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FUNDAMENTOS TEÓRICOS DA LITERATURA AULA 1 Prof. Phelipe de Lima Cerdeira 2 CONVERSA INICIAL Estimado (a) aluno (a), receba as nossas boas-vindas! Muito provavelmente, este é um dos primeiros contatos – se não o primeiro – da área de estudos literários com você. Após uma trajetória de formação e de estudos no ensino médio, chega o momento de abrir um novo capítulo em sua história como estudante: a proposta é estreitar relações com temas que sempre lhe despertaram interesse; estar aberto para entender que crescemos a partir do diálogo; deixar-se surpreender por discussões antes não imaginadas ou pouco aprofundadas; e, ainda, (re)pensar a cada momento as certezas cristalizadas. A partir deste material, damos início à discussão da nossa disciplina, um dos conteúdos que dizem respeito à grade obrigatória do nosso curso de graduação. Será possível perceber que esta disciplina se apresenta como uma grande possibilidade para rever determinados conceitos e alinhar as principais questões que terão de fazer parte do seu horizonte crítico. Isso significa que tudo o que abordaremos em cada um dos encontros terá a finalidade de lhe deixar mais à vontade, com segurança para cursar as demais disciplinas que farão parte do módulo relacionado à literatura. Ainda que falemos aqui em “disciplina obrigatória”, precisamos esclarecer um ponto fundamental desde o princípio: o nosso grande desafio será, a todo momento, desconstruir a sensação de exigência e de certo monitoramento intelectual atrelada ao texto literário ao longo de nossa formação na educação básica. Ainda que ganhe foco de interesse teórico e crítico por conta do desenvolvimento de uma área específica, os estudos literários, a literatura precisa existir sempre como manifestação discursiva. A premissa que, sim, merece valor inicial quando se alude à literatura é a da fruição, do prazer advindo da leitura. Ainda que se referindo pontualmente ao livro, ao objeto que personifica o plano literário, o poeta gaúcho Mario Quintana parece nos ajudar a lembrar sobre o poder da literatura: “O livro traz a vantagem de a gente poder estar só e ao mesmo tempo acompanhado” (Quintana, S.d.). Para que possamos acompanhar toda a discussão com atenção e tranquilidade, todas as nossas aulas seguirão uma divisão bastante intuitiva e pedagógica. A proposta é que todo o raciocínio possa ser apresentado de maneira clara, facilitando a retomada de algum tema específico que precise ser 3 revisado ou, ainda, que acabou lhe despertado maior interesse. Nesta aula, por exemplo, o conteúdo contará com a seguinte a proposta de seções: 1. Contextualizando; 2. Antes de literatura, littera; 3. Literatura para quê?; 4. A literatura está em perigo?; 5. Literatura, um direito; 6. Na prática; 7. Finalizando; 8. Referências. É sempre importante reforçar que, ao falar de literatura, espera-se que a leitura seja uma ação presente e necessária. Contamos com a sua participação aqui e também em nossas conversas a partir de videoaulas, fóruns e atividades extra-curriculares que possam vir a ser oferecidas. Que possamos estabelecer um diálogo profícuo até o final deste módulo, (re)descobrindo um mundo chamado literatura. Bons estudos! TEMA 1 – CONTEXTUALIZANDO É muito provável que você tenha ouvido falar em um certo filósofo grego clássico chamado Sócrates, não é mesmo? O que ele tem a ver conosco, com as letras e com a literatura? Basicamente, tudo. Em um momento apropriado, em uma disciplina que verse sobre a literatura clássica, por exemplo, será possível conhecer as contribuições socráticas para o desenvolvimento dos estudos literários. Por enquanto, o que nos interessa aqui é retomar o nome de Sócrates para demonstrar a importância de tomar a literatura não com uma leitura ou interpretação pronta, decorada, mas sempre com uma boa desconfiança, com o interesse de querer ler e perceber diferentes detalhes. Com ajuda de muitas das reflexões socráticas, aprendemos que a única certeza possível é a dúvida. O que isso quer dizer na prática? Significa que, ao longo de toda a sua formação, você perceberá o quanto novas leituras podem ajudar a problematizar o que é apresentado, criando novas perguntas e possibilidades para se abordar um mesmo tópico. A partir das letras, (re)escrevemos novos caminhos para o aprender e descobrimos, como diria o escritor argentino Jorge Luís Borges, que um só jardim pode apresentar 4 diferentes caminhos que se bifurcam. O estudo da literatura, assim, apresenta- nos diferentes aspectos que podem ser estudados e esmiuçados, de acordo com o nosso recorte de atenção ou objetivo. Como vimos desde a apresentação desta disciplina, a literatura – seja a partir de um romance, de um poema, de uma obra dramática, de um conto, de uma crônica, de ensaio ou de qualquer outro dos seus gêneros e manifestações possíveis – nos convida a pensar. Não é segredo algum que a melhor maneira para se começar a falar sobre a literatura é por meio da própria literatura. Por conta disso, antes de seguir com as nossas proposições, vale a pena nos dedicarmos à leitura de um fragmento de um verdadeiro clássico da literatura brasileira. A alusão aqui é para o romance Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa: Sou só um sertanejo, nessas altas ideias navego mal. Sou muito pobre coitado. Inveja minha pura é de uns conforme o senhor, com toda leitura e suma doutoração. Não é que eu esteja analfabeto. Soletrei, anos e meio, meante cartilha, memória e palmatória. Tive mestre, Mestre Lucas, no Curralinho, decorei gramática, as operações, regra- de-três, até geografia e estudo pátrio. Em folhas grandes de papel, com capricho tracei bonitos mapas. Ah, não é por falar: mas, desde do começo, me achavam sofismado de ladino. E que eu merecia de ir para cursar latim, em Aula Régia – que também diziam. Tempo saudoso! Inda hoje, apreceio um bom livro, despaçado. (Rosa, 2010, p. 30) O excerto que você acaba de ler foi retirado de uma das obras brasileiras mais lidas até hoje e que, sem dúvida alguma, marcou novos caminhos para o desenvolvimento do gênero romanesco não somente no Brasil. Publicada pela primeira vez no ano de 1956, a obra Grande sertão: veredas nos apresenta a realidade sertaneja a partir da perspectiva da personagem Riobaldo, que é também o narrador de toda a trama. Sem nos preocuparmos em uma leitura mais crítica e especializada, ou seja, apenas com o compromisso de ter a experiência de ler o texto, o que será que este trecho nos provoca? Tente responder esta pergunta voltando para a citação e relendo cada frase como se estivesse buscando o sabor das palavras. Como você poderia descrever quem está falando? Seria alguém novo? Viveria em qual parte do Brasil? Conhece outras realidades? Este narrador está falando com alguém? Se sim, a pessoa com quem ele fala é diferente? Existe algo que desperte o interesse deste narrador chamado Riobaldo? De forma rápida e sem a preocupação de um rigor crítico, fica evidente como um fragmento de um romance nos permite elencar diversas perguntas, 5 aguçando a nossa criatividade, conectando-nos com informações e leituras anteriores, provocando a nossa imaginação e curiosidade. Assim, fazendo perguntas para nós mesmos, relacionando conhecimentos, dialogando com demais leituras, fruindo o texto, ou seja, permitindo realmente ter prazer ao ler é que nos aproximamos do que deve ser a literatura. Entendidos tais compromissos iniciais, podemos nos dedicar a uma pergunta pontual para o nosso primeiro encontro: caso tivéssemos lido aquele mesmo trecho, mas sem saber que ele faz parte do romance Grande sertão: veredas ou mesmo desconhecendo a informação de que se tratava de uma obra de Guimarães Rosa, teríamos as mesmas impressões iniciais? Embora pareça simples, a provocaçãofeita agora é uma inquietude que faz parte da vida de teóricos literários dispostos a refletir sobre a natureza da literatura desde o século passado. Nomes como Terry Eagleton (1983), Tzvetan Todorov (2009), Antoine Compagnon (2009) e, no Brasil, Antonio Candido (2004) – este último, aliás, que será repetido nesta disciplina e na grande maioria das que você vai cursar ao longo do curso – têm pensado na natureza e nas propriedades que caracterizam a literatura há muitas décadas. Em uma de suas reflexões, Todorov esclarece como “[a] literatura não nasce no vazio, mas no centro de um conjunto de discursos vivos, compartilhando com eles numerosas características; não é por acaso que, ao longo da história, suas fronteiras foram inconstantes” (Todorov, 2009, p. 22, grifo nosso). A ideia que temos a respeito da literatura, portanto, corresponde a um determinado tempo, contexto e realidade discursiva. Para o crítico brasileiro Antonio Candido, por exemplo, a literatura está ligada diretamente a um acordo social: Cada sociedade cria as suas manifestações ficcionais, poéticas e dramáticas de acordo com os seus impulsos, as suas crenças, os seus sentimentos, as suas normas, a fim de fortalecer em cada um a presença e atuação deles. Por isso é que nas nossas sociedades a literatura tem sido um instrumento poderoso de instrução e educação, entrando nos currículos, sendo proposta a cada um como equipamento intelectual e afetivo. Os valores que a sociedade preconiza, ou os que considera prejudiciais, estão presentes nas diversas manifestações da ficção, da poesia e da ação dramática. A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apóia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas. Por isso é indispensável tanto a literatura sancionada quanto a literatura proscrita; a que os poderes sugerem e a que nasce dos movimentos de negação do estado de coisas predominante. (Candido, 2004, p. 175) 6 Diante do que foi evidenciado por Candido, fica mais fácil perceber como a literatura passou a ser vislumbrada a partir de diversas facetas, valorizando o quanto ela não se resume apenas a imitar ou transformar em ficção uma dada realidade, já que ela é, também, uma das responsáveis por garantir tal existência. À vista disso, literatura não é nunca um fim, uma resposta, mas, essencialmente, um meio. Se uma definição taxativa da literatura é inviável, por que grande parte de nós insiste em simplificar a literatura em uma espécie de produção textual específica? Em uma busca no dicionário eletrônico Michaelis, será possível encontrar dez entradas diferentes. Vejamos as definições: 1. Arte de compor escritos, em prosa ou em verso, de acordo com determinados princípios teóricos ou práticos: “Os tênues murmúrios suspirosos desdobravam-se em orquestra de baile, onde se distinguiam instrumentos, e os surdos rumores indefinidos eram já animadas conversas, em que damas e cavalheiros discutiam política, artes, literatura e ciência”. 2. Atividade ou profissão de um homem de letras; o trabalho, a arte do escritor: A literatura é a mais sedutora e enganosa das artes. Minha filha pretende fazer carreira na literatura. 3. O conjunto das obras literárias de um país, um gênero, uma época etc. que, pela qualidade de seu estilo ou forma e pela expressão de ideias de interesse universal ou permanente, têm reconhecido seu alto valor estético: É um excelente professor de literatura norte-americana. 4. O conjunto das obras literárias de um agregado social, ou em dada linguagem, ou referidas a determinado assunto: As livrarias hoje têm muitos livros bons na área da literatura infantil. 5. A história das obras literárias do espírito humano. 6. O conjunto dos homens de letras em atuação em determinada sociedade: A literatura brasileira vem marcando presença nos colóquios internacionais. 7. O conjunto de conhecimentos relativos às obras literárias e a seus autores: A minha faculdade tem um excelente curso de literatura. 8. Disciplina escolar voltada para o estudo da produção literária e dos escritores: Sempre teve boas notas em literatura. 9. Qualquer dos usos estéticos da linguagem, mesmo quando não escrita. 10. Palavreado artificial, desvinculado do que se entende por realidade: No fundo, todo esse discurso científico não passa de literatura. Ao voltarmos às definições do Dicionário Michaelis, não é difícil notar que, em sua grande maioria, as explicações versam a respeito da natureza da literatura com o plano escrito, da sua função de categorização e legitimação ou, ainda, da relação entre a literatura e uma dada identidade nacional. A entrada 3, pontualmente, evidencia a literatura como uma espécie de estabelecimento de norma, um parâmetro de classificação responsável por definir o que é bom ou ruim, sendo reconhecida, portanto, pelo seu “alto valor estético”. Não há dúvidas de que essa proposição é válida e nos interessará em breve, em aula futura, 7 quando falarmos da conexão entre a literatura e a língua e da instituição do que chamamos como cânone literário. Por ora, é prudente apenas entender que esse “alto valor estético” é um crivo estabelecido por um determinado grupo, mediante interesses e expectativas de diversas instâncias. Ainda no que diz respeito às entradas presentes no dicionário, vale pontuar como a definição 10 nos ajuda a tomar a outra faceta relacionada à literatura, a ideia equivocada de que à literatura competem os assuntos menos importantes, já que não se trata de uma ciência. A acepção pejorativa fará parte de discussões teóricas que vamos travar ao longo do curso, por isso vale sempre a atenção e a leitura crítica sobre tal ponto. TEMA 2 – ANTES DE LITERATURA, LITTERA Como vimos no final da seção de contextualização, a conduta mais imediata quando se fala de literatura está atrelada ao plano do texto. O movimento não é, em todo caso, incoerente, afinal a palavra literatura advém do latim erudito littera, transformado depois para letera. Está contido nesses dois radicais algo relativo à arte de escrever ou mesmo à erudição. Tal como relembra a pesquisadora portuguesa Paula Cristina Lopes, Nas línguas europeias, a palavra “literatura” designou em regra, até ao século XVIII, o saber, o conhecimento, as artes e as ciências em geral. Até à segunda metade desse século, para designar especificamente a arte verbal, o corpus textual, eram utilizadas palavras como “poesia”, “verso” e “prosa” (que hoje reconhecemos enquanto classificação de géneros literários). (Lopes, S.d., p. 1) Passa a ser inteligível, portanto, como a origem etimológica do termo literatura acabou explicando, mesmo que na contemporaneidade, como muitos passaram a simplificar a literatura. É bem verdade que, na continuidade da história, sobretudo por conta das contribuições de Voltaire, o vocábulo literatura ganhou novas acepções, passando a ficar relacionado a padrões estéticos. O resultado, como é possível imaginar, parece vigorar para alguns até hoje em dia. Cabe-nos, no entanto, questionar resoluções fáceis, relembrando que, para pensar em literatura, é fundamental não apenas considerar certa conduta ao trabalhar com a linguagem, mas, sim, contemplar o contexto no qual ela é produzida e para quem ela está destinada. 8 TEMA 3 – LITERATURA PARA QUÊ? Dentre os críticos dispostos a pensar no rumo do ensino da literatura e na maneira como ela passava a fazer parte da nossa rotina como estudantes e leitores, merece destaque o nome do francês Antoine de Compagnon. O que motivava as preocupações desse pensador? Compagnon percebia que, cada vez mais, a literatura era tratada de forma secundária, transformando-se em refém de uma perspectiva que a transformava em ferramenta para identificação de estruturas ou simplesmente uma replicação de uma leitura engessada. Ora, como vimos desde o início, tal postura é exatamenteo contrário do que se espera para um discurso como o literário, que almeja o diálogo constante e o envolvimento dos leitores. Em uma sociedade cada vez mais utilitária, a perspectiva humanista e a concepção de que o estímulo à reflexão é a chave para o desenvolvimento passavam a ser ameaçadas pelo afã tecnicista e pela desculpa da não praticidade. Ao perceber todo o cenário francês de aprendizado – mas que, decididamente, poderia ser replicado para a grande maioria dos países ocidentais – Compagnon dedica uma aula inaugural no Collège de France. Dos seus apontamentos, surge o ensaio Literatura para quê?, traduzido e publicado no Brasil em 2009. A ideia de resgatar esse trabalho é demonstrar como o crítico francês parte da provocação daqueles que minimizam a relevância da literatura para a formação humana. Ao longo dos seus argumentos, Compagnon atesta: Não é que achemos na literatura verdades universais, nem regras gerais, nem somente exemplos límpidos. [...] Ora, a literatura age diferentemente dos mandamentos, mas também das parábolas. [...] A literatura, exprimindo a exceção, oferece um conhecimento diferente do conhecimento erudito, porém mais capaz de esclarecer os comportamentos e as motivações humanas. Ela pensa, mas não como a ciência ou a filosofia. Seu pensamento é heurístico (ela jamais cessa de procurar), não algorítmico: ela procede tateando, sem cálculo, pela intuição, com faro. (Compagnon, 2009, p. 51) Muito mais do buscar números ou resultados, cabe à literatura o exercício de seguir oferecendo possibilidades, de não se contentar. É exatamente por conta disso que “A literatura nos ensina a melhor sentir, e como nossos sentidos não têm limites, ela jamais conclui, mas fica aberta como um ensaio de Montaigne, depois de nos ter feito ver, respirar ou tocar as certezas e as indecisões, as complicações e os paradoxos que se escondem atrás das ações [...]” (Compagnon, 2009, p. 51-52). 9 Se insistirmos na mesma pergunta, na razão pela qual estudamos literatura, será bastante oportuno considerar uma ponderação mais recente, advinda da Argentina, a partir da escritora e crítica María Teresa Andruetto: […] la literatura es todavía esa metáfora de la vida que sigue reuniendo a quien dice y quien escucha en un espacio común, para participar de un misterio, para hacer que nazca una historia que al menos por un momento nos cure de palabra, recoja nuestros pedazos, acople nuestras partes dispersas, traspase nuestras zonas más inhóspitas, para decirnos que en lo oscuro también está la luz, para mostrarnos que todo en el mundo, hasta lo más miserable, tiene su destello1. (Andruetto, 2013, p. 25) TEMA 4 – A LITERATURA ESTÁ EM PERIGO? Da mesma forma que Antoine Compagnon, o teórico Tzvetan Todorov dedicou espaço para pensar sobre o assunto, utilizando as suas impressões de como a literatura passou a ser tratada nas salas de aulas francesas a partir da década de 1960. De forma mais incisiva, Todorov parece denunciar como a literatura passou a ser pensada não por conta das leituras das obras e do diálogo entre os leitores, mas simplesmente pela impressão daquilo que pensavam os críticos. O perigo passado pela literatura começava a ser, portanto, que a sua existência estivesse limitada ao conhecimento do que outro escreveu, não necessariamente do prazer e da oportunidade de conhecer uma obra (seja ela um romance, um livro de poesia, de contos, ou uma peça de teatro). Se fôssemos pensar em nosso contexto, talvez seria exatamente o perigo que poderíamos passar ao limitar a nossa experiência apenas na leitura de um artigo sobre uma obra ou, muito pior, basear as nossas impressões simplesmente a partir de um resumo ou resenha. Isso soa familiar para você? É exatamente isso o que queremos combater a partir desta disciplina, reforçando o quanto o caminho pode – e deve – ser muito mais prazeroso quando apostamos na literatura como uma experiência discursiva. Em nossa realidade de estudantes e pesquisadores de letras, é preciso lembrar que o único e grande perigo que a literatura corre é quando o direito ao prazer de ler é negado. 1 “[...] a literatura é ainda essa metáfora da vida que segue reunindo a quem disse e a quem escuta em um espaço comum, para participar de um mistério, para fazer que nasça uma história que, ao menos por um momento, nos cure da palavra, recolha os nossos pedaços, junte as nossas partes dispersas, transpasse as nossas zonas mais inóspitas, para nos dizer que, no escuro também há luz, para nos mostrar que tudo no mundo, até o mais miserável, tem o seu brilho” (Tradução-livre). 10 TEMA 5 – LITERATURA: UM DIREITO Por falar no direito ligado à literatura, seria impossível não reservar a última seção da nossa aula para abordar o nome do crítico literário brasileiro mais profícuo e presente em nossos estudos: Antonio Candido. Em sua obra Vários escritos (2004), é possível encontrar um ensaio chamado O direito à literatura, um exame minucioso a respeito de como a literatura deve ser encarada como um verdadeiro bem de primeira necessidade. Para alicerçar os seus argumentos, Candido retoma a teoria do sociólogo Louis-Joseph Lebret, baseada na diferença entre os bens compressíveis e os bens incompressíveis. Esses seriam todos e quaisquer bens que jamais deveriam ser negados a alguém, tais como alimento, casa, roupa e a própria literatura! Para justificar a sua afirmação, Candido endossa exatamente tudo o que discutimos até aqui, demonstrando a necessidade de se entender como a ideia de literatura acabou se transformando ao longo do tempo. Para aclarar, então, a sua perspectiva, o crítico brasileiro define: Chamarei de literatura, da maneira mais ampla possível, todas as criações de toque poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura, desde o que chamamos folclore, lenda, chiste, até as formas mais complexas e difíceis da produção escrita das grandes civilizações. Vista deste modo a literatura aparece claramente como manifestação universal de todos os homens em todos os tempos. Não há povo e não há homem que possa viver sem ela, isto é, sem a possibilidade de entrar em contacto com alguma espécie de fabulação. Assim como todos sonham todas as noites, ninguém é capaz de passar as vinte e quatro horas do dia sem alguns momentos de entrega ao universo fabulado. (Candido, 2004, 174, grifo nosso) A relação indissociável entre a nossa vida e a literatura fica evidente na justificativa crítica de Candido, mas seria mesmo a literatura um bem incompreensível? Exagero do professor Candido? Em nossa perspectiva, muito pelo contrário, trata-se de um acerto, sobretudo por entender a literatura como um discurso que viabiliza (re)significar e fazer pensar sobre a realidade. Ao destacar projetos ficcionais, como a poesia de Castro Alves, Antonio Candido demonstra como a literatura é capaz de demarcar um quadro do tempo e seguir sendo atual para a discussão não apenas do plano estético. Sendo assim, “[u]ma sociedade justa pressupõe o respeito dos direitos humanos, e a fruição da arte e da literatura em todas as modalidades e em todos os níveis é um direito inalienável” (Candido, 2004, p. 191). 11 NA PRÁTICA A partir de toda a nossa discussão nesta aula, passa a ser possível entender como a ideia a respeito da literatura foi se transformando ao longo do tempo. Com base nessa discussão, reflita a respeito das duas questões a seguir: 1. A que se deve o fato de que, muitas vezes, as pessoas acabam simplificando a ideia de literatura para um sinônimo de texto escrito? 2. Como é possível relacionar as perspectivas de teóricos como Todorov, Compagnon e Candido para pensar a literatura? Quais são os principais pontos de contato entre os três teóricos no que diz respeito à compreensão da literatura?FINALIZANDO Como beletristas, estudantes de letras, precisamos estar atentos para não minimizarmos a literatura apenas como um amontado de conceitos ou classificações. Ao longo de toda esta aula, foi possível ponderar como a ideia de literatura é flexível e mais ampla do que simplesmente um texto que utiliza a linguagem sob uma proposta não usual. Por meio de reflexões como as de Antoine de Compagnon, Tzvetan Todorov e Antonio Candido, começamos a perceber como a compreensão a respeito da literatura passa a se adaptar conforme o tempo e o contexto de enunciação, demonstrando, ainda, a relevância do plano ficcional para tensionar a realidade e fazer com que ela seja questionada a todo instante. Tal como lembrado pelo crítico literário Antonio Candido, vale a pena pensar na literatura também como um direito de todos nós, humanos. Que ao final desta disciplina introdutória, esse sentimento faça parte do seu horizonte de expectativas e que lhe estimule enquanto leitor (a) e, claro, futuro (a) professor (a)! Nunca é demasiado lembrar que uma sociedade leitora se faz, verdadeiramente, quando a literatura passa a fazer parte do nosso dia a dia, de nossas conversas, não se restringindo a um conteúdo a ser medido por imposições estruturalistas ou expectativas que apenas reduzem o potencial de um texto. Para falar de literatura, temos, portanto, que vivê-la intensamente! Ou, dito de outra forma, “[a]ssim como não é possível haver equilíbrio psíquico sem o 12 sonho durante o sono, talvez não haja equilíbrio social sem a literatura” (Candido, 2004, p. 175). 13 REFERÊNCIAS ANDRUETTO, M. T. Hacia una literatura sin adjetivos. Córdoba: Comunic- Arte, 2013. CANDIDO, A. Vários escritos. São Paulo: Duas cidades, 2004. BANDEIRA, M. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993. COMPAGNON, A. Literatura para quê? Belo Horizonte: UFMG, 2009. EAGLETON, T. Teoria da literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 1983. LOPES, P. C. Literatura e linguagem literária. BOCC – Biblioteca On-line de Ciências da Comunicação. Disponível em: <http://bocc.ubi.pt/pag/bocc-lopes- literatura.pdf>. Acesso em 12 mar. 2019. MICHAELIS DICIONÁRIO BRASILEIRO DA LÍNGUA PORTUGUESA. Disponível em: <https://michaelis.uol.com.br/moderno- portugues/busca/portugues-brasileiro/>. Acesso em: 12 mar. 2019. ROSA, J. G. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2010. TODOROV, T. A literatura em perigo. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009.
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