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REDAÇÃO INQUIETA
Gustavo Bernardo
Copyright © 2010 by Gustavo Bernardo
Direitos desta edição reservados à
EDITORA ROCCO LTDA.
Av. Presidente Wilson, 231 – 8º andar
20030-021 – Rio de Janeiro – RJ
Tel.: (21) 3525-2000 – Fax: (21) 3525-2001
rocco@rocco.com.br
www.rocco.com.br
Conversão para E-book
Freitas Bastos
Imagem de capa: Amy DeVoogd/Getty Images
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE.
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.
B444r
Bernardo, Gustavo, 1955-
Redação inquieta [recurso eletrônico] / Gustavo Bernardo. – Rio de Janeiro: Rocco Digital, 2012.
recurso digital
Formato: e-Pub
Requisitos do sistema: Adobe Digital Editions
Modo de acesso: World Wide Web
ISBN 978-85-8122-110-6 (recurso eletrônico)
1. Língua portuguesa – Composição e exercícios. 2. Livros eletrônicos. I. Título.
12-6112 CDD–469.8 CDU–811.134.3’27
mailto:rocco%40rocco.com.br?subject=
http://www.rocco.com.br
Escrever é estar no extremo
de si mesmo, e quem está
assim se exercendo nessa
nudez, a mais nua que há,
tem pudor de que outros vejam
o que deve haver de esgar,
de tiques, de gestos falhos,
de pouco espetacular
na torta visão de uma alma
no pleno estertor de criar.
– JOÃO CABRAL DE MELO NETO
Prefácio
Nesta Redação inquieta, convido professores, alunos e todas as pessoas que escrevem ou desejam escrever melhor a
um exercício de reflexão teórica. Com essa reflexão, pretendo ressaltar a importância moral da palavra escrita. Para fazê-
lo, esboço uma teoria da redação e tento dar um exemplo de respeito – respeito à palavra e ao escritor que se
compromete na escolha de tal ou qual palavra. Faço-o porque me encontro convicto de haver um número muito maior de
pessoas inteligentes do que supõe a nossa vã pedagogia.
Procuro seguir a trilha aberta pelo clássico de Othon Moacir Garcia, Comunicação em prosa moderna, que desde os
anos 60 enfatizava a lógica do discurso no ensino de redação e leitura. A trilha de Othon, cumpre reconhecer, foi pouco
explorada em todos esses anos. Continua se fazendo necessário insistir em ponto de vista menos tecnicista e mais
filosófico para o ensino de redação. Escrever implica reflexão crítica, e reflexão crítica, por sua vez, supõe exercício
permanente do raciocínio filosófico.
Não se trata, no entanto, de substituir o ensino de gramática; a discussão gramatical também é filosófica e, diga-se de
passagem, bastante abstrata. A gramática pode e deve ser trabalhada através de problematizações consequentes, desde
que sua formalização não entre no currículo cedo demais, como costuma acontecer, levando os alunos a aprenderem que
nunca vão aprender “aquilo”.
Logo, este livro não pretende substituir o ensino de gramática, mas se pretende, sim, anterior ao ensino de gramática.
As perguntas para quem, para que e por que escrever antecedem à questão do como escrever. Se a pessoa deseja
escrever e tem o que dizer, preocupar-se com a forma correta é consequência lógica e ética mais ou menos natural. Se a
pessoa não se pergunta para que ou por que escreve, tão somente reagindo à demanda da escola, também é natural
que erre até na concordância verbal – se ela não concorda consigo mesma, o verbo é que não vai fazê-lo com o nome.
Repare-se que este não é um livro didático e sim um livro teórico, ou, como se dizia antigamente, um livro-texto.
Pretende-se uma obra de referência e de provocação do pensamento para professores e para alunos. Não se trata de
um manual com receitas, fórmulas e ilustrações engraçadas, que suponho em nada ajudem ao aprendiz. Procuro, ao
contrário, substituir as fórmulas e os exercícios (que tentam aplicar mecanicamente as fórmulas) pela reflexão e,
principalmente, pela autorreflexão.
Sempre é preciso, perdão pela expressão mais popular, “olhar o próprio rabo”: sempre é preciso refletir sobre o que se
quer dizer, se é isso mesmo que se quer dizer, se não se está repetindo como papagaio lugares-comuns, ideias prontas,
opiniões da moda, para só então dizê-lo com consequência, estilo e correção.
Isso significa assumir o lugar de que se fala. No meu entender, a escola costuma cometer alguns equívocos graves
nesse aspecto. O primeiro deles é dizer que o aluno não deve jamais escrever “eu acho que”. O segundo é colocar na
maioria das redações que “falta desenvolvimento”, sem explicar como fazê-lo.
Quando pedimos dissertações, pedimos a defesa de uma opinião, ou seja, desejamos saber precisamente o que aluno
acha do tema ou assunto. Que ele muitas vezes não “ache” nada e substitua o vazio pela repetição de expressões
redundantes como “eu acho que na minha opinião” é de fato algo a ser penalizado – mas, se depois da expressão “eu
acho que” se segue uma ideia própria e articulada, deve-se simplesmente aplaudir. Caso se deseje redação um pouco
mais formal, basta sugerir o uso de expressões alternativas como “parece-me” ou “considero que”. O que não se deve é
permanecer preso no positivismo do século retrasado e defender redações “impessoais” – como se isso fosse possível.
Hoje, os melhores jornalistas, cronistas e cientistas assumem sem vergonha o lugar de que falam, isto é, assumem a
primeira pessoa do singular.
Quanto ao segundo equívoco, eu diria (olha o “eu” aqui) que em geral os professores, ao apontarem desenvolvimento
insuficiente, enxergam o alvo certo e atiram para o lado errado. Comumente, não falta desenvolver a ideia para a frente,
mas sim explicar como ela se formou lá de trás, quer dizer, falta explicar o princípio. Falta olhar, novamente, o rabinho da
ideia, relendo a si mesmo e a seu pensamento para deixá-lo bastante claro e convincente para o leitor. Naturalmente,
esse comentário é importante também para o aluno, que se deve preocupar em explicar tim-tim por tim-tim, para si
mesmo e para os outros, a sua ideia ou a sua opinião, em nome não só da clareza como da honestidade intelectual.
Para isso é preciso, deveria ser óbvio, ter de fato alguma ideia. Se critiquei os professores que penalizam
mecanicamente o “eu acho que”, devo reconhecer que tantas vezes os alunos não têm propriamente uma ideia e ainda
reclamam que “o mestre” não aceitou a sua opinião. Ora, uma opinião própria é algo de conquista muito difícil. Poucas
pessoas conseguem elaborar opiniões próprias. Costumamos repetir enfaticamente, e como se fossem nossas, as
opiniões alheias escutadas na véspera. Sempre podemos fazer uma pergunta maldosa quando aquele estudante diz que
não aceitamos a sua opinião: tinha alguma?
Esses questionamentos não são fora de propósito. Procuro mostrar que o exercício da crítica deve ter no mínimo duas
direções, atentando com o mesmo cuidado para os pontos de chegada e de partida da crítica: para o que se critica e para
quem critica. Da mesma forma, poderíamos facilmente jogar no lixo todos os métodos de educação, dos mais antigos aos
mais modernos, se pudéssemos ficar apenas com o velho e bom método do exemplo. Ensina a ler não quem cobra mil
leituras ou usa técnicas sofisticadas de motivação, mas sim aquele que dá o exemplo e lê sempre, sempre falando para
os seus alunos, empolgado, do que está lendo. Ensina a escrever não quem exige duas redações por semana mas sim
aquele que dá o exemplo e mostra que escreve e reescreve continuamente as suas ideias.
Por isso, também, este não é um livro didático e sim um livro teórico. Confesso já ter “cometido” um livro didático –
Laboratório de redação, publicado pelo MEC em 1978 –, mas temo que o livro didático venha representando um tiro no
próprio pé da educação. Seu inegável sucesso a partir dos anos 60 do século passado (não por acaso, a partir da ditadura
militar) se acompanha, o que não é coincidência, da desqualificação salarial e moral do professor. Ao mesmo tempo, a
difusão oficial do livro didático, com a compra estatal de milhões de exemplares todos os anos, serviu de pretexto para o
desaparecimento das bibliotecas escolares. Em consequência, a longo prazo o livro didático mostra-se responsável por
sufocar os demais livros e, assim, pelo desestímulo da leitura.
Que nosobrigue à reflexão o que disse uma vez Bárbara Freitag: “Esse triunfo do livro didático nos últimos 20 anos
vem se revelando como uma vitória de Pirro para a educação no Brasil. Professores e alunos tornaram-se os seus
escravos, perdendo a autonomia e o senso crítico que o próprio processo de ensino-aprendizagem deveria criar.”
Apostando nesse senso crítico, acredito que Redação inquieta possa ser lido e adotado com proveito por professores de
todas as disciplinas, simplesmente porque todos somos, queiramos ou não, professores de língua materna. Desenvolvo
melhor essa ideia em outro livro, também publicado pela editora Rocco, chamado Educação pelo argumento, no qual
apresento uma proposta interdisciplinar, centrada na lógica do discurso, para as quatro últimas séries do ensino
fundamental e para o ensino médio. Uma de minhas principais fontes foi o livro de um professor de matemática, chamado
Matemática e língua materna: análise de uma impregnação mútua. Nílson Machado, o autor desse livro fundamental, é
categórico em afirmar que o ensino de Matemática deve recorrer ao ensino de língua materna pela via da argumentação,
porque o aluno só aprende quando explica o seu raciocínio – e explica não com os cálculos, mas sim com frases completas
em português. É possível acertar o problema sem compreendê-lo; compreende-se o problema e sua solução somente
quando os explicamos tim-tim por tim-tim, passo a passo, na língua de toda a gente. Acho que melhor argumento a nosso
favor não teríamos, até porque podemos aplicá-lo em relação a todas as demais disciplinas.
A Redação inquieta já tem uma longa e fecunda trajetória desde sua 1ª edição, em 1985, pela histórica editora Globo, dos
Bertaso de Porto Alegre: publicada em várias tiragens, vem frequentando vários editais de concursos públicos para
professores.
Para esta nova edição da Rocco, cumpre informar que fiz uma boa revisão no livro: mantendo o mesmo espírito,
atualizei algumas referências (“cruzeiro” vira “real”, por exemplo) e “enxuguei” alguns adjetivos e advérbios excessivos
(nunca se para de reescrever, pois é). No entanto, relendo o volume que já se encontra em plena maturidade, com 25
anos de idade, vejo que ele se sustenta muito bem: os argumentos, os exemplos e as citações permanecem pertinentes,
consistentes e atuais.
Desde o primeiro momento, dediquei este livro a Zulmira Krause, André Valente e Welitom Santos. Também o dediquei,
mas agora preciso fazê-lo in memoriam, a Hayrton Krause, José Luiz Werneck e Herbert Daniel.
GUSTAVO BERNARDO
Rio de Janeiro, agosto de 2010
1. ATO
Para se combinar comigo
tem que ter opinião.
– CACASO
Ensino
No Brasil, tornaram-se comuns publicações de “besteiras da juventude”, colhidas nas
redações de vestibular. Unem-se professores e jornalistas na crítica fácil à expressão, ou
desexpressão (mistura de desespero com expressão), de uma geração calada – que,
mesmo quando parece falar nestas redações, continua calada.
Não pretendo começar por aí. Estes bestialógicos pretendem mostrar como a juventude
articula mal o pensamento – mas mostrar à própria juventude, para cada um dos seus
elementos rir nervosamente de si mesmo, qual hiena inconsciente. Estes bestialógicos
funcionam de cortina para encobrir outros agentes da “desexpressão”: a escola, os
professores, a família, o Estado.
A escola, que fragmentou o conhecimento em disciplinas estanques, fragmentando
assim as frases e o raciocínio dos seus alunos. Os professores, mal pagos e pior
estimulados, mal sabendo eles mesmos redigir um plano de curso, pondo-se como
exemplos tristemente adequados de uma fala truncada. A família, que lê nada e escreve
nada de nada, e depois reclama da juventude “que não lê”. O Estado, que encosta a
educação no canto das verbas, censura as poucas palavras que escapolem das
universidades e dos artistas, e depois faz ironias sobre a geração da gíria.
A desarticulação do pensamento adolescente vem sendo apresentada como doença em
si, encobrindo males mais profundos. Por exemplo, encobrindo a questão do
analfabetismo nacional. Se lemos, com cuidado e atenção, não apenas as redações
escolares dos garotos, mas também os livros didáticos adotados, mais os editoriais dos
grandes e dos pequenos jornais, mais os discursos dos pequenos e dos grandes políticos,
mais a Constituição do país e as teses dos juízes e dos doutores, vamos entender que a
preocupação ética com o discurso escrito está em falta no mercado geral das palavras:
dos meios de comunicação ao Congresso Nacional, há muita sentença entortada.
Por um lado, semelhante constatação alivia os estudantes: eles podem compreender
que sua confusão “tem a quem sair”. Por outro lado, aumenta a responsabilidade dos que
desejam defender seu prazer de pensar e descobrir por sobre a neurose de dominar e
vencer (estudantes, inclusive).
Aprendemos a falar na vida. Assim como a calar. Quem cala, não consente. Quem cala,
ou está se guardando ou se submetendo. A segunda opção é a mais comum: quem cala
se submeteu. Entretanto, existem variações barulhentas da submissão calada, onde o
que se fala é o nada. Uma destas variações parece ser a redação escolar.
Se aprendemos a falar e a calar na vida, muitos aprendemos a escrever em uma
redução da vida, chamada “sala de aula”. Uma redução tão reduzida, que às vezes
transmite comportamentos culturais de séculos atrás. Séculos atrás, os artistas pintavam
para um mecenas, os padres redigiam seus estudos teológicos para um papa. Hoje, os
escritores procuram público, procuram chegar suas ideias e suas imagens a muitas
pessoas, quanto mais melhor. Na escola, entretanto, os séculos de lá atrás continuam
presentes; escrevemos para um leitor só, o professor, que por sua vez não nos responde,
não nos escreve de volta, mas nos enquadra (assim como o mecenas pagava ou não
pagava ao “seu” artista). A tendência lógica é que se escreva apenas o que nos porá no
quadro e na nota menos desagradável (um quadro de estilo e ideias reflexos mecânicos
das manias e limites do mestre e, principalmente, da estrutura imobilista do prédio).
Quando o ato de escrever perde o seu caráter primário e fundamental, o de
autoafirmação, para adquirir o sentido inverso: autonegação.
Sem dúvida, professor e aluno são ambos vítimas da mesma imbecilização do
pensamento, da mesma animalização do comportamento. A nota é igual ao torrão de
açúcar e/ou ao chicote do urso amestrado. Quem enquadra se enquadra – que o digam
os carcereiros, presos nas mesmas grades dos seus presos.
O aluno pode começar a perceber o efeito dessas estruturas, quando “tem” de escrever
e não sabe como começar. Na realidade, ele não sabe como começar, como fazer o meio
e como terminar. Recorda-se confusamente de duas noções opostas que lhe foram
transmitidas pela escola e pelos mais velhos: escrever é um dom e escrever é questão de
técnica. Não sabe com qual das duas fica. Se escrever é um dom, se ele não tem o dom,
e não deve ter porque não baixa nenhuma inspiração na hora “h”, não adianta técnica.
Se escrever é questão de técnica, por que uns pegam logo a tal da técnica e ele não?
Então ele, além de desinspirado e sem dom, é burro. Logo, não tem mesmo jeito, o
negócio é se conformar e enganar, escrevendo as frases do mestre em qualquer ordem
para ver se o dito cujo “cai nessa”.
Em geral, os professores caímos nessa. Corrigindo redações em blocos de centenas,
não há condição de lê-las de verdade. Nenhuma condição. Todas se tornam a mesma
mancha difusa, com três cores confusas (os conceitos A, B, C), nas quais o esforço se
resume a separar as péssimas (em geral, as de frases centopeicas e truncadas,
agredindo o cansaço deste leitor exclusivo), as medíocres (em geral, as de frases
acompanháveis, de letra enorme, mas sem ideia que preste), e as que repetem a fala
empolada e quase vazia do próprio mestre.
Aí o professor pode também começar a perceber o efeito das estruturas de
imbecilização e animalização sobre ele mesmo. No momento da correção. Quase sempre,
um trabalho feito de madrugada, ou no dia de descanso,de graça, sem nenhuma graça.
Um trabalho acriativo, extremamente cansativo, que o despotencializa. Que o
desumaniza. Um trabalho que lhe tira completamente a vontade de, ele mesmo, escrever
qualquer coisa, tamanho o peso quer do cansaço quer daquelas ideias e frases
estropiadas que devolvem ao mestre as contradições da sua profissão (e da sua
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sociedade calada porém barulhenta).
Eu sou professor desse negócio. E sempre me debati com uma constatação clara:
minha própria experiência do escrever não reconhece nenhuma origem na memorização
de regras, na decomposição analítica de textos clássicos ou modernos, ou em baterias de
exercícios transformacionais. Reconheço sim, como origem do meu prazer e da minha
necessidade de escrever, primeiro, o próprio prazer descoberto no pensar; segundo, o
direito de escolher as minhas leituras, as minhas influências e os meus modelos (direito
conquistado fora das escolas, na angústia do menino defronte às estantes das livrarias);
terceiro, o desejo. Desejo de modificar o mundo à imagem e semelhança das minhas
melhores palavras.
Professor de redação, enfrentava e enfrento a dor da contradição: se eu mesmo
escrevia apesar das escolas e dos professores, que dizer de meus alunos? Escreveriam
eles, também, apesar de mim? Ou se renderiam ao mormaço cáustico das aulas e das
notas, desordenando ainda mais sua expressão, obscurecendo ainda mais suas
contraditórias ideias emprestadas, prontos a servirem de pasto aos pedagogos e
jornalistas sádicos, colecionadores de bestialógicos à época dos vestibulares?
Enfrentar inclui pensar. Pensar que escrever certamente não será uma questão de dom.
Semelhante noção deve ser combatida, pois se baseia na irracionalidade de buscar fora
do homem, na “inspiração”, a explicação absolutista para sua habilidade ou inabilidade.
Colocar o dom externo ao ser é uma ocultação: de que o homem pode ter uma força
pessoal (seu desejo), e de que todo homem pertence a uma classe e tem uma história,
uma história de estímulos e de repressões que influenciarão, em grande parte, sua
disposição de pensar ou não.
Escrever não será, também, uma questão apenas de técnica. Não se escreve sem
alguma técnica, é certo. Mas, ninguém começa a escrever depois de “adquirir” a tal da
técnica. Começa-se a escrever porque se deseja fazê-lo, e então, enquanto se vai
escrevendo, se vai organizando a própria técnica.
O ato de escrever é, primeiro e antes de tudo, a questão do desejo. Ora o desejo de os
outros se produzirem em nós, através das palavras, ora o nosso desejo de nos
reproduzirmos, nos multiplicarmos, nos transcendermos e, mesmo, nos imortalizarmos,
através das nossas palavras.
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Teoria
Este é um livro teórico. Logo, precisa se perguntar o que seja “teoria”.
O senso comum acha que teoria é sinônimo de falação passiva, algo sem nada a ver
com a prática ou com ação. Em geral, o senso comum reduz as coisas à compreensão da
média da humanidade – porém, pela situação presente da humanidade, temos o direito
de associar média com mediocridade. O senso comum, neste caso, é igualzinho à escola:
atrasado de alguns séculos, reproduzindo conceitos enrijecidos.
A ideia dada pelo senso comum à palavra “teoria”, de fato, se assemelha à significação
que podemos buscar no mundo greco-latino de dois mil e tantos anos atrás. Teoria como
teo/ria: teo, deo, deus; e ria, ri, rir. Teoria como o breve ato de rir com Deus, de
contemplar com Ele. Um teórico, nesta acepção saída do jogo que estou fazendo com a
palavra, se punha como espectador privilegiado do mundo, identificado com o Deus pela
sua postura, uma vez que Deus também devia se comprazer em observar, em apenas
observar.
Este modo de ser da teoria coube à perfeição nos sistemas aristocráticos, nos quais se
poderia viver passivamente do trabalho braçal e brutal dos escravos e deste modo se
contentar com a observação estática da existência (de preferência, desviando o olhar do
sofrimento dos muitos homens escravizados para que aqueles poucos pudessem
“teorizar”, pois o sofrimento não valia a pena contemplar). Ao longo do tempo, ao longo
de variações de sistemas aristocráticos e escravocratas, a noção se manteve, fazendo o
tal do senso comum identificar como santos e sábios os homens mais passivos: eremitas
que contemplassem de superiores montanhas a vidinha inferior das gentes que existiam
nas planícies, isto é, que existiam dentro das sociedades, sofrendo suas contradições,
lutando entre a força da solidariedade e a emergência da solidão.
Mas o significado das palavras anda junto com o movimento do mundo. Devagarzinho,
como o mundo, mas anda.
No século passado, Marx observava que o ser humano, em geral, não existe numa
situação de contemplação; o modo normal de o homem existir é o de uma contínua
intervenção ativa no mundo. Portanto, a validade do conhecimento não poderia ser
medida em um plano de teoria pura, abstraído da vida prática. Simplesmente, isto não é
possível. Ou melhor, é possível enquanto um engodo, uma mentira. Como vimos, a
postura da só contemplação tem de se apoiar em algum tipo de exploração de outros
homens, impedidos econômica e politicamente de contemplarem, pensarem,
questionarem. Logo, não existe a contemplação pura e simples; existe é a cisão que faz
as classes, umas pensantes, outras trabalhantes.
Por pertencerem quase sempre às classes dominantes, devido a oportunidades de
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alimentação, socialização e educação que os explorados não tiveram, vivendo numa
atitude contemplativa apoiada nos que não contemplam nem a si mesmos, os filósofos
foram levados a crer que as teorias filosóficas não tinham nada a ver com a produção
econômica e as lutas políticas da história da humanidade. Deixaram de lado a
modificação; quer dizer, as consequências práticas da interpretação. Marx defendeu que
a tarefa de interpretar o mundo não é anterior nem posterior, mas parte intrínseca da
tarefa maior de modificá-lo.
Portanto, o significado de “teoria” já foi revisto, incluindo a prática não como o seu
oposto, mas como uma de suas partes, como o seu próprio interior. A teoria é uma ação,
posto que as ações que dispensem teoria são mecânicas, repetitivas e desumanas.
Cabe definir, agora, o sentido de “filosofia”, já que estou falando dela e de filósofos. Se
recorrermos ao senso comum (aquele, o da mediocridade), filosofia é “pura perda de
tempo”. Segundo critérios capitalistas, tão mediocrizantes quanto, o senso comum está
absolutamente correto. A filosofia, de fato, é isto: perder tempo. Perder o tempo
enquanto mercadoria de compra e venda, enquanto moeda de troca forte o suficiente
para fazer com que cada especialista se agarre nos seus livros técnicos (e cada estudante
nos seus livros didáticos, ou no fliperama da esquina) e bloqueie de vez a curiosidade.
Porém, se a filosofia é a perda do tempo do mercado, pode representar, em
contrapartida, alguns ganhos sérios – como o prazer de investigar, de duvidar, de criar,
de transcender o relógio (principalmente o relógio de ponto).
Bertrand Russell diz melhor do que eu o que é a filosofia:
A filosofia, conforme entendo a palavra, é algo intermediário entre a teologia e a ciência. Como a teologia, consiste de
especulação sobre assuntos a que o conhecimento exato não conseguiu até agora chegar, mas, como ciência, apela
mais à razão humana do que à autoridade, seja esta a da tradição ou a da revelação. Todo conhecimento definido –
eu o afirmaria – pertence à ciência; e todo dogma quanto ao que ultrapassa o conhecimento definido pertence à
teologia. Mas entre a teologia e a ciência existe uma Terra de Ninguém, exposta aos ataques de ambos os campos:
esta Terra de Ninguém é a filosofia (...). A ciência diz-nos o que podemos saber, mas o que podemos saber é muito
pouco e, se esquecemos quanto nos é impossível saber, tornamo-nos insensíveis a muitas coisas sumamente
importantes. A teologia, por outro lado, nos induz à crença dogmática de que temos conhecimento de coisas que, na
realidade, ignoramos, e, porisso, gera uma espécie de insolência impertinente com respeito ao universo. A incerteza,
na presença de grandes esperanças e de grandes receios, é dolorosa, mas temos de suportá-la. (Russell, 1977, vol. 1:
XI-XIII)
A filosofia, dentro de uma teoria da redação, nos interessa para enfrentar a incerteza.
Não podemos e não devemos negar o quanto não sabemos (como diria Sócrates, “Só sei
que nada sei”). Mas podemos afirmar que a dúvida, por definição, nos aproxima do que
não conhecemos (e podemos conhecer), do que não somos (e podemos ser).
A palavra é o testemunho de uma ausência. Escrevemos, antes de tudo, para
testemunhar as nossas faltas, quer procurando supri-las, quer buscando carinho para
aliviar a dor. Escrevemos para dizer o que não sabemos, o que não amamos, o que não
somos – mas queremos.
A palavra “nu”, por exemplo. Se não fosse por ela e pelo tom com que é pronunciada, o
homem não teria consciência da sua nudez. Não, não foi a serpente; foi e é a palavra,
que evoca a falta das defesas, das roupas.
A palavra “democracia”, por exemplo. A quantidade imensa de vezes em que ela é
repetida nos regimes autoritários indica, claramente, a sua ausência. Quanto mais uma
expressão é repetida, mais o que ela denota não existe. Quanto mais um machão exibe
grossura e força, mais ele mostra o seu medo de não ser homem. Quanto mais se fala
em Deus, menos espírito e sensibilidade o falante e a sua sociedade trazem consigo.
A palavra é a consciência da ausência. A consciência do não saber de que falou
Sócrates, a qual, exatamente, nos despe da arrogância e nos aproxima da verdade. E a
verdade é um iceberg de enorme parte submersa; a verdade é um planeta de enorme
parte líquida, marítima, submarina; a verdade é um homem feito mais de inconsciente do
que de consciente; a verdade, de certo modo, é justo o desconhecido mesmo. A verdade,
física, psicológica, linguística e cosmicamente falando, é o vazio. É a falta.
Assim Carl Sagan, um astrônomo, escreveu sobre a verdade:
A Terra é um lugar. De maneira nenhuma o único lugar, nem mesmo um lugar típico. Nenhum planeta, estrela ou
galáxia pode ser típica, pois o Cosmos é, em sua maior parte, vazio. O único lugar típico é o vácuo universal, frio e
vasto, a noite interminável do espaço galáctico, um local tão estranho e desolado que, por comparação, planetas,
estrelas e galáxias parecem dolorosamente raros e adoráveis. (Sagan, 1982: 5)
Se o único lugar típico é o vácuo universal, a única palavra típica é aquela que ainda
não foi dita. Ou seja, é aquela que nomeia as faltas e as ausências, pontuando o nosso
esforço de preenchê-las, em consequência a nossa necessidade de nos ampliarmos, de
nos dilatarmos, de ocuparmos mesmo o vazio cósmico.
Nesse sentido, “redação” não é algo distinto de “ação”, como veremos a seguir. Neste
sentido, a teoria também não é algo distinto da prática, mas quase ao contrário: ambas
se contêm e se remetem, como dois conjuntos pertinentes um ao outro. O senso comum,
a respeito, diz pomposamente que “a teoria na prática é outra”. A pompa dos ditados
populares, incluindo este, esconde a síntese apressada e leviana de uma realidade um
tanto mais complexa. Quando “a teoria na prática é outra”, ou a prática esconde a
verdadeira teoria que a forjou, ou a teoria esconde simplesmente a sua incompetência
teórica.
A prática que desdenhe a teoria, isto é, que desdenhe a reflexão antes, durante e
depois da prática, nasce em geral nos sistemas autoritários, que precisam de robozinhos,
soldadinhos, e não de seres humanos. O ditador italiano Mussolini deixou isto claro: “A
ação deve enterrar a filosofia.” Abaixo a inteligência e viva a morte, em outras palavras.
Por sua vez, a teoria que desdenhe a prática, isto é, que desdenhe a confirmação
permanente de suas hipóteses e conclusões através da observação e da experimentação
humildes e rigorosas, condena a si mesma à decadência e preludia os sistemas
assassino-autoritários acima.
Espelho
Dizem que as perguntas fundamentais são quatro. Quem sou eu? De onde vim? Para
onde vou? Afinal de contas, o que estou fazendo aqui?
Se quisermos as respostas absolutamente certas, então todas elas serão irrespondíveis.
Porém, se admitirmos a resposta “andando”, esclarecendo um pouco ao mesmo tempo
em que se continua duvidando, então estaremos sempre respondendo – e sempre
perguntando.
Quem sou eu? O que é “eu”? Talvez algo assim como um feixe de acontecimentos, em
movimento permanente, em parte equilibrado em parte desequilibrado, em parte
compreensível em parte enevoado, com todas as partes querendo e precisando equilibrar
e compreender o todo. Esforço semelhante ao da bruxa madrasta: “Espelho, espelho
meu, existe alguém mais bonita do que eu?”
O maldito espelho sempre responde sim. Sempre existe alguém ou algo melhor e mais
bonito do que nós – pelo menos, aquele que um dia poderemos ser, ou aquilo que um dia
poderemos falar e fazer.
O primeiro livro que a gente lê é um dos primeiros espelhos. Nele, se procuram
respostas para as quatro perguntas e, em especial, para a primeira. Nele se encontra
alguma coisa, mas não as respostas definitivas. Daí, alguns abandonarão a leitura para
tentarem outra linguagem, enquanto outros continuarão lendo, continuarão procurando
por ali. Até começarem a perceber que na outra ponta dos livros esteve um escritor, e
que parte das respostas ansiosamente procuradas talvez esteja no próprio esforço de
escrever as dúvidas.
Ler é um movimento externamente passivo – mas um movimento, porque mexe com
as imagens interiores, guardadas, reprimidas, acrescentando-lhes outras e transformando
as que o leitor já traz consigo. Escrever, por sua vez, é um movimento externamente
ativo, fazendo imagens, trazendo algumas do fundo e dando-lhes forma, trazendo outras
do mundo e modificando-lhes a forma – na direção de um estilo pessoal.
A relação entre escrever e ler, entretanto, vem sendo posta como mecânica, de ligação
direta, levando à ideia de que uma pessoa que leia muito necessariamente escreve bem.
Isto é falso.
A tese de que ler leva direto a escrever é defendida por aqueles que enxergam na falta
de hábitos de leitura o grande problema da expressão do aluno e do povo. Como se
hábito de leitura fosse a condição sine qua non para o sujeito se expressar. O raciocínio é
entortado, tomando efeito por causa (num tipo de sofisma que veremos melhor no quarto
capítulo).
Não existe hábito de leitura porque a maioria do povo é analfabeta, ou semianalfabeta.
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Não há bons livros por isso também, e pelo perigo que trazem os bons livros. Não há
dinheiro para comprar livros porque não há dinheiro para comprar pão, e não há dinheiro
para comprar pão ou livros porque vivemos num regime onde são secundários o direito
de escolher e a liberdade de decidir, tanto quanto a de desejar. Falta de dinheiro e falta
de interesse pelo mundo e pelos livros são sintomas de um grande desrespeito humano
institucionalizado. A instituição do desrespeito, que “escolhe” por nós todos e a todos
interdita o desejo, é o nervo da questão – e não a falta de tal ou qual hábito.
A expressão “hábito”, aliás, me parece plena de conotações behavioristas e fascistas.
Transfere problema humano para esfera mecânica desprovida de consciência e de
desejo. Os hábitos são transmitidos por imitação e por pressão, dispensando as pessoas
de escolherem este ou aquele comportamento, dispensando-as do direito e dever de
escolher e decidir por si.
Ler muito não pode levar a escrever. Pode levar a ler bem – o que será muito
importante, claro. Ler bem, por sua vez, pode ajudar a viver, porque o sujeito se informa,
se identifica, se transfere, principalmente se anima. Mas o que leva as pessoas a escrever
é uma angústia diferente destas: a angústia de riscar um destino, interferir na história, se
colocar no campo de jogo.
Logo, ler não é a condição para escrever, mas sim munição para viver, e para escrever
também. A atitude de ler é metonímia da vontade de entender o mundo.A atitude de
escrever, por sua vez, é metonímia da pretensão legítima e transcendente de transformar
o mundo.
Se me contra-argumentarem afirmando não existirem escritores sem leitura,
concordarei com a evidência e discordarei desta lógica. De fato, não deve haver escritor
que não leia, porque não há aquele que transforme o mundo sem entender o que se lhe
oferece. Entretanto, a recíproca não é verdadeira. Há os que leem muito e entendem
muito, mas nunca escreveram nada. Quem escreve, então, sem dúvida lê. Mas quem lê,
na dúvida, lê mais um pouco – e não escreve.
Num paralelo tragicômico, diria que o Brasil tem 120 milhões de espectadores de
futebol e poucos bons jogadores. Em paralelo patético-acadêmico, lembraria aos
professores de português quantos procuramos os cursos de Letras pensando alimentar
uma vocação difusa para a Literatura, mas, de tanto ler as obras capitais e as resenhas
fundamentais, encostamos a pena para ler mais e mais, desenvolvendo brutal autocrítica,
melhor dizendo, poderosa autocensura que enferruja a pena – que enferruja o desejo.
Portanto, ler e escrever são esforços na direção do espelho – esforços diferentes. A
pergunta de quem sou eu permanece. E o ato de escrever, como sabe quem faz diário, é
outra forma de tentar responder.
Quem faz diário escreve para se afirmar, para se equilibrar frente aos desafios do dia –
desafios propostos pelo outro, ou pela rua, ou mesmo por suas dúvidas mais íntimas.
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Escreve para se responder quem é. Ao fazê-lo, empresta forma a sentimentos confusos e
a partir de então descobre o que sentia, pois o gesto de escrever lhe disse.
Neste sentido, escrever tem a ver com mágica. Como fazer do papel um espelho, mas
um espelho às nossas ordens. “Espelho, espelho meu, existe alguém mais angustiado do
que eu?” Ao escrever, me revelo – revelo a mim mesmo que posso organizar as
palavrinhas, donde que posso organizar, construir e montar o mundo novo. Revelo-me a
extensão do meu poder, ou seja: a extensão dos meus possíveis. Em suma, a extensão
da minha utopia.
O ato de escrever, antes de tudo, é legítimo ato de autoafirmação. E “autoafirmação”
não é coisa ruim, pejorativa, como dizem os que não gostam de ver os outros se
afirmando. A afirmação de si mesmo é a primeira condição para responder à primeira
pergunta. Quem não se afirma é o oprimido, é o submisso, o que se encontra caído ao
chão à espera das ordens.
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Rede
O diário corresponde, na fala, à conversa com os próprios botões. Mas não se pode
conversar apenas com botões. Inclusive, aprende-se a falar pela observação dos outros,
pelo interesse dos outros. A conversa consigo mesmo, da qual as crianças são mestras,
indica claramente a presença da falta.
Um tanto paradoxal esta expressão: “presença da falta”. Porém, precisa. A falta que
todo homem carrega consigo o tempo todo, tanto dos outros quanto daquele que ele
podia ser mas ainda não é, se faz uma presença viva, perceptível no papo das crianças
com seus amigos imaginários, no sonho dos adultos com seus desejos frustrados, na
insônia dos apaixonados em suas camas de solteiro. A falta que todo homem carrega
consigo o tempo todo é aquela que explica e dá sentido a boa parte dos seus atos e
lapsos.
Eis a palavra, testemunhando a ausência e a falta. A falta depositada nos diários
testemunha a falta do autoconhecimento e, é claro, a necessidade da autoafirmação. Mas
não nos falta apenas conhecer-nos. Falta-nos conhecer a todos e tudo. Logo, não se
escrevem única e exclusivamente diários. Escrevem-se bilhetes, cartas, artigos de jornal,
livros e discursos públicos, a cada texto se marcando a presença de determinada falta.
Quando então o ato muda.
O diário afirma o indivíduo para si mesmo. Uma carta já o afirma para outro sujeito, e
daí se tem de pensar neste outro no momento da escrita, uma vez que ele passou a fazer
parte do ato. O outro, ao adentrar o espaço da comunicação, modifica radicalmente o
texto: no visual, no estilo, na sequência, nas informações.
Por sua vez, um artigo de jornal ou um capítulo teórico como este buscam bem mais de
um outro só, buscam muitos outros leitores (quanto mais melhor). Todos estes outros,
desejados e possíveis, invadem e transformam/transtornam a mensagem, e não poderia
ser de outro modo. Tudo o que existe cobra a sua existência. Se existe um leitor, pelo
simples fato de existir, ele estará cobrando seu espaço no texto, na carta – cobrando que
a coisa se escreva de modo a que ele entenda (ele, e talvez mais ninguém, pois por
enquanto falamos de uma carta), que ele sinta e possa responder. Da mesma maneira,
se existem mil leitores, pelo simples fato de existirem, eles estarão cobrando seu espaço
no artigo, no livro teórico, no romance – cobrando que a coisa se escreva de modo a que
se entenda, e se sinta, e mexa por dentro, e cobrando que se diga algo que ainda não
tenha sido dito, para valer a pena.
Por exemplo: não vou escrever este livro à moda de diário (ninguém deve estar muito
interessado se tomei café com leite ou não de manhã cedo, nem se eu consegui acordar
cedo). Também não vou escrevê-lo à moda de uma carta (o que eu sinto e penso de
pessoas muito especiais não será da conta de outras tantas que eu quero ver lendo este
livro). Entretanto, se eu souber bem que isto daqui é nem diário nem carta, posso, por
breves parágrafos, fingir que estou falando comigo mesmo, ou fingir que estou falando
com aquele leitor (leitora...) como se fosse o único (única). Será uma técnica esperta, e
perfeitamente legítima, de romper a monotonia da teoria e fazer um carinho verbal no
leitor (na leitora!). Em geral, o leitor ou leitora não devem ser os únicos (senão, este
livro virou um bestseller às avessas). Mas, no momento em que leem, são eles (vocês)
unicamente que me leem, e eu devo contar tanto com o geral, buscando ser claro e
agradável a muitos, quanto com o particular, buscando ser fino e pessoal àquele e àquela
(você).
Portanto, a diferença de quantidade (no caso, de leitores) gera diferença na qualidade
(no caso, no modo de dispor palavras e ideias). A propósito: esta é uma aplicação da
primeira lei da dialética (veremos isso melhor lá pelo sexto capítulo).
Atenção: uma teoria, uma dissertação, não é diametralmente oposta a um diário ou a
uma carta. Ao contrário, traz consigo as funções do diário (autoconhecimento e
autoafirmação) e as outras funções da carta (procura de alguém, procura de ouvido,
espelho e reflexo). Acrescenta-lhes outras na soma que transforma o texto. Escrever para
o outro, ou para outros, continua representando o ato de afirmar-se, firmando no papel
as próprias ideias. Além disso, implica considerar atentamente a existência alheia. E a
consideração da existência alheia passa pelo esforço de facilitar o acesso geral às ideias
próprias em questão.
Com licença: quem sabe, sabe se explicar. Todo mundo que escreve deve deixar para o
leitor o esforço de pensar sobre o que leu, e não o sacrifício de adivinhar o que se queria
ter dito – este é o ponto.
Enfatizo, no entanto, que se preocupar com o leitor representa preocupar-se com o seu
entendimento preciso, mas não equivale a subordinar-se humilhantemente, não equivale
a escrever apenas o que o outro quer ver escrito. Escritor e leitor não são o mesmo
sujeito, são sujeitos diferentes e a diferença deve ser, além de respeitada, ainda
defendida com unhas, dentes e verbos.
A necessidade da preocupação com o outro anda junto com a necessidade da
autoafirmação. As duas necessidades não se podem negar, sob pena de não se atender
nem a uma nem à outra. O outro precisa de mim e eu preciso do outro, porque ambos
precisamos da diferença. A diferença é o referencial único para sabermos que somos
únicos, originais, e talvez especiais para alguém. O outro não precisa que eu fale o que
ele quer ouvir, pois isto ele mesmo já se disse. Ele não precisa somente do seu espelho.
Precisa, sim, muito de um reflexo – do reflexoinesperado que estabelece a diferença
entre os diferentes. Precisa se reconhecer diferente, para acalmar a angústia daquela
pergunta primeira: “quem sou eu?”. Quem se fala afirma a si mesmo no ato da fala e da
escrita, firmando ideias e estilos pessoais, justinho para entregar ao outro o que o outro
não tem – mas precisa demais.
Uma redação, assim, nunca é um produto acabado, pronto para ser entregue ao mestre
e por este enquadrada no conceito devido (ou indevido). Antes, será red-ação: ação de
tecer a rede dos acontecimentos e dos relacionamentos guardando o acontecido na
memória verbal das gerações, pescando o acontecível no extenso lago das faltas e
ausências testemunhadas pelas palavras daqueles que falam e se falam.
Rasgo
Não sendo nenhuma redação produto pronto e acabado, podemos perceber que algumas
são mais claras e mais compreensíveis do que outras. Se não explico isto pelo dom
especial ou habilidade inata de quem escreve, como fazê-lo?
Existem algumas respostas padronizadas que, em última análise, acabam retornando à
questão do dom, acrescentando-lhe a agravante da culpa. Na educação tradicional (e
atual), os que escrevem sem clareza são imediatamente punidos com a nota baixa e
marcados com adjetivos discriminadores. Se são punidos, tendem a considerar que
cometeram uma espécie de crime. Se escutam falar de escrever como um dom,
entendem que seu crime está em não serem bem-dotados (ou bem doados). Logo, lhes
parece perfeitamente lógico concluir que “não têm mais jeito, nunca mais escreverão
direito”.
Esta maneira de explicar um problema, padronizada e dogmática, desexplica. Não
posso aceitar uma explicação estática sobre a falta de clareza. Não posso aceitar, aliás,
apenas uma causa para qualquer fenômeno social, e não há fenômeno mais social,
portanto mais complexo, do que a comunicação. Um modo dinâmico de explicar a
confusão verbal de alguém está no enxergá-la como sintoma visível de outras confusões
mais profundas – de certas doenças, sociais também, porém invisíveis (trazidas à tona
pelo verbo). Isto abre o leque das possibilidades e aumenta o número de hipóteses
explicativas. A expressão truncada pode estar refletindo, sintomatizando, apontando
outras trancas, outros trancos, como baixa autoestima e pavor do julgamento alheio.
Acontece de pensarmos borbotões de coisas, e se expressarmos o borbotão todo nos
internam rapidinho. Uma expressão clara depende de gestos vigorosos de escolha, entre
o que vai ser dito e o que não vai. Logo, o aprendizado da escolha, durante a vida do
sujeito, determinará toda a clareza de sua expressão – ou não.
O problema é: quem escolhe se compromete. Quem escolhe se define. E certamente
muitas e muitas pessoas preferem não se comprometer e não se definir (haja vista a
droga da nossa história, calcada na omissão dos indefinidos). Se tantos não se
comprometem e não se definem, tantos e tantos não podem saber escrever. Porque
escrever com clareza implica automático compromisso com as palavras transmitidas, pois
os outros vão entendê-las. E vão reagir a elas, favorável ou desfavoravelmente.
Nesse sentido, a expressão ilegível, ou quase, pode indicar medo insano de se
comunicar. Ao mesmo tempo que precisamos do outro, temos pavor dele – do
desconhecido ali representado, da sua agressão potencial, mesmo do seu amor potencial
(com que nos pode contemplar, e assim, nos assustar). Donde, a falta de clareza
espelharia a presença do medo. Pois facilitar a leitura do outro representa facilitar o seu
acesso às nossas ideias, em última instância, a nós mesmos. Dificultar-lhe a leitura
representa o contrário, representa afastá-lo.
Por isso, aprender a escrever contém dificuldades nada técnicas. Clarear a redação
implica chamar o outro a penetrar-me. Dispor-me a tanto é a questão do desejo, ou de
acirrada luta entre o desejo e o medo.
A expressão obscura também pode indicar uma agressão (fruto do medo em momento
adiantado). Uma espécie de resposta do indivíduo às normas desindividualizantes das
instituições familiares e escolares. Um certo garoto aprende, por exemplo, que se deve
escrever com letra que a professora entenda. Mas aprende também que a letra que
professora entende é letra de menina. Aprende, ainda, que se deve dizer a verdade e
nada mais do que a verdade (mesmo que seja para dedurar um coleguinha que faz pipi
fora do vaso). Mas aprende também que algumas palavras e certas verdades não podem
ser ditas ou escritas de maneira nenhuma. Daí, fica fulo da vida e desenvolve um
garrancho que nem ele entende, passando a escrever numa mistura de estilos e de tons
completamente ilógica e caótica – espelhando precisamente, no entanto, o caos
desindividualizante das normas institucionais.
O medo, ou o medo com ódio, indicam dependência que não se deseja. Ninguém
escapa à dependência, a partir do instante em que nasce e é educado pela sociedade em
que nasceu. Portanto, todos se destinam a lutar pela liberdade (embora tantos se furtem
a esta sina, e entreguem seus desejos na mão beijada dos tiranetes da ocasião).
No ato da redação, acho que a luta se faz no rasgo. Hein? Pois é, no rasgo. Assim como
qualquer criança aprende a falar por imitação, aprendemos a escrever por imitação
também. Inicialmente, chupando modelos lidos aqui e acolá, até dominarmos os códigos
da escrita o suficiente para transgredi-los, superando os modelos. Quem começa a
escrever primeiro põe no papel o que já leu, mais ou menos como estava lá. Depois, vai
combinando as ideias e as palavras de forma nova, pessoal, passando a constituir o seu
próprio texto num novo modelo para os outros. Que, por sua vez, deverá ser imitado até
poder ser transgredido e superado.
Há quem pare no primeiro momento e fique imitando sempre, num gugu-dadá por
escrito que lhe garantirá estilo repetitivo e inconsistência nas ideias mal desenvolvidas.
Mal desenvolvidas, porque toda imitação é necessariamente inferior ao original,
reduzindo-o à insuficiência de quem imita porque ainda não cria. Como não parar neste
primeiro momento?
Rasgando-o. As primeiras sentenças que fluem da cabeça e do braço são as que se
encontram na superfície de nós. São aquelas que nos transmitiram desde pequenos, as
que ouvimos e lemos à volta, as que não são nossas mas estão coladas em nós. Se elas
foram rasgadas, surgem outras, que devem vir de outro lugar: um lugar em que as falas
do mundo se transformaram no cadinho fervente de um ego, e desde então são outras
falas: as falas daquele ego.
Rasgar a superfície é rasgar os traços de dependência social e mental. Certamente é
um ato de coragem, pois aquelas primeiras palavras parecem nossas; mas as segundas e
as seguintes o serão muito mais. Porque terão passado por diferentes esforços –
escrever, rasgar, reescrever – que multiplicam o envolvimento das diferentes partes do
eu no ato. Nenhum eu é só assim e pronto. Todo eu é assim, assado, cozido e servido,
um monte de partes que fazem um feixe, e o ser é este feixe. Que deve respeitar cada
uma das suas linhas/partes, fazendo-as presentes nas sínteses que expressa/escreve.
Obviamente defendo o rascunho. Não acredito na inspiração. Acredito no esforço
múltiplo de uma pessoa, que faz e desconfia do que faz, refaz e desconfia do que refez,
até esgotar aquele movimento numa obra, num produto, de modo a partir para outros
que devem ser feitos e refeitos. Para a redação, este esforço tem seu ponto no rasgar.
Não, é claro, no rasgar desiludido que abandone o ato. Sim no rasgar ansioso e ativo,
que instante contínuo reescreve.
Pode fazer isto o aluno que precisa entregar a redação de trinta linhas em uma hora
para nota? Pode fazê-lo assim o político que discursa sobre os acontecimentos da
véspera?
Não podem. Se não, perdem o ano, o emprego ou o momento crítico. Mas o tempo
destas instituições faz parte das normas desindividualizantes, uma vez que se impõe
sobre o tempo de cada um, procurando mesmo acabar com o direito de cada um ao seu
tempo. Normas contra as quais é necessário lutar, para lutar pela liberdade individual. A
curtoprazo, aluno, jornalista e político têm mesmo de redigirem sem rascunho, para não
atrapalharem a si mesmos. A médio e a longo prazo, porém, eles podem considerar o
que fizeram como um rascunho, refazendo-o sem pressão das instituições, como uma
forma de, respeitando a vida da própria palavra, conquistarem o respeito por si mesmos.
A redação, no sentido da cuidadosa rede de ações, se faz no rasgo. E se faz fora do
tempo programado e padronizado, à revelia dos programadores.
Fala do mundo
Escrever compromete mais ainda do que falar. Porque marca. Porque corre de boca em
boca, de olho em olho, à revelia de quem escreveu. Escrever é um contrato com a
verdade (ou com a mentira); um contrato com o outro e consigo mesmo. Escreveu, não
leu, pau comeu – como dizem.
A verdade não se encontra parada, à espera de um messias redentor que a encontre e
levante-a em bandeira salvadora; a verdade se vai andando, se mexendo juntamente
com a procura de si mesmo. A redação que se queira também andarilha precisa sempre
de mais informações, sempre de maior conhecimento sobre métodos de raciocínio e de
investigação, sempre de muita observação e de muita vontade de entender os homens e
o mundo para melhor transformá-los e transformar-nos. Em resumo: sempre de muito
trabalho.
Trabalho implica, diretamente, resistência e insistência. Resistência aos que nos
querem tirar a voz para pôr no lugar uma de papagaio. Insistência no rasgar as palavras
superficiais, no escarafunchar as nossas, especiais. E trabalho, no entender crítico e ético,
não precisa ser aquela coisa alienada e infeliz que faz cada um torcer por feriado.
Trabalho, inclusive o de escrever e se escrever, pode ser bem-humorado. Pode fazer
contínuas, resistentes e insistentes as pequenas felicidades momentâneas, nascidas das
frases de encontro, pois eu te amo, e das frases de descoberta, pois eureka!
Da fala ao mundo. À fala sobre o mundo e à fala que faça mundos. Escrevendo,
dizemos do mundo que compreendemos. Mas nem sempre o mundo compreendido por
mim será o mundo compreendido por ti. Se percebo este problema, posso imaginar que,
algumas vezes, o mundo compreendido por mim ou por ti tem nada a ver com o mundo
chamado real – sendo simplesmente um mundo feito de palavras, realizando antes a
nossa vontade de que deveria ser assim, embora possa muito bem não ser. Daí, posso
me levar ao extremo de afirmar que o mundo compreendido pelas pessoas é apenas o
mundo delas, e não o mundo mesmo.
Este caminho conduz à loucura, com cada um se imaginando centro de um planeta
próprio, distante milhares de anos-luz dos outros planetinhas. E a locura geral parece se
encontrar na tentativa de imobilizar um dos termos da questão, no caso, o mundo. Ou,
aquilo que apressadamente denominamos “realidade”. O mundo, na verdade, não é – já
foi, está sendo, e se prepara para ser.
O mundo seria um aberto, como nos fala Cortázar, ligando a mágica com a lógica.
(...) mas o aberto continua aí, pulsação de astros e enguias, anel de Moebius de uma figura do mundo onde a
conciliação é possível, onde anverso e reverso deixarão de se desgarrar, onde o homem poderá ocupar o seu posto
nessa jubilosa dança que alguma vez chamaremos realidade. (Cortázar, 1974: 79)
O mundo pulsa, assim, como pulsam os astros celestes e as enguias submarinas.
Porque pulsa, não se pode agarrar e imobilizar, já que então deixará de ser – de pulsar.
Talvez se possa tocá-lo, com cuidado, com intensidade, de modo a acompanhar no
toque, na carícia do corpo e das ações, ou red-ações, o ritmo daquela pulsação, o destino
daquela vida/coisa que se toca, porque se quer saber, porque se quer viver também.
Estou chamando de mundo o objeto dos nossos textos, ou a meta dos nossos textos –
quer dizer, estou chamando de mundo quase tudo. Que se torna tudo, nos parecendo o
próprio todo, ou Todo (com a respeitosa maiúscula), quando “anverso e reverso” deixam
de se desgarrar. Isto é, quando não escolhemos apenas uma parte da vida para negar as
outras todas, como fazem os maniqueístas (no terceiro capítulo, aprofundo e critico o
desgarrar do anverso e do reverso, do bem e do mal, do certo e do errado).
Se tomamos o mundo e dizemos dele como uma coisa estática, o matamos. Talvez
seja melhor dizer que nos matamos; pois nos cegamos e nos insensibilizamos para a
pulsação. Daí esta imagem de tocar e acariciar o mundo para acompanhar-lhe a verdade
passo a passo. O paralelo amoroso vale a pena: uma coisa é tomar o objeto de amor
como posse, como servo ou serva da Família, da Propriedade e da Tradição, e não de si
mesmo; outra coisa é tocar o objeto de amor com amor, como vida e mundo especiais,
de pulsação própria e destino próprio, destino que às vezes possa se cruzar com o de
outrem, assim como possa se descruzar. Tomar o objeto de desejo e de amor como
posse, a se guardar no cofre do lar, nem tão doce lar, significa acabar com ele – por
extensão, acabar com o desejo e com o amor. Mas tocar o objeto de amor é permitir que
ele seja de si mesmo – podendo ser com alguém, enquanto quiser e puder.
Se um dia você for embora
Não pense em mim
Que eu não te quero meu
Eu te quero seu.
A música de Danilo Caymmi e Ana Terra fala dos amores cotidianos, e fala do ato de
falar sobre o mundo e ao mundo, filosoficamente. Cortázar, por sua vez, chamou a
realidade de “jubilosa dança”. Quando chega o momento de limitar um pouco o alcance
desta teoria.
As conclusões de cá referem-se ao discurso escrito. Certamente algumas delas serão
válidas em outros discursos, enquanto outras não. Em certos momentos meu texto
poderá dar a impressão de só existir o discurso escrito, o que será verdadeiro para este
livro, mas falso em termos absolutos.
Quando disse, por exemplo, que uma redação atrapalhada pode ser sintoma de um
pensamento atrapalhado, ou de uma educação atrapalhadora, eu disse “pode”. Mas uma
redação atrapalhada pode indicar também que a pessoa vem jogando todas as suas
energias no aprendizado de outras falas: música, dança, teatro, ciência, esporte. Neste
caso, se está lendo este livro, não se deve sentir diminuída, muito antes pelo contrário;
porque seu esforço é o de ampliar-se, dominar-se. Se for um bailarino, o aprendizado da
redação ajudará bastante não só a ele mesmo como à sua própria arte. E a recíproca é
verdadeira: o escritor que aprenda, ou reaprenda, a dançar melhora tanto o seu corpo
quanto o seu texto.
Nem por sombras pretendo deixar subentendido algo parecido com: quem não escreve
bem não pensa bem. Isto acabaria por me levar ao absurdo fascista de afirmar que os
analfabetos nem pensam. O discurso escrito, a redação, é um dos modos de organizar e
articular o pensamento, de tocar e de conhecer o mundo. Na nossa sociedade ocidental
cristã, eminentemente letrada, talvez ainda seja o de maior prestígio (em que pese a
emergência do cinema e da televisão). Por isto, e por causa do título do livro, é claro,
tratamos predominantemente dele.
Gandhi conhecia a importância da palavra escrita. Advogado, e advogado de uma causa
nacional, a libertação da Índia, e de uma causa maior, a não violência, o pacifismo
radical, fez da sua palavra em discursos e artigos uma arma contundente pelo que
acreditava e defendia. No entanto, bem sabia não bastar.
A educação literária deve acompanhar a educação manual, que é o único dom que visivelmente distingue o homem do
animal. É uma superstição pensar que o pleno desenvolvimento do homem é impossível sem o conhecimento da arte
de ler e de escrever. Esse conhecimento certamente acrescenta encantamento à vida, mas não é absolutamente
indispensável ao desenvolvimento moral, físico ou material do homem. Esquecer como escavar a terra ou cuidar do solo
é esquecer a nós mesmos. (em Attenborough, 1983: 15)
O verbo depende da mão, assim como a teoria depende da prática.
O escritor depende, então, do lavrador, do pedreiro, do carpinteiro, assim como de seu
próprio verbo. Melhor seria se cada homem tecesse a sua própria roupa, como Gandhi
queria, para todos os homens de fato conversarem à volta das rodas defiar, sem uns
emudecerem e embrutecerem, humilhados por um trabalho manual que não devia e não
podia ser humilhante, para outros tagarelarem e ordenarem e engordarem, mutilados
também de algo essencial, embora sem o saberem.
Acredito, parece claro, no trabalho de redação ajudando a organizar o pensamento, o
sentimento e o mundo. Mas acredito no trabalho com outras linguagens com a mesma
intensidade. Mais: preciso dos trabalhos em outras linguagens, para dilatar minha
redação, e preciso trabalhar eu mesmo em outras linguagens, em outros diálogos
fundamentais: com a terra, ou com o meu corpo, ou com outros corpos diferentes e
desconhecidos.
Amar é o rascunho da principal de todas as faltas. Escrever pode ser uma metonímia do
amor, e o que se escreve uma metonímia do mundo (do ser amado).
2. MÉTODO
À espada em tuas mãos achada
Teu olhar desce.
“Que farei eu com esta espada?”
Ergueste-a, e fez-se.
– FERNANDO PESSOA
Indução
A palavra “método” assim se formou: meta + odos. Meta = através de. Odos =
caminho. Portanto, caminho através do qual...
Através do qual se chega perto de onde se quer chegar. No nosso caso, queremos
chegar perto da “verdade andando” através da redação. Por aí, identificaremos na
tradição ocidental dois métodos fundamentais de raciocínio: o indutivo, raciocinando do
particular para o geral e do efeito para a causa, e o dedutivo, raciocinando do geral para
o particular e da causa para o efeito.
No uso habitual, combinam-se estes dois métodos sem muita consciência, conforme as
conveniências da argumentação. No entanto, a consciência dos seus recursos e limites dá
outro lastro ao que se fala e se escreve. A partir da combinação consciente dos métodos,
talvez se conquiste um pouco mais de precisão, junto com um pouco mais de
honestidade no pensar e no expressar.
A indução é o método de raciocínio especificamente apoiado na observação. Só
podemos observar dados concretos (captáveis por nossos concretos sentidos) e
particulares (à volta de nossa particular existência). Munidos destes dados, porém,
podemos alcançar o abstrato e o geral. Podemos concluir. Os dados concretos são
conhecíveis, e se os observarmos tornam-se conhecidos. A conclusão visada nos é
desconhecida, nascendo da observação. Donde, no método indutivo partimos do
conhecido para o desconhecido (que se pretende conhecer).
Observar é movimento humano e dinâmico, colhendo fatos, cozinhando-os no raciocínio
e produzindo opiniões. Produzindo provisórias e necessárias regras de vida. Aliás,
cozinhar é um bom verbo para representar a síntese dos movimentos humanos, inclusive
o de observar: implica transformar, com as mãos, com instrumentos, com fogo e com
carinho, a matéria viva em mais vida, a vida morta em sobrevivência e prazer.
O método indutivo parte da observação do efeito, ou dos efeitos, para chegar à causa
ou às causas. No primeiro trecho do caminho indutivo, encontramos tão somente os
efeitos. As causas estão na ponta daquela pergunta tão criança e tão vital: mas por quê?
Um efeito é o resultado visível, palpável, a superfície do iceberg. A causa, em todos os
fenômenos que valem a pena ser investigados, não é uma, são muitas, são tantas. Do
que se conhece até hoje das investigações indutivas, chegamos nunca a uma causa
apenas e sempre a um conjunto complexo de causas (tão complexo que às vezes a causa
de X será ao mesmo tempo efeito de Y, em sistema intrincado que remete a todo
instante ao dilema da galinha e do ovo: quem chegou primeiro?). Este conjunto complexo
de causas forma a estrutura dos acontecimentos, forma o todo articulado e invisível,
imenso fundo do iceberg do qual vemos apenas as pontas emersas, as particulares partes
possíveis e passíveis de se enxergar ou apalpar. Isto fez Hegel dizer que “a verdade é o
todo” (retomaremos Hegel e sua sentença no sexto capítulo).
Há dois recursos indutivos básicos: a observação direta e o testemunho autorizado. No
primeiro, a pessoa confia nos seus próprios sentidos para observar o que a cerca e daí
extrair conclusões sobre o que ainda não sabia. No segundo, a pessoa elege alguém que
já tenha feito observações pertinentes ao que lhe interessa, considerando seus
testemunhos como autorizados.
O segundo recurso é indispensável, uma vez que ninguém se pode arvorar em observar
tudo em todos os tempos e em todos os lugares. Para investigar questões históricas, e
toda questão social passa pela história, sem túneis do tempo só podemos recorrer a
testemunhos outros, devidamente documentados como foi possível para cada tempo e
lugar. Naturalmente, podemos e devemos fazê-lo de forma crítica e atenta, comparando,
situando e duvidando. Vamos desenvolver os dois recursos através de uma apressada
investigação de determinado tema: violência.
Para fazê-lo indutivamente, primeiro se observam os dados particulares conhecidos –
os efeitos. Os efeitos imediatos da violência são suas vítimas. Olho à volta, procurando
momentos em que eu, parentes, amigos e conhecidos nos tenhamos considerado vítimas
de violência. Na presente história urbana brasileira, certamente vários de nós teremos
sido assaltados ou agredidos de alguma forma. Na aparente maioria das vezes, os
assaltantes e agressores pertenciam às camadas despossuídas da sociedade – mais
simplesmente, eram pretos e pobres. Logo, são eles a causa da violência.
Mas, calma. O caminho do particular para o geral não se atravessa em apenas dois
passos. Dois passos apenas servem àquela pessoa que precisa de uma opinião qualquer
para gastar no bar à noite. Quem se dispõe a articular sua expressão dá estes dois
passos, volta a dúvida sobre eles e deles desconfia. Assim, permitam-me desconfiar das
observações acima. O meu olho e o olho de meus parentes e amigos não seriam, por
acaso, o mesmo olho? O olho de uma mesma classe, média, com poucas posses mas com
posses, cujo ponto de vista vem marcado pelo medo de perder, ou seja, de roubarem,
este pouco que ainda tem?
Se tentar ampliar e estender o olho de minha classe através dos meios de
comunicação, ainda não estarei me ampliando muito. O olho da televisão, por exemplo,
embora a cores, é a soma dos olhos dos homens concretos que a dirigem e que nela
trabalham – homens daquela mesma classe ainda.
Porém, se mudo a perspectiva coleto fatos novos e diferentes daqueles. A saber: das
600 mil crianças que morrem anualmente no Brasil, 69% são vítimas diretas ou indiretas
da subnutrição. Ah, a subnutrição é uma cruel assassina. Sim, mas quem, ou o que, nutre
a subnutrição?
Os fatos acima (as mortes acima) foram pinçados do livro Política da repressão, de
Luigi Moscatelli, demonstrando a necessidade de recorrer a testemunhos outros, para
pensarmos em mais de uma perspectiva. No primeiro momento, identifiquei nos
miseráveis a causa da violência. No segundo momento inquieto, posso me perguntar se
não será a miséria efeito ainda – efeito de violências mais amplas.
Recorrendo a testemunhos de caráter diverso, as perspectivas se ampliam um pouco
mais. Por exemplo: Freud, ao estudar as sociedades primitivas e seus tabus, encontrou
fundas semelhanças com as sociedades presentes.
Existe, entre os povos primitivos, o temor de que a violação de um tabu seja seguida de uma punição, em geral
alguma doença grave ou a morte. A punição ameaça cair sobre quem quer que tenha sido responsável pela violação do
tabu. (...) Somente quando a violação de um tabu não é automaticamente vingada na pessoa do transgressor é que
surge entre os selvagens um sentimento coletivo de que todos eles estão ameaçados pelo ultraje; em seguida,
apressam-se em efetuar eles próprios a punição omitida. Não há dificuldade em explicar o mecanismo desta
solidariedade. O que está em questão é o medo do exemplo infeccioso, da tentação a imitar, ou seja, do caráter
contagioso do tabu. Se uma só pessoa consegue gratificar o desejo reprimido, o mesmo desejo está fadado a ser
despertado em todos os outros membros da comunidade. A fim de sofrear a tentação o transgressor invejado tem de
ser despojado dos frutos de seu empreendimentoe o castigo, não raramente, proporcionará àqueles que o executam
uma oportunidade de cometer o mesmo ultraje, sob a aparência de um ato de expiação. Na verdade, este é um dos
fundamentos do sistema penal humano e baseia-se, sem dúvida corretamente, na pressuposição de que os impulsos
proibidos encontram-se presentes tanto no criminoso como na comunidade que se vinga. (Freud, 1974: 87)
Se alguém mata primeiro, os outros membros da comunidade se autorizam a matar
também, em nome da “justiça” – na realidade, atendendo ao próprio desejo reprimido de
matar. O que começa a explicar, embora não a justificar, os linchamentos populares, a
tortura policial e os clamores histéricos pela volta da pena de morte.
Com tais observações e testemunhos, parece difícil chegarmos a conclusões definitivas.
A questão da violência saiu dos miseráveis como agentes para se espelhar na própria
diferença de classes; saiu da diferença de classes para se revelar em desejos violentos, e
violentamente reprimidos, presentes em todos os indivíduos e em todas as comunidades.
Evidente que não dá para parar por aqui, neste tema. Há de se continuar investigando,
escrevendo e reescrevendo. Mas, de fato, o método indutivo não nos leva a conclusões
definitivas.
Limites
Se o método indutivo se apoia na observação dinâmica dos fatos, as conclusões que dele
se extraiam estarão melhor “calçadas” quanto maior o número de fatos colhidos e quanto
melhor a qualidade das relações que estabeleçamos entre os fatos. Como uma pirâmide,
tanto mais estável quanto mais ampla a extensão de sua base.
Entretanto, por mais extensas que sejam as nossas pirâmides investigadoras, nunca o
serão o bastante para nos garantir a verdade absoluta. O método indutivo tem os seus
limites. Ao raciocinar a partir dos fatos, ele nos entrega conclusões provavelmente
verdadeiras, mas não necessariamente verdadeiras. No mais das vezes, existem
hipóteses alternativas àquelas com as quais nos apegamos, indicando caminhos diversos
para a solução.
A solução de alguém para um problema é, no geral, sua opinião sobre o problema. De
um mesmo conjunto de fatos várias opiniões podem ser possíveis – pois a opinião é a
marca do sujeito no seu mundo, responsabilizando-o ao mesmo tempo perante a
sociedade, o mundo, nos termos das opiniões que emite.
Demonstramos a aplicação do método no tema “violência”. Demonstraremos os seus
limites com exemplo diferente, para aliviar a barra. Que tal, verruga? Verruga é um
problema para muita gente, e problemas estão à cata de soluções. Muitos acreditam em
eliminar as verrugas friccionando-as com cebolas. Acreditam, porque viram muitas curas
dessa espécie de fato acontecerem, confirmando a crença. Fatos objetivos nos levam a
conclusões objetivas, certo?
Atenção: a conclusões objetivamente prováveis. Se exercitarmos de novo a dúvida, e
duvidarmos das propriedades terapêuticas das cebolas, podemos lançar uma hipótese
alternativa, do tipo: as verrugas talvez sejam meros sintomas psicossomáticos. Neste
caso, como as urticárias, elas representariam o aflorar na pele, na superfície, de
problema interno profundo, como medo do fracasso, ou de rejeição, ou de ser feio. Daí,
como a maioria dos sintomas psicossomáticos (explosão no corpo, através de problemas
físicos aparentes, de doenças psicológicas reais e inconscientes), elas seriam passíveis de
cura por meio da sugestão. Qualquer método de tratamento passa a ser eficaz, desde
que o paciente nele acredite. Seria acreditar no tratamento, e não propriamente o dito
cujo, que produziria a cura.
A hipótese alternativa checa o grau de probabilidade das cebolas, mas também precisa
de fatos para confirmá-la. Um modo seria levar tantos pacientes a acreditarem num outro
tratamento, tipo friccionar uvas verdes. Ou propor diretamente o enfrentamento do
problema psicológico subjacente. Se as uvas verdes ou o conscientizar do medo
resolverem, derrubando as verrugas, então mostrou-se muito fraca a conclusão anterior e
fortalecida esta nossa – por enquanto.
Dedução
O método indutivo, calcado na observação direta e no testemunho autorizado, é
insuficiente para tocar em muitas verdades. A simples disposição ordenada dos fatos nem
sempre torna óbvia a hipótese mais plausível. Na verdade, a elaboração de hipóteses é a
parte mais difícil do trabalho científico. A hipótese é um movimento preliminar necessário
à reunião dos fatos, já que a seleção dos mesmos requer algum critério. Sem algo desta
espécie, a mera multiplicidade de fatos apenas desconcerta.
O método dedutivo dá conta das hipóteses preliminares, caminhando em sentido
aparentemente inverso do indutivo: do geral para o particular, do abstrato para o
concreto. Do desconhecido para o conhecido e da causa para o efeito. Por quê? Porque
ele se apoia no raciocínio, melhor dizendo, na projeção raciocinada de uma solução.
O trabalho da dedução, portanto, se concentra na montagem da projeção, também
chamada hipótese, ou premissa geral. Trabalho que se desenvolve assim: elaborar a
hipótese; relacionar os fatos pertinentes e suficientes; confirmar ou não a hipótese; não
confirmando, reelaborar; confirmando, concluir.
Usualmente, a dedução é matemática. Como a matemática, apoia-se nos elementos
abstratos (números, equações), buscando um sentido, uma estrutura, uma forma, uma
relação, entre os elementos concretos do mundo. Tanto a dedução quanto a matemática
são indispensáveis, em que pese a provável ojeriza de alguns leitores às matemáticas. Se
nós não podemos observar sempre a tudo, precisamos de alguns princípios gerais que
sustentem nossas ações e reações por cada instante. E os princípios são as equações que
aplicamos sobre as coisas. A equação “2 + 2 = 4” me evita de sempre catar quatro
laranjas para fazer a conta concreta e daí transferir o resultado para, por exemplo,
cidades. A equação “o ato de escrever é um ato de autoafirmação” me evita de sempre
filosofar a cada vez que me deparo com o papel branco – me possibilita enfrentar o vazio
sem hesitação, pois trago este princípio comigo.
Os estudiosos da Lógica encontraram uma constante a se repetir no raciocínio
dedutivo, chamando-a silogismo (que podemos ler como: se-é-lógico). Esta constante e
suas variações dão a estrutura dos quatro principais recursos dedutivos: o silogismo
propriamente dito, o silogismo munido de provas, o dilema, e a redução ao absurdo.
O silogismo é constituído por três proposições: uma premissa geral, uma premissa
particular, e a conclusão. Entre as duas premissas há um termo comum, levando a se
colocar, na conclusão, o particular dentro do geral, para justamente confirmar a hipótese,
ou seja, a própria premissa geral e inicial. Exemplificando em situação eleitoral.
Todos os corruptos não devem ser eleitos.
Ora, Fulano é sabidamente corrupto.
Logo, Fulano não deve ser eleito.
A premissa geral destaca o termo todo(s) para abranger todo o conjunto de elementos
referidos. A premissa particular destaca o termo ora, para colocar um caso particular
(“ora” parece vir mesmo de “hora”, ou seja, “nesta hora”, neste particular). A conclusão
destaca o termo logo, indicando o caminho do logos, da lógica, para situar o caso
particular dentro do conjunto mais geral. O termo médio, no caso, é “corrupto(s)”,
presente no sujeito da premissa geral e no predicado da premissa particular, para
permitir a relação entre os dois termos “Fulano” e “eleição”.
Podemos esquematizar o silogismo da seguinte forma:
Todo é .
Ora, é .
Logo, é .
O silogismo munido de provas é mais comum, porque é mais comum combinar indução
com dedução. Argumentos silogísticos deste tipo expressam uma ideia apoiada tanto em
provas e evidências quanto em uma estrutura adequada – sustentando a tese quer
indutivamente, pelas evidências concretas, quer dedutivamente, pela organização da
hipótese à conclusão. Como no exemplo a seguir.
Todo mundo deve saber algo sobre as diferentes teorias econômicas, do capitalismo ao anarquismo, porque o contato
com a prática social e política do lugarem que a gente vive exige de cada um o mínimo de princípios gerais para ter
como se orientar perante as questões fundamentais. Ora, você pertence ao mundo de pessoas a que me referi. Logo,
você deve procurar saber algo sobre as diferentes teorias econômicas, certo?
O dilema (di-male, dois males) aparece quando se deve escolher entre duas
alternativas desagradáveis. Por trabalhar com a alternativa, introduzirá dois outros
termos no raciocínio: se e ou. O velho problema teológico do mal, por exemplo, pode ser
exposto na forma de um dilema.
Há o mal no universo. Isso quer dizer que Deus não pode evitar o mal, ou que Ele não deseja evitar o mal. Se Deus é
incapaz de evitar o mal, Ele não é onipotente. Se Deus não deseja evitar o mal, Ele não é benevolente. Logo, ou Deus
não é onipotente, ou Deus não é benevolente.
O argumento é perfeitamente válido, o que não significa que não se possa discuti-lo.
Alguns teólogos rejeitam a afirmação inicial, de que haveria maldade no mundo. Outros
veem uma finalidade benevolente de Deus na existência do mal: a de aumentar a virtude
dos homens pela resistência às tentações. E os ateus rejeitam a própria existência de um
deus. Em cada caso, se faz necessário negar a premissa questionada e refazê-la em outro
sentido, talvez desmontando o dilema.
N a redução ao absurdo, quando se pretende defender determinada tese, admite-se
primeiro a tese oposta, justo para reduzi-la ao absurdo e assim ganhar força para o que
se queria demonstrar. São quatro as suas fases básicas: primeira, afirmar o absurdo de
uma tese; segunda, admitir, apenas por hipótese, a correção daquela tese; terceira,
deduzir uma ou mais consequências inaceitáveis e ilógicas; quarta, concluir o que se
queria demonstrar.
Para fechar esta parte, desenvolvo uma redução ao absurdo a partir de assunto
delicado – mostrando, talvez, a lógica na delicadeza.
Quanto ao amor, como defini-lo? Há séculos, repetimos: ama ao próximo como a ti mesmo. Esta sentença basta para
definir o amor? Parece-me que não. Se admitíssemos que sim, teríamos de admitir que as pessoas amam a si
mesmas. E que o padrão do amor pelo outro seria o do amor-próprio. No entanto, observamos as pessoas insatisfeitas
consigo mesmas, com seu corpo, com seu trabalho, com sua vida, sempre com um dos olhos no que podem ter e
ser. Ora, então as pessoas não se amam, elas amam o que querem ser. Daí, não teria sentido amarmos ao próximo
como a nós mesmos, a não ser que amássemos no próximo também o que ele quer ser, nos pondo como cúmplices
dos seus desejos, inclusive para ele se tornar cúmplice dos nossos. Definiríamos o amor, portanto, como uma espécie
de cumplicidade – algo bastante diferente da sentença que repetimos mecanicamente há séculos.
Limites
Podemos identificar os limites da dedução já na constante observada. O silogismo não é
uma chave mágica que nos leve sempre a conclusões irrefutavelmente verdadeiras. Não
basta escrever “todo”, “ora” e “logo” na frente das sentenças para termos um silogismo
perfeito e daí um raciocínio perfeito. Aristóteles, e filósofos dependentes dele,
acreditavam que os silogismos seriam capazes de evitar todas as falsidades. Do mesmo
jeito, o aprendiz de redação pode encontrar nestas expressões uma varinha de condão
que pareça resolver todas as dificuldades, convencendo todo mundo em todos os
momentos. Porém, tantas vezes, não resolve e não convence.
A primeira coisa que temos a dizer, a respeito dos limites do método dedutivo e de sua
constante, é que cuidamos de um método, e não do único. Cada verdade tem o seu
próprio caminho a ser descoberto, cabendo a quem pensa e escreve combinar seus
instrumentos e seus métodos para encontrar o adequado, capinando o mato.
Capinando o mato sem deixar de afiar a foice que capina. A foice do método dedutivo é
a primeira premissa, ou seja, a hipótese inicial. E a hipótese inicial não pode ser
transtornada em mito, em hipertese.
Como a dedução parte de uma projeção raciocinada do que poderia ser a verdade,
corremos o risco de entender o que poderia como se já fosse, desconsiderando a
transição cuidadosa do geral para o particular. Ao desconsiderar confirmação e transição,
os argumentos se tornam fracos, sem lastro. Para compensar a sua falta de lastro, se fala
grosso a hipótese, agora hipertese – se a coloca como mito, como dogma, como conceito
fechado.
O primeiro mito é o da perfeição, para o qual contribui a matemática. Quando a
geometria nos diz “suponhamos que ABC seja um triângulo retilíneo”, esquecemos o
importante verbo, “supor”, e pensamos ter ela nos oferecido uma verdade segura e reta.
Triplamente reta. Mas somos incapazes de traçar linhas absolutamente retas, e os físicos
deixam em dúvida, inclusive, se o universo contém alguma linha absolutamente reta. As
matemáticas não podem jamais nos dizer o que é, mas unicamente o que seria se... A
matemática, paradigma e molde das ciências, ainda e apenas supõe. Suas hipóteses são
suposições.
3. MANIQUEÍSMO
Aquilo que se faz por amor
sempre se faz além
dos limites do bem e do mal.
– FRIEDRICH NIETZSCHE
História
Por que falar deste assunto ligado à redação? Porque entendo o maniqueísmo como um
forte entrave à formação das opiniões e dos argumentos. Como um forte entrave à
produção das redações. Portanto, cabe enfrentá-lo – nomeando-o.
O maniqueísmo, com este nome, nos veio da Pérsia. Mani era o deus persa, formado
metade do corpo pelo bem, metade pelo mal. A adoração ao deus considerava o mundo
como campo de batalha entre duas grandes hostes – a do bem, chefiada por Ahura
Mazda, e a do mal, dirigida por Ahriman. Nosso Satã é uma derivação da palavra e da
ideia de “Ahriman”.
As religiões sempre foram dualistas assim – e isto deve ter um sentido. As religiões do
Egito e da Babilônia eram originalmente cultos à fecundidade. A terra, feminina; o sol,
masculino. O touro visto como a encarnação da fertilidade viril, sendo comuns os deuses-
touros (os minotauros). Na Babilônia, a deusa da terra, Ishtar, se punha como a mais alta
das divindades femininas. Em toda parte, a terra-mulher, ou mulher-terra, veio sendo
adorada sob vários nomes: a Grande Mãe oriental, a Ártemis grega, a Diana romana, até
chegarmos na Nossa Senhora.
Podemos começar a reconhecer, na dependência do sol à terra, e da terra ao sol, da luz
(calor) à escuridão (o escuro subsolo onde germina a vida) e da escuridão à luz, do
homem à mulher e da mulher ao homem, o princípio de uma origem nos dualismos
religiosos.
Os cretenses adoravam deusas (pelo visto, nem sempre foram machos os seres
divinos), em especial a Senhora dos Animais. Apreciavam corridas de touros, também,
nas quais toureiros e toureiras realizavam proezas acrobáticas. Ora, perguntaria um
machista, por que deusas e por que toureiras? Eles e elas viviam na ilha de Creta. Suas
cidades não possuíam muralhas, e tinham muito pouco receio da guerra. Viviam da
agricultura, e não do comércio e da conquista; a terra, então, era muito mais importante
do que a arma. A mulher era mais importante do que o homem? De acordo com este
simbolismo, sim. Mas os gregos conquistaram e destruíram Creta. Deram um jeito de
“casar” as deusas com deuses seus, submetendo, além do povo, os produtos da
imaginação do povo. Estes deuses gregos, por sua vez, diferem dos homens apenas
quanto à imortalidade, e por possuírem poderes sobre-humanos. Os deuses do Olimpo
não foram de modo algum bondosos. Gostavam de aterrorizar com trovões os assustados
mortais. Agiam como chefes conquistadores, como piratas. Lutavam muito e faziam
muitas festas; bebiam bastante e ridicularizavam à vontade uns aos outros. Mentiam
sempre, tanto no amor quanto na guerra. Temiam apenas a Zeus, seu rei. Zeus, por sua
vez, temia unicamente ao Destino (ou Moira, como eles chamavam).
As deusas cretenses espelhavam o modo de vida de lavradores, atletas e artistas. Os
deuses gregos retratavam um modo de vida guerreiro, conquistador, vitorioso, baseado
economicamente no trabalho escravo dos vencidos – um modo de vida temente apenas
ao que não se

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