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LITERATURA, ENSINO E FORMAÇÃO EM TEMPOS DE TEORIA (COM “T” MAIÚSCULO) Editora e Livraria Appris Ltda. Av. Manoel Ribas, 2265 – Mercês Curitiba/PR – CEP: 80810-002 Tel. (41) 3156 - 4731 www.editoraappris.com.br Printed in Brazil Impresso no Brasil Livro de acordo com a normalização técnica da ABNT Catalogação na Fonte Elaborado por: Josefina A. S. Guedes Bibliotecária CRB 9/870 Cechinel, André C387l Literatura, ensino e formação em tempos de teoria (com “T” maiúsculo) / André 2020 Cechinel. - 1. ed. – Curitiba : Appris, 2020. 207 p. ; 23 cm. – (Linguagem e literatura). Inclui bibliografias ISBN 978-85-473-4522-8 1. Literatura – Estudo e ensino. I. Título. II. Série. CDD – 807 Editora Appris Ltda. 1.ª Edição - Copyright© 2020 dos autores Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda. Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei nº 9.610/98. Se incorreções forem encontradas, serão de exclusiva responsabilidade de seus organi- zadores. Foi realizado o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com as Leis nos 10.994, de 14/12/2004, e 12.192, de 14/01/2010. LITERATURA, ENSINO E FORMAÇÃO EM TEMPOS DE TEORIA (COM “T” MAIÚSCULO) André Cechinel FICHA TÉCNICA EDITORIAL Augusto V. de A. Coelho Marli Caetano Sara C. de Andrade Coelho COMITÊ EDITORIAL Andréa Barbosa Gouveia - UFPR Edmeire C. Pereira - UFPR Iraneide da Silva - UFC Jacques de Lima Ferreira - UP Marilda Aparecida Behrens - PUCPR ASSESSORIA EDITORIAL Evelin Kolb REVISÃO Pâmela Isabel Oliveira PRODUÇÃO EDITORIAL Lucas Andrade DIAGRAMAÇÃO Bruno Ferreira Nascimento CAPA Fernando COMUNICAÇÃO Carlos Eduardo Pereira Débora Nazário Karla Pipolo Olegário LIVRARIAS E EVENTOS Estevão Misael GERÊNCIA DE FINANÇAS Selma Maria Fernandes do Valle COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO LINGUAGEM E LITERATURA DIREÇÃO CIENTÍFICA Maria Aparecida Barbosa (USP) Erineu Foerste (UFES) CONSULTORES Alessandra Paola Caramori (UFBA) Leda Cecília Szabo (Univ. Metodista) Alice Maria Ferreira de Araújo (UnB) Letícia Queiroz de Carvalho (IFES) Célia Maria Barbosa da Silva (UnP) Lidia Almeida Barros (UNESP-Rio Preto) Cleo A. Altenhofen (UFRGS) Maria Margarida de Andrade (UMACK) Darcília Marindir Pinto Simões (UERJ) Maria Luisa Ortiz Alvares (UnB) Edenize Ponzo Peres (UFES) Maria do Socorro Silva de Aragão (UFPB) Eliana Meneses de Melo (UBC/UMC) Maria de Fátima Mesquita Batista (UFPB) Gerda Margit Schütz-Foerste (UFES) Maurizio Babini (UNESP-Rio Preto) Guiomar Fanganiello Calçada (USP) Mônica Maria Guimarães Savedra (UFF) Ieda Maria Alves (USP) Nelly Carvalho (UFPE) Ismael Tressmann (Povo Tradicional Pomerano) Rainer Enrique Hamel (Universidad do México) Joachim Born (Universidade de Giessen/ Alemanha) AGRADECIMENTOS Se é verdade que as preocupações em relação à dinâmica de aplicação de pressupostos teóricos aos artefatos literários caminham comigo há bastante tempo, as formulações que tomam corpo neste livro só me foram possíveis a partir da leitura, nos últimos anos, dos ensaios do Prof. Dr. Fabio A. Durão (Unicamp), em particular do livro Teoria (literária) americana: uma introdução crítica, publicado em 2011. A minha dívida para com o volume em questão e demais textos de Durão revela-se nas constantes menções à sua obra ao longo de todos os capítulos que compõem o presente volume. Agradeço ao Prof. Fabio, pois, tanto pela interlocução aqui evidenciada quanto pelas recentes contribuições para os volumes que organizei sobre o tema. Devo agradecer, ainda, a amigos e parceiros intelectuais cuja presença se faz direta ou indiretamente sensível nos ensaios aqui reunidos. Além dos colegas do Programa de Pós-Graduação em Educação e do Curso de Letras da Unesc, bem como de seus respectivos alunos, gostaria de agradecer ao Prof. Dr. Rafael Rodrigo Mueller, coautor de dois dos capítulos deste livro e interlocutor constante; ao Prof. Dr. Sérgio Luiz Rodrigues Medeiros, para sempre il miglior fabbro; ao Prof. Dr. Fábio Luiz Lopes da Silva, amigo, mestre e máquina conceitual; à Prof.a Imaculada Kangussu, companheira de leituras, textos e viagens; ao Prof. Dr. Eduardo Subirats, eterno defensor da literatura, do ensaio e de um circuit circus para as humanidades; ao Prof. Dr. Victor Luiz da Rosa, leitor criterioso e crítico certeiro; e ao Prof. Dr. Cristiano de Sales, poeta, ensaísta e amigo. Agradeço, ainda, o convívio diário e as conversas sempre produtivas com os amigos Prof. Dr. Ismael Gonçalves Alves, Prof. Dr. Gladir da Silva Cabral e Prof.ª Dr.ª Ângela Cristina Di Palma Back. Sem a presença e o diálogo com todas essas pessoas, o presente volume não teria acontecido. Por fim, agradeço à Michelle Maria Stakonski Cechinel, minha leitora mais rigorosa e gentil, ponto de convergência de todos os meus textos e de todo o resto: “Love is most nearly itself/When here and now cease to matter”. O autor PREFÁCIO Uma adolescente brilhante que ama os livros, mas não consegue dedicar-se tanto quanto queria a eles em meio às obrigações escolares e às pressões decorrentes da relativa pobreza em que sua família se encontra. Um jovem, atormentado por um trauma terrível, que decide deixar tudo para trás, inclusive a carreira promissora como estudioso da literatura. Um sessentão nova-iorquino às voltas com a falência iminente da editora que dirige há quatro décadas. Um autor famoso acossado pelo fantasma de uma paralisia criativa permanente. Uma aluna de doutorado que, à noite, depois do trabalho, tenta terminar sua tese no cenário sombrio da casa abando- nada que ocupa irregularmente. Em Sunset Park, romance de Paul Auster (2012), a literatura está por toda parte, mas em condições invariavelmente precárias, abrindo caminho com dificuldade na rotina das pessoas ou sendo continuamente emparedada pelas incertezas da vida. Essas incertezas, em certa medida, são as de sempre, fruto do simples fato de existirmos e de seus riscos inerentes. “Viver é muito perigoso”, já disse alguém (só não exageremos no recurso autocomplacente a tal citação: esse alguém, não custa lembrar, era um jagunço, enquanto nós...). Mas as incertezas que rondam os personagens de Auster são também as de um tempo e um lugar específicos: o ano de 2008 nos Estados Unidos, quando, como se sabe, a maior economia nacional do planeta conheceu um abalo de pro- porções catastróficas, com consequências dramáticas para o mundo inteiro. Como bem aponta o ensaísta Thomas Frank, os blue collars americanos até hoje não saíram da situação encalacrada em que os grandes especula- dores os meteram. É verdade que, de acordo com as estatísticas oficiais, o país voltou a crescer. Só que a transferência dos lucros para o andar de baixo simplesmente não acontece: “os salários não aumentam; a renda média no país permanece bem abaixo do ponto em que estava em 2007; a parcela representada pelos ganhos dos trabalhadores no produto interno bruto bateu o recorde negativo em 2011 e desde então não se recuperou” (FRANK, 2016, p. 1). Em favor de seu argumento, Frank menciona uma esclarecedora pesquisa de acordo com a qual, em 2014, quase três quartos dos americanos ainda pensavam que os Estados Unidos continuavam em recessão. “Porque, para eles, estava mesmo”, arremata Frank (2016, p. 2). Timothy Snyder, professor de História em Yale, vai ainda mais longe. A seu juízo, a crise de 2008 é um divisor de águas. Sob seus efeitos disruptivos, os americanos finalmente ligaram os pontos (o 11 de setembro, o desastre da segunda guerra no Iraque, a perda ininterrupta de direitos, o ocaso dos sindicatos etc.) e concluíram que o futuro de paz e prosperidade prometido pelas democracias liberais estava cada vez mais irremediavelmente distante deles. Nasceu daí um novo tempo, marcado por descrença e desesperança, à mercê de projetos autoritários. Ou mais que isso: para Snyder, a mais recente recessão é, para muitos americanos, o anozero de uma outra concepção de tempo, um modo radicalmente novo de as pessoas compreenderem a História, uma maneira de enquadrar a vida em cujos termos o futuro simplesmente desaparece do horizonte, sendo substituído pela ideia de que tudo o que há, no fim das contas, é a repetição infatigável de um único e mesmo ciclo, no qual “nós”, supostos inocentes, seríamos perpetuamente atacados por algum inimigo externo ou interno (os chineses, os comunistas, os negros, os mexicanos, os corruptos etc.) (cf. SNYDER, 2018). Ainda segundo Snyder, o que acontece nos Estados Unidos é, na verdade, só um exemplo, entre muitos outros, de um fenômeno global. Com pequenas diferenças cronológicas e sob a influência de diferentes acontecimentos além da crise de 2008, a humanidade toda está rendendo-se a essa percepção de que estamos presos a um ciclo em que seríamos perpetuamente atacados justamente porque somos puros, e o destino da pureza é ser violada pelos homens maus. Ora, em circunstâncias dominadas por uma narrativa geral tão medíocre e deprimente, como esperar que a literatura seja valorizada? No livro que o leitor agora tem nas mãos, André Cechinel revela imensa clareza de que a literatura existe hoje exatamente como é capturada no romance de Auster: aos pedaços e sempre prestes a desaparecer. O autor, além disso, mostra total consciência de que esse despedaçamento foi produzido por e faz sistema com os circuitos do capital e a sucessão de dramas políticos e tensões socioeconômicas que marcaram o século XX e se prolongam pelo século XXI. Cechinel não cita Snyder, mas converge para a mesma conclusão de que o cortejo de crises nos últimos 100 anos foi matando a ideia de progresso, até nos submeter a uma nova temporalidade, alheia à noção de futuro. Uma temporalidade decerto não apenas esteticamente deplorável, mas, a rigor, incompatível com as lentidões que a opacidade do literário solicita para ser interpretada e assimilada às nossas vidas. Basta pensar no que hoje, nas redes sociais, é chamado de “textão”: algo que, no seu suposto excesso e exigência cognitiva, não encheria, contudo, meia página de Guerra e Paz. Quem pode ler Tolstói quando passa, como no caso do brasileiro médio, quase 10 horas por dia conectado à internet, na maior parte desse período sendo bombardeado por postagens que, como certas drogas, felicitam-nos ou ultrajam de modo miseravelmente solitário e de uma maneira tal que imediatamente demanda um novo choque, uma nova felicitação ou ultraje? Cechinel bem sabe, de resto, que, embora não seja necessariamente eterno e inexpugnável, o conjunto atordoante de condições a que estamos hoje submetidos tem uma força opressiva e acachapante o suficiente para nos impedir de sonhar, mesmo no longo prazo, com um destino para a literatura que não seja o de uma existência parasitária, menor, residual. São esses restos literários que Cechinel recolhe, e é a partir deles que ele tenta pensar – nos termos de uma posição próxima à que Nietzsche chamou de pessimismo de força – o ensino da literatura. Um apóstolo do pessimismo de força. Assim é André Cechinel. Afinal, apesar de estar convencido de que a literatura cedo ou tarde se extinguirá, ele reitera o compromisso de lutar para que ela ao menos possa seguir operando como “lembrança anacrônica de um significado mais verdadeiro da palavra formação”. Para Cechinel, a literatura humaniza não por seus conteúdos específicos, por mensagens que venha a carregar, mas pelo simples fato de que, com sua dificuldade, sua resistência à digestão imediata, lança-nos em outra temporalidade e rasga a bolha do eterno presente em que vivemos. A literatura humaniza porque inventa a possibilidade do futuro, esse outro nome para a humanidade. Em uma época em que mesmo os teóricos da área parecem não mais nutrir um sentimento profundo pela literatura, Cechinel continua a amá-la incondicionalmente. Neste livro – que é, no fundo, a sua profissão de fé –, ele reitera a certeza de que há coisas que só a literatura é capaz de fazer (mesmo que ela quase já não consiga de fato fazê-las; mesmo que, para que ela pudesse fazê-las, precisasse contar com uma abertura e uma disponibilidade dos leitores que se apresentam cada vez menos). Cechinel, nesse sentido, é parecido com Pilar, a adolescente bibliófila de Sunset Park mencionada na frase de abertura desta apresentação. Com os parcos recursos aprendidos nas aulas de Inglês na escola, ela se demora sobre o que lê e está de tal modo atenta a isso que é capaz de perceber algo tão sutil e sublime como a força que uma simples mudança de foco narrativo pode ter: “ela começou a argumentar”, escreve Auster (2012, p. 14) sobre a garota, [...] que o personagem mais importante [de O Grande Gatsby, de F. Scott Fitzgerald] não era Daisy, nem Tom [Buchanan, o marido dela], nem mesmo Gatsby, mas Nick Carraway [primo de Daisy e narrador do romance]. [...] É porque é ele que conta a história, disse Pilar. Ele é o único personagem que tem os pés no chão, o único personagem capaz de olhar para fora de si mesmo. Todos os outros são pessoas perdidas, rasas, e sem a compaixão e a compreensão de Nick, não seríamos capazes de sentir nada por eles. O livro depende de Nick. Se a história fosse contada por um narrador onisciente, não seria nem a metade do que é. Não por acaso, O Grande Gatsby é uma das obras preferidas de André Cechinel. Com Nick Carraway (e alguns outros), ele certamente aprendeu o ofício tão bem compreendido – e exercido – por Pilar: o de olhar para cada um de nós com compreensão. Este livro – que, ao insistir na literatura, não desiste do futuro, isto é, de nós – é a prova disso. Fábio Lopes da Silva Professor titular da UFSC Florianópolis, 7 de maio de 2019 REFERÊNCIAS AUSTER, Paul. Sunset Park. São Paulo: Cia. das Letras, 2012. FRANK, Thomas. Listen, Liberal: Or What ever happened to the Party of the People? Nova York: Metropolitan Books, 2016. SNYDER, Timothy. The Road to Unfreedom. Nova York: Tim Duggan Books, 2018. SUMÁRIO PRÓLOGO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .13 USOS DA LITERATURA 1 LITERATURA E FORMAÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .19 Da dificuldade de dizer “literatura” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21 Da necessidade de dizer “literatura” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 32 2 SEMIFORMAÇÃO LITERÁRIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .39 A nova BNCC e a semiformação literária . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41 Literatura e formação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 46 3 O IMPÉRIO DAS FAKE NEWS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .53 As fake news e o paradigma da sensação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55 A literatura e o paradigma da supressão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 62 4 LITERATURA E NEGATIVIDADE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .71 A literatura e a sociedade excitada. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 73 A literatura e a ética espetacular. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 76 5 UM NOVO REGIME DE PERCEPÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .83 Mutações sensoriais e os usos da atenção . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 85 Pluralidade midiática, literatura e atenção . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 89 USOS DA TEORIA (LITERÁRIA) 6 A LITERATURA AUSENTE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .99 Da literatura como objeto ausente . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101 Da “crítica prática” ao desaparecimento do objeto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 104 O desaparecimento do objeto e o espaço de trabalho acadêmico . . . . . . . . . . . . . . 108 Teoria – com “t” minúsculo – e a restituição dos objetos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 112 7 RASTROS AUTORAIS DA TEORIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .115 A fórmula como potência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 118 A fórmula como fórmula . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 123 8 O CARÁTER DESTRUTIVO DA LITERATURA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .127 Literatura, alteridade e a “virada ética” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 130 Literatura e destruição . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 137 O outro da teoria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 142 9 A PERSISTÊNCIA DA FORMA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .147 EDUCAÇÃO E OUTROS USOS 10 UM BRINQUEDO IMPROFANÁVEL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .165 A brincadeira como profanação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 167 Câmara Mirim e o mundo adulto improfanável. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 170 11 A EDUCAÇÃO COMO FALSO NEGATIVO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .177 Educação para além do espetáculo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 179 Educação como falso negativo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 186 REFERÊNCIAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .195 13 PRÓLOGO Os ensaios reunidos neste livro, sob o título Literatura, ensino e formação em tempos de Teoria (com “T” maiúsculo), buscam discutir, em linhas gerais, alguns dos impasses que atravessam o lugar da literatura nas instituições e nos processos formativos, seja na educação básica ou mesmo no ensino superior. Em poucas palavras, pode-se dizer que os capítulos constituem diferentes formas de responder à seguinte pergunta: o que de fato significa dizer, ainda hoje, que o ensino de Literatura “humaniza” os sujeitos, prin- cipalmente em um contexto de claro encolhimento das humanidades e de reformas educacionais que estrangulam qualquer possibilidade formativa alheia à lógica da aplicação imediata ou à dinâmica de meios e fins? Nesse sentido, de certa forma, o livro não deixa de ser uma reafirmação radical da defesa do literário feita por Antonio Candido em seu célebre ensaio “O direito à literatura”, mas, ao mesmo tempo, uma tentativa de indicar que esse mesmo literário – que arrasta consigo toda a positividade atribuída a seu suposto conteúdo formativo –, destituído de uma predicação mais clara ou desvinculado dos processos específicos aqui discutidos, permanece sem rumo, à deriva, podendo ser, inclusive, prontamente apropriado pelo seu inverso. O exemplo mais claro disso, isto é, de um conceito de literatura que, mesmo sob o propósito de reafirmar a importância da imaginação, da inte- ratividade e da construção de significados na e com a linguagem – “huma- nizando”, pois, o ser humano –, acaba por neutralizar o que lhe é singular em relação às demais formas de escrita, mergulhando todos os gêneros em um mar de objetos indistintos e potencialmente equivalentes, pode ser visto nas formulações dos Parâmetros curriculares nacionais (PCN), de 2000: como tudo não passa de texto, ou de textos muitas vezes acolhidos por uma noção genérica de “gêneros textuais”, a ideia de um artefato propriamente literário torna-se problemática. A consequência dessa linha argumentativa é a própria destruição da área, mesmo sob ares pretensamente democráticos e elogiosos à literatura: já não há mais diferenças relevantes, por exemplo, entre Paulo Coelho e Machado de Assis, e Drummond não é de todo dis- tante de Zé Ramalho – isso para nos limitarmos aos casos debatidos pelo próprio documento, restando-nos imaginar até onde as equivalências podem ir. Mais recentemente, a nova Base Nacional Comum Curricular (BNCC) 14 ANDRÉ CECHINEL brasileira, de 2018, sem a mesma virulência dos PCNs, reduziu a literatura fundamentalmente a um jogo de mídias e dispositivos tecnológicos: se o nome de autores, obras e movimentos artísticos, por um lado, praticamente desaparece do documento, as assim chamadas “culturas juvenis contempo- râneas”, por outro, parecem bem representadas por meio do vínculo entre o literário e o midiático na profunda democracia da web. Para a BNCC, mais que o desafio reflexivo imposto pelas obras, o importante é eventualmente “produzir playlists, vlogs, vídeos-minuto, escrever fanfics, produzir e-zines” ou tornar-se “um booktuber”, sempre, é claro, “reconhecendo o potencial transformador e humanizador da experiência com a literatura” (BRASIL, 2018, p. 87). Seja como for, os itálicos da citação podem desde já indicar de onde vem essa concepção de literatura e ensino. Como pano de fundo para toda essa discussão, assombra o campo da Literatura uma noção fantasmática de Teoria (literária), com “T” maiúsculo e sem delimitação de campo de atuação, ou melhor, sem objetos específi- cos. Conforme a definição de Fabio A. Durão (2011b), a Teoria pode ser caracterizada tanto pela multiplicação dos princípios e procedimentos, escolas e movimentos interpretativos quanto pela desvinculação desse mesmo quadro teórico plural e abundante de qualquer delimitação de área de estudo. A Teoria, portanto, é marcada pelo signo do paradoxo: de um lado, as possibilidades teóricas multiplicam-se indefinidamente, em uma política do excesso que alarga ou rompe quaisquer fronteiras entre as disciplinas e campos; de outro, em decorrência disso, a Teoria resulta não raro em procedimentos de análise apriorísticos ou mecanizados, que sem se preocupar com a singularidade dos objetos dirige-se a eles em uma dinâmica de mera aplicação ou testagem fadada a sempre funcionar. Nas palavras de Durão (2011b, p. 3), a influência da Teoria “se dá primordialmente por meio por meio de uma dissociação cada vez maior entre texto literário e código interpretativo”. Logicamente, a desvinculação entre “texto literário e código interpretativo” muitas vezes reduz a literatura a um campo estritamente temático, a que se podem colar as questões teórico-políticasmais amplas discutidas pelos grandes Teóricos. Não resta dúvida de que esse quadro intelectual precariza a noção de obra ou artefato literário ou artístico, cuja organicidade anterior agora se desfaz para acomodar os conceitos que habitam o universo dos diferentes Studies ou da Teoria. Para discutir essas questões, o presente volume encontra-se dividido em três seções fundamentais. A primeira seção, intitulada “Usos da litera- 15 LITERATURA, ENSINO E FORMAÇÃO EM TEMPOS DE TEORIA (COM “T” MAIÚSCULO) tura”, reúne cinco capítulos que abordam assuntos que vão desde a relação entre literatura e a ideia de formação humana, até temas como as chama- das fake news e um conceito de “negatividade” para os estudos literários, tudo isso vinculado ao debate acerca de um regime de atenção específico solicitado pela área. A segunda seção, “Usos da Teoria (literária)”, volta-se mais particularmente para a discussão sobre o modus operandi da Teoria e as possibilidades de surgimento de uma política de restituição da singula- ridade dos objetos para a Teoria Literária, dessa vez sem parênteses e com uma delimitação clara do âmbito de atuação do teórico. Por fim, uma vez que os problemas debatidos nas duas primeiras seções não dizem respeito somente à literatura tomada isoladamente, mas também à educação e seus processos formativos como um todo, a última seção do volume, intitulada “Educação e outros usos”, debate os laços entre a educação e o neolibe- ralismo contemporâneo, de modo a indicar, na contramão da formação para o espetáculo e das instituições educacionais como meras empresas, um conceito de educação verdadeiramente crítico, capaz de ressignificar e potencializar os resíduos daquilo que ainda chamamos de emancipação e esclarecimento. Os dois capítulos da última seção foram redigidos com o professor Rafael Rodrigo Mueller, a quem agradeço o diálogo intelectual permanente. Se é verdade que as humanidades e a literatura estão em crise na estrutura universitária e escolar, a saída para essa crise, se possível, encon- tra-se não na mera positivação de seus processos – ou em uma politização suspeita, muitas vezes importada, que se dá na contramão das áreas e de seus objetos, como costuma ser o caso nos procedimentos da Teoria contempo- rânea –, mas sim na revisitação teórica e crítica de toda uma tradição que nos fez e nos faz falhar, bem como de um conceito de educação e formação há muito distante de si mesmo. É em nome do direito de tentar mais uma vez, e possivelmente falhar, que agora falamos. Usos da literatura 19 1 LITERATURA E FORMAÇÃO “Para dizer-te em uma palavra: instruir-me a mim mesmo, tal como sou, tem sido obscuramente meu desejo e minha intenção, desde a infância” (GOETHE, 2006, p. 284). O projeto de formação (Bildung) vislumbrado por Wilhelm Meister e explicitado naquelas que talvez sejam as páginas mais famosas do livro de Goethe, Os anos de formação de Wilhelm Meister (1795- 1796), jamais poderia ser pensado sem o diálogo com a literatura e as demais artes. Com efeito, ao longo de suas mais de 600 páginas, o célebre Bildungs- roman (“romance de formação”) goethiano faz desfilar diante do leitor uma imensa trupe de artistas apaixonados pela arte e pela literatura, artistas cuja tragicomicidade de suas vidas confunde-se com aquela das várias peças que encenam em seu percurso errante. Em Wilhelm Meister, a formação apresen- ta-se atrelada a certo abandono de si em meio a uma trajetória incerta que, diferentemente do ideal de vida burguês retratado no romance, não prevê meios e fins específicos garantidores da acomodação do sujeito em um mundo de negócios, bens, dinheiro e lucro. Nesse sentido, “autonomia” e “liberdade”, elementos mínimos da imagem de formação aqui em pauta, significam, em última instância, a abertura ao risco e a uma intransitividade artística sem a qual a razão instrumentaliza-se de tal modo a negar-se a si mesma. Ora, que a aliança entre formação, arte e intelectualidade não possa ser hoje simplesmente convocada nesses mesmos termos é algo desde há muito anunciado.1 No célebre texto de 1915 intitulado “A vida dos estudan- tes”, Walter Benjamin já apontava a melancolia resultante de um processo formativo estritamente escolarizado e submetido a uma lógica enrijecida de meios e fins e a uma concepção linear e progressista de tempo: Na medida em que se direciona para a profissão, a universi- dade desencontra-se forçosamente da criação imediata como forma de comunidade. A estranheza hostil, a incompreensão da escola perante a vida exigida pela arte pode ser realmente 1 Sobre o tema, cf. “Sobre a relevância dos estudos literários hoje”, de Fabio A. Durão, disponível em: http:// www.letras.ufscar.br/linguasagem/edicao02/02e_fad.php. 20 ANDRÉ CECHINEL interpretada como recusa da criação imediata, não relacio- nada com o cargo (BENJAMIN, 2002, p. 40). A formação, dissociada das artes e voltada para o mercado de tra- balho a partir de um mundo de títulos, qualificações, ranqueamentos e muita competição, afasta o indivíduo do espírito comunitário e degrada a própria ciência. Se a vida do estudante deve pressupor a produção de um atrito mínimo com o mundo estabelecido, o império das profissões con- verte o estudantado em um corpo passivo à espera de um lugar ao sol, ou melhor, um corpo disposto a adaptar-se justamente às demandas sociais que deveriam ser o objeto de suas críticas. Publicado há mais de 100 anos, o texto de Benjamin está condenado a ver o seu diagnóstico diariamente reafirmado e naturalizado nos mais variados espaços de ensino, a ponto de constituir um retrato verdadeiro, talvez quase que idílico, de uma realidade agora convertida na mais violenta regra. Se o ensaio de 1915 lamentava o abandono das artes ou mesmo de Eros em nome de uma formação mais estreita dirigida para a vida profissional, hoje podemos lamentar, então, o abandono da própria ideia de educação e, paralelamente a isso, a mera sobrevivência do artístico-literário como ilhas-simulacro de intransitividade em meio a uma formação utilitária e pragmática. A literatura é precisamente uma dessas ilhas-simulacro que habitam o centro desse impasse. Não raro destina-se a ela um papel grandioso no âmbito da educação formal, porém a grandiloquência com que é anunciada sua suposta tarefa contrasta vivamente com as condições e contradições concretas para a sua realização. Assim lemos, por exemplo, nas Orientações Curriculares para o Ensino Médio, documento de 2006 publicado pelo MEC que estabelece as diretrizes gerais para o ensino de Literatura no Brasil: “o ensino de Literatura (e das outras artes) visa, sobretudo, ao cumprimento do Inciso III dos objetivos estabelecidos para o ensino médio [...]”, que diz respeito ao “aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pen- samento crítico” (BRASIL, 2006, p. 53). São citadas, a seguir, as conhecidas palavras de Antonio Candido sobre o aspecto “humanizador” do texto lite- rário: “a literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante” (apud BRASIL, 2006, p. 54). Para além do desconforto que de pronto provoca a tese de um “aprimoramento” do educando como pessoa “humana”, as condições objetivas para o ensino de Literatura não são nada animadoras e desnudam, em muitos casos, não a emancipação do “sujeito 21 LITERATURA, ENSINO E FORMAÇÃO EM TEMPOS DE TEORIA (COM “T” MAIÚSCULO) humano”, mas sim a sua captura quase que integral à dinâmica mais agressiva daquele mesmo mundo das mercadorias de que ele haveria de se libertar se bem formado: ali onde a literatura, por ser “difícil”, não é substituída por resumos, versões adaptadas dos clássicos ou mesmo textos e gêneros mais palatáveis, ela então se vê submetida ao mundo dos vestibulares e avaliações, cujo intento, cabe insistir, não é a promoçãoda liberdade e da autonomia dos sujeitos, mas sim a divisão e distribuição dos espaços que cada um pode pleitear na vida social produtiva. Nesse último caso, em particular, o contato com o literário inscreve-se em uma lógica de competição mais ampla que domestica a potência supostamente disruptiva atribuída à literatura nos documentos oficiais. Encarar de frente esse quadro embaraçoso constitui, antes de mais nada, um gesto de coragem e honestidade. O presente capítulo intenta discutir justamente o cenário de profunda precariedade que regula o (não) lugar dos estudos literários hoje nas ins- tituições de ensino. Para tanto, o argumento divide-se em dois momentos fundamentais: primeiramente, busca-se rememorar de modo sucinto – e sob o risco de certa superficialidade – alguns dos golpes desferidos contra o espaço formativo ocupado pela literatura ao longo do século XX e que demandam uma reconfiguração discursiva capaz de justificar o porquê de sua presença nas escolas e, por que não dizer, nas universidades. Refiro-me aqui, entre outros, à crise do discurso de nação, à insuficiência do conceito de literariedade, ao império da ideia de texto e gêneros textuais e, por con- sequência, à crise do objeto nos estudos literários. A seguir, atravessado esse “balanço” inicial, o texto debate brevemente a necessidade de uma conceituação forte para as noções de “obra”, “leitor” e “tradição”, operadores mínimos que, implícita ou explicitamente, conduzem o ensino de Literatura e que se apresentam uma vez mais como desafios teóricos urgentes para a teoria literária. Longe desses desafios, os objetos e a própria área aqui em pauta, ao menos tal como encarnados sob a forma de disciplinas curricu- lares, tendem a entrar em sintonia com o fluxo infinito e desgovernado de estímulos e trocas do tempo presente e, dessa forma, a se traduzir em práticas distantes da tão propalada “formação humana”. Da dificuldade de dizer “literatura” É sob a sombra do discurso de nação ou a partir de seus destroços que se dá muito do que ainda hoje ocorre no domínio do ensino de Literatura, 22 ANDRÉ CECHINEL isso tanto no nível médio quanto universitário. Como se sabe, “no século XIX, quando ela [a literatura] se tornou disciplina autônoma (sob a forma de história literária), seu estudo servia como cimento das nacionalidades” (PERRONE-MOISÉS, 2016, p. 76). Decorre desse instinto de nação do século XIX, portanto, a forma como os currículos organizam e estruturam o estudo do literário a partir das literaturas nacionais, distribuindo os “conteúdos”, autores e obras ao longo de uma faixa temporal que segue linearmente desde o “surgimento” de determinada tradição local até o balanço contem- porâneo de sua situação, em constante contraste com o fundo histórico e estético do desenvolvimento literário de outras nações, principalmente as europeias, como França, Inglaterra e Alemanha. A noção de tempo subja- cente a esse encarceramento classificatório, aliás, encontra-se em profunda sintonia com o próprio espírito positivista do século XIX, um tempo que segue cumulativa e progressivamente até culminar no momento presente. Seja por meio dos períodos literários ou estilos de época no ensino médio – “Quinhentismo” (ou Renascimento), “Barroco”, “Arcadismo” (ou Classi- cismo), “Romantismo” etc. –, seja por meio da conhecida grade curricular que tece cortes geográfico-temporais relativamente estáveis e harmônicos nessa mesma sequência histórica e estética – “Literatura brasileira I, II, III etc.”, “Literatura portuguesa I, II, III etc.” –, o fator de organização é no fim o mesmo, a expressão do caráter tipicamente nacional de certas obras e o papel decisivo por elas desempenhado na formulação e consolidação das conquistas literárias de um dado povo. É como tal, em sua aliança com a história da literatura e sob a égide de impulsos nacionalistas e patrióticos, que os estudos literários firmam-se como disciplina. São inúmeras as críticas tecidas a esse modelo orientador que, no entanto, sobrevive institucionalmente sob um funcionamento autômato, como algo incapaz de, mesmo desfeito, simplesmente desaparecer. Em primeiro lugar, realizar a leitura dos textos literários a partir de escolas e estilos de época, por via de regra, é obedecer a uma agenda conceitual pré- via e enrijecida que impede o imprevisto de surgir no contato efetivo com os artefatos artísticos. Em outras palavras, lê-se José de Alencar como um escritor romântico, Machado de Assis como um escritor realista, quando sabemos perfeitamente que, em muitos casos, o que há de mais potente em um autor é aquilo que ele escreve contra o seu tempo, surpreendendo e confundindo a própria temporalidade que busca controlar sua produção. Nesse esquema, a leitura da obra na sua integralidade pode ser, inclusive, substituída por excertos capazes de ilustrar a acomodação de um autor em 23 LITERATURA, ENSINO E FORMAÇÃO EM TEMPOS DE TEORIA (COM “T” MAIÚSCULO) um determinado período e em suas respectivas características dominantes – no caso do Romantismo, por exemplo, os autores costumam ser lidos nas escolas a partir de noções prêt-à-porter como “subjetivismo”, “escapismo”, “individualismo”, entre outras, termos que servem ao propósito da cate- gorização, mas dificilmente à formação do leitor crítico. É por isso que as OCEM alertam: “não se deve sobrecarregar o aluno com informações sobre épocas, estilos, características de escolas literárias, etc., como até hoje tem ocorrido” (BRASIL, 2006, p. 54). O alerta, contudo, não se transfere de pronto para o âmbito da prática, como provam os diferentes livros didáticos e vestibulares que enclausuram as obras justamente nesse cenário de listas e classificações. Em segundo lugar, com as experiências totalitárias do século XX, a crise do modelo iluminista e centralizador de Estado-Nação, as frequentes críticas voltadas à noção excludente de “origem” nas ciências humanas, o descentramento do sujeito cartesiano, a “morte” do autor como figura reguladora da crítica literária, a globalização, a circulação de mercadorias e a suposta porosidade das fronteiras nacionais, o bombardeio de denúncias dirigidas à parcialidade de um cânone branco, masculino, elitista e eurocên- trico, entre outros, torna-se muito difícil insistir ainda hoje na validade da defesa do nacional ou nas versões teleológicas da história da literatura como princípios legítimos para a organização curricular do ensino de Literatura na educação básica ou no ensino superior. Seja qual for o motivo elencado na lista apresentada, o fato é que um dos mecanismos mais importantes e comumente acionados para conferir coesão e um fio condutor ao tratamento do literário viu sua estrutura interna corroer até desmoronar, restando apenas os destroços ou restos que, contudo, na falta de um outro princípio articulador mais forte, estamos condenados a revisitar mecanicamente em meio aos vários alertas dos perigos de, ao fazê-lo, reproduzir no âmbito formativo os autoritarismos totalizantes de um passado recente. Enfim, o discurso de nação e a história da literatura, além de por vezes contornarem ou prescindirem do contato direto com as obras, projetam as sombras de uma falsa e perigosa totalidade que apaga a arbitrariedade de seu centro de operação, fazendo passar por neutro aquilo que na verdade resulta de violentas disputas ideológicas. *** 24 ANDRÉ CECHINEL Ora, uma alternativa a esses modelos extrínsecos de entrada no lite- rário seria a possibilidade de atuar a partir de elementos balizadores do que é propriamente constitutivo da literatura, os artifícios ou componentes de sua maquinaria interna que a singularizariam em relação ao demais gêneros textuais ou à linguagem cotidiana. O “formalismo russo”, como sabemos, foi precisamente uma tentativa de afastar a literatura da “fala prosaica”, ou melhor, de enfrentar a “[...] má compreensão da diferença que opõe as leis da linguagem cotidiana às da linguagem poética”(CHKLÓVSKI, 2013, p. 89). A chamada “literariedade”, isto é, o traço definidor do literário como literário, estaria posta, pois, no processo de “desautomatização” do uso da linguagem e de singularização dos objetos, procedimento que “consiste em obscurecer a forma, em aumentar a dificuldade e a duração da percepção” (CHKLÓVSKI, 2013, p. 91). Em outras palavras, literatura é “estranhamento” (ostranenie), um modo organizado de agredir ou violar o caminho automatizante que a vida cotidiana impõe à nossa relação com as formas linguísticas. Se, por um lado, a nossa tendência no dia a dia é lidar com os objetos de maneira habitual, inconsciente ou mesmo acelerada, a forma literária é aquela que nos faz frear e olhar para as coisas como se pela primeira vez, estranhando o que se nos apresentava até então como familiar: “a arte é um meio de experimentar o vir a ser do objeto, o que já ‘veio a ser’ não importa para a arte” (CHKLÓVSKI, 2013, p. 89). A arte como um procedimento, nesse sentido, recorre a ferramentas próprias dela e das quais deve se ocupar o crítico literário para apreender o seu funcionamento. A sucessão de períodos literários é substituída agora por uma “gramática” específica da literatura e por formas – versos, sons, ritmos, imagens, rimas, esquemas métricos, tipos narrativos etc. – que surgem, deformam ou “desautomatizam” a fala cotidiana, convertendo-se elas também paulatinamente em funções dominantes e solicitando, por sua vez, desvios posteriores. Nas palavras de Jakobson (2002, p. 517), “desvios contínuos no sistema de valores artísticos levam a desvios contínuos na avaliação de diferentes fenômenos artísticos”, ou seja, formas antes tomadas como imperfeitas, diletantes ou simplesmente equivocadas podem ressurgir em um outro momento, sob um novo registro, como capazes de alterar ou transformar as funções então dominantes e de, nesse caso, demandar avaliações críticas antes imprevistas. Em resumo, portanto, a literatura opera historicamente por meio de um processo dialético de diálogo com a tradição e crítica dela: “manter a tradição e fugir dela compõem a essên- cia de todo novo trabalho artístico” ( JAKOBSON, 2002, p. 518, grifo do 25 LITERATURA, ENSINO E FORMAÇÃO EM TEMPOS DE TEORIA (COM “T” MAIÚSCULO) autor). Logicamente, ao contrário da simples sucessão de períodos literários organizados desde princípios históricos e estéticos “externos” às obras, o formalismo russo insiste na internalidade de sua base analítica, partindo de um corpo teórico capaz de permitir o enfrentamento com o “fato literário” em sua suposta imanência. A renúncia à tese de literariedade nos estudos literários, isto é, à tentativa de depreender as características internas definidoras da litera- tura na sua relação de diferença para com a fala cotidiana, parece hoje um ponto pacífico ou um dado autoevidente, conforme atesta o próprio tom casual com que as OCEM descartam o assunto em apenas três linhas do documento: “Houve diversas tentativas de estabelecimento das marcas da literariedade de um texto, principalmente pelos formalistas e depois pelos estruturalistas, mas essas não lograram muito sucesso, dada a diversidade de discursos envolvidos no texto literário” (BRASIL, 2006, p. 55). Curiosamente, entretanto, algumas linhas depois, o documento vai recorrer justamente ao “estranhamento”, possivelmente a partir de um uso pré-conceitual do termo, para estabelecer o traço definidor da experiência estética: Qualquer texto escrito, seja ele popular ou erudito, seja expressão de grupos majoritários ou de minorias, contenha denúncias ou reafirme o status quo, deve passar pelo mesmo crivo que se utiliza para os escritos canônicos: Há ou não intencionalidade artística? [...] Proporciona ele o estranha- mento, o prazer estético? (BRASIL, 2006, p. 55, grifo do autor). Como no caso do periodismo e da defesa da tradição nacional como narrativas plausíveis para os estudos literários, as noções formalistas, des- cartadas ou consideradas insuficientes em suas implicações conceituais, sobrevivem nos manuais de literatura destituídas do substrato que lhes adensaria em um uso verdadeiramente crítico, circulando na condição de resíduos de um passado teórico distante. Afinal de contas, o que significa “proporcionar estranhamento” no contexto do documento? A tentativa de responder à pergunta nos faria retornar aos impasses que as OCEM não enfrentam até as últimas consequências e que pediriam uma teorização mais contundente. Em linhas gerais, as várias críticas lançadas contra o “formalismo russo” e a ideia de literariedade podem ser aqui resumidas, para fins didáticos, em dois pontos fundamentais. Em primeiro lugar, as premissas formalistas em torno da arte como “estranhamento” da realidade parecem funcionar 26 ANDRÉ CECHINEL melhor quando coladas aos movimentos de vanguarda ou ao gênero poé- tico, em particular, do que quando dirigidas a formas narrativas como o conto e o romance. Prova disso é o fato de que as principais teses, exercí- cios críticos ou argumentos apresentados por nomes como Iuri Tynianov, Osip Brik e o próprio Roman Jakobson decorrem, na verdade, do contato com o verso. Muito embora de modo apressado, essa é a crítica que Terry Eagleton tece aos formalistas russos na introdução de sua conhecida obra Teoria da literatura: uma introdução: “pensar na literatura como os forma- listas o fazem é, na realidade, considerar toda a literatura como poesia. De fato, quando os formalistas trataram da prosa, simplesmente estenderam a ela as técnicas que haviam utilizado para a poesia” (EAGLETON, 2006, p. 9). Nesse sentido, a sensação de estranhamento ou de desvio da norma resultaria muito mais de uma maneira de se relacionar com os objetos do que exatamente de artifícios literários que os fariam produzir diferença em relação aos usos comuns ou cotidianos da linguagem. Em outras palavras, a literatura depende de dispositivos exteriores à dimensão da forma para ser tomada como tal – o que sugere, em suma, que o critério da internalidade não apenas não se sustenta por si só, como parece insinuar-se de modo mais convincente quando sob a forma do verso, cuja associação histórica com a imagem da literatura ocorre de imediato. A perspectiva da recepção ou do leitor, deixada de lado pelos formalistas em seus estudos, aqui surge em cena. Em segundo lugar, como no caso de outras experiências formalistas posteriores, que se concentraram antes nos aspectos linguísticos do que na dimensão mais imediatamente temático-política da experiência literária – insistindo na internalidade do funcionamento da maquinaria artística e assim preterindo aspectos contextuais até então considerados indispensá- veis para a compreensão da literatura –, o formalismo russo produziu uma “gramática” imanente para a crítica que, se em um primeiro momento abriu novos caminhos e afastou as análises extrínsecas silenciadoras das espe- cificidades dos objetos com que se deparavam, em um segundo momento passou a apresentar sinais de esgotamento, girando em falso em torno da forma literária e fechando-se para o conjunto vivo de problemas que essa mesma forma evoca a todo momento. Essa crítica aos excessos “instru- mentalizadores” de certas teorizações formalistas encontra-se formulada mais recentemente no livro A literatura em perigo, de Tzvetan Todorov, ele próprio um teórico com produção fortemente voltada para a questão da forma e estrutura literária: “não apenas estudamos mal o sentido de um texto se nos atemos a uma abordagem interna estrita [...]. É preciso também que 27 LITERATURA, ENSINO E FORMAÇÃO EM TEMPOS DE TEORIA (COM “T” MAIÚSCULO) nos questionemos sobre a finalidade última das obras que julgamos dignas de serem estudadas” (TODOROV, 2009, p. 32). Atentos somente a aspectos formais, reduzimos a literatura “ao absurdo”, isto é, a um conjunto artificial de técnicas e procedimentos que perdem inteiramente a razão de ser se dissociados do serhumano e do mundo por eles invocados ou fabricados. *** Eis a nova tarefa da crítica literária: libertar o leitor das amarras de um formalismo que, a essa altura, passa a estar ele também vinculado ao autoritarismo do sentido único ou de uma maquinaria analítica para a qual devemos sempre convergir. Fenômenos complexos, o novo “império do leitor” e a abertura a uma “interpretação plural” poderiam ser aqui lidos, a título de exemplo, a partir de dois célebres ensaios de Roland Barthes: “A morte do autor” e “Da obra ao texto”.2 O primeiro, datado sintomaticamente de 1968, anuncia já em suas linhas iniciais a distância mantida em relação ao fechamento do sentido resultante da materialidade imediata da obra ou mesmo do seu lugar de origem: “[...] a escritura é a destruição de toda voz, de toda origem. A escritura é esse neutro, esse composto, esse oblíquo pelo qual foge o nosso sujeito, o branco-e-preto em que vem se perder toda identidade, a começar pela do corpo que escreve” (BARTHES, 2004, p. 57). A literatura caracteriza-se, fundamentalmente, não pelos procedimentos formais que a organizam em sua singularidade ou pela relação de tensão que mantém com o real, mas pela radicalidade de uma condição intransitiva capaz de fazê-la desligar-se de qualquer função ou uso específico. Embora o ensaio refira-se ao império da figura autoral como exemplo maior do significado único, esse Autor-Deus alude, na realidade, não apenas a uma figura biográfica de “carne e osso”, mas sim a qualquer obstáculo que impeça o leitor de exercer livremente a sua tarefa: [...] o leitor é o espaço onde se inscrevem, sem que nenhuma se perca, todas as citações de que é feita uma escritura; a unidade do texto não está em sua origem, mas no seu des- tino, mas esse destino já não pode ser pessoal: o leitor é um homem sem história, sem biografia, sem psicologia (BAR- THES, 2004, p. 64). 2 A discussão que segue mantém um diálogo implícito e explícito com o texto de Fabio A. Durão intitulado “Do texto à obra”. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-106X2011000100005. 28 ANDRÉ CECHINEL Em resumo, a linguagem (literária) e os sentidos que ela libera no contato com o leitor são abertos, plurais, livres, infinitos, desierarquizados e produzidos sob o signo do prazer que impulsiona a atividade de um receptor “sem história, sem biografia, sem psicologia”, ou seja, de um receptor ele próprio livre de demandas teleológicas ou teologizantes. É claro, para emancipar verdadeiramente o leitor faz-se necessário desobstruir o fluxo de sua atividade de qualquer materialidade imediata que se apresente como obstáculo, e isso significa, em última instância, dissolver a concretude ou totalidade inscrita na própria ideia de obra. É exatamente isso que Barthes empreende no ensaio de 1975 intitulado, não por acaso, “Da obra ao texto”: “Diante da obra – noção tradicional, concebida durante muito tempo, e ainda hoje, de maneira por assim dizer newtoniana –, produz-se a exigência de um objeto novo, obtido por deslizamento ou inversão das categorias anteriores. Esse objeto é o Texto” (BARTHES, 2004, p. 66, grifo do autor). Ao contrário da obra, cujo autocentramento encerra um problema imediato para o livre exercício interpretativo do leitor, o texto caracteriza-se pelo fluxo, pelo deslizamento contínuo e por um conceito de interdisciplinari- dade que varre do mapa qualquer resquício de origem ou fim específicos que estabeleçam limites definitivos para o horizonte da recepção. Se a obra, de um lado, associa-se a termos como “estrutura”, “centro”, “monismo”, “fechamento”, “significado”, “simbolismo”, “consumo”, “metáfora” etc., o texto, de outro, vin- cula-se a categorias como “pluralidade”, “paradoxo”, “descentramento”, “jogo”, “significante”, “travessia”, “abertura”, “gozo”, “metonímia”, entre outros. É essa a estrutura binária (cf. DURÃO, 2011a) que dita a celebração da multiplicidade interpretativa defendida por Barthes no ensaio-manifesto em pauta. Em seu procedimento desierarquizante, o texto infinito vislumbrado pelo ensaísta termina por desierarquizar, enfim, os traços que deveriam singularizar a literatura entre os demais usos da linguagem: “o Texto participa a seu modo de uma utopia social; [...] ele é o espaço em que nenhuma linguagem leva vantagem sobre outra, em que as linguagens circulam (conservando o sentido circular do termo)” (BARTHES, 2004, p. 75). Ora, para o lugar institucional ocupado pela literatura, os perigos que rondam esse uso genérico do conceito de texto começam não por acaso justamente aí, na profunda equivalência estabelecida entre todos os tipos de linguagem. No volume dos Parâmetros curriculares nacionais que se intitula sintomaticamente Linguagens, códigos e suas tecnologias – observe-se que não há referência alguma à literatura no título –, o “gênero literário” não só é 29 LITERATURA, ENSINO E FORMAÇÃO EM TEMPOS DE TEORIA (COM “T” MAIÚSCULO) visto como apenas um entre os vários “gêneros do discurso”, como a literatura apresenta-se destituída de qualquer traço básico dela definidor, o que con- duz a considerações, por assim dizer, embaraçosas ao longo do documento: “O conceito de texto literário é discutível. Machado de Assis é literatura, Paulo Coelho não. Por quê? As explicações não fazem sentido para o aluno” (BRASIL, 2000, p. 16). Segundo esse cálculo, a dificuldade de definir o que é literatura deve levar-nos à improvável conclusão de que todos os textos são potencialmente literários e em certa medida se equivalem, de modo que em sala de aula não deveria haver nenhuma preferência a priori entre Machado de Assis e... Paulo Coelho. O fiel da balança aqui é o leitor, figura silenciada em virtude de escolhas ou obras impositivas e inacessíveis: “Quando deixamos o aluno falar, a surpresa é grande, as respostas quase sempre surpreendentes. Assim pode ser caracterizado, em geral, o ensino de Língua Portuguesa no Ensino Médio: aula de expressão em que os alunos não podem se expressar” (BRASIL, 2000, p. 16). A potência da literatura não está no desafio que lança aos alunos por meio de sua construção específica e complexa de sentidos, mas sim no convite que lhes faz para que se “expressem”. Evidentemente, se o objetivo é a “expressão”, é certo que os alunos podem se “expressar” a partir da literatura, mas também por meio de qualquer outro objeto ou gênero do discurso, ou melhor, por meio de qualquer outro “texto”, uma vez que, em sua conduta democrática, o texto não aceita que linguagem alguma leve vantagem sobre outra, como Barthes nos ensina. Seja como for, ainda que as OCEM tenham posteriormente corrigido a vagueza e permissividade com que os PCNs encerram essas questões, os riscos que a noção de texto reserva para o desenvolvimento dos estudos literários são inúmeros, conforme Fabio A. Durão comenta em um ensaio que propõe a mudança de direção na travessia conceitual sinalizada por Barthes, defendendo a passagem ou retorno “Do texto à obra”. Vale a pena recuperar aqui o argumento ou crítica central que Durão tece contra a fluidez da ideia de texto formulada pelo francês, e que diz respeito, em síntese, à incapacidade do conceito de gerar objetos. Em outras palavras, o texto não permite a valoração de diferentes artefatos, o que também “[...] aponta para o problema de se lidar com o conceito de verdade na prá- tica textual” (DURÃO, 2011a, p. 71). O deslizamento incessante de uma escritura a outra e o fato de que o texto “não deve ser entendido como um objeto computável” (BARTHES, 2004, p. 67) ou como uma materialidade específica ou determinável impedem o estabelecimento de um limite que possibilite a diferenciação dos objetos; nesse caso, como algo que não pode 30 ANDRÉ CECHINEL ser interrompido em seu deslocamento incessante, pode-se dizer que “a realização mais plena do Texto é a de um fluxo linguístico/semiótico” (DURÃO, 2011a, p. 75), um fluxo que, como tal, não se diferenciade outras textualidades nem se apresenta para o escrutínio sem de saída desviar-se de si mesmo. Emblema, pois, de uma abundância linguística, o conceito perde sua força política e literária e acaba por se aproximar “[...] da superprodução que caracteriza o capitalismo atual” (DURÃO, 2011a, p. 75). A liberdade do leitor converte-se, ao fim da jornada, em sua prisão maior: a liberdade para o consumo de fragmentos descartáveis. *** O vasto alcance do conceito de texto e o subsequente abandono parcial da ideia de literatura como um conjunto relativamente estável de obras que partilham de traços comuns e dialogam com determinada tradição histórica, acompanhados das frequentes críticas a um cânone conservador e excludente, dos avanços acelerados dos meios de comunica- ção e das mídias digitais, da abrangência de uma indústria da cultura que oferece ao público itens fabricados sob demanda, da redução dos vários usos da linguagem a uma concepção vaga de “gêneros discursivos”, entre tantos outros fenômenos que aqui não haveria espaço suficiente para investigar, tudo isso converteu a área dos estudos literários em um campo ao mesmo tempo profundamente amplo e aberto, porém sem fronteiras mínimas visíveis e, dessa forma, destituído de um objeto imediato que justifique ou especifique o seu lugar institucional. Diante desse quadro de incertezas e indefinições, o professor de Literatura, por sua vez, per- cebe tão somente um mar de textualidades indiferenciadas, e como lhe é insistentemente dito, afinal de contas, que tudo é texto e que “não há nada fora do texto”, tudo pode ser potencialmente abordado em suas aulas. O desfecho melancólico da seção “Conhecimentos de Língua Portuguesa” dos PCNs é por si só suficientemente elucidativo desse cenário: “Ao ler este texto, muitos educadores poderão perguntar onde está a literatura, a gramática, a produção do texto escrito, as normas. Os conteúdos tradicio- nais forma incorporados por uma perspectiva maior, que é a linguagem [...]” (BRASIL, 2000, p. 23). Conforme Leyla Perrone-Moisés (2000, p. 347) assinala, “a única maneira de aderir a essa nova situação é abando- nar de vez tudo o que justificava o ensino anterior da literatura, desde o mais elementar: o livro, a leitura solitária, seletiva e reflexiva”. Cabe aqui 31 LITERATURA, ENSINO E FORMAÇÃO EM TEMPOS DE TEORIA (COM “T” MAIÚSCULO) ressaltar que esse abandono não é precisamente uma impossibilidade ou mesmo uma novidade: para além do evidente fato de que a literatura vem sendo gradativamente excluída dos currículos escolares, a própria teoria literária já não parece muito convencida de que possui de fato um objeto, e assim, de “teoria literária” passa a se chamar simplesmente Teoria, com “T” maiúsculo.3 Nas palavras de Durão (2016a, p. 14): A Teoria (com “T” maiúsculo) representa o resultado de um processo de autonomização, de separação vis-à-vis a teoria literária, que, como o próprio nome atesta, ainda guardava alguma espécie de vínculo necessário, por mais tênue que fosse, com a literatura. Embora a Teoria hoje ainda oca- sionalmente lide com obras ficcionais, isso já não é mais imprescindível: seu escopo de atuação confunde-se com o das práticas significantes e suas metodologias são variadas, o que faz com que não mais respeite as divisões disciplinares usuais das ciências humanas. Com efeito, um dos sintomas característicos dessa renúncia ao literário por parte da Teoria decorre da redução das obras poéticas e ficcionais, por exemplo, a aspectos estritamente Teóricos ou mesmo temáticos que poderiam ser perfeitamente encarados a partir de outros artefatos quaisquer. A Norton Anthology of Theory and Criticism (2001) – célebre antologia de ensaios teóricos frequentemente utilizada em cursos de introdução à teoria (literária) nos Estados Unidos – mantém, desde o título, que sequestra a palavra Literary ali diretamente implicada, uma relação problemática com a literatura. Suas mais de 2.500 páginas4 debruçam-se sobre um objeto que vai gradativamente evaporando ao longo das seções, até ser tomado em sua dimensão estritamente temática, como prova a lista final do “índice alternativo” que o volume oferece aos leitores: na seção IV, intitulada “Problemas e temas” [Issues and Topics], convivem lado a lado questões linguísticas e estéticas que desde sempre marcaram os estudos literários até temas contemporâneos como “O corpo” [The Body], “Gênero e sexualidade” [Gender and Sexuality], “O pós-moderno” [The Postmodern], “Subjetividade e identidade” [Subjectivity and Identity], entre outros que incidem apenas lateral ou acidentalmente 3 Sobre o tema, cf. o livro de Durão (2011) intitulado Teoria (literária) americana: uma introdução. 4 Como Peter Barry (2016) comenta, há nessas “medidas elefantinas” dos manuais da Teoria um sintoma evi- dente de sua falência, uma vez que esse número desproporcional de páginas indica, em certa medida, o recuo de um objeto que, ao se tornar ausente, desregula o próprio dispositivo da sua teorização, que passa a girar intransitivamente em torno de si mesmo. 32 ANDRÉ CECHINEL sobre a literatura. Outros manuais não menos famosos, como Literary Theory: an anthology (2004), da Blackwell, e Literary Theory and Criticism (2006), da Oxford, são igualmente claros ao indicar a acomodação da literatura no âmbito temático: embora preservem o “Literário” no título, os volumes mostram-se em sintonia com as atualizações mais recentes da Teoria, listando vários ensaios que passam à margem da literatura, embora ofereçam temas decisivos e debates políticos que estão na ordem do dia. De todo modo, vale esclarecer de uma vez por todas: desdobramen- tos recentes da Teoria (literária) tais como a “ecocrítica” [Ecocriticism], os “estudos da deficiência” [Disability Studies], os “estudos urbanos” [Urban Studies], os “estudos animais” [Animal Studies], os “estudos transnacionais” [Transnational Studies], os “estudos pós-humanos” [Posthuman Studies], os “estudos do meio-ambiente” [Environmental Studies], os “estudos oceânicos” [Oceanic Studies] etc., além de estabelecer uma dinâmica de dependência intelectual em relação à “Teoria de ponta” produzida, por via de regra, nos Estados Unidos, como evidencia o dispositivo dos Studies a que se colam as “novas” áreas de estudo recém-fundadas, reduzem o fenômeno literário a um campo textual em que se testam ou a que se aplicam as demandas teóricas mais recentes. Mais uma vez, o que testemunhamos nessas operações é a lógica do consumo e uma dinâmica de produção semelhante àquela que conhecemos no mercado internacional: os textos literários funcionam como matéria-prima (cf. DURÃO, 2011b, 2015) submetida ao funcionamento complexo de uma maquinaria importada sob altos custos, entre os quais o de terceirizar os compromissos inte- lectuais diante dos desafios lançados pela literatura e o de, ainda que sob pressupostos políticos, reproduzir sem nenhum tensionamento, no campo teórico, os mesmos laços de dependência que a própria Teoria por vezes denuncia. De resto, do ponto de vista da formação intelectual dos futuros professores, o quadro também não é muito animador: os alunos dedicam-se fielmente a um desses Studies – áreas muitas vezes fadadas a um desaparecimento precoce, haja vista as constantes atualizações de seus modelos temáticos ou a flutuação de determinados nomes no mer- cado de valores da Teoria – para, como no caso da formação tecnicista ou da educação para o trabalho, encontrar um posto futuro na condição de especialista – não especialista em literatura, vale lembrar, mas sim em um dos domínios da Teoria aplicada. 33 LITERATURA, ENSINO E FORMAÇÃO EM TEMPOS DE TEORIA (COM “T” MAIÚSCULO) Da necessidade de dizer “literatura” Habitando incoerentemente os destroços de argumentos que já não mais lhe oferecem uma sustentação ou estrutura elementar sobre a qual se organizar, o ensino de Literatura mantém-se à deriva. Sem um rumo claro ou uma regra forte,a presença do literário tende a se reduzir aos princípios do consumo rápido e descartável que imperam na “sociedade do espetáculo”, uma “sociedade excitada” que é também a sociedade da fadiga: resumos, teorias explicativas ou aplicadas, versões adaptadas, filmes, fichas de leitura, entre outras formas de desvios que evitem o embate direto com as obras em sua integralidade, confronto que demanda tempo e reflexão que poderiam ser destinados a formas mais “produtivas” ou menos intran- sitivas, com indícios de resultados posteriores mais rápidos ou “lucrativos”. Nessas condições, em que a literatura, para não desaparecer, mimetiza a expectativa de utilidade – uma utilidade por vezes “política”, como no caso dos Studies – a que se veem submetidos os mais diversos conteúdos que habitam a escola ou universidade como empresa, torna-se um exercício improvável insistir no argumento da “formação humana” a que aludem os documentos oficiais. A “formação humana” – se é que a expressão ainda tem lugar nas instituições supracitadas ou caso queiramos ressignificá-la e defendê-la – tem de resultar de um processo, não de acomodação, mas de tensão contínua com a realidade. Como no exemplo de Wilhelm Meister, “formar-se” significa submeter-se ao risco contínuo do desamparo, do abandono, da improdutividade, da intransitividade, enfim, submeter-se ao risco de um mundo artístico-literário que já não reserva grandes promessas, mas que exige muito. Diante desse quadro, difícil permanecer no terreno das metodologias para o ensino de Literatura. Necessária, antes de mais nada, é uma teori- zação capaz de oferecer conceitos consistentes e firmes de “obra”, “leitor” e “tradição” que estejam em dissintonia com as exigências do tempo pre- sente e sejam capazes de produzir um tensionamento de fato formativo. Esses conceitos poderiam recomeçar a partir de preceitos ou pressupostos básicos, porém não raro deixados de lado. Para a noção de “obra”, por exemplo, em confronto com a ideia de uma textualidade deslizante, cabe lembrar ou acentuar a singularidade irredutível sob a qual ela se apresenta, ou seja, cabe lembrar que a obra só funciona como tal se vinculada a um determinado modo específico de apresentação, em que o “o quê” do arte- fato confunde-se simultaneamente com o seu “como”, sem que um possa 34 ANDRÉ CECHINEL ser acionado sem ativar também o outro. Em outras palavras, afastada de sua construção particular, isto é, de sua singularidade ou especificidade, a literatura tende a migrar para o campo apenas temático ou então para for- mas mais toleráveis como aquelas citadas anteriormente. Preservados em sua apresentação singular, os artefatos literários resistem ao mero processo de predicação ou aplicação que caracteriza as operações da Teoria, girando uma vez mais e produzindo novos ruídos somente se lidos sob o signo da atenção e da abertura à sua alteridade imediata. Como afirma Durão (2011a, p. 80): “A obra [...] não pode ser submetida a um modelo, ou ser usada para exemplificar o que quer que seja. Há algo de irredutivelmente antididático em si”. É nesse “antididatismo” da obra que se encontra a possibilidade de formação para o leitor. Sobre o “leitor”, em vez de figura que dita livremente e a partir de si mesmo os sentidos dos textos ou suas relações intertextuais infinitas, faz-se importante, ao contrário, defender a sua desconstrução parcial diante da concretude de uma obra que, quanto mais potente, mais resiste ao seu intuito de colar-se a ela por meio da interpretação. No lugar de um diálogo em que, a rigor, nem texto nem leitor conversam, a leitura potente decorre antes de um embate, de uma disputa violenta e irreconciliável, em que o leitor quer calar a obra por meio de uma análise precisa, “definitiva”, e a obra desvia-se de si mesma e termina por invocar o leitor uma vez mais, provando ser mais complexa do que a interpretação sobre ela projetada. Ali onde imperava a explicação, a clareza, a identidade, o reconhecimento e a decodificação, surge agora uma imagem estilhaçada, uma obra que se despedaça e obscurece a forma, retirando-se silenciosamente e expondo uma ausência de saber, um vazio profundo que habita o centro de nossos dispositivos interpretativos reconciliadores. Na escola ou universidade como empresa, a “gestão de si”, assegurada pelo contato apriorístico com os textos, é substituída, então, pela “desconstrução de si”, resultado de um gesto de entrega e atenção à singu- laridade do artefato intimidante que ali se apresenta à leitura sem nunca se esgotar. Ora, para ser de fato ameaçadora, para poder eventualmente retirar o leitor do lugar por ele ocupado quando do instante da recepção, a obra não pode originar-se diretamente das demandas desse leitor ou se limitar a satisfazê-las. Nesse sentido, fica parcialmente respondida a questão volta e meia lançada quanto à escolha de materiais a partir dos quais trabalhar com os alunos: cânone ou anticânone, a seleção tem de desafiar o leitor e desarmar seus desejos de consumo iniciais. O critério da facilidade, quando um fim em si mesmo, gera consumidores, não leitores críticos. 35 LITERATURA, ENSINO E FORMAÇÃO EM TEMPOS DE TEORIA (COM “T” MAIÚSCULO) Por fim, para evitar o risco de terceirizar a tarefa de tecer um fio argumentativo ou narrativo coerente e produtivo para o diálogo entre as várias obras – terceirização que ocorre via vestibulares, livros didáticos ou recortes meramente temáticos –, seria importante restituir a ideia de “tradição” ao lugar que lhe cabe. Ora, isso certamente não quer dizer fazer o elogio da “grande tradição”, da genialidade do cânone, ou recorrer a uma esteticidade fixa e imobilizadora, mas sim pensar o conceito de tradição muito mais como um operador narrativo inicial e, dessa forma, para sempre incompleto, porém capaz de conferir tanto um sentido histórico e político para os estudos literários quanto de negar-se a si mesmo interna e externa- mente. Para dizer de outra maneira, o cânone desestabiliza-se internamente, quando uma obra do passado, velha conhecida nossa, é submetida a um exercício interpretativo capaz de lhe conferir nova mobilidade, e externa- mente, quando novas obras, vozes silenciadas do passado ou não e do pre- sente, violentam a suposta completude dessa tradição, abrindo uma ferida em seu seio capaz de fazer com que tudo que era até então familiar vibre novamente de modo a produzir atritos criativos e potentes. Diferentemente da mera negação do cânone, o conceito de “tradição negativa” reconhece que o passado nunca se nos apresenta de forma integral, exigindo, pois, uma postura ativa de revisitação, confronto e convívio com as suas ruínas. Se a formação tem que ver menos com adequação, instrumentalização, e mais com a produção de algum dissenso mobilizador – “Onde cargo e profissão constituem, na vida dos estudantes, a ideia dominante, esta não pode ser a ciência” (BENJAMIN, 2002, p. 40) –, e se o fluxo contínuo de estímulos caracteriza o paradigma central da “sociedade da sensação”, então trabalhar com as noções de “obra”, “leitor” e “tradição” nos termos mínimos concebidos significa viabilizar um espaço de interrupção e atenção aos obje- tos que pode assumir tonalidades de fato formativas nos espaços de ensino. Que os conceitos de “literatura”, “autor”, “leitor”, “obra”, “interpretação” etc. são infinitamente mais complexos do que faz parecer o tratamento que aqui lhes foi brevemente conferido, não resta dúvida. De todo modo, abrir mão desses operadores, no momento, é não apenas abandonar a literatura à própria sorte – gesto que, a longo prazo, pode conduzir ao seu próprio desaparecimento institucional –, mas colocá-la a serviço de um utilita- rismo que não sustenta relação alguma com ela. Restabelecer um contato “improdutivo” com a literatura é a única forma de restituí-la minimamente ao âmbito da formação e à temporalidade que lhe cabe e que ela solicita. 36 ANDRÉ CECHINEL *** O estrangulamentogradual da literatura nos espaços formativos é um fenômeno complexo, que em grande parte escapa ao funcionamento interno da disciplina e que, portanto, conforme indicado anteriormente, deve ser teorizado para além do que ocorre de imediato no âmbito das metodologias ou dos conceitos que pairam sobre a área. O caso da escola, em particular, é emblemático: de instituição que deveria promover o espírito crítico, a autonomia dos sujeitos, a emancipação por meio da apropriação dos conhe- cimentos historicamente acumulados, a “humanização” como resultado do convívio com o outro e da abertura à alteridade etc., a escola passa a ser lida como estabelecimento responsável por assegurar a sobrevivência e inclusão posterior dos alunos no mercado de trabalho e na vida produtiva. Quando deixa de cumprir a tarefa de destinar a cada um a parte que lhe cabe no uni- verso adulto, ela vê sua legitimidade questionada de todos os lados, sofrendo intervenções e constantes reformas educacionais que vislumbram, então, restituí-la a esse lugar antecipador do mundo de postos, ofícios, profissões e competição. Conforme Christian Laval (2004, p. xi) resume a questão, “a escola neoliberal designa um certo modelo escolar que considera a educação como um bem essencialmente privado e cujo valor é, antes de tudo, econômico”. Segundo esse modelo privado e competitivo, a escola deve, em primeiro lugar, instrumentalizar os alunos, prepará-los para a entrada no mercado de trabalho, algo que a literatura não só não faz, como por vezes coloca-se até mesmo como um obstáculo para esse fim. Em resumo, a literatura solicita um tempo “improdutivo” já indisponível ou não mais viável, e assim, no mundo da utilidade e aplicabilidade, ela é simplesmente “inútil”. Diante desse cenário instrumentalizante e em busca de uma sobrevida no campo da formação, a literatura por vezes ressurge colada àquelas mes- mas forças utilitárias e produtivas que estimulam a natureza mercadológica a que a escola hoje se vê reduzida. Em poucas palavras, sem uma reflexão consistente a respeito de seus (não) lugares, a literatura coloca-se como mercadoria à disposição de uma apropriação mais pragmática, abrindo mão da sua capacidade de obstruir o curso normal do funcionamento escolar – atributo que poderia lhe conferir uma potência realmente formativa, o que significa, nesse esquema, uma potência negativa – para se apresentar como espetáculo. Com efeito, talvez a literatura só possa sobreviver institucional- mente, em uma cultura de mercado, a partir de certa “espetacularização de si”, ou melhor, oferecendo-se também como produto por meio de promessas 37 LITERATURA, ENSINO E FORMAÇÃO EM TEMPOS DE TEORIA (COM “T” MAIÚSCULO) redentoras ou autoelogiosas que em muitos casos beiram lições extraídas diretamente de manuais de autoajuda: “A literatura pode muito. Ela pode nos estender a mão quando estamos profundamente deprimidos, nos tornar ainda mais próximos dos outros seres humanos que nos cercam, nos fazer compreender melhor o mundo e nos ajudar a viver” (TODOROV, 2009, p. 76). De todo modo, uma coisa é certa: quando não alienada de si mesma, quando desacompanhada de frases de efeito ou mesmo de um utilitarismo ainda mais vulgar, a literatura tende ao desaparecimento institucional, pois sua “inutilidade” é flagrante e incontornável. A literatura não nos ajuda a achar um emprego nem nos capacita para um trabalho ou profissão; a literatura não nos torna “melhores” nem nos “humaniza”, pelo menos não no sentido pragmático costumeiramente associado a esses termos; por fim, a literatura certamente não nos ensina a viver; talvez possamos, inclusive, dizer o contrário, isto é, que a literatura muitas vezes confunde ou nos faz estranhar o nosso modo de viver, colocando dúvidas ali onde havia convicção, muito embora nem mesmo isso seja um traço dela constitutivo. Em suma, a literatura não se oferece a uma apropriação pedagógica ou didatizante muito clara, e o espectro de sua força formativa só se apresenta, sempre de maneira precária ou inesperada, por meio dessa rebeldia primeira. Assim, as categorias de “obra”, “leitor” e “tradição”, tal como aqui rapidamente tratadas, não intentam conferir uma utilidade específica à literatura ou uma função formativa que a faça sobreviver em meio a outras mercadorias, mas buscam, antes, retirá-la de vez da esfera do uso ou da cir- culação fluida a que se vê submetida e que facilita a sua instrumentalização, mergulhando ainda mais profundamente na mesma intransitividade ou inutilidade radical que ameaça fazê-la desaparecer. A temporalidade a partir da qual esses conceitos foram aqui concebidos contrasta frontalmente com o tempo produtivo e econômico que controla a passagem das instituições de ensino e da própria literatura para a lógica do mercado. Há nisso tudo, é claro, uma grande contradição, uma conduta como que suicida: pode-se argumentar que esse tratamento conduzirá a um desaparecimento ainda mais precoce e integral da literatura dos espaços de formação, e isso parece ser verdade. Por outro lado, resta lançar a inevitável pergunta: em sua ver- são espetacularizada, sob a forma de resumos, fichas de leitura, questões de vestibular, adaptações, filmes etc., não é verdade que a literatura ali já desapareceu? Seja como for, no presente momento, a literatura ainda é o “inútil” habitando o coração das instituições; cabe lutar por esse espaço, ou seja, cabe lutar para que ela ali surja como tal e que, com isso, constitua 38 ANDRÉ CECHINEL sempre a lembrança anacrônica de um significado mais verdadeiro da pala- vra formação, até que ela enfim simplesmente desapareça, junto às demais “inutilidades” fundamentais à nossa existência. 39 2 SEMIFORMAÇÃO LITERÁRIA O entendido e experimentado medianamente – semi-entendido e semi-experimentado – não constitui o grau elementar da for- mação, e sim seu inimigo mortal. Elementos que penetram na consciência sem fundir-se em sua continuidade, se transformam em substâncias tóxicas e, tendencialmente, em superstições, até mesmo quando as criticam [...] (ADORNO, 2005, p. 13). As discussões em torno de regras, orientações, diretrizes e parâmetros para o trabalho com a literatura são sempre atravessadas por um mal-estar inevitável. Seja pela impossibilidade de uma distinção apriorística, estável e imanente do que chamamos de “literatura”, seus gêneros e formas, seja pelo entendimento de que o literário institui um pensamento do exterior em relação ao discurso, um devir que instaura zonas de indiscernibilidade ou indiferenciação, ou mesmo uma escritura infinita, um texto que remete a outros textos em uma travessia intertextual permanente, o certo é que essas posições teóricas parecem pouco convidativas à fixação de fronteiras, limi- tes, seleções, juízos e normas, como o fazem, por exemplo, os documentos oficiais que estabelecem o que deve ou não ser realizado em sala de aula com o espaço destinado à área. Aliás, talvez seja justamente por isso que os Departamentos de Literatura mostrem-se tão refratários aos debates teóricos e/ou metodológicos sobre o vínculo entre literatura e ensino. Em poucas palavras, torna-se difícil atribuir concretude e estabilidade “pedagógica” a um conceito que, em vez de comunicar a materialidade de seus objetos, é antes continuamente informado e alterado por eles, sem integrar um corpo específico a cuja presença se possa conferir um determinado tratamento. No campo das bases, diretrizes, planos e parâmetros curriculares, entretanto, a linguagem da discussão é outra, por vezes meramente prag- mática, e o problema é debatido também em outros termos: ali a literatura, essa “conversa infinita”, plural e desconstrutora, está submetida ao mesmo regime político de divisão, partilha, distribuição e ocupação de lugares a que estão sujeitos os demais objetos, assuntos e disciplinas, sob o risco, portanto, de uma eventual redução a conteúdo palatável, simulacro inofensivo, ou 40
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