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CATOLICISMO ROMANO E FORMA POLÍTICA Carl Schmitt Tradução de Menelick de Carvalho Netto Há aqui um sentimento anti-romano que alimentou a luta contra o jesuitismo, o papismo e o clericanismo, nas forças religiosas e políticas, que impulsionou a história européia por séculos. Não apenas sectários fanáticos, mas gerações inteiras de pios protestantes e de cristãos gregos ortodoxos viram em Roma o anti-Cristo ou a prostituta babilônica do Apocalipse. O poder mítico dessa imagem é mais profundo e mais forte que qualquer cálculo econômico; seus efeitos de longa duração. Consideremos as memórias de Gladstone ou de Bismarck 1 , onde uma inquietude nervosa é evidente, sempre que jesuítas ou prelados misteriosamente intrigantes surgem em cena. Mesmo o arsenal emocional, até mesmo mítico, do Kulturkampf (a luta cultural alemã, desenvolvida por Bismarck) e toda luta contra o Vaticanum 2, bem como a separação francesa entre Igreja e Estado, são inofensivas, em comparação com a fúria contra o demônio de Cromwell. Desde o século XVIII, a argumentação tornou-se cada vez mais racionalista ou humanitária, utilitária e superficial. Apenas com a adesão da ortodoxia russa, com Dostoievski em seu retrato do Grande Inquisidor, o temor anti-romano surge mais uma vez como uma força secular. Em todas essas várias nuances e gradações, há sempre o persistente medo do incompreensível poder político do Catolicismo Romano. É compreensível que um anglo-saxão protestante possa encontrar todas as suas antipatias expressas na “máquina papal” se concebê-la como um aparato hierárquico monstruoso vinculado ao controle da vida religiosa, e dirigido por homens que em princípio, se recusam a ter uma família, em outros termos, uma burocracia celibatária. Com a sua refinada sensibilidade doméstica e aversão a qualquer controle burocrático, essa maquinária certamente o amedontra. No entanto, esse é sobretudo um sentimento indizível. Por todo o século XIX parlamentar e democrático, ouviu-se frequentemente a acusação de que a política católica não é nada mais do que um oportunismo sem limites. A sua elasticidade é realmente espantosa; ela se une a movimentos e grupos opostos, milhares de vezes ela foi acusada de assumir uma causa comum com vários governos e partidos nos diferentes países. Os críticos demonstraram como ela sempre busca coalizões políticas, seja com monarcas absolutos seja com monarcômanos; como durante a Sagrada Aliança, após 1815, ela se tornou um centro de reação e uma inimiga de todas as liberdades liberais e em outros países um expoente dessas mesmas liberdades, especialmente da liberdade de imprensa e da liberdade de educação; como nas monarquias européias ela prega a aliança do trono com o altar, e nas democracias camponesas dos cantões suíços ou na América do Norte, ela se posta integralmente do lado de uma democracia firme. Homens da estatura de Montalembert,3 Tocqueville e Lacordaire 4 representaram o catolicismo liberal, em uma época em que muitos de seus companheiros católicos ainda viam no liberalismo o anti-Cristoou ou pelo menos o seu precursor. Os realistas católicos e legitimistas surgem de mãos dadas com os defensores católicos da república. Alguns católicos são taticamente alinhados ao socialismo, outros acreditam que o socialismo encontra-se em coligação com o demônio. Eles até mesmo negociaram com os Bolcheviques em uma época em que a burguesia defensora da santidade da propriedade privada ainda via nos socialistas um bando de criminosos hors la loi (fora da lei). Diante de toda mutabilidade da situação política, todos os princípios parecem mudar, menos um, o poder do catolicismo: “pretende do adversário todas as liberdades em nome dos princípios deste e lhe nega qualquer liberdade em nome dos princípios católicos.” Vê-se com freqüência o quadro delineado por pacifistas burgueses, socialistas e anarquistas; altos dignatários da Igreja abençoando as armas de nações guerreiras; ou intelectuais neo-católicos parcialmente monarquistas, parcialmente comunistas ou, finalmente, para citar um outro tipo de impressão sociológica, o abade francês, favorecido por damas da corte, ao lado do franciscano irlandês, que encoraja os trabalhadores em greve a permanecerem firmes. Pode-se sempre dar novos exemplos de figuras e associações contraditórias similares. Em alguma medida essa diversidade e ambiguidade - a dupla face de Jano, a natureza hermafrodita (como Byron caracterizou Roma) - pode ser explicada simplesmente mediante analogias políticas ou sociológicas. Nas táticas da luta política, qualquer partido com uma visão de mundo estabelecida pode constituir coalizões com os grupos mais disparados. Isso vale também para o socialismo ortodoxo, na medida em que ele tem um princípio radical, e o mesmo pode-se dizer do catolicismo. Dependendo do estado de coisas nos diferentes países, o movimento nacional tem se aliado por vezes à monarquia legítima, por vezes à república democrática. A partir de uma visão visão global, todas as formas e possibilidades políticas tornam-se meros instrumentos da realização de uma idéia. O fato de que algumas delas pareçam inconsistentes é apenas a conseqüência e manifestação de um universalismo político. De todos os ângulos há um consenso notável acerca de que a Igreja Católica Romana, como complexo histórico e aparato administrativo perpetuou o universalismo do Império Romano. Os nacionalistas franceses, como Charles Maurras, os teóricos raciais alemães, como H.Stewart e Chamberlain, os professores germânicos de procedência liberal como Max Weber, um poeta pan eslavo e observador como Dostoievski, todos fundamentam suas interpretações nessa continuidade da Igreja Católica e do Império Romano. Todo império mundial tem como característica um certo relativismo no que se refere à plêiade de visões possíveis, um desconsideração rude das peculiaridades locais, bem como uma tolerância oportunista para as questões que não são de importância central As similaridades entre o Império Romano e o Império Britânico são espantosamente suficientes. Todo imperialismo é mais do que um patriotismo e envolve antíteses - conservadorismo e liberalismo, tradição e progresso, e até mesmo militarismo e pacifismo. Na história da política inglesa, das antíteses entre [Edmund] Burke e Warren Hastings até a antítese entre Lloyd George e [Winston] Churchill ou Lord Curzon - quase toda geração evidenciou essas antíteses. Apesar da alusão às peculiaridades do universalismo, a idéia política do catolicismo, ainda não definida, foi apenas mencionada, em razão do sentimento de ansiedade no que se refere ao aparato administrativo universal, e freqüentemente emerge de uma reação justificável dos movimentos locais e nacionais. É comum que um patriota nacionalista deva se sentir ignorado e trapaceado pelo sistema romano fortemente centralizado. Um irlandês, ao refletir sobre a amargura de sua consciência nacional gaélica opinou que a Irlanda era apenas “a pinch of snuff in the roman snuff box” (uma pitada de rapé na caixa de rapé romana) (ele teria dito melhor uma galinha jogada pelo prelado no caldeirão fervente de um restaurante cosmopolita)5. No entanto, nações católicas, como o Tirol, a Espanha, a Polônia e a Irlanda, devem ao catolicismo a maior parte de sua força nacional de resistência, e, com certeza, não apenas quando o opressor era um inimigo da Igreja. O cardeal Mercier 6 de Mechelen bem como o bispo Korum 7 de Trier representaram a honra e a autoconfiança nacionais de uma maneira mais majestosa e impressionante do que o fizeram em relação ao comércio e à industria, e isso frente a um oponente que, de modo algum se apresentava como um inimigo da Igreja mas que, ao contrário, buscava uma aliança com ela. Não se pode mais avaliar tais manifestações mediante explicações políticasou sociológicas derivadas da natureza do universalismo, nem tampouco interpretar o sentimento anti-romanista como uma reação nacional ou local contra o universalismo e o centralismo, uma vez que não se pode negar que todo império na história mundial provocou tais reações. Ao mesmo tempo acredito que esse sentimento se tornaria infinitamente mais profundo se bem compreendessemos o quanto a Igreja Católica é um complexo de opostos, um complexio oppositorum. Parece não haver antítese que ela não tenha encorporado. De há muito, e orgulhosamente, ela proclamou haver unido em seu interior todas as formas de estado e de governo; ela é uma monarquia aristocrática, cujo líder é eleito pela aristocracia de cardeais, mas na qual no entanto tanta democracia que, como Dupanloup 8 diz, mesmo o mais humilde clérigo de Abruzzi, independentemente de seu nascimento e posição, tem a possibilidade de se tornar este soberano autocrático. A história da Igreja revela exemplos de surpreendente acomodação, bem como de obstinada intransigência, a habilidade masculina de resistir e a conformação feminina - uma curiosa mistura de arrogância e humildade. Não é facilmente compreensível que um filósofo rigoroso da ditadura autoritária como o diplomata espanhol Donoso Cortés e um “bom samaritano” dos pobres com vinculações sindicalistas, como o rebelde irlandês Padraic Pearse, fossem ambos católicos convictos. Mas esse complexio oppositorum também equilibra-se sobre tudo que é teológico: o Antigo e o Novo Testamento são igualmente cânones das Sagradas Escrituras; o marcionítico 9 “tudo ou nada” é respondido com um “mais ou menos.” Na doutrina da Trindade, ao monoteísmo hebraico e de sua absoluta transcendência são reunidos tantos elementos de imanência divina que aqui também pode-se pensar em muitas mediações. Os ateus franceses e os metafísicos alemães redescobriram o politeísmo no século XIX - louvavam a Igreja por seu culto, porque acreditavam haver descoberto um paganismo razoável. A tese fundamental, segundo a qual todos os dogmas de uma filosofia anarquista coerente do Estado e da sociedade retorna, especificamente, à antítese do homem “mau por natureza” e “bom por natureza”- essa questão decisiva para a teoria política não é de modo algum respondida por um simples “sim” ou “não” do credo tridentino.NT1 Em contraste com a doutrina protestante da total depravação do homem natural, esse credo fala de uma natureza humana como apenas ferida, enfraquecida e problematizada, permitindo assim o uso de algumas gradaçõe e adaptações. A união de antíteses se amplia até às últimas raízes sócio-psicológicas dos motivos e percepções humanas. O papa é denominado o pai; a Igreja é a mãe dos crentes e a noiva de Cristo. Essa é uma maravilhosa união do patriarcado com o matriarcado, apta a dirigir ambas as correntes dos complexos e instintos mais elementares - o respeito pelo pai e o amor pela mãe - em direção a Roma. Alguma vez já houve uma revolta contra a mãe? Enfim, o mais importante é que essa ambiguidade ilimitada combina-se com o dogmatismo mais preciso e com uma vontade de decisão que culmina na doutrina da infalibilidade papal. Do ponto de vista da idéia política do catolicismo, a essência do complexio oppositorum católico-romano reside em uma tal superioridade formal específica na questão da vida humana que nenhum outro império jamais conheceu. Ela obteve sucesso em constituir uma configuração sustentável da NT1 realidade social e histórica que, apesar de seu caráter formal mantem sua existência concreta a um só tempo vital e ainda racional em seu mais alto grau. Esse caráter formal do catolicismo romano funda-se em uma realização estrita do princípio da representação, cuja especificidade torna-se mais evidente em antítese com o pensamento técnico-econômico hoje dominante. Antes de prosseguir, no entanto, é necessário eliminar ainda um mal entendido. A partir da promiscuidade espiritual que busca uma fraternidade romântica ou hegeliana com o catolicismo, como de resto com tantas outras idéias e indivíduos, uma pessoa poderia tomar o complexio oppositorum católico como uma de suas muitas sínteses e apressadamente concluir que teria então reconstruido a essência do catolicismo. Os metafísicos da filosofia especulativa pós-kantiana conceberam a vida histórica e orgânica como um processo eterno de antíteses e sínteses, atribuindo os respectivos papéis à vontade. Quando Goerres 10 retrata o catolicismo como o princípio masculino e o protestantismo como o princípio feminino, ele faz do catolicismo nada mais do que um extremo antitético e vê a síntese em um “terceiro mais elevado”.11 É obvio que o catolicismo poderia muito bem ser considerado o princípio feminino e o protestantismo o princípio masculino. É igualmente concebível que os construtores de siatemas especulativos tenham por uma vez ou outra considerado o catolicismo o “terceiro nível”. Isso é típico dos românticos católicos, ainda que estes não se furtaram, voluntariamente, à veleidade de exortar a Igreja a se libertar do jesuitismo e da escolástica e a criar uma unidade “orgânica” (o terceiro termos mais elevado) a partir da externalidade esquemática do catolicismo formal e da internalidade invisível do protestantismo. Aqui encontra-se a base desse mal entendido típico. Muito embora pareça improvável, essas construções são mais do que fantasias saídas do nada. Elas estão em perfeita harmonia com o espírito de nossa época, porque sua estrutura intelectual corresponde a uma realidade. O ponto de partida dessas construções é efetivamente uma clivagem e uma divisão reais: uma antítese que reclama uma síntese ou uma polaridade que tem um “ponto de indiferença”; uma condição de desunião problemática e de profunda indecisão, da qual a única saída é a auto-negação para se chegar a posições (positivas). Todos os âmbitos da época contemporânea são regidos por um dualismo radical. Referências às várias manifestações dessa dualidade serão necessárias na medida em que se avance. PARAMOS AQUI ecessário nos referirmos freqüentemente às suas várias manifestações na medida em que avançarmos. A base comum em que se assenta esse dualismo é um conceito de natureza que encontrou sua realização em um mundo transformado pela tecnologia e pela indústria. A natureza surge hoje como o polo antitético ao do mundo mecânico das grandes cidades, cujas estruturas de pedra, ferro e vidro repousam sobre a face da Terra como colossais configurações cubistas. A antítese desse império de tecnologia e a natureza intocada pela civilização, selvagem e bárbara - uma reserva na qual “o homem com suas aflições não pisa.” Uma tal dicotomia entre um mundo racionalista mecanizado do trabalho humano e um estado romântico- virginal de natureza é absolutamente estranho ao conceito romano católico de natureza. O povos católicos parecem amar o solo, a mãe terra, de um modo diferente; todos eles têm seu próprio “terrismo” (lealdade à terra). A natureza não é para eles a antítese da arte e do empreendimento, nem do intelecto e do sentimento ou do coração; o trabalho humano e o desenvolvimento orgânico; natureza e razão, são um. O vinhedo é o mais belo símbolo desta união. Mas as cidades que se desenvolveram a partir deste tipo de espírito também parecem ser produtos naturais do solo, tornando-se parte da paisagem e permanecem verdadeiras à terra. No seu conceito essencial de “urbanidade” elas têm uma humanidade que permanece eternamente inacessível ao preciosismo mecanicista de uma cidade industrial moderna. Precisamente como o credo tridentino pouco conhece da ruptura protestante entre natureza e graça, o catolicismo romano compreende muito pouco os dualismos natureza/espírito, natureza/intelecto, natureza/arte, natureza/máquinae o seu pathos variável. As sínteses de tais antíteses permanecem tão estranhas quanto a antítese entre a forma vazia e a matéria destituída de forma. A Igreja Católica é categoricamente algo distinto do “terceiro elemento superior” da filosofia alemã da natureza e da história (no caso, dela sempre ausente). A ela não pertencem nem o desespero das antíteses nem o ilusório otimismo de suas sínteses. Por isso, a Igreja Católica deve considerar uma honra questionável quando alguém busca fazer de sua igreja um pólo antagônico da época mecanicista. É uma contradição espantosa, que novamente demonstra o curioso complexio oppositorum, o fato de que uma das mais fortes percepções protestantes seja considerada no catolicismo romano uma degradação, uma redução, e um emprego impróprio da cristandade por que essa percepção mecaniciza a religião em uma formalidade desprovida de alma, ao mesmo tempo em que os protestantes retornam em romântica revoada à Igreja Católica em busca de salvação contra uma época racionalista e mecanicista destituída de alma. Se a Igreja tivesse se contentado placidamente em ser nada mais do que a polaridade plena de alma da ausência de alma, ela teria esquecido o seu verdadeiro ser; ela teria se tornado o desejado complemento do capitalismo - uma instituição higiênica para se suportar os rigores da competição, o domingo de folga ou as férias de verão para os moradores das grande cidades. Naturalmente, é claro, a Igreja tem uma importante função terapêutica. Mas a essência de uma tal instituição deve consistir em algo mais. O rousseanismo e o romantismo são capazes de fruir prazer de muitas coisas, inclusive do catolicismo, tal como de uma magnifica ruína ou de uma antigüidade autenticada; e “no fauteuil (confortável poltrona) dos acontecimentos de 1789” também transformar essas coisas em mercadorias de consumo de uma burguesia relativista. Muitos católicos, em especial os católicos alemães, parecem ter orgulho de terem sido descobertos pelos historiadores da arte. O seu prazer, de pequena relevância em si mesmo, não precisaria ser mencionado se não fosse pelo fato de que um pensador tão original e prolífico, fecundo, quanto Georges Sorel tenha buscado a crise do pensamento católico na nova aliança da Igreja com o irracionalismo. Ao seu ver, a argumentação desenvolvida pelos teólogos católicos até o século XVIII foi no sentido de demonstrar a fé como fundada na razão, mas no século XIX a Igreja valeu-se de correntes irracionalistas. De fato, qualquer tipo de oposição ao Iluminismo e ao racionalismo revigorou o catolicismo. Tendências tradicionalistas, místicas e românticas realizaram muitas conversões. Hoje, tanto quanto eu possa avaliar, os católicos encontram-se profundamente insatisfeitos com a teologia católica estabelecida, que, para muitos, parece plena de sofismas e formas vazias. Mas tudo isso constitui um desvio do aspecto essencial, porque identifica-se o racionalismo com o pensamento das ciências naturais e menospreza-se o fato de a argumentação católica fundar-se em um modo especial de pensamento cujo método de comprovação é uma lógica jurídica específica e cujo foco de interesse é a regência normativa da vida humana social. Em quase toda discussão pode-se observar o quanto a metodologia das ciências técnico-naturais domina o pensamento contemporâneo. Por exemplo, o Deus da evidência teológica tradicional, o Deus que rege o mundo como o rei governa o Estado, torna-se subconscientemente o motor propulsor da máquina cósmica. A quimera dos moradores das grandes cidades modernas é preenchida até o seu último átomo por concepções tecnológicas e industriais, que são projetadas nos domínios cosmológico e metafísico. Neste mecanicismo e nesta mitologia matemática ingênuos, o mundo torna-se um gigantesco dínamo no qual não há nem mesmo distinção de classes. A visão de mundo do moderno capitalista é a mesma do proletário industrial, como se uma fosse a irmã-gêmea da outra. Assim ambos concordam quando lutam, cada um por seu lado, no pensamento econômico. Na medida em que o socialismo tornou-se a religião do proletariado industrial das grandes cidades, ele contrapõe um mecanismo fabuloso ao do mundo capitalista. O proletariado com consciência de classe considera a si mesmo legítimo, ainda que apenas como o mestre logicamente qualificado deste aparato, enquanto a propriedade privada do capitalista é vista como o remanescente logicamente adverso de uma época tecnicamente atrasada. O grande industrial não tem outro ideal senão o de Lênin - o de “uma Terra eletrificada.” Eles discordam essencialmente apenas sobre qual seria o método de eletrificação correto. Os financistas norte-americanos e os russos bolcheviques encontram-se em uma luta comum pelo pensamento econômico, ou seja, na luta contra os políticos e os juristas. Georges Sorel também pertence a esta irmandade. Aqui, portanto, no pensamento econômico de nossa época, reside uma antítese fundamental se o tomamos em face da idéia política do catolicismo, porque esta idéia contradiz tudo que seja sinônimo à objetividade, integridade e racionalidade no pensamento econômico. O racionalismo da Igreja Romana envolve moralmente a natureza sociológica e psicológica do homem e, distintamente da indústria e da tecnologia, não se preocupa com o domínio e a exploração da matéria. A Igreja tem a sua racionalidade própria. O dito de Renan12 é bem conhecido: Toute victoire de Rome est une victoire de la raison.13 A Igreja, nas lutas contra o fanatismo sectário, sempre se colocou do lado do senso comum. Por toda a Idade Média, como Duhem muito bem demonstrou,14 ela suprimiu a superstição e a feitiçaria. Mesmo Max Weber afirmou que o racionalismo romano vive na Igreja Romana, que ela de forma consciente e magnífica logrou superar os cultos dionisíacos, as extases e os perigos de submersão da razão na meditação. O racionalismo reside nas instituições e é essencialmente jurídico; sua maior conquista foi ter transformado o sacerdócio em um cargo (office) - um tipo muito específico de cargo (office). O papa não é o profeta mas o Vigário de Cristo. Uma tal função cerimonial elimina todos os excessos de fanatismo de um profetismo ilimitado. O fato de se tornar o cargo (office) independente do carisma significa que o padre detém uma posição que parece ser completamente aparte de sua personalidade concreta. No entanto, ele não é o funcionário ou o comissário do pensamento republicano. Em contraposição ao moderno detentor de cargo (modern official), sua posição não é impessoal, porque o seu cargo (office) é parte de uma cadeia ininterrupta ligada ao mandato pessoal e à pessoa concreta de Cristo. Esta é, na verdade, a mais espantosa complexio oppositorum. É nestas distinções que reside a criatividade racional e a humanidade do catolicismo. Ambas permanecem no âmbito interno e direcionam o espírito humano, sem exibir o irracionalismo escuro da alma humana. Elas não fornecem fórmulas para a manipulação da matéria, como o faz o racionalismo da economia e da tecnologia. O racionalismo econômico encontra-se tão distante do racionalismo católico que pode despertar uma ansiedade católica. A tecnologia moderna pode facilmente tornar-se serva deste ou daquele desejo ou necessidade. Na economia moderna, um consumo absolutamente irracional conforma-se a uma produção totalmente racionalizada. Um mecanismo maravilhosamente racional serve todas os tipos de demanda, sempre com a mesma seriedade e precisão, seja a demanda por uma blusa de seda, por gás venenoso, ou por qualquer coisa que seja. O racionalismo econômico acostumou-se a lidar apenas com algumas necessidades e a só reconhecer as necessidades que ele pode “satisfazer”. Na metrópole moderna, ele erigiu um edifício no qual tudo ocorre estritamentecomo planejado - tudo é calculável. Um católico devoto, precisamente por seguir a sua própria racionalidade, pode muito bem ficar horrorizado com este sistema de irresistível materialidade. Hoje, pode-se dizer que talvez seja mais dentre os católicos que a imagem do anticristo esteja mais viva. Se Sorel vê a evidência de uma força vital na capacidade de tais “mitos”, ele é injusto ao afirmar que os católicos não mais acreditam em sua escatologia e que nenhum deles ainda espera o juízo final. Esta afirmativa é factualmente incorreta, embora no Soirées of St. Petersburg15 de Maistre um senador russo diga praticamente a mesma coisa. A expectativa do Juízo Final continua tão viva em um espanhol como Donoso Cortés, nos católicos franceses como Louis Veuillot16 e Léon Bloy,17 em um inglês convertido como Robert Hughes Benson,18 quanto em qualquer protestante dos séculos XVI e XVII que via em Roma o anticristo. O aspecto central, no entanto, é que o aparato econômico-tecnológico moderno gerou um medo similar e uma intensa aversão em muitos grandes católicos. Uma verdadeira ansiedade católica decorreu do conhecimento de que aqui o conceito do racional foi fantasticamente destorcido, de uma maneira completamente estranha à sensibilidade católica, porque um mecanismo de satisfação de necessidades materiais arbitrárias foi chamado de “racional” sem colocar em questão o que é mais importante - a racionalidade do fim deste mecanismo supremamente racional. O pensamento econômico é absolutamente incapaz de apreender esta ansiedade católica. Ele se contenta com tudo que ele mesmo possa fornecer com os seus meios tecnológicos. Ele nada sabe sobre qualquer temperamento antiromano, nem sobre o anticristo e o apocalipse. A Igreja é vista como um fenômeno estranho, mas não menos do que outras coisas tidas por ele como “irracionais.” É bom que haja homens que tenham necessidades religiosas para que essas sejam satisfeitas de uma forma racional. O que pode ser tão irracional quanto os muitos caprichos sem sentido da moda, que também requerem satisfação? Quando as lâmpadas de santuário que estão à frente de todos os altares são alimentadas pela mesma companhia elétrica que fornece energia para os teatros e os cabarés da cidade, o catolicismo torna-se então algo instintiva e logicamente compreensível para o pensamento econômico, algo aceito como um problema de percurso. O pensamento econômico tem a sua razão própria e a sua própria veracidade absolutamente materiais, pertinentes apenas às coisas. O político é considerado imaterial porque ele precisa se ocupar de outros valores além dos econômicos. Em agudo contraste com essa materialidade econômica absoluta, o catolicismo é eminentemente político. Mas não é político no sentido da manipulação e da dominação dos fatores de poder sociais e internacionais fixos, tal como apreende-se na concepção de Maquiavel (que faz da política uma mera técnica na qual ela isola um único fator extrínseco da vida política). O mecanismo político tem as suas próprias leis, que o catolicismo como qualquer outra força histórica imbricada na política tem que obedecer. O fato de que o “aparato” da Igreja tornou-se mais rígido desde o século XVI, que (apesar do romantismo, ou talvez para viciá-lo) a Igreja seja uma burocracia e uma organização mais centralizada do que na Idade Média - tudo o que se caracteriza sociologicamente pelo termo “jesuitismo” - é explicado não somente pela luta contra o protestantismo mas também pela reação negativa ao mecanismo da época. O príncipe absoluto e o seu “mercantilismo” foram os precursores do tipo moderno de pensamento econômico e de um estado político de coisas situado em algum lugar no ponto de indiferença entre a ditadura e a anarquia. No século XVII, um aparato de poder político desenvolveu-se conjuntamente com o conceito mecanicista de natureza e com a freqüentemente reputada “funcionalização” de todas as relações sociais. Neste milieu, neste cenário, a organização da Igreja também tornou-se mais densa e mais dura, como uma concha protetora. Nela mesma, não há ainda evidências de fracasso ou de envelhecimento políticos; ela apenas levanta a questão de se saber se ali dentro ainda haveria uma idéia viva, uma living idea. Nenhum sistema político pode sobreviver, nem mesmo uma geração, apenas com técnicas nuas de manutenção do poder. À política pertence a idéia porque não há política sem autoridade e nem autoridade sem um ethos de crença. O político, ao pretender ser algo mais do que econômico, é obrigado a se fundar em outras categorias distintas das de produção e consumo. Para repetir: é curioso que o empresário capitalista e o proletário socialista estejam de acordo em considerar o suposto do político um pressuposto e, do ponto de vista de seu pensamento econômico, ver o domínio dos políticos como “imaterial.” O que, visto de uma ótica estritamente política, só pode significar que determinados agrupamentos sócio-políticos - poderosos empresários privados ou os trabalhadores organizados de determinadas fábricas ou ramos da indústria - exploram sua posição no processo de produção no sentido de deter as rédeas do poder estatal. Quando eles se voltam contra os políticos e a política como tal, eles os vêem como a força concreta a bloquear seu próprio caminho de acesso ao poder político. Se tiverem sucesso em removê-los, também se perderá o interesse em formular antíteses entre o pensamento econômico e o político. Um novo tipo de política emerge conjuntamente com o novo poder fundado na economia. Mas, no entanto, eles serão políticos, e isso significa a promoção de um tipo específico de validade e de autoridade. Eles irão se justificar com base em sua indispensabilidade social, vão recorrer à salut public e já estarão, assim, subscrevendo a idéia. Nenhuma grande antítese social pode ser resolvida pela economia. Quando o empregador diz aos trabalhadores: “eu sustento vocês”, os trabalhadores respondem: “nós sustentamos vocês.” Esta não é uma luta de produção ou de consumo, em nenhum sentido é algo econômico; ela decorre de uma convicção distinta acerca do que é moral ou jurídico, legal. Ela diz respeito à determinação ética ou jurídica de quem seria efetivamente o produtor, o criador, e, portanto, o proprietário da riqueza moderna. Tão logo a produção torne-se completamente anônima e uma rede de companhias, de sociedades anônimas e de outras “pessoas jurídicas” faça referência a pessoas concretas individuais impossíveis, a propriedade privada do protótipo do capitalista será descartada por ter perdido sua evidência. Isto ocorrerá, muito embora hoje ainda haja capitalistas que saibam como ter sucesso com base em sua alegada indispensabilidade. Enquanto ambas as facções pensarem em termos econômicos, o catolicismo pode ser quase ignorado nesta luta. O seu poder não se funda em meios econômicos, muito embora a Igreja tenha muitas propriedades territoriais e vários “interesses financeiros.” Estes são inócuos e idílicos comparados com os interesses das grandes indústrias nas matérias primas e nos mercados. A posse dos depósitos de petróleo da Terra pode virtualmente decidir a luta pela supremacia mundial. Mas o Vigário de Cristo na Terra não tomará parte nesta luta. O papa está disposto a ser soberano no Estado Pontifício. O que isso significa em face do grande clamor do comércio internacional e do imperialismo? O poder político do catolicismo não reside nem nos meios econômicos nem nos militares mas, ao contrário, na absoluta realização da autoridade. Também a Igreja é uma “pessoa jurídica”, embora não no mesmo sentido de uma sociedade anônima. O produto típico da era da produção é um método de avaliação, enquanto que a Igreja é uma representação pessoal concreta de uma personalidade concreta. Todo testemunho reconhecíveladmitiu que a Igreja é a instância perfeita do espírito jurídico e a verdadeira herdeira da ciência jurídica romana. Assim, em sua capacidade de assumir a forma jurídica, reside um de seus segredos sociológicos. Mas ela só tem poder para assumir esta ou qualquer outra forma em virtude de ela ter o poder da representação. Ela representa a civitas humana. Ela representa a todo momento a vinculação histórica com a encarnação e a crucificação de Cristo. Ela representa a pessoa do próprio Cristo: do Deus que se fez homem na realidade histórica. Aí reside a sua superioridade sobre uma época de pensamento econômico. A Igreja Católica é o único exemplo sobrevivente contemporâneo da capacidade medieval de criar figuras representativas - o papa, o imperador, o monge, o cavalheiro, o mercador. É certamente o último exemplar do que um acadêmico19 uma vez denominou os quatro pilares remanescentes - a Câmara dos Lordes, O Staff Geral Prussiano, a Academia Francesa e o Vaticano. Ela se destaca tão isoladamente que quem quer que veja apenas a sua forma externa, brincando, deve dizer que ela não representa nada mais do que a própria idéia de representação. O século XVIII ainda teve algumas figuras clássicas, como o “législateur.” Em vista da pobreza, da improdutividade, do século XIX até mesmo a Deusa Razão parece ser uma representante. No sentido de obtermos um quadro claro do tanto que a capacidade representativa desapareceu, temos apenas que considerar a tentativa de rivalizar a Igreja Católica com uma empresa haurida do moderno espírito científico. Augusto Comte queria fundar uma igreja “positivista.” O resultado de seus esforços foi uma imitação embaraçosamente reveladora. Contudo, não se pode deixar de admirar a nobre intenção deste homem e mesmo a sua imitação, que é ainda magnífica em comparação com outras tentativas similares. O maior dos sociólogos discerniu os tipos representativos da Idade Média - o clérico e o cavalheiro - e os comparou aos tipos representativos da sociedade moderna - o sábio e o mercador. Mas foi um erro sustentar o sábio moderno e o mercador moderno como tipos representativos. O sábio foi representativo apenas no período de transição da luta com a Igreja; o mercador, somente enquanto puritano individualista. Uma vez que as engrenagens da indústria moderna começam a girar, ambos tornam-se servos da grande máquina. É difícil dizer o que eles verdadeiramente representam. Os estados, os estamentos, são coisa do passado. A burguesia francesa do século XVIII - o terceiro estado - proclamou-se a “nação.” O famoso mote, “le tiers État c’est la Nation,” foi mais revolucionário do que se suspeita. Quando um único estamento se identifica com a nação, ele abole a própria idéia de estamentos, que requer uma pluralidade de estamentos para constituir a ordem social. A sociedade burguesa, assim, não era mais capaz de representação. Ela sucumbiu ao inexorável (desastroso - fateful) dualismo da época e desenvolveu suas “polaridades”: de um lado, a burguesia; de outro, o boêmio (quem, se representa algo, representa a si mesmo). O resultado lógico foi o conceito-de- classe de proletariado, que agrupa a sociedade materialisticamente - de acordo com a posição da pessoa no processo de produção - e assim conforma o pensamento econômico. Daí em diante ele demonstra que a renúncia a toda representação é inerente a este tipo de pensamento. O sábio e o mercador tornaram-se fornecedores ou supervisores. O mercador assenta-se em seu escritório; o sábio, em seu estúdio ou laboratório. Se eles são efetivamente modernos, ambos servem uma fábrica - ambos são anônimos. É sem sentido pretender que eles representem algo. Eles ou são indivíduos privados ou expoentes; não representantes. O pensamento econômico conhece apenas um tipo de forma, especificamente a precisão técnica, e nada poderia ser mais distante da idéia de representação. A associação do econômico com o técnico ( a sua disparidade inerente ainda está por ser notada) requer a efetiva presença das coisas. Os termos correspondentes como “reflexo”, “radiação” ou “reflexão”, que se referem à matéria, denotam distintos estados de agregação do mesmo substrato material. Com tais imagens faz-se de algo existente uma idéia compreensível ao incorporá-la no próprio pensamento material de alguém. Por exemplo, segundo a famosa concepção econômica da história, as visões políticas e religiosas são “reflexos” ideológicos das relações de produção. Ao se tomar esta teoria em seus próprios termos, isso não pode significar senão que os produtores econômicos ocupam uma posição mais elevada do que os “intelectuais” em sua hierarquia social. Nas discussões psicológicas, uma palavra como “projeção” soa bem. Todas as metáforas como projeção, reflexo, reflexão, radiação e transferência buscam expressar a base material “imanente.” A idéia de representação, em contraposição, é tão completamente regida pelas concepções de autoridade pessoal que o representante bem como a pessoa representada deve manter uma dignidade pessoal - esta idéia não é um conceito materialista. A representação em sentido eminente só pode ser feita por uma pessoa, ou seja, não simplesmente por um “deputado”, mas por uma pessoa com autoridade (authoritative) ou por uma idéia que, se representada, também se torna personificada. Deus ou o “povo” na ideologia democrática ou idéias abstratas como liberdade e igualdade podem todas no nível da concepção constituir uma representação. Mas isto não é verdade no que se refere à produção e ao consumo. A representação investe a pessoa representada de uma dignidade especial, porque o representante de um valor nobre não pode ser sem valor. Não somente o representante e a pessoa representada requerem um valor, também o requer o terceiro a quem eles se dirigem. Não se pode representar a si mesmo para autômatos e máquinas, do mesmo modo que as máquinas não podem representar ou serem representadas. Uma vez que o Estado torna-se um Leviatã, ele desaparece do mundo das representações. Este mundo das representações tem a sua própria hierarquia de valores e a sua própria humanidade. Ele é o lar para a idéia política do catolicismo e para a sua capacidade de incorporar a grande trindade da forma: a forma estética da arte; a forma jurídica do Direito; e, finalmente, a gloriosa conquista de uma forma histórico-mundana do poder. O que primeiramente chama a atenção de uma época devotada ao gozo artístico é o que vem por último no desenvolvimento histórico e natural - o crescente cumprimento e a recompensa final, a beleza estética da forma. A forma, a figura e o simbolismo visual surgem independentemente da grande representação. A fábrica moderna, destituída de representação e imaginário, assume seus símbolos de uma outra época porque a máquina não tem tradição. Ela é tão pouco capaz de criar uma imagem que mesmo a República Soviética Russa não encontrou outro símbolo para o seu selo de domínio do que a foice e o martelo. O que era adequado para a tecnologia de mil anos atrás, mas que não retrata o mundo do proletariado industrial. Pode-se enfocar este emblema satiricamente, como a sugerir que a propriedade privada do camponês economicamente atrasado triunfou sobre o comunismo do trabalhador industrial, a economia agrária de pequena escala triunfou sobre a empresa de grande escala técnica e mecanicamente desenvolvida. Ainda mais, este primitivo simbolismo carece de algo na mais avançada tecnologia da maquinária, de algo especificamente humano, de uma linguagem. Não é de surpreender que a época econômica sucumba primeiramente às belezas externas, pois ela carece sobretudo de beleza. Ainda assim, também na estética está-se usualmente mais confortável com o superficial. A habilidade de criar formas, que é essencial para a estética, tema sua essência na habilidade de criar a linguagem de uma grande retórica. Isto é o que deve ser considerado; não as vestes esnobemente veneradas dos cardeais nem as vestimentas de uma magnifica procissão e tampouco toda a beleza poética que as acompanha. Tampouco são os critérios da habilidade de criar formas o que nos interessa na grande arquitetura, nas pintura e na música eclesiásticas e nem nas obras poéticas significativas. É inegável que hoje o vínculo entre a Igreja e as artes criativas rompeu- se. Um dos poucos grandes poetas católicos da última geração, Francis Thompson, registra essa ruptura em seu maravilhoso ensaio sobre Shelley: a Igreja, que já foi a mãe dos poetas tanto quanto dos santos, tanto de Dante quanto de São Domingos, agora reserva para si apenas a glória da santidade e deixa as artes para aqueles fora da fé. Ninguém poderia dizê-lo de forma mais adequada e correta do que o fez Thompson em seu magnifico ensaio sobre Shelley: “A separação tem sido maléfica para a poesia e não tem sido boa para a religião.”20 O que é verdade; a atual situação não é boa para a religião. Mas no que se refere à Igreja, esta não é uma doença incurável. Ao contrário, o poder da fala e do discurso - a retórica em seu sentido maior - é um índice da vida humana. Talvez hoje esta seja uma afirmação perigosa. A ausência de compreensão do significado da retórica é tão somente uma manifestação do dualismo polar de nossa época, expresso aqui, de um lado, por uma música extasiante hiperpoderosa; de outro, por uma praticidade muda. Ela busca transformar a “verdadeira” arte em algo romântico, excessivamente musical e irracional. Sabe-se bem, em grande parte graças ao privilegiado discernimento e poder apreensão de Taine, que há uma intima relação entre a retórica e o poder de espírito clássico. Mas Taine destruiu a idéia viva do classicismo ao fazer dele a antítese do romantismo. Sem que nem ele próprio efetivamente acreditasse em si mesmo, ele se esforçou por identificar o clássico com o retórico e assim com a artificialidade, a simetria vazia, a ausência de vida trabalhada. Todo um manancial de antíteses com o qual se jogar. Nesta comparação do racionalismo com algo “irracional,” o classicismo é atribuído ao racional; o romântico ao irracional. À retórica é atribuído o rótulo de clássica e racional. No entanto, mais decisiva é a retórica no sentido que se pode denominar discurso representativo, do que no que toca ao debate e à discussão. Ela se move em antíteses. Mas essas antíteses não são contradições; elas são os vários e diversos elementos moldados em um complexio e assim dão vida ao discurso. Será que as categorias de Taine nos ajudam a compreender Bossuet?22 Ele era mais inteligente do que muitos racionalistas e mais intuitivo do que todos os românticos. Mas sua eloqüência só é possível contra o pano de fundo de uma autoridade imperativa, que não resvala nem para o discurso nem para a ordem, mas que encontra ressonância na arquitetura da linguagem. O grande estilo desta eloqüência é mais do que música; é uma forma de dignidade humana que se manifesta em uma forma racional de linguagem (speech). Tudo isso pressupõe uma hierarquia, porque a ressonância espiritual da grande retórica deriva da crença na representação pretendida pelo orador. Ele é uma testemunha do fato de que o padre tem um lugar na história mundial ao lado do soldado e do estadista, do homem de Estado. Como eles, o padre é uma figura representativa. Seu lugar não é ao lado do mercador e do técnico, os quais lhe dão apenas esmolas e confundem sua representação com um adorno, uma decoração. Uma aliança da Igreja católica com a atual forma do capitalismo industrial não é possível. À aliança do trono com o altar não se seguirá uma aliança da burocracia (office) com o altar, nem tampouco da fábrica com o altar. Se o grosso do clero católico europeu não fosse mais recrutado da população campesina mas das grandes cidades, conseqüências imprevisíveis poderiam ocorrer. Mas nenhuma eventualidade tornaria possível uma aliança da Igreja com o capitalismo industrial. Contudo, o catolicismo continuará a se acomodar a qualquer ordem política ou social, ainda que seja uma ordem dominada por empresários capitalistas ou por sindicatos e conselhos proletários. Mas as acomodações somente serão possíveis se e quando o poder economicamente fundado se tornar poder politicamente fundado, ou seja, se e quando capitalistas ou trabalhadores que tenham chegado ao poder assumirem a representação política com todas as suas responsabilidades. A nova autoridade soberana será obrigada então a reconhecer uma situação distinta daquela que se refere apenas à economia e à propriedade privada. A nova ordem não poderá se limitar ao controle do processo de produção e de consumo, porque ela deve ser, precisa ser, formalmente constituída: toda ordem é uma ordem jurídica; todo Estado, um Estado constitucional. Uma vez que este passo tenha sido dado, a Igreja pode se aliar à nova ordem, tal como o fez com qualquer ordem. Ela não é de modo algum obrigada a se aliar apenas a Estados em que a nobreza territorial ou o campesinato sejam as classes governantes. A Igreja requer uma forma política. Sem ela não há nada que corresponda à sua conduta intrinsecamente representativa. O domínio oculto do “capital” , conquanto possa subverter uma forma política vigente e torná-la uma fachada vazia, ainda não é uma forma. Se ele tiver sucesso, ele terá “despolitizado” completamente o Estado. Se o pensamento econômico realizar o seu objetivo utópico e fizer emergir uma condição da sociedade humana absolutamente apolítica, a Igreja permaneceria a única organização de pensamento político e da forma política. A Igreja teria então um monopólio estupendo: sua hierarquia estaria mais próxima da dominação política do mundo do que na idade média. A Igreja, de acordo com a sua própria teoria e estrutura hipotética, não desejaria uma tal situação. Ela pressupõe sua coexistência com o Estado político, uma societas perfecta; não um consórcio de interesses conflitantes. Ela deseja viver com o Estado em uma comunidade especial na qual duas representações se confrontem como parceiras. Pode-se observar como a compreensão de qualquer tipo de representação desaparece com a expansão do pensamento econômico. Ainda assim, a base hipotética e teorética do parlamentarismo contemporâneo inclui pelo menos a idéia de representação. Ele é até mesmo sustentado pelo que tecnicamente se denomina “princípio da representação.” Na medida em que o princípio significa apenas uma representação (a do eleitorado), ele não conota nada de diferente. Na literatura constitucional e política do século passado, este termo significa uma representação do povo em contraste com um outro representante, especificamente, o rei, embora ambos conjuntamente representem “a nação” (ou apenas o parlamento quando há uma constituição republicana). Assim é que se diz que a Igreja não tem “instituições representativas” porque ela não tem parlamento e porque seus representantes não obtêm sua autoridade do povo. Consequentemente, ela representa “a partir de cima.” A ciência do Direito perdeu tanto o seu sentido quanto o conceito especifico de representação ao longo da luta popular contra o rei pela representação no século XIX. A teoria alemã do Estado, especificamente, desenvolveu uma mitologia acadêmica a um só tempo monstruosa e confusa; o parlamento enquanto um órgão político secundário representa um outro primário, o povo, mas este órgão primário aparte do secundário não tem vontade, a não ser que seja por “special proviso”; as duas pessoas jurídicas são uma única, constituem dois órgãos mas uma só pessoa. É suficiente ler-se o curioso capítulo da Teoria Geral do Estado de Jellinek sobre “Representação e ÓrgãosRepresentativos.”23 O sentido simples do princípio da representação é de que os membros do parlamento são representantes de todo o povo e assim têm uma autoridade vis-à-vis os eleitores. Ao invés de derivarem sua autoridade do eleitor individual, eles continuam a derivá-la do povo. “O membro do parlamento não se vincula a instruções e ordens e é responsável apenas perante sua consciência.” O que significa que a personificação do povo e a unidade do parlamento como o representante do povo importa pelo menos na idéia de um complexio oppositorum, ou seja, a unidade da pluralidade dos interesses e partidos. Ela é concebida em termos representativos e não em termos econômicos. O sistema proletário dos sovietes busca, portanto, eliminar este resquício de um tempo destituído de pensamento econômico e enfatiza que os delegados parlamentares são apenas emissários ou agentes dos produtores, com um “mandat impératif” (revogável por quebra de confiança a qualquer tempo - liable to be recalled at any time), são empregados administrativos do processo de produção. O povo “como um todo” é apenas uma idéia; o processo econômico “como um todo”, uma realidade material. A consistência intelectual do anti-intelectualismo é certamente marcante. Na “maré cheia” do socialismo, jovens bolcheviques tornaram a luta pelo pensamento técnico-econômico em uma luta contra a idéia, mesmo em uma luta contra toda idéia. E isso porque no mínimo o fantasma de uma idéia existe, bem como o conceito de que algo precedeu a realidade dada das coisas materiais, isto sempre significa uma autoridade que vem de cima. Para um tipo de pensamento que deriva suas normas da esfera técnico-econômica, esta parece ser uma interferência externa, um distúrbio da máquina autopropulsora. Uma pessoa inteligente dotada de instintos políticos que lute contra os políticos imediatamente reconhecerá em qualquer recurso à idéia uma pretensão à representaçào e à autoridade - uma pressuposição que vai além da ausência de forma proletária e da massa compacta de realidade en”carnada” na qual os homens não precisam de governo e “as coisas regem a si próprias.” . As formas política e jurídica são igualmente imateriais e irritantes para a consistência do pensamento econômico. Mas apenas ali onde surge uma situação paradoxal e este pensamento é assumido por fanáticos (o que provavelmente só poderia acontecer na Rússia) ele revela a sua total animosidade contra a idéia e toda inteligência não-econômica e não-técnica. O que demonstra sociologicamente o verdadeiro instinto revolucionário. Inteligência e racionalismo não são por si sós revolucionários. Mas o pensamento técnico é estranho a todas as tradições sociais: a máquina não tem tradição. Uma das descobertas sociológicas inovadoras, seminais, de Marx foi a de que a tecnologia é o verdadeiro princípio revolucionário, em comparaçào com o qual todas as revoluções fundadas no direito natural são formas antiguadas de recreação. Uma sociedade construída exclusivamente sobre a tecnologia progressista não seria senão revolucionária; mas ela logo destruiria a si mesma e a sua tecnologia. O pensamento econômico não é tão extremamente radical. Apesar de sua atual aliança com o tecnicismo absoluto, eles podem se opor mutuamente. Pertencem também ao econômico determinados conceitos jurídicos, como os de propriedade e de contrato. Muito embora o econômico circunscreva esses conceitos a um mínimo; sobretudo ao mínimo do direito privado. Nesse contexto, só pode ser notada de passagem a flagrante contradição entre o objetivo de transformar o econômico em um princípio social e o esforço em perpetuar o direito civil, especialmente o direito de propriedade. O que nos interessa, aqui, é que a tendência do econômico de perpetuar o direito civil significa, de fato, uma limitação [da capacidade (manter?)] da forma jurídica. Espera-se que a vida pública regule a si mesma. Ela deveria ser regida pela opinião pública, ou seja, a opinião dos indivíduos privados. A opinião pública, por sua vez, é regida por uma imprensa livre que está sob domínio privado. Neste sistema nada é representativo; tudo é uma questão privada. A “privatização”, historicamente considerada, tem suas origens na religião; o primeiro direito individual, no sentido da ordem burguesa liberal, foi a liberdade de religião; ela permanece como fonte e princípio de todo aquele rol de liberdades - liberdade de crença e de consciência, liberdade de livre associação e de reunião, liberdade de imprensa, liberdade de troca e de comércio. Mas qualquer que seja o lugar atribuído à religião, ela sempre e em todo lugar manifesta sua capacidade de absorver e de absolutizar. Se a religião for uma questão privada, segue-se daí que o “privado” será santificado religiosamente. Essas duas dimensões não podem ser separadas uma da outra. Assim, a propriedade privada é sacralizada precisamente por ser uma questão privada. O desenvolvimento sociológico da sociedade européia moderna é explicado por essa correlação, ainda não inteiramente reconhecida. Também na sociedade moderna existe religião, aquela do “privado”: sem ela, a estrutura desta ordem social entraria em colapso. O fato de que a religião seja considerada uma questão privada dá ao “privado” uma sanção religiosa. Em seu verdadeiro sentido, a garantia, imune a quaisquer riscos, da propriedade privada absoluta só pode existir ali onde a religião seja uma questão privada; isso ocorre, portanto, no universo burguês, mas também em qualquer outra dimensão política. O trecho freqüentemente citado sobre a religião como uma questão privada do Programa Erfurt do Partido Social-Democrata Alemão[24-nota da edição em inglês] é um interessante desvio rumo ao liberalismo. Karl Kautsky, o teólogo deste programa, procedeu a uma correção (em seu panfleto de 1906 sobre a Igreja Católica e a cristandade25) tão sintomática quanto inocuamente incidental, especificamente, que a religião é menos uma questão privada do que uma simples questão do coração. A fundamentação jurídica da Igreja católica na esfera pública contrasta com a fundamentação do liberalismo na esfera privada. /<<<<>>>>/ O que também é consistente com o caráter representativo da Igreja católica e possibilita que a religião seja concebida de uma tal maneira jurídica. Assim um escrupuloso protestante como Rudolf Sohm26 pode definir a Igreja católica como algo essencialmente jurídico, ao mesmo tempo em que considerava a religiosidade cristã essencialmente não jurídica. De fato, a permeação com elementos jurídicos é muito profunda. Muito do comportamento político católico aparentemente contraditório, tão freqüentemente reprovado, pode ser explicado por seu caráter jurídico-formal. No mundo social, a ciência do direito secular também revela um determinado complexio de interesses e tendências concorrentes. Como no catolicismo, esse complexio também evidencia uma curiosa mistura de conservadorismo tradicional e de resistência revolucionária em consonância com o direito natural. Qualquer movimento revolucionário confirma que os juristas, os “teólogos da ordem vigente”, são vistos como inimigos. Os juristas, por sua vez, são os que apoiam a revolução e a imbuem de paixão pelos direitos dos oprimidos e ofendidos. Devido à sua superioridade formal, a ciência do Direito pode facilmente assumir uma postura similar à do catolicismo no que se refere à alternação de formas políticas em que ela possa positivamente se alinhar a vários e distintos complexos, desde que haja apenas um mínimo suficiente de forma “para estabelecer a ordem.” Uma vez que a nova situação permita o reconhecimento de uma autoridade, esta fornece uma base para uma ciência do direito - a fundação concreta para uma forma substantiva. Mas apesar de toda essa afinidade no nível da forma, ocatolicismo vai bem mais longe porque ele representa algo mais e distinto da ciência do direito secular - não somente a idéia de justiça mas também a pessoa de Cristo - que consubstancia a sua pretensão a um poder e a uma autoridade únicos. Ele pode deliberar como um parceiro igual em relação ao Estado, e assim criar novo direito, enquanto a ciência do direito é apenas uma mediadora do direito estabelecido. A lei, o direito, que um juiz deve aplicar no Estado é mediatizada pela nação, pelo que uma norma mais ou menos fixa se coloca entre a idéia de justiça e o caso individual. Um tribunal internacional de justiça, independente no sentido de que não é vinculado por instruções políticas mas apenas pelos princípios fundamentais do direito, encontra-se mais próximo da idéia de justiça. Dado à sua separação do Estado individual, o que o distingue de um tribunal estatal, ele pretenderia representar algo autônomo em face do Estado, ou seja, especificamente, a idéia de justiça independente da vontade e do juízo dos Estados individuais. Sua autoridade basearia-se, portanto, na representação direta desta idéia, não na autoridade delegada dos Estados individuais, muito embora ele pudesse dever sua existência a um acordo entre estes Estados. Em conseqüência, ele deve se apresentar como um tribunal de justiça universal e, assim, também original. Esta seria a ampliação natural da consistência lógica; psicologicamente, ela seria uma inferência da situação original de poder fundada sobre a condição jurídica originária. Pode-se compreender muito bem os desvios dos publicistas dos Estados poderosos em relação a um tribunal como esse, todos decorrentes do conceito de soberania. O poder de decidir quem é o soberano significaria uma nova soberania. Um tribunal investido de tais poderes constituiria uma instância supraestatal e suprasoberania que, por si só, poderia criar uma nova ordem, se, por exemplo, ele tivesse autoridade para decidir sobre o reconhecimento de um novo Estado. Não é um tribunal de justiça, mas sim uma Liga de Nações quem pode ter tais pretensões. Mas ao exercê-las, ele se tornaria um agente independente. Conjuntamente com a função de executar o Direito, a lei, de gerir a administração, etc.(que pode requerer independência no que toca às questões financeiras, orçamentárias e em relação a outras formalidades), significaria também algo em si e de si mesmo. A sua atividade não se limitaria à aplicação das normas jurídicas vigentes, tal como seria a de um tribunal que fosse uma autoridade administrativa. Ele também seria mais do que um árbitro, porque em todos os conflitos decisivos ele teria que afirmar os seus próprios interesses. Assim, ele deixaria de sustentar exclusivamente a justiça - em termos políticos, o status quo. Se ele tomasse a situação política permanentemente mutável como seu princípio retor, ele teria que decidir com base em seu próprio poder qual nova ordem, qual novo Estado deveria ou não ser reconhecido. O que não poderia ser determinado pela ordem jurídica pré-existente, porque a maior parte dos novos Estados passaram a existir em oposição à vontade de seu soberano governante anterior. Devido aos princípios lógicos fundantes da auto-afirmação é concebível que possa surgir um conflito com a lei, com o direito. Um tal tribunal não somente representaria a idéia de justiça impessoal, mas também uma personalidade poderosa. Na orgulhosa história da Igreja Romana, o ethos de seu próprio poder coloca-se ao lado do ethos da justiça. Ele é até mesmo envolto no prestígio, na glória e na honra da Igreja. Enquanto a noiva de Cristo a Igreja ordena, exige, reconhecimento; ela representa Cristo reinando, governando e conquistando. A sua pretensão ao prestígio e à honra repousa sobre a nobre idéia de representação; ela engendra a eterna oposição entre justiça e beleza. O antagonismo é inerente à condição geral da natureza humana, muito embora os cristãos pios vejam-na como uma forma peculiar de uma malícia ainda mais peculiar. A grande traição perpetrada pela Igreja Católica é que ela não concebe Cristo como uma pessoa privada, não concebe a cristandade como uma questão privada, como algo sagrado e internamente espiritual, mas ao contrário deu à cristandade forma como uma instituição visível. Sohm acreditava que “o cair em desgraça”, “a queda da graça”, poderia ser percebida na esfera jurídica; outros viram-na de um modo mais grandioso e profundo como a vontade de poder mundial. Como qualquer outro imperialismo mundial que tenha alcançado seu objetivo, a Igreja busca pacificar o mundo. O que, para os inimigos de todas as formas, delineia o espectro do demônio triunfante. O personagem central de “O Grande Inquisitor” de Dostoyevsky confessa que ele voluntariamente sucumbiu aos ardis de satã, porque sabia que o homem é por natureza vil e mau, um rebelde covarde que precisa de um mestre. Somente o padre romano encontra a coragem de assumir sobre si toda a condenação devida a um tal poder. Com o “O Grande Inquisitor”, Dostoyevsky projeta de forma decisiva o seu próprio ateísmo latente na Igreja Romana. Todo poder é algo mau e desumano para o seu instinto fundamentalmente anarquista ( o que sempre significa também ateísmo). Na esfera temporal, a tentação do mau inerente a todo poder é certamente incessante. Apenas em Deus o conflito entre o poder e o bem é resolvido em última instância. Mas o desejo de escapar deste conflito pela rejeição de todo poder terreno conduziria à pior desumanidade. Há um temperamento sombrio e prevalente que percebe o institucionalismo frio do catolicismo como o mal e a remota ausência de forma de Dostoyevsky como a verdadeira cristandade. O que é tão superficial quanto qualquer outra coisa no nível da emoção e do sentimento. Ele nem mesmo tem consciência da natureza pagã da noção de que Cristo poderia surgir (de maneira experimental, por assim dizer) uma ou muitas vezes entre a Sua existência histórica e o Seu glorioso retorno no Dia do Juízo. De um modo ainda mais conciso do que o de Dostoyevsky, o gênio de um católico francês vislumbrou um quadro que a um só tempo inclui toda a tensão do antagonismo e (através da formulação de um apelo direto à justiça divina) força dialeticamente a justiça à sua conclusão lógica em que ela preserva a lei, o direito, conjuntamente com as formas de juízo e de recurso. É um quadro desprezível do Dia do Juízo, que Ernest Hello27 teve a coragem de pintar. Quando o Julgador-do-mundo tiver pronunciado a sua sentença, um dos condenados, coberto de injúria, avança rapidamente e, para horror da criação, diz para o Juiz: J’en appelle.28 “Com essas palavras as estrelas deixam de brilhar.” Segundo a idéia do Juízo Final, no entanto, o veredicto Dele é eternamente irrevogável, effroyablement sans appel.29 Para quem apelas de Minha sentença? Indaga Jesus, o juiz. Em meio ao terrível silêncio que se seguiu, o condenado responde: “J’en appelle de ta justice à ta gloire.”30 Em cada uma das três grandes formas de representação, o complexio da vida em todas as suas contradições é moldado em uma unidade de representação pessoal. Assim, cada uma das três formas pode evocar uma determinada ansiedade e perplexidade, e dar vida nova ao temperamento anti- romano. Todos os sectários e heréticos se recusaram reconhecer o quanto o personalismo é inerente à idéia representação, que é uma idéia humana no sentido mais profundo. Precisamente por isso, um tipo de luta singularmente novo foi demarcado quando a Igreja Católica no século XVIII encontrou um oponente que zelosamente a confrontou com a idéia de humanidade. O fogo e a chama deste oponente eram especialmente nobres. Mas ali mesmo onde ele se elevou em um sentido histórico, ele também sucumbiu ao antagonismo predestinado, fatal, cujo surgimentolevantou tantas forças contra a Igreja. Enquanto a idéia de humanidade preservou um poder espontâneo, seus representantes também encontraram a coragem para terem sucesso com o poder desumano. Os filósofos humanitaristas do século XVIII pregavam o despotismo esclarecido e a ditadura da razão. Eles são aristocratas autoconfiantes. Assim, eles fundamentam sua autoridade e suas sociedades secretas (i. e., associações estritamente esotéricas) na pretensão de que eles representam a idéia de humanidade. Aqui, como em toda construção esotérica, reside uma superioridade desumana sobre o não iniciado, o homem comum e a massa democrática. Quem ainda hoje teria a coragem de assumir uma tal convicção? Será altamente instrutivo recordarmos a sorte de um certo monumento alemão da lavra do grande gênio humanitarista Mozart: a Flauta Mágica. Não é essa ópera hoje considerada algo mais do que uma música alemã genial, uma obra idílica, uma precursora da opereta vienense? Todos afirmam que ela é também um hino do iluminismo, da luta do sol contra a noite, da luz contra as trevas. E, é claro, esta afirmativa estaria em completa harmonia com o sentimento de uma época democrática. Em comparação, seria menos aceitável dizer que a Rainha da Noite, contra quem o padre maçônico luta, seria a mãe em um sentido específico. Mas, em última análise, quão alarmante para os homens dos séculos XIX e XX é a arrogância viril e a autoritária autoconfiança destes padres, quão diabólico é o desprezo pelo homem comum retratado no caráter de Papageno, o naturalmente bom pater familias, que se preocupa com a satisfação de suas necessidades econômicas e é dispensado quando seus desejos se realizaram e suas necessidades foram satisfeitas. Não há nada mais amendrontador do que esta amada ópera, bastava que se gastasse tempo para compreendê-la no contexto mais amplo da história das idéias. Deve-se compará- la com a Tempestade de Shakespeare e reconhecer como Próspero tornou-se um padre maçônico e Caliban um Papageno. O século XVIII firmou-se muito na autoconfiança e no conceito aristocrático de segredo. Em uma sociedade que não tem mais esta coragem, não pode haver “arcana,” não pode haver hierarquia, nem mais diplomacia secreta; de fato, não pode mais haver política. O “arcanum” pertence a todas as grandes políticas. Tudo ocorre em um palco (diante de uma platéia de Papagenos). Será que os segredos comerciais e industriais ainda serão permitidos? O pensamento técnico-econômico parece ter uma compreensão peculiar deste tipo de segredos. Aí pode residir mais uma vez o começo de um novo e incontrolado poder. No que se refere ao presente, no entanto, o pensamento técnico-econômico permanece completamente na esfera econômica, sabidamente pouco representativa. Ele tem que se rebelar contra tais segredos, o que até agora, ocorreu apenas aos conselhos proletários, aos sovietes. Sempre se ouvirá falar apenas de humanidade; e portanto não se vê que uma vez que a idéia de humanidade tenha se realizado ela também se tornará sujeita à dialética de toda realização. Ela deve deixar de não ser nada a não ser humana. A Igreja Católica hoje não tem adversários que a desafiem aberta e vigorosamente como inimigos, como o fez o espírito do século XVIII. O pacifismo humanitarista é incapaz de nutrir inimizade, porque o seu ideal se perdeu na justiça e na paz. Muitos pacifistas, embora não os melhores deles, lidam apenas com o cálculo plausível de que a guerra é ruim para os negócios - a afirmação racionalista inabalável de que na guerra desperdiça-se muita energia e muito material. A liga das Nações,31 tal como existe hoje, pode se provar uma instituição útil. Mas ela não surge como uma adversária da Igreja universal, e muito menos como líder espiritual da humanidade. O último adversário do catolicismo foi a maçonaria (freemasonry). Eu não sou capaz de avaliar se ela ainda corporifica o fogo de sua idade heróica. Mas quaisquer que sejam as pretensões espirituais que ela possa ter, essas pretensões são tão irrelevantes para o pensamento econômico consistente quanto a Liga das Nações ou o catolicismo. Para este tipo de pensamento tudo isso não passa de miragens: a primeira, talvez uma miragem do futuro; o segundo, talvez uma miragem do passado. Como já se disse: se uma miragem alcança uma outra é algo tão inconseqüente quanto whether they come to blows. A humanidade é uma idéia tão abstrata que mesmo o catolicismo, em comparação parece compreensível, porque pelo menos ele apresenta vantagens possíveis para o consumo estético. Reitero, pela terceira vez, que a materialidade do pensamento econômico dos capitalistas é muito próxima da materialidade de um comunismo radical. Nem pessoas nem coisas requerem um “governo” se se permitir ao mecanismo técnico-econômico dar curso à sua própria regularidade imanente. Se toda autoridade política é rejeitada em tais argumentos racionalmente fundados, então Bakunin,32 um dos maiores anarquistas do século XIX, parece ter sido um ingênuo guerreiro nórdico que se encontrava gerações à frente de seu tempo na batalha contra a idéia e o espírito. Ele dissipou todos os obstáculos metafísicos e ideológicos e, então, voltou-se com um poder scynthiano (antigo nome de uma região no sudeste da Europa e da Ásia entre os mares Negro e Aral - Scynthia) contra a religião, a política, a teologia e a jurisprudência. Sua luta contra o italiano Mazzini33 surge como remota batalha simbólica de um colossal levante da história mundial de maiores dimensões do que o Völkerwanderung.34 Para Bakunin, o ateísmo do maçom Mazzini era apenas, como toda crença teísta, uma evidência de servidão e a verdadeira fonte de todo o mau - de toda autoridade política e estatal. Era um centralismo metafísico. Marx e Engels também foram ateus. Mas aqui o critério último era o conflito entre os educados e os não-educados. A antipatia insuperável que esses homens, vindos da metade ocidental da Alemanha, nutriam por Ferdinand Lasalle, que vinha da metade oriental, era mais do que um descuidado capricho. Mas o ódio que eles tinham dos russos vinha de seus instintos mais enraizados e se manifestou na luta interna na Primeira Internacional. Inversamente, tudo no anarquista russo elevou-se em revolta contra o “judeu alemão” (nascido em Trier) e contra Engels. O que continuamente provocou Bakunin foi o intelectualismo deles. Eles tinham “idéias” por demais, “matéria cinzenta” por demais. O anarquista só podia pronunciar a palavra “cervelle”35 com uma fúria sibilante. Por detrás desta palavra ele corretamente suspeitava que se encontrava a pretensão à autoridade, à disciplina e à hierarquia. Para ele, todo tipo de comportamento cerebrino era hostil à vida. O indomável instinto bárbaro de Bakunin chocou-se com certeira precisão contra um conceito aparentemente incidental, mas, na verdade, muito decisivo, ao qual os revolucionários alemães devotavam um estranho fervor moral quando, ao criarem a belicosa classe do “proletariado,” batizaram o “Lumpenproletariat.” Esta designação, a um só tempo mésprisant et pittoresque,36 pode ser efetivamente considerada como um sintoma, uma vez que ela é inextrincavelmente vinculada a tantas conotações valorativas diferentes. O pensamento social em todas as suas manifestações relaciona-se de algum modo com esta notável mistura denominada Lumpenproletariat. É um “proletariado,” mas a ele pertencem também o boêmio da época burguesa, o mendigo cristão e todos os insultados e injuriados. Ele exerceu um papel algo nebuloso mas essencial em todas as revoluções e rebeliões. Os escritores bolcheviques recentemente o redimiram. Quando Marx e Engels estavam em dificuldades para distinguir o seu verdadeiro proletariado desta turba “podre,” eles traem o quão fortemente influenciadospela moral e concepções ocidental-européias tradicionais de educação eles eram. Eles queriam imbuir o seu proletariado de um valor social. Mas isto só é possível com conceitos morais. Mas aqui Bakunin teve a incrível coragem de ver o Lumpenproletariat como o arauto do futuro e de recorrer à canaille.37 Que retórica fulminante: “Ao meu ver, a flor do proletariado encontra- se é sobretudo nas grandes massas - os milhões de pessoas incivilizadas, deserdadas, miseráveis e iletradas que o Sr. Engels e o Sr. Marx confiariam à dominação paternal de um governo muito forte. Ao meu ver, a flor do proletariado é precisamente a inesgotável bucha de canhão de todos os governos - esta grande malta, ainda praticamente intocada pela civilização burguesa, que porta em seu útero, em suas paixões e instintos, todas as sementes do socialismo do futuro.” Em nenhum outro lugar o decisivo antagonismo educacional foi tão poderosamente revelado como neste enunciado. Ele fixa o palco em que a essência da atual situação é claramente reconhecível e o catolicismo se destaca como uma força política. Desde o século XIX, há na Europa duas grandes massas opostas à tradição e à educação ocidental-européias, duas grandes torrentes inundando suas margens: o proletariado com consciência de classe das grandes cidades e as massas russas alienadas da Europa. Do ponto de vista da cultura ocidental- européia tradicional, ambas são bárbaras. Onde elas têm uma noção de seu próprio poder, elas orgulhosamente se denominam bárbaras. O fato de elas terem se encontrado no solo russo, na República Soviética Russa, tem uma profunda justificativa na história das idéias. Não importa quão dissimilares e até mesmo antagônicos sejam os dois grupos, quão inexplicável seja todo o processo nos termos de todas as construções ideológicas prévias e da teoria específica do marxismo, esta aliança não é um acidente da história mundial. Eu sei que pode haver mais cristianismo no ódio russo da cultura ocidental-européia do que no liberalismo e no marxismo alemão. Eu sei que grandes pensadores católicos consideraram o liberalismo um inimigo mais malevolente do que o ateísmo socialista declarado. Eu sei que essa ausência de forma pode conter o potencial de uma nova forma que pode também conformar a época técnico-econômica. Ao ter resistido a tudo, a Igreja Católica não precisa decidir estas questões. Também aqui, haverá o complexio de tudo o que resiste. Ele é o herdeiro. Há, no entanto, um tipo de decisão que a Igreja não pode evitar - um tipo de decisão que precisa ser tomada hoje, na situação concreta, em cada uma das gerações. No que toca a tais decisões, a Igreja opta por um lado ou por outro, muito embora ela não se declare a favor de nenhum dos lados da contenda. Assim, ela ficou do lado dos contrarevolucionários na primeira metade do século XIX. Com base nisto eu sustento que na remota batalha de Bakunin, a Igreja Católica e o conceito católico de humanidade ficaram do lado da idéia e da civilização ocidental-européia, mais próxima de Mazzini do que do ateísmo socialista do anarquista russo. <<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<<>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>> 1 2A Kulturkampf , a luta cultural, foi iniciada quando Bismarck aprovou leis em 1871/72 que objetivavam o veto estatal ao clero. Estas leis foram uma resposta ao Conselho do Vaticano ou Vaticanum (1869-1870), quando elevou-se o papado ao status de uma monarquia absoluta e assim mudou-se a relação entre a Igreja e o Estado - não apenas com a exigência do Vaticano de liberdade absoluta para treinar o clero, mas também no seu pressuposto de superioridade ética em face do estado. Em 1887 Bismarck pôs um fim à luta cultural Kulturkampf ao capitular diante da Cúria. 3 4 5 6 O Cardeal Desiré Joseph Mercier (1851 - 1926) pregou o renascimento da filosofia de São Tomás de Aquino. 7 Michael Felix Korum (1840 - 1921) trabalhou pela fixação da Kulturkampf. 8 Felix Antoine Philibert Dupanloup (1802-1878), se opôs ao dogma da infalibilidade papal tanto antes quanto durante o Concílio Vaticano, mas foi um dos primeiros a aceitá-lo quando foi decretado. 9 O marcionismo é uma seita formada pelo líder herético romano Marcion (170?), não aceitava as escrituras, a não ser as dez epístolas de São Paulo e um evangelho alterado por Lucas. O marcionismo rejeitava as doutrinas da encarnação e da ressurreição e ensinava uma forma de dualismo em que o Deus dos judeus era diferente do Deus dos cristãos. O marcianismo praticava uma forma extrema de ascetismo e durou até o século sétimo. 11 Na análise de SCHMITT do romantismo político, ele salienta que nunca foi parte do romantismo conceitual ou da realidade efetiva buscar mudar o mundo, mas, ao contrário, para resolver o seu alegado dualismo por um salto para um “terceiro reino mais elevado.” 12 Joseph Ernest Renan (1823 - 1892), um filólogo e crítico religioso francês. 13 “Toda vitória de Roma é uma vitória da razão.” 14 Pierre Maurice Marie Duhem (1861 - 1916), um médico francês que escreveu sobre religião. 15 16 Louis Veuillot (1813 - 1883), um católico leigo que defendeu a supremacia papal absoluta. 17 Léon Bloy (1846 - 1917), um católico leigo que pregou o renascimento espiritual através do sofrimento e da pobreza. 18 Robert Hughes Benson (1871 - 1914), um padre e escritor que se tornou privy chamberlain do Papa Pio X. 19 Paul Charles Joseph Bourget (1852-1935), um romancista e crítico literário francês. 20 22 23 “R 24 25 26 Rudolf Sohm (1841 - 1917) foi provavelmente o mais brilhante jurista dogmático de sua época. Trabalhou em uma época em que o conflito entre romanistas e germanistas não era mais tão agudo quanto havia sido, foi atraído por ambos o Direito Romano e o Germânico e, mais tarde, também pelo Direito Canônico, e alcançou fama em todos três. 27 28 29 30 31 32 33 34 A migração de povos, especialmente o movimento para o sul e o oeste da Europa dos povos teutônicos, hunos e eslavos, do segundo século D. C., que alcançou o seu pico nos séculos sexto e sétimo com o assentamento dos nórdicos na Inglaterra e na França. 35 Cérebro. 36 Desprezível e pitoresca. 37 Turba. Carl Schmitt
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