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1 CENTRO UNIVERSITÁRIO FAVENI Linguística Aplicada ao Ensino de Língua Materna GUARULHOS – SP 2 SUMÁRIO 1 Diversidade teórica da linguística ............................................................................ 5 1.1 Diversidade teórica e caráter heterogêneo da língua ....................................... 5 1.2 Estruturalismo ................................................................................................... 7 1.3 Historicismo ...................................................................................................... 9 1.4 Gerativismo ....................................................................................................... 9 1.5 Sociolinguística ............................................................................................... 10 1.6 Linguística cognitiva ....................................................................................... 10 1.7 Linguística textual ........................................................................................... 11 1.8 Pragmática ...................................................................................................... 11 1.9 Semântica ....................................................................................................... 13 1.10 Limitações das teorias linguísticas. ................................................................ 13 1.11 A diversidade teórica das ciências .................................................................. 15 2 Fundamentos teórico-metodológicos do ensino de língua materna: um panorama 17 2.1 Diretrizes para a elaboração e avaliação de materiais didáticos de Língua Portuguesa ................................................................................................................ 23 2.2 Importância da leitura, da oralidade e da escrita para o letramento ............... 27 3 LINGUÍSTICA APLICADA AO ENSINO DO PORTUGUÊS .................................. 30 3.1 Letramento e ensino de Língua Materna ........................................................ 30 4 Conceito de linguística .......................................................................................... 37 4.1 Estruturalismo: língua e estrutura ................................................................... 37 4.2 Gerativismo: linguagem e mente .................................................................... 39 4.3 Funcionalismo: língua e função ...................................................................... 40 4.4 Possíveis abordagens de estudo linguístico ................................................... 41 4.5 Teorias semânticas. ........................................................................................ 43 3 4.6 A linguística e o ensino de língua. .................................................................. 44 5 O que são variações linguísticas? ......................................................................... 46 5.1 Variação regional, ou geográfica .................................................................... 48 5.2 Fatores que causam as variações linguísticas. .............................................. 49 5.3 Variações linguísticas versus utilização da língua nos contextos de comunicação. ............................................................................................................ 50 6 Concepção da língua e diversidade linguística ..................................................... 52 6.1 Concepções da língua: o processo histórico linguístico ................................. 52 6.2 Diversidade linguística regional ...................................................................... 54 6.3 A diversidade linguística na sala de aula ........................................................ 55 7 O ensino de gramática .......................................................................................... 56 7.1 A aula de gramática ........................................................................................ 57 7.2 O ensino de gramática e as tarefas de leitura ................................................ 60 7.3 O ensino de gramática e as tarefas de produção escrita ................................ 62 8 Texto e gramática, fala e escrita ........................................................................... 63 8.1 Textos e gêneros discursivos no ensino de língua ......................................... 67 8.2 Documentos oficiais: trabalho com gêneros textuais ...................................... 69 9 Produção textual e expressão oral ........................................................................ 73 9.1 Produção textual: oralidade e escrita .............................................................. 73 9.2 Língua falada .................................................................................................. 74 9.3 Língua escrita ................................................................................................. 78 9.4 Máximas conversacionais ............................................................................... 80 9.5 Produção textual e norma culta ...................................................................... 83 Coesão e coerência textual ....................................................................................... 83 Concisão ................................................................................................................... 85 Clareza ...................................................................................................................... 86 Cacofonia .................................................................................................................. 87 4 Oralidade ................................................................................................................... 88 10 O que é um texto? ................................................................................................. 90 10.1 Texto, gramática e pontuação ........................................................................ 91 10.2 Propostas para a sala de aula ........................................................................ 92 11 Leitura e literatura ................................................................................................. 96 11.1 A importância das diferentes formas de leitura no cotidiano escolar .............. 96 11.2 O que diferencia a leitura da literatura da leitura de outros tipos de texto? .... 99 11.3 Métodos de leitura: diferentes possibilidades para serem aplicadas em sala de aula 104 12 Os modos de produção e recepção do texto escrito no ciberespaço: a hipertextualidade ..................................................................................................... 108 12.1 A hipertextualidade ....................................................................................... 108 12.2 Modos de produção e recepção do texto escrito no ciberespaço ................. 110 12.3 Produção textual convencional à produção hipertextual ............................... 112 5 1 DIVERSIDADE TEÓRICA DA LINGUÍSTICA Ao longo da história, várias abordagens surgiram tentando dar conta do fenômeno linguístico. Em virtude do caráter heterogêneo da língua, diversos aspectos devem ser considerados para compreendê-la. Dependendo da abordagem, são priorizados diferentes aspectos da língua, como sociais, cognitivos, criativos, entre outros. Da mesma forma, os dados linguísticos, que alimentam as bases teóricas da linguística como ciência, recebem tratamento diferenciado conforme a linha teórica que os aborda. Com a percepção do caráter heterogêneo da língua, a diversidade teórica passou a ser entendida em sua complementaridade, (Saussure 1995). Levando esse entendimento à práticade ensino, é necessário proporcionar e conduzir a reflexão sobre o funcionamento da linguagem e suas variações, considerando o uso linguístico por falantes socialmente integrados e a produção de sentidos. Para isso, precisamos propor concepções amplas de linguagem e de língua, para que não fiquemos apenas em uma abordagem teórico-conceitual. 1.1 Diversidade teórica e caráter heterogêneo da língua Existem muitos métodos e objetos para o estudo da linguística; por isso, é difícil alcançar tanta diversidade. 6 É difícil, por exemplo, conceituar discurso, texto, enunciado, enunciação, sentença. Podemos, contudo, ter acesso amplo às teorias em sua diversidade. De acordo com Saussure (1995), é o ponto de vista que cria o objeto. O autor argumenta que a linguística tem uma natureza heterogênea, já que existem tantos objetos quantos forem os olhares dirigidos à linguagem. Isso quer dizer que devemos repensar a questão do objeto e do método tendo em vista a heterogeneidade da língua. A partir da década de 1960, as teorias baseadas na homogeneidade da língua passaram a ser debatidas. Havia uma lógica estrutural na língua, sendo indispensável à análise das diferentes variantes. A língua passou a ser vista como heterogênea e diversa, “[…] ciência que se faz presente num espaço interdisciplinar, na fronteira entre língua e sociedade, focalizando precipuamente os empregos linguísticos concretos, em especial os de caráter heterogêneo” (MOLLICA; BRAGA, 2003, p. 9). Para Labov (2008), a heterogeneidade é o resultado natural de fatores linguísticos e sociais básicos que condicionam a variação de forma sistemática. A heterogeneidade ordenada dos sistemas linguísticos não compromete a estrutura desses sistemas. A língua é um sistema complexo, e o falante, por meio de sua competência linguística, compreende cada uma das formas concomitantes disponíveis na língua, mesmo que não as use frequentemente. Coelho (2008, p. 2472) afirma que o reconhecimento da heterogeneidade linguística é um grande passo para se modificar a ideia, ainda presente, do monolinguíssimo, que “[…] insiste em padronizar (a qualquer custo) a língua falada por seus habitantes”. Fatores como status social, sexo, grau de instrução, profissão, estilo pessoal, contexto e região, por exemplo, passaram a ser considerados ao analisar a fala e a escrita, a partir dos estudos sociolinguísticos. No entanto, a abordagem tradicional do ensino, em que o aceitável é falar e escrever segundo os padrões da gramática normativa, persiste até hoje. O estudo da língua tem sido reduzido à memorização de regras gramaticais aplicadas, enquanto a natureza heterogênea da língua se faz presente em sala de aula. Por isso, precisamos conscientizar os alunos que existem diferentes variantes linguísticas, que, organizadas, atendem a diferentes contextos de uso. De acordo com Labov (2008), a variação linguística é um fenômeno natural de todas as línguas, condição e característica essencial própria do sistema linguístico. 7 Existem, portanto, diferentes linguísticas: as que buscam formalizar seu objeto e as que concebem o próprio objeto como heterogêneos. Essas perspectivas são complementares e se referem a momentos diferentes da análise da linguagem. O segundo grupo — o que assume seu objeto heterogêneo — contempla a língua em situações reais. São as pragmáticas, as teorias do texto, do discurso, da enunciação. A seguir, você vai conhecer as principais abordagens linguísticas. 1.2 Estruturalismo Fonte: linguisticaemfoco.wordpress.com O marco do nascimento do estruturalismo foi a publicação do Cours de Linguistique Générale (Curso de linguística geral), de Ferdinand de Saussure, em 1916. É, por isso, considerado o fundador da linguística moderna. Esse livro teve origem nas anotações de alunos de Saussure em um curso que ministrava na Universidade de Genebra em 1871. Seu único livro publicado em vida foi Mémoire sur le Système Primitif des Voyelles dans les Langues Indo-européennes (Memórias sobre o sistema primitivo das vogais nas línguas indo-europeias), em 1879 (FRAZÃO, 2019). 8 Para os estruturalistas, a língua é uma estrutura, um sistema, uma organização, porque é “[…] formada por elementos coesos, inter-relacionados, que funcionam a partir de um conjunto de regras”. Além disso, “[…] essa organização dos elementos se estrutura seguindo leis internas, ou seja, estabelecidas dentro do próprio sistema” (MARTELOTTA, 2009, p. 114). A língua seria, então, forma (estrutura) e não substância (matéria). Essa substância precisa ser analisada para que se possam formular hipóteses sobre o sistema a ela relacionado. Para Saussure, o fenômeno linguístico apresenta duas faces que se relacionam e dependem uma da outra, o que ele chamou de dicotomias. Veja a seguir algumas delas (MARTELOTTA, 2009). Língua e fala: a linguagem tem um lado social (língua) e um lado individual (fala), sendo impossível pensar um sem o outro. O indivíduo sozinho não pode criar nem modificar a língua. Sincronia e diacronia: abordagem sincrônica é a que estuda a língua em um momento específico, sem considerá-la historicamente; abordagem diacrônica é a que estuda a língua através do tempo, considerando-a historicamente. Paradigma e sintagma: as relações sintagmáticas dizem respeito à distribuição linear das unidades na estrutura sintática; as relações paradigmáticas dizem respeito à associação mental que se dá entre a unidade linguística que ocupa determinado contexto. Significado e significante: a língua é um sistema de signos, que é a unidade constituinte do sistema linguístico. O signo é formado por um significante (imagem acústica, impressão psíquica) e um significado (conceito). Saussure estudou a língua como elemento fundamental da comunicação humana e lançou as bases dos futuros estudos linguísticos, o que contribuiu para estabelecer as bases da linguística moderna. As ciências humanas devem muito à linguística estrutural. Uma geração de pensadores evidenciou em seus estudos e obras a contribuição de Saussure para a organização estrutural da linguagem. Entre eles podemos destacar: Jacques Lacan, Claude Lévi-Strauss, Louis Althusser, Roland Barthes (MARTELOTTA, 2009). 9 1.3 Historicismo Vinte anos após a publicação do Curso de linguística geral, de Saussure, Otto Jaspersen e Herman Paul deram forma ao historicismo. Ao contrário do estruturalismo, o historicismo entende que a linguística tem caráter histórico. Ou seja, estuda-se a linguística considerando as variações e evoluções da língua. Segundo Lyons (1987, p. 202), “[…] as línguas são como são porque, no decorrer do tempo, elas estiveram sujeitas a uma variedade de forças causativas internas e externas”. 1.4 Gerativismo O gerativismo teve início nos Estados Unidos, no final da década de 1950, a partir dos trabalhos de Noam Chomsky. Sua tese de doutorado, Análise transformacional, resultou no livro Estruturas sintáticas, em 1957. No livro, Chomsky define as origens e os limites da cognição humana. O gerativismo foi inicialmente formulado como resposta ao modelo behaviorista de descrição dos fatos da linguagem. Para os behavioristas, como Leonard Bloomfield, a linguagem humana era interpretada como um condicionamento social. A repetição constante seria convertida em hábito pelo falante. Com o gerativismo, as línguas deixaram de ser interpretadas como um comportamento socialmente condicionado e passaram a ser analisadas como uma faculdade mental natural. Diversidade teórica da linguística De acordo com Chomsky, no cérebro humano, existe uma estrutura genética que lhe dá a percepção das coisas do mundo, por isso, o aprendizado da linguagem faz parte do indivíduo desde o seu nascimento. “Todos os falantes são criativos, desde os analfabetos até os autores dos clássicosda literatura, já que todos criam infinitamente frases novas, das mais simples e despretensiosas às mais elaboradas e eruditas” (MARTELOTTA, 2009, p. 128). 10 1.5 Sociolinguística Fonte: projetual.com.br A sociolinguística se firmou nos Estados Unidos na década de 1960, com Wiliam Labov. Essa abordagem estuda a língua em seu uso real, considerando as relações entre estrutura linguística e aspectos sociais e culturais da produção linguística. Além de contribuir para a descrição e explicação de fenômenos linguísticos, a sociolinguística também fornece subsídios para a área do ensino de línguas. 1.6 Linguística cognitiva Para a linguística cognitiva, a linguagem não constitui um componente autônomo da mente, ou seja, não é independente de outras faculdades mentais. A proposta é buscar uma visão integradora do fenômeno da linguagem com base na hipótese de que não há necessidade de se distinguir conhecimento linguístico de conhecimento não linguístico. Martelotta (2009, p. 179) explica que, “[…] de modo geral, a proposta cognitivista leva em conta aspectos relacionados a restrições cognitivas que incluem a captação de dados da experiência, sua compreensão e seu armazenamento na memória, assim como a capacidade de organização, acesso, conexão, utilização e transmissão adequada desses dados”. 11 1.7 Linguística textual A linguística textual se caracteriza pelo estudo do texto e começou a se desenvolver na Europa durante a década de 1960. O texto é compreendido como um evento comunicativo, com a ocorrência de operações linguísticas, sociais e cognitivas. A linguística textual muda o tratamento linguístico em termos de unidades menores — palavra, frase ou período —, entendendo que as relações textuais são mais do que um somatório de itens. Isso faz do texto a unidade comunicativa básica, o que temos a comunicar uns aos outros. 1.8 Pragmática infoescola.com Na segunda metade do século XX, existe uma virada no campo da linguística. Muitas teorias passaram a tratar da linguagem em uso, os chamados estudos pragmáticos. Esses estudos se originaram em áreas como semântica argumentativa, linguística textual, análise do discurso, sociolinguística, entre outras. Apresenta-se em correntes diversificadas, como o pragmatismo americano, a teoria dos atos de fala e os estudos da comunicação. O princípio filosófico do movimento pragmático no âmbito da linguagem é, segundo Pinto (2004, p. 49), o de que “[…] a representação é antes linguística do que mental”. 12 Ele quis dizer que não existe um mundo independente da linguagem e, portanto, a linguagem não representa o mundo. No centro dessa abordagem está a fala, o texto, o discurso, o sentido e os sujeitos. Os estudos pragmáticos consideram os fatores externos à língua e levam em conta os contextos de uso. Em todas as correntes, o traço social determina a investigação do uso da língua. Os fenômenos linguísticos, pois, não podem ser pensados fora da prática social e longe dos seus sujeitos. Isso quer dizer que é impossível separar linguagem e sociedade, linguagem e uso, linguagem e cultura. A pragmática do uso argumenta que os objetos de referência são fatos construídos socialmente e, por isso, são parte de um mundo possível. Dessa forma, o uso é que determina se esses objetos são constitutivos de um mundo possível ou não (VAN DIJK, 1992). A significância de um discurso depende dos atos reais ou possíveis denotados pelo discurso, uma dependência avaliada somente com base no nosso conhecimento sobre os fatos atuais ou possíveis, em algum universo ou situação. Isso significa que a competência pragmática é a capacidade de compreender a intenção do locutor e está além da construção da frase ou do seu significado. Por exemplo, imagine que você está andando na rua e alguém lhe pergunta “Você tem horas?”. Você, muito provavelmente, não vai responder “Sim, tenho” e continuar caminhando. Isso porque entendemos a intenção que está por trás da pergunta e respondemos de acordo: “São 9 horas”. Portanto, a competência pragmática revela essencialmente os objetivos da comunicação. Em suma, as teorias pragmáticas tratam do uso da língua, do contexto social, dos sujeitos — dos elementos que estão no exterior. Por outro lado, muitas dessas abordagens não consideram os fatores de ordem cognitiva, simplesmente privilegiam os aspectos sociais em detrimento dos fatores internos, biológicos ou individuais. Essa postura tem por fundamento uma visão de língua como fenômeno apenas social. É o que acontece com as abordagens sociolinguistas e etnolinguistas, por exemplo. 13 1.9 Semântica A palavra semântica reporta-se fundamentalmente ao verbo grego semaíno, que significa a ciência das significações. Ferdinand de Saussure (1995), mencionado anteriormente nos estudos estruturalistas, a concebeu como um estudo geral dos signos simbólicos, que seria a semiologia. A semiologia estuda os signos na vida social. A linguística é parte da semiologia, assim como os sinais militares, o alfabeto surdo-mudo e os ritmos simbólicos. As leis da semiologia, portanto, são aplicadas à linguística. Saussure (1995) afirma que o signo é produzido pelo homem e tem por objeto comunicar alguma coisa a alguém. O signo é formado por significante e significado, duas dicotomias também explicadas anteriormente neste capítulo. O significante seria a imagem acústica, e o significado, o conceito. Na análise semântica não se pode desprezar o contextual, que é o que vai definir diferenças e estabelecer identidades. No ensino da língua, a importância da semântica é ensinar a comunicar e compreender a comunicação. A importância dos estudos semânticos está na contextualização, pois compreende o valor do significante e do significado e torna possível trabalhar com maior clareza a sintaxe e a morfologia. Ao darmos ênfase especial à mudança de significado na estrutura do enunciado, a literatura e o entendimento do texto serão mais interessantes e prazerosos. 1.10 Limitações das teorias linguísticas. Como vimos, o objeto da linguística é naturalmente complexo e, dessa complexidade, emergem abordagens diversas. Cada uma delas prioriza aspectos diferentes da linguagem: contextos diferentes, evolução da língua, cognição, fatores sociais, entre outros. Por apresentarem limitações, essas abordagens se complementam. Para Saussure (1995) e seus seguidores, o pensamento está subordinado à linguagem, já que por meio da linguagem é possível dar forma ao pensamento. 14 A língua é “[…] um sistema de signos que exprimem ideias”, um sistema que compreende um conjunto de regras depositado na mente dos falantes (SAUSSURE, 1995, p. 24). Desse modo, a mente, estando em um contexto, apropria-se dos fatos da língua. Em todas as mentes humanas há os mesmos dados sobre a estrutura da língua. No gerativismo de Noam Chomsky, por sua vez, surge a ideia de desenvolver uma gramática gerativa, de acordo com os moldes da gramática universal de inspiração lógica. Chomsky afirma que todo falante possui uma gramática universal internalizada que lhe possibilita formar sentenças gramaticais em sua língua. Afirma também que todas as línguas naturais apresentam partes em comum, apesar de serem aparentemente diferentes, mas somente o homem possui a faculdade da linguagem. Essa faculdade torna toda criança apta a aprender uma ou mais línguas, se não houver algum obstáculo cognitivo. Assim, toda criança passa pelos mesmos processos e fases de aquisição da linguagem (MARTELOTTA, 2009). Os gerativistas defendem, ainda, que a linguagem tem um estatuto autônomo, sendo uma faculdade específica e diferente de outras, porque a mente é modular e apresenta sistemas cognitivos responsáveis por cada forma de conhecimento — entre eles o conhecimento da linguagem.Além disso, em relação à semântica, “[…] todo enunciado linguístico tem uma estrutura gramatical, isto é, deve ser construído de acordo com regras formais que determinam se a sequência é bem formada (gramatical) ou não (agramatical)” (MARQUES, 2003, p. 51). Assim, o significado é sintático e deve ser coerente com a estrutura lógica, porque a língua expressa a estrutura lógica do pensamento. Nessa visão, as regras que regem o sistema linguístico constituem o que podemos entender por competência gramatical e, como afirma Marques (2003, p. 51), esse domínio “[…] decorre de propriedades cognitivas inerentes à mente humana”. Chomsky chama de desempenho linguístico os fatores condicionantes externos, as circunstâncias socioculturais e as emoções dos falantes, suas crenças (MARTELOTTA, 2009). 15 Concluímos, assim, que as vertentes estruturalista e gerativista entendem a linguagem como representação direta do mundo ou como um espelho de processos mentais. No primeiro caso, a estrutura da linguagem reflete a estrutura do mundo; no segundo caso, a estrutura da linguagem reflete a estrutura da mente. A linguagem não é vista como resultante de atividades sociais e culturais, integradas com os processos cognitivos. Por isso, tanto o estruturalismo quanto o gerativismo consideram o tratamento do significado periférico, algo que pode ficar em segundo plano. As teorias pragmáticas, diferentemente das abordagens estruturalista e gerativista, entendem a linguagem como uma atividade ligada às variáveis sócio históricas, culturais e cognitivas. Estudam a língua considerando o seu uso. Portanto, as teorias pragmáticas estão trabalhando com a ideia de linguagem como o resultado de atividades sociais, culturais e cognitivas. Os aspectos de ordem cognitiva são hoje fundamentais, pois focalizam os contextos de uso da linguagem, como é o caso da linguística textual, por exemplo. Já não se pode pensar nos fenômenos linguísticos fora das categorias sociais. 1.11 A diversidade teórica das ciências A construção de uma ciência não se dá de maneira uniforme e regular ao longo da história. Muito pelo contrário: fazer ciência constitui um processo lento de caráter ideológico, filosófico, histórico e socialmente constituído, fruto de uma época, e requer um período de teste para que os paradigmas se afirmem. É um processo dialético, cujas investigações em torno de uma verdade exigem uma série de reajustes, para se chegar a resultados confiáveis. Quando se faz uma avaliação crítica da construção de uma teoria, é necessário, que se lance um olhar atento às irregularidades, ainda que elas possam estar disfarçadas sob a aparência de formulações categóricas. Dos períodos de formulação e teste surgem os períodos em que paradigmas são postos em uso, podendo ser confirmados ou não. 16 No que diz respeito à ciência da linguagem, considerando o longo período em que suas bases vêm sendo construídas, desde a Antiguidade Clássica até o século XX, apenas no final do século XIX se operou uma verdadeira revolução científica (KUHN, 1962, apud DASCAL, 1978). Uma atitude de questionamento e debate sobre os diferentes saberes é uma necessidade recorrente. Hoje, já começamos a entender que o conhecimento científico, ao longo do tempo, impôs uma única maneira possível de interpretar a realidade, anulando a possibilidade de complementar os saberes (SANTOS, 1997). Nessa linha de pensamento, a linguística também passa por processos de transformação e questionamentos. Tendo a heterogeneidade como principal característica, busca interagir com as outras ciências e buscar elementos para se renovar constantemente. A partir da segunda metade do século XX, as correntes linguísticas passaram a se dedicar aos estudos das situações reais de comunicação e a observar os falantes envolvidos em atos interativos. Com o passar do tempo, os estudos linguísticos tornam-se cada vez mais associados a outras ciências, como geografia, antropologia, psicologia, sociologia. Entende-se, portanto, como observamos anteriormente, que, com essa heterogeneidade, nem sempre é fácil distinguir os objetos de estudo de uma ou outra corrente linguística, já que em muitos momentos ocorre o encadeamento, a justaposição de várias ciências. 17 2 FUNDAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS DO ENSINO DE LÍNGUA MATERNA: UM PANORAMA Fonte: cognikids.com Os estudos linguísticos da enunciação constataram que a língua só existe no uso, ou seja, as situações de interação é que garantem a existência da língua. Dessa forma, a importância de se estudar a língua materna na escola está em aprimorar a competência comunicativa. Isso significa que as práticas de linguagem (oralidade, leitura, escrita e análise linguística) devem estar em conformidade com esses fundamentos. Eles estão presentes nas diretrizes nacionais sobre o ensino de português e orientam a produção de materiais didáticos. Uma breve reflexão sobre as necessidades atuais do ensino da língua portuguesa levará a uma constatação: os objetivos devem ser mais amplos e as práticas mais condizentes com as concepções de língua recentes (BEZERRA; SIMÕES E LUNA, 2016). Dessa forma, professores poderão contribuir de forma mais significativa com o desenvolvimento da competência dos alunos no uso da sua língua materna. Para tanto, há alguns pressupostos teóricos que podem auxiliar na orientação da atividade pedagógica de português. A concepção de língua é o primeiro passo para se identificar os principais fundamentos teórico-metodológicos. A atualidade pede uma noção de língua na dimensão interacional e discursiva para que o indivíduo possa ter condições de participar em diferentes situações no seu meio social. Nesse sentido: 18 A linguagem tem um caráter fundador de realidade (s), e não de mera representação desta, como é sugerida nas demais concepções. É nesse sentido que, ao contrário do que entende, por exemplo, a visão estrutural; a concepção sócio interacionista compreende que as significações são distintas a cada ato de linguagem, pois são determinadas pelas condições de produção do discurso e pela conjuntura sócio histórica. É, portanto, por meio de uma relação mútua entre falante e ouvinte que se constroem os sentidos (BEZERRA; SIMÕES E LUNA, 2016, p. 39). Essa concepção de linguagem corresponde aos estudos linguísticos da enunciação que partem da ideia de que a língua existe apenas na interlocução. Nas práticas pedagógicas os estudos da língua estariam associados, dessa forma, à análise da língua em funcionamento. Nesse sentido, na sala de aula, não se podem ignorar as variedades linguísticas. Além disso, não se pode restringir as análises ao nível da sentença, das frases. Para Geraldi (2006, p. 44), nessa perspectiva, no ensino da língua, “[...] é muito mais importante estudar as relações que se constituem entre os sujeitos quando falam do que simplesmente estabelecer classificações e denominar os tipos de sentenças”. Nesse contexto, é preciso identificar os princípios teóricos que podem fundamentar um ensino de aula mais adequado às necessidades atuais. Para tanto, é necessário analisar as práticas de leitura, escrita, oralidade e reflexão sobre a gramática. O trabalho com oralidade na sala de aula deveria corresponder ao estudo e à explicitação dos gêneros orais da comunicação pública. No entanto, as atividades escolares costumam se concentrar na identificação dos padrões coloquiais de uso da língua na oralidade. As aulas de português, dessa forma, excluem as convenções sociais e os registros formais da comunicação oral. Vale ressaltar que isso ocorre na melhor das hipóteses, pois, geralmente, há uma omissão quase completa da fala como objeto de estudo nas aulas de português. Em algumas situações a oralidade serve apenas de contraponto à escrita: como se a falafosse o espaço para as regras da gramática tradicional serem violadas. Antunes (2003, p. 24) alerta que: De acordo com essa visão, tudo o que é “erro” na língua acontece na fala e tudo é permitido, pois ela está acima das prescrições gramaticais; não se distinguem, portanto, as situações sociais mais formais de interação que vão, inevitavelmente, condicionar outros padrões de oralidade que não o coloquial. 19 É evidente que oferecer espaço para as conversas e troca de ideias informais é fundamental para as aulas de língua portuguesa, porém não se pode oportunizar apenas esse tipo de abordagem para a oralidade. Daí a necessidade de trabalho com os gêneros textuais. O seminário, por exemplo, do qual em algum momento da vida de estudante os alunos participarão, exige escolhas lexicais mais formais e, muitas vezes, mais específicas. O estudo dessas questões não pode ser deixado de lado. Outra prática fundamental nas aulas de português é a escrita, ou melhor, a produção textual. Esse ponto costuma ser crítico, tanto para alunos quanto para professores: os estudantes se mostram desmotivados a escrever, afirmam que estão sem inspiração e que não sabem escrever; os docentes dedicam longas horas à correção das redações, às sugestões e não veem receptividade dos alunos às suas anotações. Certamente, parte desse problema surge da artificialidade da escrita na escola, ou seja, como a proposta de produção textual parte de uma simulação, é comum que haja desmotivação dos envolvidos. Nesse sentido, é importante que as atividades em torno da escrita não ignorem a interferência do aluno: seu registro revela as hipóteses que ele cria sobre a representação gráfica da língua. Portanto, o uso adequado de regras ortográficas, por exemplo, não pode ser parâmetro para avaliar se um texto está bem escrito. Isso significa que é preciso desmistificar a ideia de que saber escrever é saber as regras de ortografia e gramática. Esse tipo de abordagem acaba oportunizando a escrita artificial. A escrita significativa exige um contexto comunicativo para que haja intenções de comunicação que preenchem a escrita de sentidos. Dessa forma, o texto se constrói com textualidade e com resposta a um contexto social. Antunes (2003, p. 26) alerta que se pode constatar nas aulas de língua portuguesa: [...] a prática de uma escrita sem função, destituída de qualquer valor interacional, sem autoria e sem recepção (apenas para “exercitar”), uma vez que, por ela, se estabelece a relação pretendida entre a linguagem e o mundo, entre o autor e o leitor do texto. Entretanto, se a proposta de produção textual for improvisada de tal forma que o objetivo seja apenas realizá-la, perde o significado e a finalidade de escrita. Afinal, os alunos não veem sentido em escrever algo que será lido apenas pelo professor, e para que ele possa, em muitos casos, apenas atribuir uma nota. Para dar conta desse 20 problema, Geraldi (2006) propõe que os textos produzidos pelos alunos ganhem visibilidade com publicações. O autor sugere que, na 5ª série, seja construída uma antologia das histórias produzidas; na 6ª série, se organize um jornal mural da turma para que os colegas possam ler todos os textos produzidos por eles; na 7ª série se organize um jornal que possa ser vendido na própria escola; e, na 8ª série, se publique uma antologia que possa receber um espaço num jornal local. No entanto, para que a produção de textos na escola se afaste da artificialidade, não basta encontrar um leitor definido nem garantir a circulação dos textos. É preciso também aproximar as propostas da realidade dos alunos. A prática de leitura, muitas vezes, se revela dissociada da interação verbal, pois é centrada apenas na decodificação da escrita ou na extração de informações. Entretanto, a leitura se caracteriza pelo contato do leitor com o texto e, para que isso aconteça, é preciso vinculá-la aos diferentes usos sociais. Nesse caso, há uma relação muito próxima com os problemas de escrita: a leitura se revela como uma atividade exclusivamente escolar; algo para cumprir, desvinculada de um interesse. Essas propostas buscam recuperar apenas os elementos da superfície do texto. Quase sempre esses elementos privilegiam aspectos apenas pontuais do texto (alguma informação localizada num ponto qualquer), deixando de lado os elementos de fato relevantes para sua compreensão global (como seriam todos aqueles relativos à ideia central, ao argumento principal defendido, à finalidade global do texto, ao reconhecimento do conflito que provocou o enredo da narrativa, entre outros) (ANTUNES, 2003, p. 28). A função da escola é dar subsídios ao aluno para que ele possa ler em outros espaços sociais. Dessa forma, não se pode oferecer uma leitura que não coincida com o que se precisa ler fora dos portões da escola. Em muitas aulas de língua portuguesa, o trabalho de leitura está à serviço das questões gramaticais, assunto que ocupa a maior parte do tempo dessas aulas. Mas o que realmente se deve trabalhar na análise linguística? Para começar, a gramática deve ser tratada como algo vinculado aos usos reais da língua (escrita e falada). Isso significa que a gramática precisa estar contextualizada, isto é, não se podem apresentar frases soltas, sem sujeitos interlocutores, para que se possa propor um exercício apenas. 21 Afinal, a gramática fragmentada não contribui com o desenvolvimento da competência comunicativa dos falantes e não se encontra nos contextos mais previsíveis de uso da língua. Antunes (2003, p. 32) afirma: Vale a pena lembrar que, de tudo o que diz respeito à língua, a nomenclatura é a parte menos móvel, menos flexível, mais estanque e mais distante das intervenções dos falantes. Talvez, por isso mesmo, seja a parte “mais fácil” de virar objeto das aulas de língua. Vale a pena lembrar também que a gramática de uma língua é muito mais, muito mais mesmo, do que o conjunto de sua nomenclatura, por mais bem elaborada e consistente que seja. Dessa forma, a análise linguística ou o ensino de gramática só tem sentido se ocorre com o apoio de textos reais. Assim, a preocupação não pode ser com a prescrição e com as normas que indicam o certo e o errado. É preciso se dedicar à escrita sobre o que se diz, como se diz e se o aluno tem algo a dizer (ANTUNES, 2003). Afinal, há muitos aspectos linguísticos relevantes, como os discursivos, e deter-se apenas à correção significa reduzir os estudos da língua. Como se nota, as práticas de oralidade, leitura, produção de texto e análise linguística exigem um trabalho de interação, na perspectiva da enunciação. Algumas teorias e metodologias fundamentam essa relação, como o interacionismo sócio discursivo (ISD) e o letramento. O interacionismo sócio discursivo foi desenvolvido por Jean-Paul Bronckart. Sua proposta principal foi levar a linguagem para os princípios do Interacionismo social, inserindo-a como elemento central. Bronckart (2006, p. 9) afirma que: O ISD aceita todos os princípios fundadores do interacionismo social, como a contestação do corte atual das ciências humanas/sociais: nesse sentido, ele não pode constituir uma corrente propriamente “linguística”, mais que uma corrente “psicológica” ou “sociológica”; ele se quer uma corrente da ciência do humano. Mas, de uma maneira que é apenas aparentemente contraditória com o que precede, o ISD considera que a problemática da linguagem é absolutamente central ou decisiva para essa mesma ciência do humano. No prolongamento da tese de fato compartilhada por Saussure e Vigotski, segundo a qual os signos linguísticos (langagier) estão nos fundamentos da constituição do pensamento consciente humano, visa a demonstrar, mais geralmente, que as práticas de linguagem situadas (quer dizer, os textos- discursos) são os instrumentos maiores do desenvolvimento humano, não somente sob o ângulo dos conhecimentose dos saberes, mas, sobretudo, sob o das capacidades de agir e da identidade das pessoas. Portanto, de acordo com os estudos do ISD, a atividade da linguagem se organiza em discursos e em textos, e os textos organizam-se em gêneros. Daí a necessidade de trabalhar a aula de português a partir da diversidade textual, dos 22 gêneros. Veçossi (2014, documento on-line) resume as ideias do ISD da seguinte forma: Em síntese, a articulação dos três autores no escopo do ISD leva-nos à seguinte relação: os signos (na acepção saussureana do termo), com seus significados (arbitrários), comungados historicamente pela comunidade de falantes, adquirem determinados sentidos (carregados ideologicamente) ao serem atualizados no interior de produções situadas sócio historicamente (Cf. BAKHTIN, 1997; 2004). Tais produções, sempre vinculadas a esferas de atividade verbal humana, ocorrem sob a forma de enunciados, concretos e únicos, os quais, por sua vez, atualizam, sob a forma de textos, os gêneros em uso em determinada comunidade (na acepção bakhtiniana do termo). Pensando no nível ontogenético, os gêneros funcionam como instrumentos (Cf. a noção vygotskiana) que, ao serem internalizados em meio a atividades sociais, propiciam o desenvolvimento das funções psicológicas superiores nos indivíduos, permitindo que estes ultrapassem o aspecto biológico e atinjam a dimensão sócio histórica, que é típica do humano. O ISD propõe, portanto, que os textos sejam analisados na perspectiva das múltiplas atividades para que, a partir das análises, se compreenda o humano. Assim, é possível aliar a leitura e a escrita ao ensino gramatical. A concepção de letramento dialoga com esses fundamentos. O letramento que considera a linguagem como interação dedica-se não só ao ler e ao escrever, mas também ao uso do ler e do escrever, e isso se refere às demandas de leitura e de escrita impostas pela sociedade. Essa concepção social da linguagem enfatiza o trabalho com gêneros textuais. Fuza et al. (2011, p. 493) afirmam que: “No processo de ensino e aprendizagem da língua materna, os gêneros são tomados como objetos de ensino (Brasil, 1998) e, por isso, são responsáveis pela seleção dos textos que serão trabalhados como unidades de ensino”. Em suma, a concepção de linguagem como meio de interação inclui o contexto social de construção de sentidos dos textos e cria a necessidade de práticas pedagógicas que privilegiem o estudo da língua a partir do texto para ampliar a competência comunicativa dos alunos. Para tanto, as práticas de oralidade, escrita, leitura e análise linguística devem estar associadas ao estudo do texto. 23 2.1 Diretrizes para a elaboração e avaliação de materiais didáticos de Língua Portuguesa A noção de que a linguagem funciona apenas para que as pessoas possam interagir socialmente e que as aulas de língua portuguesa devem ser planejadas e executadas com base nesse fundamento já é seguida em algumas ações governamentais. Esse é o caso dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e do Guia do Plano Nacional do Livro Didático (PNLD). O privilégio à dimensão interacional e discursiva da língua se articula no uso da língua oral e escrita e na reflexão sobre esses usos. Portanto, surge no tratamento da oralidade, da produção de textos, da leitura e da análise linguística. Observemos como essas relações aparecem nas diretrizes dos documentos orientadores nacionais. Os PCNs determinam que não é papel da escola ensinar alguém a falar ou a falar bem. Assim, o trabalho com a oralidade requer atividades sistemáticas de fala, escuta e reflexão sobre a língua. Veja (BRASIL, 1997, p. 39): São essas situações que podem se converter em boas situações de aprendizagem sobre os usos e as formas da língua oral: atividades de produção e interpretação de uma ampla variedade de textos orais, de observação de diferentes usos, de reflexão sobre os recursos que a língua oferece para alcançar diferentes finalidades comunicativas. Para isso, é necessário diversificar as situações propostas tanto em relação ao tipo de assunto como em relação aos aspectos formais e ao tipo de atividade que demandam — fala, escuta e/ou reflexão sobre a língua. Note que o foco está no desenvolvimento da competência comunicativa e na reflexão sobre a língua de forma contextualizada. Para tanto, são necessárias atividades associadas à resolução de problemas, às necessidades oriundas de conflitos surgidos no ambiente escolar (algo a ser resolvido), como: “[...] exposição oral, sobre temas estudados apenas por quem expõe; descrição do funcionamento de aparelhos e equipamentos em situações onde isso se faça necessário; narração de acontecimentos e fatos conhecidos apenas por quem narra, etc.” (BRASIL, 1997, p. 39). A BNCC (BRASIL, 2017) reitera a necessidade de incluir a oralidade como prática social que deve ser contemplada nas práticas pedagógicas e alerta que o componente de Língua Portuguesa deve ampliar os letramentos. Dessa forma, a oralidade se revela na BNCC como uma habilidade que permeia todos os campos da 24 área de língua portuguesa. Aliás, nesse documento, aparecem de forma mais clara os tipos de textos orais a se trabalhar e a relação dessa habilidade com as tecnologias atuais de informação e comunicação. O Eixo da Oralidade compreende as práticas de linguagem que ocorrem em situação oral com ou sem contato face a face, como aula dialogada, web conferência, mensagem gravada, spot de campanha, jingle, seminário, debate, programa de rádio, entrevista, declamação de poemas (com ou sem efeitos sonoros), peça teatral, apresentação de cantigas e canções, playlist comentada de músicas, vlog de game, contação de histórias, diferentes tipos de podcasts e vídeos, dentre outras. Envolve também a oralização de textos em situações socialmente significativas e interações e discussões envolvendo temáticas e outras dimensões linguísticas do trabalho nos diferentes campos de atuação (BRASIL, 2017, p. 74–75). Além disso, a BNCC prevê o aumento da complexidade do tema oralidade (BRASIL, 2017), conforme o aluno avança nos estudos. Assim, se nos anos iniciais se privilegiam os momentos de fala e de escuta e a produção de textos orais curtos, nos anos seguintes o aluno começa a ser desafiado a planejar textos orais e a compreendê-los para, nos anos finais, ser capaz de produzir textos mais longos e a participar de discussões orais de temas controversos de interesse da turma e/ou de relevância social. Quanto às práticas de leitura, há consenso entre todas as normas para que se abandonem as propostas que visam a extrair significados superficiais dos textos e que camuflam as intenções de análise gramatical na extração de exemplos do texto. Os PCNs (BRASIL, 1997, p. 41) fornecem uma orientação direta sobre o tratamento didático que a leitura deve receber nas aulas de língua portuguesa: A leitura na escola tem sido, fundamentalmente, um objeto de ensino. Para que possa constituir também objeto de aprendizagem, é necessário que faça sentido para o aluno, isto é, a atividade de leitura deve responder, do seu ponto de vista, a objetivos de realização imediata. Como se trata de uma prática social complexa, se a escola pretende converter a leitura em objeto de aprendizagem deve preservar sua natureza e sua complexidade, sem descaracterizá-la. Isso significa trabalhar com a diversidade de textos e de combinações entre eles. Significa trabalhar com a diversidade de objetivos e 25 modalidades que caracterizam a leitura, ou seja, os diferentes “para quês” [...]. Nesse sentido, a leitura se insere na perspectiva do letramento, que se preocupa com a dimensão coletiva da leitura. Isso significa que essa prática deve estar associada à interação: do autor com o leitor, do leitor com o texto, conforme indica a BNCC (BRASIL, 2017, p.67): O Eixo Leitura compreende as práticas de linguagem que decorrem da interação ativa do leitor/ouvinte/espectador com os textos escritos, orais e multissemióticos e de sua interpretação, sendo exemplos as leituras para: fruição estética de textos e obras literárias; pesquisa e embasamento de trabalhos escolares e acadêmicos; realização de procedimentos; conhecimento, discussão e debate sobre temas sociais relevantes; sustentar a reivindicação de algo no contexto de atuação da vida pública; ter mais conhecimento que permita o desenvolvimento de projetos pessoais, dentre outras possibilidades. Note que a diversidade textual é contemplada, revelando que os gêneros textuais devem servir de base para o desenvolvimento das habilidades ligadas à leitura. Da mesma forma, as práticas de produção textual compreendem dimensões inter-relacionadas às práticas de uso e reflexão. Assim, se reitera o lugar de sujeito autor, que desconecta a produção de textos de uma atividade mecânica e sem autoria. Além disso, há espaço para diferentes gêneros, inclusive os não tradicionais, que podem ser uma tendência revelada na palavra multissemiótico, que também demonstra a variedade de olhares para um mesmo texto: tanto na questão de recepção quanto na de produção. Aliás, a multimodalidade também aparece no Guia do PNLD (BRASIL, 2020, p. 130): A Produção Textual (escrita, oral ou multimodal) embasa-se nas concepções de gêneros discursivos e de linguagem como prática em sociedade, cujas ações, ao propiciarem reflexões sobre as situações comunicativas, atendem às expectativas dos alunos no que se refere à inserção social. Os PCNs (BRASIL, 1997), embora publicados há mais tempo, já demonstram a necessidade de um trabalho integrado, voltado aos diferentes gêneros textuais, pois afirmam que um escritor competente sabe selecionar o gênero mais apropriado a seu discurso. As práticas de análise e reflexão sobre a língua exigem um afastamento das ideias tradicionais de ensino de gramática. A intenção dessas atividades deve ser melhorar a capacidade de compreensão e expressão dos alunos. 26 Os PCNs (BRASIL, 1997) revelam a imbricação que existe entre a análise linguística e a prática textual: orientam que se associem as atividades de compreensão de textos à prática de análise e reflexão sobre a língua. Essa proposta implica uma formulação constante de hipóteses a respeito do funcionamento da língua e instiga os alunos à experimentação de novas formas de escrever. Mas essa não costuma ser uma realidade das aulas de português brasileiras. Aliás, os livros didáticos, que são o principal material didático utilizado nas escolas do Brasil, mostram-se frágeis quanto à adequação da análise linguística aos fundamentos teóricos atuais. É o que revela o Guia PNLD (BRASIL, 2020, p. 23): Nesse eixo as propostas de atividades deveriam ser totalmente contextualizadas e voltadas para despertar nos (as) estudantes a reflexão sobre como tais recursos ajudam no funcionamento da língua, isto é, fazê-los (as) pensarem sobre quais efeitos de sentido o emprego de determinados recursos linguísticos e semióticos provoca. No entanto, na maioria das coleções aprovadas, as propostas ainda se valem de textos a partir dos quais são apresentados exercícios de identificação e de classificação de elementos ou termos gramaticais de forma conceitual, normativista e tradicional. Por essa razão, tais propostas recebem a classificação mais baixa de grau de contemplabilidade das habilidades. Entretanto, algumas obras conseguiram desenvolver atividades com certa conexão com textos trabalhados nas seções de leitura, ou iniciados a partir de novos textos inseridos para esse fim. Nestes casos, os textos são explorados do ponto de vista da compreensão de leitura e a reflexão linguística aparece como recurso construtivo para a leitura do texto. A BNCC (BRASIL, 2017,) compartilha dessa ideia de que a análise linguística está atrelada à produção e à compreensão de textos e utiliza a expressão “análise consciente” para nomear as estratégias utilizadas pelos alunos nas práticas de leitura e produção de textos. Isso significa que a análise linguística deve estar a serviço da materialidade do texto, ou seja, as escolhas linguísticas interferem diretamente nos efeitos de sentido. Portanto, para a disciplina de Língua Portuguesa, por estar associada ao ensino e ao estudo de língua, é preciso assumir uma visão sobre a língua e estabelecer uma relação com essa língua. A visão que o Ministério da Educação aponta segue a tendência interacionista, que propõe práticas de reflexão sobre o objeto de estudo no contexto da enunciação. 27 2.2 Importância da leitura, da oralidade e da escrita para o letramento A concepção da linguagem como interação pressupõe que a situação discursiva que permeia a leitura de um texto inicia antes mesmo da decodificação das palavras escritas, ou melhor, pressupõe que, para ser texto, não precisa utilizar linguagem verbal. Aliás, essa abordagem considera que a leitura de mundo antecede a leitura da palavra. Nessa perspectiva, diferentes leitores podem produzir diferentes leituras para um mesmo texto em diferentes situações discursivas. Da mesma forma, podem ser produzidos diferentes textos sobre o mesmo tema, conforme os interesses dos leitores e os objetivos do escritor, ou seja, um mesmo tema pode gerar diferentes gêneros. Nesse contexto, se situa a definição de letramento: “Letramento é, pois, o resultado da ação de ensinar ou de aprender a ler e escrever: o estado ou a condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como consequência de ter-se apropriado da escrita” (SOARES, 2009, p. 18). Esse indivíduo letrado passa a se relacionar com os demais de forma diferente, pois se insere no campo da cultura. Além disso, assume uma postura cognitiva também diferente: o acesso a uma diversidade de informações e pontos de vista aliado à capacidade de reflexão crítica fazem com que o letrado se diferencie dos analfabetos ou iletrados. Esse lugar diferenciado é acessado pela leitura, pela oralidade e pela escrita, pontos essenciais ao letramento. Quem é letrado torna a escrita sua propriedade: pode usá-la como quiser, conforme revela Soares (2009, p. 44): [...] letramento é um estado, uma condição: o estado ou condição de quem interage com diferentes portadores de leitura e de escrita, com diferentes gêneros e tipos de leitura e de escrita, com as diferentes funções que a leitura e a escrita desempenham na nossa vida. Enfim: letramento é o estado ou condição de quem se envolve nas numerosas e variadas práticas sociais de leitura e de escrita. Com essa perspectiva, o letramento é visto como prática social, pois, à medida que o indivíduo se torna letrado, constrói sua identidade. Essa identidade interferirá na construção de sentidos tanto no processo de leitura quanto no de escrita e na construção da identidade dos interlocutores. Dessa forma, se exigem práticas de letramento na escola diferentes das tradicionais, pautadas na alfabetização e na codificação e decodificação dos textos. 28 Afinal, o letramento não está preso às paredes da escola: ele ocorre fora da sala de aula também, garantindo interações e comunicações entre interlocutores. Nesse sentido, os significados não estão no texto; por isso não é possível propor práticas de letramento na escola que se limitem a decodificar textos. A necessidade passa a ser de propostas pedagógicas de construção de sentidos em negociações intersubjetivas. Para tanto, as práticas de linguagem devem permitir trocas entre os sujeitos, construção de relações intertextuais com textos orais e escritos, entrecruzamento de culturas etc. Assim, leitura, oralidade e escrita revelam-se imbricadas. Aliás, a própria BNCC (BRASIL, 2017, p. 85) determina a relação entre todos esses eixos e sua associaçãocom os diferentes letramentos: Assim, no Ensino Fundamental — Anos Iniciais, no eixo Oralidade, aprofundam-se o conhecimento e o uso da língua oral, as características de interações discursivas e as estratégias de fala e escuta em intercâmbios orais; no eixo Análise Linguística/Semiótica, sistematiza-se a alfabetização, particularmente nos dois primeiros anos, e desenvolvem-se, ao longo dos três anos seguintes, a observação das regularidades e a análise do funcionamento da língua e de outras linguagens e seus efeitos nos discursos; no eixo Leitura/Escuta, amplia-se o letramento, por meio da progressiva incorporação de estratégias de leitura em textos de nível de complexidade crescente, assim como no eixo Produção de Textos, pela progressiva incorporação de estratégias de produção de textos de diferentes gêneros textuais. Note que a orientação está destinada aos anos iniciais do Ensino Fundamental, logo, a importância da leitura, da oralidade e da escrita para o processo de letramento surge desde os primeiros contatos do aluno com o mundo escolar. Isso significa que o aluno não precisa ser alfabetizado para se inserir no mundo letrado. Afinal, na vida, ele está inserido em práticas que também preservam enunciados orais e escritos que o auxiliam a viabilizar a consciência do mundo letrado. Portanto, o letramento envolve tanto a leitura quanto a escrita. Como afirma Soares (2009, p. 68–69): A leitura, do ponto de vista da dimensão individual de letramento (a leitura como uma "tecnologia"), é um conjunto de habilidades linguísticas e psicológicas, que se estendem desde a habilidade de decodificar palavras escritas até a capacidade de compreender textos escritos. [...] Assim como a leitura, a escrita, na perspectiva da dimensão individual do letramento (a escrita como uma "tecnologia"), é também um conjunto de habilidades linguísticas e psicológicas, mas habilidades fundamentalmente diferentes daquelas exigidas pela leitura. Enquanto as habilidades de leitura estendem-se da habilidade de decodificar palavras escritas à capacidade de integrar informações provenientes de diferentes textos, as habilidades de escrita estendem-se da habilidade de registrar unidades de som até a capacidade de transmitir significado de forma adequada a um leitor potencial. 29 Vale destacar que, no contexto social atual em que os significados estão sendo construídos, os processos de leitura e escrita estão ocorrendo no universo da cibercultura. Assim, a comunicação pode ocorrer de diferentes formas (além da oral e da escrita) e em diferentes tempos, logo as práticas de letramento deverão de adaptar a essas demandas conforme o contexto social. A BNCC (BRASIL, 2017, p. 65) orienta sobre a importância de se dar espaço a novas mídias: Não se trata de deixar de privilegiar o escrito/impresso nem de deixar de considerar gêneros e práticas consagrados pela escola, tais como notícia, reportagem, entrevista, artigo de opinião, charge, tirinha, crônica, conto, verbete de enciclopédia, artigo de divulgação científica etc., próprios do letramento da letra e do impresso, mas de contemplar também os novos letramentos, essencialmente digitais. A orientação reforça uma tendência: a necessidade de incluir os multiletramentos nas práticas de linguagem adotadas nas aulas de português. Afinal, não basta ser letrado no mundo das letras e iletrado no mundo digital se este está ocupando grande parte dos espaços de comunicação, interação e troca de informações. Essa variedade de discursos midiáticos e de mensagens multissemiotizadas deve ser também preocupação da escola, que precisa estar em sintonia com a realidade dos estudantes, como indica a BNCC: “Dessa forma, a BNCC procura contemplar a cultura digital, diferentes linguagens e diferentes letramentos, desde aqueles basicamente lineares, com baixo nível de hipertextualidade, até aqueles que envolvem a hipermídia” (BRASIL, 2017, p. 66). Portanto, as atividades de leitura, escrita e oralidade devem estar em sintonia com a pluralidade cultural da sociedade contemporânea. Rojo (2013) alerta que a educação linguística atual deve levar aos alunos projetos de futuro em três dimensões: 1. diversidade produtiva (âmbito do trabalho); 2. pluralismo cívico (âmbito da cidadania); 3. identidades multifacetadas (âmbito da vida pessoal). Isso significa que, com novos gêneros discursivos e novas tecnologias de leitura e escrita, já não basta a leitura do texto escrito. As outras modalidades de linguagens deverão dividir espaço com a linguagem verbal. 30 Para que essas práticas se efetivem, é preciso haver condições para o letramento e para o multiletramento. Soares (2009) afirma que deve haver escolarização real e efetiva da população e disponibilidade de material de leitura. Podemos imaginar que a concretização de práticas de multiletramentos exige, no mínimo, disponibilidade de computadores e acesso à internet. Não se pode mais tratar apenas de letramento do texto impresso. Isso significa que o professor e a escola devem oportunizar o acesso dos alunos a outros textos. Aliás, a televisão e a internet, por exemplo, fornecem material para a leitura crítica, para a análise das questões ideológicas, isto é, para o letramento crítico. Assim, os discursos midiáticos presentes nos variados meios de comunicação podem servir de objeto de estudo nas aulas de língua também. Certamente, tanto a demanda de multiletramento quanto a de acesso a textos multimodais pressionarão a escola a vincular o estudo da língua ao contexto social. E essa pressão problematizará as práticas pedagógicas que não costumam considerar as questões sociais, psicológicas, culturais e ideológicas que permeiam a comunicação. Assim, as propostas de letramento devem provocar forte impacto no processo de ensino-aprendizagem 3 LINGUÍSTICA APLICADA AO ENSINO DO PORTUGUÊS 3.1 Letramento e ensino de Língua Materna O conceito de letramento chega no cenário de ensino de línguas para desestabilizar práticas há muitos anos já estabelecidas de ensino de leitura e escrita. Historicamente, aspectos sociais e culturais da escrita foram deixados de lado. Atualmente, com bases em pesquisas que fazem uso da metodologia etnográfica, letramento é um conceito que se usa para falar do processo de socializar ou é o espaço de socialização que há em grupos sociais em que seus membros intercambiam e se relacionam por meio da escrita (Soares 2009). A partir desse conceito, inicia-se a divulgação e o investimento em um novo movimento: o de pensar a alfabetização e o letramento como um processo único, 31 socialmente conduzido e que não se concentra apenas nos ciclos iniciais do ensino fundamental. As habilidades de aprendizado da leitura e da escrita devem ser complexificadas e desenvolvidas ao longo da escolarização. Não se trata de falar sempre de um mesmo tipo e estilo de leitura, mas, sim, de agregar ao processo múltiplas estratégias de compreensão. Essas oportunidades para pensar no que se lê de diferentes pontos de vista tornam a formação do leitor concernente com a formação de um cidadão atuante e pensante no mundo por meio, também, da leitura. Ou seja, investir na formação de um leitor crítico e que pode circular a partir de múltiplos pontos de vista, é apostar em uma escola comprometida e democrática. Como aponta Soares (2003), a aprendizagem da língua escrita é essencialmente a aprendizagem de um conhecimento linguístico e, por isso, deveria fazer parte da pauta atualmente aplicada pelos linguistas, bem como a maneira que os diferentes letramentos da vida de um sujeito se entrecruzam com o processo de aquisição da língua. O ensino de língua materna e as pesquisas sobre letramento Sito (2010) afirma que as agências de letramento são instituições constituídas pela escrita e que promovemos valores dela. Entre as agências de letramento, estão, “[...] a família, o trabalho, as organizações e associações educativas ou lutas políticas por exemplo; espaços nos quais, em muitas culturas, ocorre a socialização das pessoas com o texto escrito.” (SITO, 2010, p. 22). Segundo Kleiman (2007), a escola é a agência de letramento por excelência de nossa sociedade. É nessa instituição que devem ser criados espaços para que o aluno experimente participar e agir em diferentes práticas sociais que usam a escrita. Contudo, sabemos que não se pode afirmar que a escola sempre tem como pressuposto garantir o acesso democrático da escrita, pois essa instituição, historicamente, se alinha a uma concepção de leitura conectada à cultura dominante e hegemônica. Nesse sentido, Soares (2002) afirma que a escola tem se mostrado incompetente para acolher os sujeitos oriundos das camadas populares. Isso porque atualmente vemos um aumento exponencial das desigualdades sociais. A escola costuma responsabilizar o aluno pelo fracasso em sua escolarização. Faz todos acreditarem que a escolarização, seu sucesso ou fracasso, depende unicamente do 32 sujeito e de seu dom. Tradicionalmente, o aluno que é lembrado é aquele que não tem condições para acompanhar a aprendizagem, sendo rotulado de burro, de perdedor. Além disso, alunos que vêm das classes populares são vistos como sem cultura, por não retratarem a cultura dominante. Por isso, são inferiores, carentes culturalmente. Assim, a escola acaba não acolhendo a cultura desses alunos, mas expelindo-os desse universo de escolarização que poderia ser um espaço para a melhoria da vida dessas pessoas. Da mesma forma que a escola não acolhe a cultura desses alunos, ela também não acolhe a sua linguagem. Soares (2002) afirma que essa incompetência deve ser atribuída a problemas da linguagem. O fracasso dos alunos populares advém de um “[...] conflito entre a linguagem de uma escola fundamentalmente a serviço das classes privilegiadas, cujos padrões linguísticos usa e quer ver usados, e a linguagem das camadas populares, que essa escola censura e estigmatiza” (SOARES, 2002, p. 6). Essa responsabilização do aluno passou a ser problematizada a partir da década de 1980 no Brasil, quando pesquisas na área do letramento começaram a buscar compreensões para esses padrões de comportamento social ligados à derrota de alunos “sem cultura”. Para Kleiman (2007), a escola deve assumir como trabalho estruturante os múltiplos letramentos. Isso implica adotar uma concepção social da escrita em contraste com uma tradicional que entende que ler e escrever é uma habilidade individual. Aprender a ler e a escrever transcende o individual, pois a vida e a linguagem são constituídos coletivamente. Se a vida é feita com outras pessoas, por que a escola continua investindo, apenas, em aspectos e habilidades individuais, como soletrar, decorar, ler em voz alta, responder perguntas, analisar individualmente uma frase, etc.? A relevância da educação está justamente em analisar as múltiplas atribuições de sentido. Nessa prática, sempre existe a possibilidade de o professor trabalhar com algum conteúdo de forma sistemática, principalmente quando se trata de língua e linguagem. Tudo é língua, logo, qualquer texto a ser trabalhado tem o potencial de ser esmiuçado em relação ao pensamento linguístico. Seguindo o pressuposto de Schlatter e Garcez (2009, p. 127), de que “[...] a vida entra na escola e a escola é parte da vida de todos, e que a compreensão dessa relação é importante para uma educação comprometida e responsável [...]”, é 33 essencial que a instituição escola acolha e valorize os conhecimentos que as crianças possuem. Assim, é possível que aconteça um movimento de renovação das práticas pedagógicas, e a escola realmente faça diferença na vida desses sujeitos. Assim, de acordo com Kleiman (1995), ao tematizar a vida do aluno de fora da escola e ao aproximar as práticas escolares com as que estão arraigadas em sua comunidade, o aluno se sente convidado a participar, acrescentando conhecimentos oriundos daquilo que ele já conhece, facilitando o caminho para adequações, adaptações e transferências para outras situações da vida. O professor que resolve trabalhar a partir dessa concepção de aprendizado de leitura e escrita como prática social terá de sentir, pesquisar, analisar quais são as práticas significativas para aquela comunidade, para o bairro, para a rua dos seus alunos. Isso exige que ele saiba sobre a constituição sócio histórica e cultural desses alunos. Além de fazer um levantamento sobre suas atividades corriqueiras que constroem suas identidades como membros de um determinado grupo social. Você pode estar se perguntando: mas como, em meio a tantas tarefas que o docente deve realizar, conseguir ainda chegar a tantos detalhes da vida do aluno e de sua comunidade para preparar os projetos de ensino? Com certeza, esse é um grande desafio a ser pensado pelo sistema de educação brasileiro que, hoje, sobrecarrega o professor de trabalho e com o papel de formar gente no mundo. Isso acaba por diminuir a qualidade da educação que é oferecida e construída com os brasileiros que vão à escola. Retomando o conceito de letramento, ser letrado é participar de encontros sociais nos quais a escrita tem um papel. É saber, a partir do seu lugar no mundo e das interpretações e interações com os outros, o que se faz com a escrita. Importante salientar que há muita gente que não sabe ler, nem escrever e faz uso da escrita. Ou seja, é uma pessoa letrada a partir da perspectiva da qual falamos e a qual defendemos. Na nossa sociedade urbana, por exemplo, é inegável que a maioria das pessoas é letrada, pois faz uso da escrita todos os dias para exercer suas funções. Isso é importante, pois se considera que as pessoas que chegam na escola com cinco anos não conseguem entender a circulação da escrita escolar, não sabem nada sobre o que é ler e escrever ou nunca tiveram contato com essa ação social. Esse não é um sujeito que nunca sequer pensou sobre o valor que tem esse objeto cultural. A escrita já tem um sentido dentro do repertório cultural do aluno. Na escola, existem outros 34 sentidos para esse objeto, e isso é diferente de considerar que ele não sabe nada sobre a escrita. As pessoas que vão à escola não são tábuas rasas à espera da marca inaugural do letramento. Elas não estão esperando a salvação por meio do aprendizado da leitura e escrita de um modelo escolar tradicional! Propostas de ensino a partir da abordagem da perspectiva da leitura e escrita como uso social da linguagem. É importante destacar: o que estrutura o ensino, o currículo, a progressão do ensino, nessa perspectiva, não são os conteúdos linguísticos, em se tratando da aula de língua materna, mas, sim, são os textos considerados significativos para os alunos. Os gêneros do discurso que circulam na casa dos alunos, nas ruas do bairro e da comunidade ou nos seus espaços de trabalho têm o potencial de se tornarem o objeto do texto a ser trabalhado. Esses gêneros são essenciais para que se garanta a identidade leitora e se afaste uma visão de que esses alunos não leem só porque não leem livros literários associados a uma cultura hegemônica. Nessa categoria se enquadram, segundo Kleiman (2007), os textos como: Bilhetes; Receitas; Avisos; Listas; Letreiros; Outdoors; Placas de rua; Crachás; Camisetas; Bottons de transeuntes. Esses gêneros são chamados de escrita ambiental. Ou seja, textos que fazem parte, também, das paisagens do local onde circulam nossos alunos. Trabalhar com as práticas letradas a partir do contexto do aluno é desfazer esse mito do ser culto e letrado ligado a uma cultura hegemônica, que desconsidera qualquer tipo de cultura que não é aquelaligada à dominante. Além disso, ao acrescentar outros gêneros do discurso a esse trabalho, valorizamos a heterogeneidade e oferecemos espaços para que os alunos consigam circular por essas diferentes práticas. 35 Um bom exemplo de trabalho pedagógico a partir dessa perspectiva está presente nos referenciais curriculares do Rio Grande do Sul de 2009, documento que adota a perspectiva do letramento, e que define a progressão curricular a partir de três critérios: O primeiro se pauta pelas características sociocognitivas dos alunos, ou seja, nas possibilidades de aprendizagem próprias de determinadas etapas de desenvolvimento e na significação que alguns assuntos podem assumir. O segundo sustenta-se na lógica da estrutura interna do conhecimento das disciplinas, a qual, dentro de uma ideia de complexificação espiralada, entende que alguns conhecimentos são anteriores e necessários para a aprendizagem de outros, ainda que sempre retomados em redes de saberes cada vez mais densas. O terceiro critério de sequência/progressão se refere à adequação ao contexto social do projeto curricular, processo pelo qual se procura identificar as competências mais significativas para o entorno cultural do qual provêm os alunos (FILIPOUSKI; MARCHI; SIMÕES, 2009, p. 45). Para exemplificar como podem se materializar todos esses pressupostos, apresentaremos as etapas de um projeto que envolveu o estudo de um gênero específico: Diário de Classe do Facebook. Em 2012, esse foi um gênero muito acessado pelos estudantes para reivindicar problemas urgentes em suas escolas. Na zona sul de Porto Alegre, não foi diferente. Os estudantes demandaram o estudo do gênero por acharem necessário movimentar-se para que fossem feitas melhorias na escola. A proposta nuclear do projeto foi fazer os alunos perceberem a realidade escolar onde viviam e, através da reflexão sobre ela, construírem reivindicações sobre os problemas mais importantes a serem resolvidos para a melhoria do cotidiano escolar, juntamente com a reflexão de quem precisa tomar conhecimento disso e de que forma escrever para tornar as reclamações públicas e legítimas, sem agredir ninguém. O eixo temático foi: como vai nossa escola; eixo genérico: diário de classe; objetivos do projeto: além do ensino linguístico, o objetivo desse projeto é investir no aperfeiçoamento da criticidade dos alunos, para, assim, dar meios para que eles possam agir como cidadãos mais atuantes na comunidade e nas práticas sociais nas 36 quais se inserem. Através da leitura dos textos pertencentes aos gêneros que compõem essa sequência, os alunos percebem a possibilidade de agirem nos problemas de sua comunidade de forma legítima, utilizando uma linguagem adequada. (Batisti, 2017) 37 O papel da escola transpõe o ensino de conteúdo, sendo também um dos ambientes de formação social de um indivíduo, onde o aluno adquire meios para tornar-se um cidadão mais atuante e que se interesse, junto com a sua comunidade, em encontrar melhorias para o mundo onde vive. Por isso, o olhar para o cotidiano, para o que os sujeitos fazem em seu dia a dia, é um movimento que pode transformar as aulas de português e a escola em espaços realmente formativos e acolhedores. 4 CONCEITO DE LINGUÍSTICA Por ser uma ciência recente, a linguística está constantemente se desenvolvendo como campo de estudo que descreve ou explica a linguagem verbal humana. Apesar de haver muita confusão quanto ao papel desempenhado pela ciência linguística, é importante lembrar que ela não tem nenhuma relação com a gramática normativa, ou seja, seu objetivo é estudar a língua como ela é, e não prescrever normas ou ditar regras de correção para o uso da linguagem. Para a linguística, tudo o que faz parte da língua interessa e pode gerar reflexão. Logo, a partir da perspectiva teórica de cada uma das áreas da linguística, o seu conceito pode ser repensado, pois seu objeto de estudo pode ser tanto a linguagem verbal quanto a escrita. Teríamos, portanto, um conceito de linguística ou será que deveríamos falar em conceitos de linguística de acordo com seu objeto? 4.1 Estruturalismo: língua e estrutura Partindo de Saussure, temos o conceito de língua como um sistema de signos, um código que serve para a comunicação e para a troca de informação. Note que nesta formulação há a presença do interlocutor como um fator constituinte do ato da fala. A concepção de Saussure rompe com a concepção da linguística comparatista do século XIX, em que a língua seria a expressão do pensamento, e inaugura uma nova forma de trabalhar com ela, pois a considera um sistema em que um signo só recebe significação, ou valor, quando relacionado aos outros signos que o cercam. No Curso de linguística geral (SAUSSURE, 2012), temos algumas características da língua: ela é a parte social da linguagem, por pertencer à comunidade, e é exterior ao indivíduo, que não pode modificá-la. Essas afirmações 38 demonstram a inserção da língua em um campo de estudos que considera sua relação com o exterior, e, inclusive, a dependência interna das partes que constituem esse sistema, pois um signo é o que o outro não é como versa a noção de par opositivo de Saussure. (Noble, 2017) É importante ressaltar que, para os estruturalistas, a realidade e seus objetos concretos não importam, não são considerados, pois se pensa a estrutura da língua como algo abstrato. Nesse ponto, podemos dizer que no estruturalismo a noção de referência entre língua e realidade não pode ser considerada, pois o referente está sempre dado no interior do sistema. Outras questões que revelam o estudo da língua que se volta sobre si mesma e que determina combinações, na qual todas as possibilidades já estariam dadas, fecham a noção de língua, e, por consequência, a de interpretação, não permitindo a chegada a um nível em que se considera as situações enunciativas ou o caráter subjetivo da sua produção de sentidos. Saussure escolheu não se debruçar sobre essas questões, mas considerou suas possibilidades ao realizar a distinção entre língua e fala, ou seja, entre uso coletivo e individual; entre sincronia e diacronia. Em resumo, ao propor dicotomias, Saussure não negou a possibilidade de se trabalhar com as questões que ia deixando de lado, tanto que propôs a inauguração de um campo de estudos chamado Semiologia, ao qual caberia analisar os diversos tipos de signos não linguísticos. A confusão que gerou maior número de consequências para os estudos de base linguística foi a não observação da distinção entre língua e linguagem, tão cara a Saussure. No entanto, os formalistas sempre buscam contrariar esse pressuposto saussuriano (que para tratar das relações internas do sistema abstrato – língua, é necessário se distanciar de tudo aquilo que é particular à linguagem). Saussure tentava, principalmente, evitar o retorno à concepção de língua enquanto referência, que reduziria a complexidade do sistema à ideia de que as palavras existem para representar objetos da realidade, ou seja, para referenciá-los, o que também pressupõe uma concepção de que as palavras têm um sentido dado aprioristicamente. Devemos entender, portanto, que a inovação de Saussure foi o tratamento da língua como sistema abstrato, que deve ser estudado de acordo com suas estruturas internas, o que permitiu à linguística chegar ao patamar de ciência linguística de modo que a fonologia, a morfologia e a sintaxe fizeram muitos avanços sob esta perspectiva de análise. (Noble, 2017) 39 Além de Saussure, o linguista Roman Jakobson também deixou importantes trabalhos da fonologia à gramática, da aquisição da linguagem ao estudo da afasia. 4.2 Gerativismo: linguagem e mente Quando a efervescência dos estudos estruturalistas vai sendo diminuída, surgem os estudos gerativistas, nos quais a relação linguagem e mente
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