam e a responderam de
maneiras diferentes. Não sei, porém, se ela não foi
respondida certo dia diante de mim, na rua, por um
simples cocheiro, que tachava de “mal lavado” o clien-
te negro sentado em sua carruagem. Mal lavado! Um
rosto negro seria portanto, para nossa imaginação,
um rosto lambuzado de tinta ou de fuligem. E, con-
seqüentemente, um nariz vermelho só pode ser um
nariz sobre o qual foi passada uma camada de ver-
melhão. Portanto, o disfarce passou algo de sua vir-
tude cômica para outros casos em que não há disfar-
ce, mas poderia haver. Há pouco, o traje habitual não
conseguia distinguir-se da pessoa; parecia formar um
só corpo com ela, porque estávamos acostumados a
vê-lo. Agora, a coloração negra ou vermelha não con-
segue ser inerente à pele: nós a consideramos sobre-
posta artificialmente, porque nos surpreende.
Donde, é verdade, uma nova série de dificuldades
para a teoria da comicidade. Uma frase como esta:
“minhas roupas habituais fazem parte do meu cor-
po”, é absurda para a razão. No entanto, a imagina-
ção a tem por verdadeira. “Um nariz vermelho é um
nariz pintado”, “um negro é um branco disfarçado”,
30 HENRI BERGSON
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absurdos também para a razão que raciocina, mas ver-
dades certíssimas para a simples imaginação. Há, pois,
uma lógica da imaginação que não é a lógica da ra-
zão, que até se opõe a ela às vezes, mas com a qual
a filosofia precisará contar, não só para o estudo da
comicidade como também para outras investigações
da mesma ordem. É algo como a lógica do sonho, mas
de um sonho que não estaria entregue ao capricho da
fantasia individual, visto ser o sonho sonhado pela so-
ciedade inteira. Para reconstituí-la, é necessário um
esforço de um gênero particular, graças ao qual ergue-
remos a crosta exterior de juízos bem firmados e de
idéias solidamente assentadas, para vermos escoar no
fundo de nós mesmos, qual lençol de água subterrâ-
nea, certa continuidade fluida de imagens que entram
umas nas outras. Essa interpenetração das imagens
não ocorre a esmo. Obedece a leis, ou melhor, a há-
bitos, que estão para a imaginação assim como a ló-
gica está para o pensamento.
Sigamos, pois, essa lógica da imaginação no ca-
so particular que nos ocupa. Um homem que se fan-
tasia é cômico. Um homem que parece fantasiado é
cômico também. Por extensão, todo disfarce será cô-
mico, não só o do homem, mas também o da socieda-
de, e até o da natureza.
Comecemos pela natureza. Rimos de um cão to-
sado pela metade, de um canteiro de flores artificial-
mente coloridas, de um bosque cujas árvores estão
forradas de cartazes eleitorais etc. Busquemos a ra-
O RISO 31
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zão e veremos que pensamos numa mascarada. Mas
a comicidade, aqui, está bem atenuada. Está por de-
mais distante da fonte. Queremos reforçá-la? Será
preciso remontar à fonte, reconduzir a imagem deri-
vada, de mascarada, à imagem primitiva, que era, se
bem nos lembramos, a de arremedo mecânico da vi-
da. Uma natureza arremedada mecanicamente: esse
é então um motivo francamente cômico, sobre o qual
a imaginação poderá executar variações com a cer-
teza de obter grande sucesso em matéria de riso. To-
dos se lembram do trecho tão engraçado de Tartarin
sur les Alpes1, em que Bompard leva Tartarin (e por-
tanto, de certa forma, o leitor também) a acreditar na
idéia de que a Suíça é movida por maquinismos, co-
mo os porões da Ópera, explorada por uma compa-
nhia que ali mantém cascatas, geleiras e falsas fen-
das. O mesmo motivo outra vez, mas transposto pa-
ra outro tom bem diferente, está em Novel Notes do
humorista inglês Jerome K. Jerome. Uma velha cas-
telã, não querendo que suas boas obras lhe dêem tra-
balho demais, manda alojar nas proximidades de sua
morada, para serem convertidos, ateus fabricados ex-
pressamente para ela, bem como uma gente boa que
fora transformada num bando de bêbados para que
ela pudesse curar-lhes o vício etc. Há palavras cômi-
cas nas quais esse motivo se encontra em estado de
32 HENRI BERGSON
1. Um dos romances da trilogia Tartarin de Tarascon, de Alphonse
Daudet. (N. da T.)
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distante ressonância, misturado a uma ingenuidade,
sincera ou fingida, que lhe serve de acompanhamen-
to. Por exemplo, as palavras de uma dama que, con-
vidada pelo astrônomo Cassinipara ir ver um eclipse
da lua, chegou tarde e disse: “O senhor de Cassini
bem poderia recomeçar para mim.” Ou ainda esta ex-
clamação de uma personagem de Gondinet, ao che-
gar a uma cidade e ficar sabendo que existia um vul-
cão extinto nas redondezas: “Tinham um vulcão, e o
deixaram apagar-se!”
Passemos à sociedade. Vivendo nela, vivendo por
ela, não podemos abster-nos de tratá-la como um ser
vivo. Risível será, portanto, uma imagem que nos su-
gira a idéia de uma sociedade fantasiada e, por as-
sim dizer, de uma mascarada social. Ora, essa idéia
se forma logo que percebemos o que há de inerte, de
pronto, de confeccionado enfim, na superfície da so-
ciedade viva. É rigidez outra vez, e que destoa da fle-
xibilidade interior da vida. O lado cerimonioso da vida
social deverá, pois, conter uma comicidade latente, que
só precisará de uma oportunidade para vir à luz. Po-
de-se dizer que as cerimônias estão para o corpo social
como o traje está para o corpo individual: sua gravi-
dade se deve ao fato de se identificarem, para nós,
com o objeto sério ao qual o uso as vincula, e per-
dem essa gravidade assim que nossa imaginação as
isola dele. Desse modo, para que uma cerimônia se
torne cômica, basta que nossa atenção se concentre
no que ela tem de cerimonioso, e que desprezemos
O RISO 33
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sua matéria, como dizem os filósofos, para só pensar
em sua forma. É ocioso insistir nesse ponto. Todos
sabem com que facilidade a invenção cômica é exer-
cida sobre os atos sociais que têm forma imutável,
desde a simples distribuição de condecorações até uma
sessão de tribunal. São formas e fórmulas, molduras
prontas onde a comicidade se inserirá.
Mas ainda aqui cabe acentuar a comicidade apro-
ximando-a de sua fonte. Da idéia de fantasia ou dis-
farce, que é derivada, será preciso remontar então à
idéia primitiva, de um mecanismo sobreposto à vi-
da. A própria forma compassada de todo cerimonial
nos sugere uma imagem desse tipo. Assim que es-
quecemos a seriedade do objeto de uma solenidade
ou de uma cerimônia, os que tomam parte dela pro-
duzem em nós efeito de marionetes. Sua mobilidade
se regra pela imobilidade de uma fórmula. É auto-
matismo. Mas automatismo perfeito será, por exem-
plo, o do funcionário que funciona como simples má-
quina, ou ainda a inconsciência de um regulamento
administrativo que se aplica com fatalidade inexorá-
vel e é tido por lei da natureza. Há já alguns anos, um
paquete naufragou nas proximidades de Dieppe. Al-
guns passageiros foram resgatados com grande difi-
culdade por uma embarcação. Alguns inspetores de
alfândega, que se haviam comportado bravamente no
resgate, começaram por perguntar “se não tinham na-
da que declarar”. Vejo certa analogia, embora a idéia
seja mais sutil, nestas palavras de um deputado que in-
34 HENRI BERGSON
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terpelava o ministro no dia seguinte a um crime co-
metido na ferrovia: “O assassino, depois de matar a
vítima, deve ter descido do trem pelo lado contrário ao
da estação, violando os regulamentos administrativos.”
Um mecanismo inserido na natureza, uma regu-
lamentação automática da sociedade, esses são, em
suma, os dois tipos de efeitos engraçados aos quais
chegamos. Resta-nos, para concluir, combiná-los e ver
o que resulta.
O resultado da combinação será, evidentemente,
a idéia de regulamentação humana a substituir as leis
da natureza. Lembramos a resposta de Sganarelle a
Géronte, quando este lhe observa que o coração fica
do lado esquerdo, e o fígado, do lado direito: “Sim,
antigamente era assim, mas nós mudamos tudo isso,
e agora praticamos a medicina segundo um método
totalmente novo.” E o conselho dos dois médicos de
Pourceaugnac2: “O seu raciocínio é tão douto e bo-
nito que é impossível que o doente não seja melan-
cólico hipocondríaco; e, mesmo que não fosse, seria
preciso que se tornasse, pela beleza das coisas que o
senhor disse e a justeza do raciocínio que teceu.” Po-
deríamos multiplicar os exemplos; bastaria pôr a des-
filar diante de nós, um após outro, todos os médicos
de Molière. Por mais longe, aliás, que aqui pareça ir
a invenção cômica, a realidade às vezes se encarre-
O RISO 35
2. Monsieur de Pourceaugnac, comédia de Molière. (N. da T.)
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ga de ultrapassá-la. Um filósofo contemporâneo, ar-
gumentador extremado, a quem alguém lembrava que
seus raciocínios irrepreensivelmente deduzidos tinham
contra si a experiência, pôs fim à discussão com es-
ta simples frase: “A experiência está errada.” É que
a idéia de regrar administrativamente a vida é mais
difundida do que se pensa; ela é natural à sua manei-
ra, embora tenhamos acabado de obtê-la por um pro-
cedimento de reconstituição. Poderíamos dizer que
ela nos apresenta a quintessência mesma do pedan-
tismo, que no fundo outra coisa não é senão a arte
que pretende dar lições à natureza.
Assim, em resumo, o mesmo efeito vai sempre
se sutilizando, desde a idéia de mecanização artifi-
cial do corpo humano, se assim pudermos nos ex-
pressar, até a de uma substituição qualquer do natu-
ral pelo artificial. Uma lógica cada vez menos rigo-
rosa, que se assemelha cada vez mais à lógica dos
sonhos, transporta a mesma relação para esferas ca-
da vez mais altas, entre termos cada vez mais imate-
riais, e um regulamento administrativo acaba sendo
para uma lei natural ou moral, por exemplo, o que a
roupa confeccionada é para o corpo vivo. Das três
direções pelas quais devíamos enveredar, seguimos
agora a primeira até o fim. Passemos à segunda e
vejamos aonde nos conduz.
II. O mecânico sobreposto ao vivo: esse é ainda
nosso ponto de partida. De onde provém a comici-
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dade? Do fato de o corpo vivo enrijecer-se como má-
quina. Parecia-nos, portanto, que o corpo vivo deve-
ria ser a flexibilidade perfeita, a atividade sempre aler-
ta de um princípio sempre em ação. Mas essa ativi-
dade pertenceria realmente à alma, e não ao corpo.
Seria a própria chama da vida, iluminada em nós por
um princípio superior e entrevista através do corpo
por um efeito de transparência. Quando no corpo vi-
vo só vemos graça e flexibilidade, é porque despre-
zamos o que nele há de pesado, de resistente, de ma-
terial enfim; esquecemos sua materialidade para só
pensar em sua vitalidade, vitalidade que nossa ima-
ginação atribui ao princípio mesmo da vida intelec-
tual e moral. Suponhamos que nos chamem a aten-
ção para essa materialidade do corpo. Suponhamos
que, em vez de participar da leveza do princípio que
o anima, o corpo não passe, para nós, de um envol-
tório pesado e enleante, lastro importuno que pren-
de ao chão uma alma impaciente por deixar o solo.
Então o corpo se tornará para a alma o que a roupa
era há pouco para o próprio corpo: matéria inerte pos-
ta sobre uma energia viva. E a impressão de comici-
dade ocorrerá tão logo tenhamos o claro sentimento
dessa superposição. E a teremos sobretudo quando
nos mostrarem a alma atenazada pelas necessidades
do corpo – de um lado a personalidade moral com sua
energia inteligentemente variada; de outro, o corpo
estupidamente monótono, a intervir e interromper com
sua obstinação de máquina. Quanto mais mesquinhas
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e uniformemente repetidas forem essas exigências do
corpo, mais impressionante será o efeito. Mas é ape-
nas uma questão de grau, e a lei geral desses fenôme-
nos poderia ser assim formulada: É cômico todo inci-
dente que chame nossa atenção para o físico de uma
pessoa quando o que está em questão é o moral.
Por que se ri de um orador que espirra no momen-
to mais patético de seu discurso? De onde provém a
comicidade desta frase de oração fúnebre, citada por
um filósofo alemão: “Ele era virtuoso e reto”? Do fa-
to de nossa atenção ser bruscamente levadada alma
para o corpo. Abundam exemplos na vida cotidiana.
Mas quem não quiser se dar ao trabalho de procurá-
los, poderá abrir ao acaso um volume de Labiche.
Topará freqüentemente com efeitos desse tipo. Uma
vez é um orador cujos mais belos períodos são cor-
tados pelas alfinetadas de um dente enfermo; de ou-
tra é alguém que nunca toma a palavra sem interrom-
per-se para queixar-se dos sapatos apertados demais
ou do cinto muito justo etc. Uma pessoa estorvada
pelo próprio corpo, essa é a imagem que nos sugerem
esses exemplos. Se a retidão excessiva é risível, isso
ocorre por trazer à mente uma imagem desse tipo. É
também o que às vezes torna a timidez um tanto ridí-
cula. O tímido pode dar a impressão de ser uma pes-
soa enleada pelo próprio corpo, alguém que procura
em torno de si um lugar para depositá-lo.
Por isso, o poeta trágico tem o cuidado de evitar
tudo o que possa chamar nossa atenção para a mate-
38 HENRI BERGSON
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rialidade de seus heróis. Tão logo intervenha a preo-
cupação com o corpo, é de se temer uma infiltração
cômica. Por esse motivo, o herói de tragédia não be-
be, não come, não se aquece. Sempre que possível, até
não se senta. Sentar-se em meio a uma tirada seria
lembrar que existe um corpo. Napoleão, que era psi-
cólogo nas horas vagas, notara que se passa da tragé-
dia à comédia só com sentar-se. Vejamos como ele se
expressa a respeito no Diário inédito do barão Gour-
gaud (trata-se de uma entrevista com a rainha da Prús-
sia depois de Iena): “Ela me recebeu com um tom trá-
gico, como Ximena: Majestade, justiça! Justiça! Mag-
deburgo! E continuava nesse tom, que me deixava
muito embaraçado. Por fim, para fazê-la mudar, eu a
convidei a sentar-se. Nada melhor para cortar uma
cena trágica; pois, quando nos sentamos, tudo vira
comédia.”
Agora ampliemos essa imagem: o corpo sobre-
pujando a alma. Obteremos algo mais geral: a for-
ma querendo impor-se ao fundo, a letra chicanean-
do o espírito. Não seria essa a idéia que a comédia
procura sugerir-nos quando ridiculiza uma profissão?
Nela o advogado, o juiz e o médico falam como se a
saúde e a justiça pouco importassem, sendo essencial
que haja médicos, advogados e juízes, e que as formas
exteriores da profissão sejam respeitadas escrupulo-
samente. Assim, os meios substituem os fins, a for-
ma substitui o fundo, e não mais a profissão é feita
para o público, porém o público para a profissão. A
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preocupação constante com a forma, a aplicação ma-
quinal das regras criam uma espécie de automatismo
profissional, comparável ao automatismo que os há-
bitos do corpo impõem à alma e tão risível como es-
te. São abundantes os exemplos disso em teatro. Sem
entrar nos pormenores das variações sobre esse te-
ma, citaremos dois ou três textos em que o próprio
tema é definido em toda a sua simplicidade: “Somos
obrigados a tratar as pessoas somente nas formas”, diz
Diaforius no Doente imaginário. E Bahis, em Amor
médico: “É melhor morrer de acordo com as regras
do que salvar-se contrariando as regras.” “É preciso
sempre observar as formalidades, aconteça o que
acontecer”, dizia já Desfonandrès na mesma comé-
dia. E seu confrade Tomès explicava por quê: “Um
homem morto não passa de um homem morto, mas
uma formalidade negligenciada causa notável pre-
juízo a toda a categoria dos médicos.” A frase de
Brid’oison, para resumir uma idéia um pouco dife-
rente, não é menos significativa: “A forma, senhores,
a forma. Alguém ri de um juiz que, em trajes comuns,
treme simplesmente por ver um procurador envergan-
do toga. A forma, a forma.” Mas aqui se apresenta a
primeira aplicação de uma lei que se mostrará cada
vez mais claramente à medida que avançarmos em
nosso trabalho. Quando o músico emite uma nota
num instrumento, surgem espontaneamente outras no-
tas que, sendo menos sonoras que a primeira e es-
tando ligadas a ela por certas relações definidas, im-
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primem-lhe um timbre por se lhe somarem: como se
diz em física, são os harmônicos do som fundamen-
tal. Não poderia ocorrer que a imaginação cômica,
mesmo em suas invenções mais extravagantes, obe-
deça a uma lei do mesmo gênero? Consideremos por
exemplo esta nota cômica: a forma querendo sobre-
pujar-se ao fundo. Se nossas análises estiverem cor-
retas, seu harmônico deverá ser esta outra: o corpo
atenazando o espírito, o corpo impondo-se ao espí-
rito. Portanto, assim que o poeta cômico emitir a pri-
meira nota, acrescentará a segunda de modo instinti-
vo e involuntário. Em outros termos, somará algum
ridículo físico ao ridículo profissional.
Quando o juiz Brid’oison entra em cena gague-
jando, não nos estará preparando, com sua gagueira,
para compreender o fenômeno de cristalização inte-
lectual cujo espetáculo nos oferecerá? Que secreto pa-
rentesco vinculará esse defeito físico àquela debilida-
de moral? Talvez fosse preciso que essa máquina de
julgar nos aparecesse ao mesmo tempo como uma má-
quina de falar. Em todo caso, nenhum outro harmô-
nico poderia completar melhor o som fundamental. 
Quando Molière nos apresenta os dois doutores
ridículos de Amor médico, Bahis e Macroton, um dos
dois fala bem devagar, escandindo seu discurso sílaba
por sílaba, enquanto o outro tartamudeia. O mesmo
contraste há entre os dois advogados do Monsieur de
Pourceaugnac. Ordinariamente, é no ritmo da fala
que reside a singularidade física destinada a comple-
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tar o ridículo profissional. E, quando o autor não indi-
ca um defeito desse tipo, o ator raramente não procu-
ra compô-lo de modo instintivo.
Há, portanto, um parentesco natural, naturalmen-
te reconhecido, entre essas duas imagens que estamos
aproximando uma da outra, o espírito a imobilizar-se
em certas formas, o corpo a enrijecer-se segundo cer-
tos defeitos. Quer nossa atenção seja desviada do fun-
do para a forma ou do moral para o físico, a mesma
impressão é transmitida à nossa imaginação nos dois
casos; é, nos dois casos, o mesmo tipo de comicidade.
Também aqui quisemos seguir fielmente uma direção
natural do movimento da imaginação. Essa direção,
cabe lembrar, era a segunda daquelas que se nos apre-
sentaram a partir de uma imagem central. Uma ter-
ceira e última via continua aberta. É por ela que vamos
agora enveredar.
III. Voltemos uma última vez à nossa imagem
central: do mecânico sobreposto ao vivo. O ser vivo
de que falávamos era um ser humano, uma pessoa.
O dispositivo mecânico é, ao contrário, uma coisa.
Portanto, o que provocava o riso era a transfiguração
momentânea de uma pessoa em coisa, se quisermos
olhar a imagem por esse lado. Passemos então da
idéia precisa de mecânica à idéia mais vaga de coisa
em geral. Teremos uma nova série de imagens risíveis
que serão obtidas, por assim dizer, esbatendo-se os
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contornos das primeiras, e que conduzirão a esta no-
va lei: Rimos sempre que uma pessoa nos dá a impres-
são de coisa.
Rimos de Sancho Pança posto sobre uma cober-
ta e lançado para o ar como uma bola. Rimos do ba-
rão de Münchhausen transformado em bala de canhão
a caminhar através do espaço. Mas talvez certos exer-
cícios dos palhaços de circo possibilitem uma veri-
ficação mais precisa da mesma lei. Seria preciso, é
verdade, fazer abstração das facécias com que o pa-
lhaço enriquece seu tema principal e só ficar com o
próprio tema, ou seja, as atitudes, as cabriolas e os
movimentos que constituem o que há de propriamen-
te “palhaçal” na arte do palhaço. Apenas duas vezes
pude observar esse tipo de comicidade em estado pu-
ro, e nos dois casos tive a mesma impressão. Da pri-
meira vez, os palhaços iam, vinham, davam-se en-
contrões, caíam e ricocheteavam, segundo um ritmo
uniformemente acelerado,com a visível preocupa-
ção de criar um crescendo. E, cada vez mais, era para
o ricochete que a atenção do público se voltava. Aos
poucos, perdia-se de vista que aqueles eram homens
de carne e osso. Pensava-se em pacotes, que se dei-
xavam cair e entrechocar-se. Depois, a visão ia fican-
do mais precisa. As formas pareciam arredondar-se,
os corpos pareciam rolar e embolar-se. Por fim, apa-
recia a imagem para a qual toda aquela cena evoluía,
por certo inconscientemente: bolas de borracha, lan-
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çadas em todos os sentidos umas contra as outras. –
A segunda cena, ainda mais grosseira, não foi menos
instrutiva. Apareceram duas personagens, de cabeça
enorme e crânio inteiramente calvo. Vinham armadas
com grandes pedaços de pau. E uma de cada vez dei-
xava cair o pedaço de pau sobre a cabeça da outra.
Também nesse caso observava-se uma gradação. A
cada golpe recebido, os corpos pareciam ficar mais
pesados, imobilizar-se, invadidos por uma rigidez
crescente. A reação voltava cada vez mais atrasada,
cada vez mais pesada e repercutente. Os crânios res-
soavam formidavelmente na sala silenciosa. Por fim,
rígidos e lentos, retos como um I, os dois corpos pen-
deram um para o outro, os pedaços de pau se abate-
ram pela última vez sobre as cabeças com um ruído
de martelos enormes caindo sobre vigas de carvalho,
e tudo foi ao chão. Naquele momento apareceu com
nitidez a sugestão que os dois artistas haviam gra-
dualmente introduzido na imaginação dos especta-
dores: “Vamos virar, viramos manequins de madeira
maciça.”
Um obscuro instinto pode levar os espíritos in-
cultos a pressentir alguns dos mais sutis resultados
da ciência psicológica. Sabe-se que, por simples su-
gestão, é possível evocar visões alucinatórias num
indivíduo hipnotizado. Se lhe disserem que há um
pássaro pousado sobre sua mão, ele verá o pássaro e
o verá sair voando. Mas é preciso que a sugestão se-
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ja sempre aceita com tal docilidade. Muitas vezes o
magnetizador só consegue fazê-la penetrar aos pou-
cos, por insinuação gradual. Partirá então de objetos
realmente vistos pelo indivíduo, e tentará tornar sua
percepção cada vez mais confusa: depois, de grau em
grau, extrairá dessa confusão a forma precisa do obje-
to cuja alucinação quer criar. É assim que muitas pes-
soas, na hora de dormir, vêem essas massas coloridas,
fluidas e informes, que ocupam o campo da visão,
solidificar-se insensivelmente em objetos distintos.
A passagem gradual do confuso ao distinto é, pois,
o procedimento por excelência da sugestão. Acredi-
to ser possível encontrá-lo no fundo de muitas su-
gestões cômicas, sobretudo na comicidade grosseira,
quando diante dos nossos olhos parece ocorrer a trans-
formação de uma pessoa em coisa. Mas há outros pro-
cedimentos mais discretos, usados pelos poetas, por
exemplo, que talvez tendam inconscientemente ao
mesmo fim. Por meio de certos dispositivos de ritmo,
rima e assonância, nossa imaginação pode ser em-
balada, levada em ramerrão num balanço regular, fi-
cando assim preparada para receber docilmente a vi-
são sugerida. Prestem atenção a estes versos de Rég-
nard, e vejam se a imagem fugaz de um boneco não
lhes atravessa o campo da imaginação:
... Plus, il doit à maints particuliers
La somme de dix mil une livre une obole,
Pour l’avoir sans relâche un an sur sa parole
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Habillé, voituré, chauffé, chaussé, ganté,
Alimenté, rasé, désaltéré, porté.3
Não encontramos algo do mesmo tipo nesta ti-
rada de Fígaro (embora nela talvez se procure suge-
rir a imagem de um animal mais que de uma coisa):
“Que homem é esse? – É um belo, gordo, nanico, jo-
vem velhote, encarneirado, astuto, tosado e chateado,
que espiona e questiona, e rosna e resmunga de uma
só vez.”
Entre tais cenas grosseiras e tais sugestões suti-
líssimas há lugar para uma multidão inumerável de
efeitos engraçados – todos os que são obtidos quando
nos expressamos sobre pessoas como se fossem coi-
sas. Vejamos um ou dois exemplos do teatro de La-
biche, no qual eles abundam. Perrichon, na hora de
subir no trem, certifica-se de não ter esquecido ba-
gagem alguma. “Quatro, cinco, seis, minha mulher
sete, minha filha oito e eu nove.” Há uma outra peça
em que um pai gaba a ciência da filha nestes termos:
“Ela vai dizer sem vacilar todos os reis de França que
ocorreram.” Esse que ocorreram, sem converter pre-
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3. ... E mais, ele deve a muita gente
A soma de dez mil e uma libra e um tostão,
Porque durante um ano, infatigavelmente
Ele o trajou, carregou, calçou, enluvou,
Barbeou, alimentou, dessedentou, levou. 
Essa tradução não é literal. Procuramos transmitir o efeito repetiti-
vo existente no original. (N. da T.)
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cisamente os reis em coisas, compara-os a aconteci-
mentos impessoais.
Cabe notar a respeito deste último exemplo: não
é necessário chegar até o fim da identificação entre
a pessoa e a coisa para que se produza o efeito cômi-
co. Basta entrar por esse caminho, fingindo, por exem-
plo, confundir a pessoa com a função que ela exer-
ce. Só citarei estas palavras de um prefeito de aldeia
num romance de About: “O senhor alcaide, que sem-
pre nos tratou com a mesma benevolência, apesar de
ter sido trocado várias vezes desde 1847...”
Todos esses ditos são criados a partir do mesmo
modelo. Poderíamos compor outros, indefinidamente,
agora que temos a fórmula. Mas a arte do contista e
do autor de vaudeville não consiste simplesmente em
compor o dito. O difícil é dar-lhe força de sugestão,
ou seja, torná-lo aceitável. E só o aceitamos porque
ele nos parece sair de um estado d’alma ou caber nas
circunstâncias. Assim, sabemos que Perrichon está
muito emocionado na hora de fazer sua primeira via-
gem. O verbo “ocorrer” é daqueles que devem ter rea-
parecido muitas vezes nas lições recitadas pela filha
diante do pai; lembra-nos uma recitação. Por fim, a
admiração da máquina administrativa poderia, a ri-
gor, chegar ao ponto de nos fazer acreditar que nada
muda no alcaide quando ele muda de nome, e que a
função se cumpre independentemente do funcionário.
E aqui estamos nós, bem distantes da causa origi-
nal do riso. Uma forma cômica, inexplicável por si
O RISO 47
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mesma, só pode ser entendida graças à semelhança
com outra, que só nos faz rir por ter parentesco com
uma terceira, e assim por diante durante muito tem-
po: de tal modo que a análise psicológica, por mais
que a suponhamos esclarecida e penetrante, perderá
necessariamente o rumo se não segurar o fio ao longo
do qual a impressão cômica caminhou de uma extre-
midade da série à outra. Qual a razão dessa continui-
dade de progresso? Qual é a pressão, qual é o estranho
impulso que faz a comicidade ir deslizando assim de
imagem em imagem, cada vez mais distante do pon-
to de origem, até fracionar-se e perder-se em analo-
gias infinitamente distantes? Mas qual é a força que
divide e subdivide o tronco da árvore em ramos, a
raiz em radicelas? Uma lei inelutável condena assim
toda energia viva, desde que lhe dêem tempo, a co-
brir o máximo possível de espaço. Ora, a invenção
cômica é bem uma energia viva, planta singular que
brotou vigorosamente sobre as partes pedregosas do
solo social, à espera de que a cultura lhe permitisse
rivalizar com os produtos mais refinados da arte. Es-
tamos longe da grande arte, é verdade, com os exem-
plos de comicidade que acabam de passar diante de
nossos olhos. Mas já nos aproximaremos mais dela,
embora sem a atingir de todo, no capítulo que segui-
rá. Abaixo da arte, há o artifício. É nessa zona dos ar-
tifícios, intermediária entre a natureza e a arte, que pe-
netramos agora. Vamos tratar do autor de vaudeville
e do humorista.
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