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O ENSINO DE PSICOPATOLOGIA E OS DISCURSOS NA PÓS-MODERNIDADE. Conrado Neves Sathler [1] RESUMO O presente trabalho põe em pauta o problema do ensino da Psicopatologia em cursos de graduação de Psicologia. O cerne da questão aqui debatida será a introdução do Paradigma da Linguagem (linguistic turn), da concepção de Discurso e da noção de doenças psicológicas como Textos em seus enlaçamentos pós-modernos. A formação da subjetividade e o conceito de sujeito, a partir de Foucault, serão o ponto de partida para, em sala de aula, se formar psicólogos voltados à visão de Saúde Mental e à percepção de novos sintomas psicopatológicos como modos de existir na atualidade. A desconstrução da Psicopatologia - enquanto ciência que classifica transtornos mentais - com dados observados e descritos, com suas etiologias e prevalências que acometem parte da sociedade, embora tomados como exteriores a própria sociedade (como visto pelo DSM ou CID), será o pano de fundo para discussão dos problemas enfrentados no ensino dessa disciplina. INTRODUÇÃO O problema inicial que se põe ao professor de Psicopatologia em cursos de graduação de Psicologia é: qual caminho escolher para se ensinar um conteúdo tão requisitado, mas também tão carregado de sentidos relativos a outras disciplinas como, por exemplo: psicodiagnóstico, psiquiatria, criminologia, fenomenologia, neurociências, psicologia social, etc, e também de outros significados advindos das experiências pessoais dos alunos como: preconceitos, medos, estigmas, históricos familiares e institucionais, entre tantos conhecimentos prévios que formam, inclusive, a subjetividade dos próprios alunos que freqüentam o curso de psicologia, bem como e tanto quanto de qualquer outro estudante. O professor ao escolher uma linha de trabalho, selecionar alguns textos e atender alguns conteúdos, tangencia outros conhecimentos e outras formas de abordar a psicopatologia. Claro que os conhecimentos vindos de outras áreas geram conflitos e põem em suspense dados específicos e raciocínios próprios ao psicólogo. Quer dizer, a psicopatologia serve não só ao psicodiagnóstico, à clínica e à saúde mental, que são áreas clássicas da psicologia, mas serve também à psiquiatria na medicina, à criminologia no direito, e assim por diante. O uso da psicopatologia como conhecimento é, por sua diversidade, uma arena, visto que, epistemologicamente a Lingüística, a Medicina e o Direito partem de bases distintas de concepção do que vem a ser o próprio conhecimento. . Assim, a sala de aula torna-se um palco de conflitos de diversas naturezas. Entre esses conflitos, em primeiro lugar, lembramos os mais corriqueiros e pessoais. Os alunos se identificam com os sintomas; não somente com os diagnósticos, mas, também, com os demais discursos presentes em classe, como o discurso da luta anti- manicomial e o discurso da anti-psiquiatria, entre outros freqüentemente apresentados pelo professor da disciplina. E esses discursos se entrelaçam e se misturam também aos discursos advindos das literaturas de divulgação científica (nos quais os cientistas falam como jornalistas e os jornalistas falam como cientistas), muito atraentes aos alunos. No entanto, talvez, esses não sejam os discursos mais presentes. A grande arena onde se luta pelo direito de falar e de ser aceito, característico da pós-modernidade, é a mídia. Aqui nos baseamos em Coimbra (2001) que nos mostra a centralização e a tentativa de controle social exercido pelos meios midiáticos e ressalta: “Partimos do pressuposto de que a mídia é atualmente um dos mais importantes equipamentos sociais no sentido de produzir esquemas dominantes de significação e interpretação do mundo e que os meios de comunicação, portanto, “falam pelos e para os indivíduos””.(Guattari e Rolink, 1985. in: Coimbra, 2001). Pelas características, já tão discutidas em textos sobre a pós-modernidade, da Cultura do Narcisismo (Larch) e da Sociedade do Espetáculo (Debord) e, pela força de verdade postas nas montagens e, finalmente, pelo apagamento do “espelho da linguagem” operado pelos meios de comunicação, a luta que se vê em sala de aula é a luta que se vê produzida pela (ou reproduzida na) mídia. Aqui, quando falo em mídia, quero falar dos programas de entrevistas na TV e rádio que apresentam especialistas, dos sites na Internet de profissionais que se auto-promovem, de filmes do grande circuito do cinema internacional e de todos os demais programas que se utilizam do discurso psicológico para dar mais consistência as suas verdades. (Sobre isso verificar - Silva, Patrícia R.M.; Barros, C.; Ferreira, J.; Lima, M.C.:2006; e - Fischer, R.M.B.: 2001). Com essa introdução, o que se almeja mostrar é que nesse texto retiramos os muros das escolas, visto que são ilusórios, e também reafirmamos a disseminação característica de todo discurso. Ou seja, os discursos estão presentes na sociedade e são proferidos de forma descontínua, fragmentária, dispersa e não controlada. A escola faz parte da sociedade e não é, de forma alguma, uma instituição isolada que cuida de seus conteúdos de maneira imune aos desejos do poder que a sustém. Quando falamos, então, do discurso na escola, como bem nos mostra Barthes (2004), estamos falando em Poder. Para esclarecer os termos que utilizamos neste texto vamos dividi-lo em: a- linguagem, b- pós-modernidade e modos de produção de existência, c- problemas de sala de aula. Isso para definirmos o que entendemos por paradigma da linguagem ou Linguistic turn, por subjetividade e modos de produção de sujeitos e, por fim, problemas de ensino e sala de aula. PARADIGMA DA LINGUAGEM “Il n’y a pas de hors-texte” Jacques Derrida “Não existe nada fora do texto”. Essa frase de Derrida que tantas vezes é citada e, tantas vezes, acusada de nada significar, de ser vazia de sentido e de servir de forma pouco criteriosa para ampliar (a gosto de quem o usa) os textos escritos e conter algo não presente em seus traços é, para nós, de grande importância e vamos pontuar o porque nos é valiosa e paradigmática. O que o paradigma da linguagem assume como pressuposto é que existe uma criação do mundo através da linguagem. No processo de nomeação dos objetos é que eles passam a ser percebidos, valorizados e identificados em suas funções. A linguagem não cria o mundo em si, mas permite alcançá-lo e condiciona o que dele vemos. “A verdade não pode estar diante de nós – não pode existir independentemente da mente humana – porque as frases não podem existir dessa maneira ou estar diante de nós dessa maneira. O mundo está diante de nós, mas as descrições do mundo não. Só as descrições do mundo podem ser verdadeiras ou falsas; o mundo por si próprio – sem auxílio das atividades descritivas dos seres humanos – não pode.” (Rorty, 1994: 25) Assim, a linguagem cria verdades. Verdades que são criadas são verdades que nos dão sentidos, que permitem sentidos, ou seja, que permitem direções, orientações e significados. Abrindo um breve parêntese, só para exemplificar, e já revelando um sentido ideológico-colonialista implícito, direi: “só para nortear” – como se, haver um norte político fosse melhor que um sul – mas ninguém diz “só para sulear ou dar um sul para a vida”, enfim, direi: mar mediterrâneo. Sendo a terra esférica, não há sentido, se não o político, dar-lhe um meio, mas mediterrâneo significa exatamente isso – meio da terra. A nomeação não só identifica e valoriza, mas põem em movimento,provoca um deslocamento e classifica. Cada nomeação carrega implicitamente uma separação, uma distinção, uma dicotomia e uma nova possibilidade de exclusão. Acima de tudo, como nos mostra Hacking (2001-2002), a linguagem cria algo que nos dá a ilusão de que um objeto qualquer possa ser chamado de natural, como se fosse algo verdadeiro que tenha sido descoberto e descrito pelas ciências naturais de forma incontestável e que é revelada neutra e objetivamente. As regras ou normas de classificação dos objetos e a lógica da própria linguagem, ambas, também, criações humanas nos impõem uma crença. Permitam-me uma citação mais longa: “A tentação de procurar critérios constitui uma classe dentro da tentação mais geral de pensar que o mundo ou o eu do homem possuem uma natureza intrínseca, uma essência. Isto é, resulta da tentação de privilegiar algumas das várias linguagens com que habitualmente descrevemos o mundo ou nos descrevemos a nós próprios. Enquanto pensarmos que há uma relação chamada “adequação ao mundo” ou “expressão da natureza real do eu” que pode ser possuída por vocabulários-no-seu-todo ou faltar- lhes, continuaremos a tradicional busca filosófica de um critério que nos diga quais os vocabulários que possuem essa desejável característica. Mas se alguma vez conseguíssemos adaptar-nos à idéia de que a realidade é em grande medida indiferente às descrições de que dela fazemos e que o eu humano é criado através da utilização de um vocabulário, em vez de, adequada ou inadequadamente, se exprimir através deste, estaríamos finalmente a assimilar o que havia de verdadeiro na idéia romântica de que a verdade é feita e não descoberta. A verdade dessa asserção reside precisamente no fato de as linguagens serem feitas e não descobertas e de a verdade ser propriedade de entidades lingüísticas, de frases.”(Rorty, 1994: 26- 27). Tentamos esclarecer que do ponto de vista da virada lingüística, a nomeação é que gera os fenômenos. A psicopatologia se constrói da mesma forma e Foucault, ao longo de sua obra, vem mostrar como a loucura foi compreendida ao longo dos tempos, desde o fim da idade média até os tempos atuais. Sua obra consiste, principalmente, na investigação dos modos de dominação e sujeição que criam os sujeitos e seus objetos de estudo. Nesse campo, são mais freqüentes as classificações da sexualidade e da loucura. Para Foucault (1971[2000]), esses são os mais fortes índices de exclusão social. Por mais que os conceitos de Foucault possam ser utilizados para demonstrar como a loucura foi compreendida através dos tempos, e isso pode parecer uma tentativa meramente descritiva, não se pode dissociar sua teoria de sua visão que não separa os enunciados das práticas sociais nem, tampouco, da criação e da administração dos corpos. Para Foucault (2002), o exercício do poder se faz pelo discurso e o discurso não é uma superfície de contato ou confronto entre uma realidade e uma língua, mas um conjunto de regras próprias de uma prática discursiva (p. 65), e mais adiante define: Chamaremos de discurso um conjunto de enunciados, na medida em que se apóiem na mesma formação discursiva; ele não forma uma unidade retórica ou formal, indefinidamente repetível e cujo aparecimento ou utilização poderíamos assinalar (e explicar, se for o caso) na história; é constituído de um número limitado de enunciados para os quais podemos definir um conjunto de condições de existência. (Foucault, 2002, p. 135). Então, podemos ver que os enunciados se ligam por regras especificas e põem em circulação um conjunto de verdades, verdades que se fundam em saberes aceitos e regulados. Esses saberes instalam o funcionamento social em práticas, em instituições através dos dispositivos de poder. Esses dispositivos designam as conexões entre o dito e o não-dito, ou seja, que põem em movimento as estratégias, as tecnologias e as formas de assujeitamento. Os dispositivos incluem os discursos, a arquitetura, as leis, as medidas administrativas, etc nos quais o sujeito se torna objeto de conhecimento e de produção. Ao ligarmos esses elementos - o lingüístico e os processos de subjetivação - que formam o sujeito e permitem-no se tornar objeto de conhecimento, ligamos também o texto aos saberes. Não há nada fora do texto, isso implica uma compreensão de texto e de linguagem mais amplas. Tudo existe em forma de texto ou é compreendido segundo discursos, com suas regras, limitações e acoplamentos com os demais textos que o circundam. A partir desse ponto de vista, os transtornos mentais, bem como qualquer outro objeto de conhecimento, são textos construídos pela e na linguagem. Linguagem que instala o humano em um campo de saberes e práticas. As ciências Psi são também um dispositivo de conhecimento. Segundo Nikolas Rose (2001), em artigo traduzido pelo prof. Tomaz Tadeu da Silva, a compreensão individualizada e psicologizada do ser humano é uma condição contingente do sujeito contemporâneo. Seu funcionamento é o de um “ideal regulatório” em nossos modos de existir, seja em nossos mínimos projetos pessoais, seja no funcionamento de nossas instituições, práticas sociais, artísticas, culturais ou políticas. As tecnologias do eu aliadas a esses dispositivos psi permitem a formação de novos sujeitos e permitem ao sujeito se enunciar como “sujeito da liberdade” ou “sujeito da auto-realização”, ou ainda, a estar ao alcance da governamentalidade, presente nos amplos programas governamentais que envolvem a família, o mercado, a escola e a sociedade civil. Rose propõe, a partir de Foucault e Deleuze, entre outros pensadores, uma genealogia da subjetivação que compreenda o humano como resultado de uma “maquinação: um híbrido de carne, artefato, saber, paixão e técnica”. A PÓS-MODERNIDADE E SUAS CARACTERÍSTICAS DE PRODUÇÃO A pós-modernidade será tratada aqui, nos seus efeitos sociais mais visíveis, pelos autores que escolhemos para fundamentar esta pequena discussão. Nosso foco não será o das raízes, não será o das variações das definições, nem dos campos de conhecimento que refletem essas mudanças. Escolhemos, para articulação entre pós- modernidade e modos de produção de subjetividade, a centralidade da imagem e da corporeidade. Para iniciarmos essa apresentação do tema da pós-modernidade ressaltamos, quanto nos chama atenção, a presença determinante da estética visual no mundo atual. Talvez isso seja discutível do ponto de vista filosófico e, principalmente, da lógica da definição do que seja um período histórico. Quer dizer, parece impossível discutir o barroco sem pensarmos em estética barroca, ou o modernismo sem a estética modernista. Logo, a imagem é componente intrínseco de qualquer obra ou conjunto de obras. A despeito dessa característica, a saber, da estética ser inerente à obra - senão central nela -, o papel da imagem na pós-modernidade é algo a ser investigado. Peters (2000), aponta que o termo “pós-modernidade”, muitas vezes, é confundido com “pós- modernismo”, sendo que “pós-modernismo” foi o primeiro termo a ser usado e nomeava um movimento artístico e dele derivou o termo “pós- modernidade”. Maffesoli(2000), além de relacionar pós-modernismo e pós- modernidade da mesma forma, avança para elucidar o que chama de “politeísmo de valores”. Para esse autor, há uma mestiçagem de valores que caracteriza a pós- modernidade, assim como o pós-modernismo arquitetônico admite que, por exemplo,numa mesma obra haja citações góticas, romanas, modernas e barrocas. A imagem se faz mais presente também nas leituras sociológicas que evidenciam quanto as sociedades capitalistas do séc. XX expõem os indivíduos a seus constantes bombardeios. Essas imagens não são somente fotos, desenhos, esquemas ou outras ilustrações, são principalmente bombardeios de logomarcas - pequenos símbolos que se associam a produtos de uma marca comercial. Teóricos como Jameson, F e Fontenelle,I (in:Bragaglia, 2005), chamam essa tendência de Sociedade das Imagens. Outro autor que trata da radicalidade das imagens é Baudrillard (2002), que demonstra como as imagens da TV podem substituir a realidade no imaginário social, na medida em que apresenta na tela, de forma indiferenciada, como espetáculo, desde uma guerra até uma novela ou um documentário que apaga as marcas de suas montagens e tudo, indiferenciadamente, se mostra como real. Logo, como podemos observar, a imagem não é somente um componente da obra, é sua finalidade, é o registro que marca a obra em sua especificidade e em seu valor. Esse valor se associa ao valor do consumo e, conseqüentemente, ao valor como fetiche – no sentido marxista do termo. Isso quer dizer que o sujeito valoriza aquilo que consome e que vale aquilo que pode consumir. É essa característica que Debord, G. (1977) identifica também como sociedade do espetáculo, ou seja, como o corpo, as vestes ou os hábitos pessoais se identificam com os objetos e se tornam, eles próprios, objetos em função do espetáculo que podem promover. Essa sociedade formada pela imagem, pelo espetáculo e pelo consumo tem conseqüências profundas na formação da subjetividade. Essas conseqüências estão presentes nas observações que se fazem acerca do sujeito vazio, do sujeito do consumo, do sujeito da pulsão e do sujeito narcísico, entre tantas novas nomeações. Ao discutir esse tema, Birman (2005) apresenta-os com a seguinte característica: “O que justamente caracteriza a subjetividade na cultura do narcisismo é a impossibilidade de poder admirar o outro em sua diferença radical, já que não consegue descentrar de si mesma. Referido sempre a seu próprio umbigo e sem poder enxergar um palmo alem do próprio nariz, o sujeito da cultura do espetáculo encara o outro apenas como um objeto para seu usufruto. Seria apenas no horizonte macabro de um corpo a ser infinitamente manipulado para o gozo que o outro se apresenta para o sujeito no horizonte da atualidade”. (p 25) Mesmo nesse pequeno texto podemos ver a associação do corpo, do espetáculo, do consumo e do gozo numa nova constituição subjetiva. Há efeitos imediatos dessas novas formas de subjetivação na psicopatologia enquanto estudo do pathos humano. Mudando a constituição subjetiva altera-se também o motivo, o modo e as características desse sofrimento. Mas outra alteração também se constitui. A própria psicopatologia muda seus estatutos epistemológicos e metodológicos. Birman (2005), no capítulo “A psicopatologia na pós-modernidade: as alquimias do mal-estar na atualidade” (p 175 ss), apresenta uma leitura de como se dão essas transformações, evidenciando a lógica que rege a presença da biologia e das neurociências em substituição às bases psicanalíticas da compreensão do fenômeno psicopatológico. Essa mesma lógica, ainda segundo Birman (2005), traz a psicofarmacologia e as terapias cognitivas como alternativas de tratamento, pois são promessas de diminuição do sofrimento humano, funcionando como reparadores do desamparo originário e garantias do gozo. Todo esse funcionamento constitui o presente que, conseqüentemente, instala subjetividades e instituições, ou seja, forma sujeitos e práticas. São esses valores, circunscritos nesse funcionamento social, que nos constituem, e nos permitem pensar, representar e perceber; e, por sermos formados dentro dessa bacia semântica, dessa episteme, julgamo-los naturais. Podemos notar que há uma concordância entre as teorias da virada lingüística com as teorias da subjetividade relacionadas com a teoria do discurso. A SALA DE AULA Fundamentados numa possível Teoria do Discurso, o que podemos dizer da sala de aula é que ali se constitui um lugar que faz ouvir e faz falar. Há a tentativa de se formar sujeitos dentro de determinadas posições, ocupando lugares determinados. É, portanto, um lugar de articulação de verdades, logo, um lugar de poder/saber e, por isso mesmo, um lugar de resistências. No entanto, mesmo que seja um lugar em que uma autoridade seja responsabilizada por uma determinada produção, enquanto produção discursiva e também produção de sujeitos, essa produção será marcada pela heterogeneidade, pela dispersão, pela descontinuidade, pelos conflitos e pela disputa. Não se pode dizer que exista também uma autoridade em sala de aula, dando a essa autoridade um sentido unitário, ou seja, que essa autoridade seja identificada com um “alguém”, “uma pessoa”, uma entidade autônoma investida de um poder ou de um saber que se pretenda reproduzir. O lugar do professor é um lugar atravessado por inúmeros dizeres, e também por regimes administrativos, currículos, ementas, disciplinas e por outras práticas institucionais como: grades horárias, calendários, objetos decorativos (ou, mais freqüentemente, a ausência desses objetos), pela arquitetura da sala de aula e do prédio escolar, pela limpeza do ambiente e, por fim, tendo em vista a heterogeneidade do discurso e do sujeito, o professor é constituído, ele próprio, pela polifonia, quer dizer, dentro de sua fala há uma multiplicidade de discursos, dentro dos textos que seleciona para trabalhar há, inevitavelmente, outros discursos – há interdiscursividade e intertextualidade. E ainda, para não cair no erro de atribuir tirania aos signos, pontuamos que as palavras são, elas mesmas, múltiplas e dispersam-se na espessura da linguagem, mudam de natureza e, além disso, os discursos são construções ligadas a objetos, a práticas e a estratégias que põem em relação conceitos, objetos e formam saberes dentro de uma regularidade determinada no espaço e no tempo, quer dizer, historicamente, com suas vertentes econômicas, geográficas, lingüísticas, políticas e sociais que permitem seu enunciado dentro de uma função enunciativa. Numa sala de aula, em curso de formação profissional, uma característica essencial é a disputa pelo direito de falar e ser reconhecido como autoridade sobre o dito. Quer dizer, há uma diferença reconhecida entre a fala do senso comum e a fala do meio científico. Ser reconhecido como pertencente à comunidade científica é que vai dar ao aluno o status de bom aluno ou de autoridade em um tema. Mas isso conduz os professores e os alunos a um paradoxo. Poder-se-ia dizer que existe um estranho paradoxo em querer agrupar em uma mesma categoria de saber dominado os conteúdos do conhecimento histórico, meticuloso, erudito, exato e estes saberes locais, singulares, estes saberes das pessoas que são saberes sem senso comum e que foram deixados de lado, quando não foram efetivamente e explicitamente subordinados. Parece-me que, de fato, foi este acoplamento entre o saber sem vida da erudição e o saber desqualificado pela hierarquia dos conhecimentos e das ciências que deu a crítica destes últimos anos a sua força essencial. (Foucault, 1988. p 170) Mas nessa disputa, em termos de construção deconhecimento, o convite que se suscita em sala de aula, dentro de uma visão crítica do discurso, é que nos debrucemos sobre o que nos é apresentado, seja pela mídia, pelos livros ou pela nossa própria experiência e aceitemos pensar que, assim como a nossa história pessoal, o conhecimento que nos é dado e nos parece absolutamente evidente e natural é uma composição passível de ser pensada de outras formas. A psicopatologia dos manuais (se assim podemos chamar o DSM e o CID) é detentora das verdades das descrições e classificações, deposita um referente poderoso sobre o qual o aluno deve ser capaz de esquadrinhar e enquadrar a população, mas a conseqüência disso é que ao classificar as populações, classifica-se a si mesmo e sendo esse o seu próprio referente, fica impedido de pensar uma transformação do conhecimento do mundo e de si. A ausência de outro referencial em sala de aula que seja aceito socialmente e tenha algum peso como conhecimento científico em psicopatologia reforça a idéia de que nesses manuais estejam contidas todas as formas conhecidas de sofrimento humano e que outras serão classificadas na medida em que forem descobertas e descritas. Nossa estratégia de ensino se fia na compreensão de um conhecimento formado na linguagem e pela linguagem, um conhecimento formado como texto e é precisamente porque estamos construindo e reconstruindo textos permanentemente que acreditamos poder desconstruí-los e transformá-los. O convite de Foucault é que, através da investigação dos discursos, nos defrontemos com nossa história ou nosso passado, aceitando pensar de outra forma o agora que nos é tão evidente.Assim, libertando-nos do presente e nos instalamos quase num futuro, numa perspectiva de transformação de nós mesmos. Nós e nossa vida, essa real possibilidade de sermos, quem sabe um dia, obras de arte. (Fischer, 2001). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: Barthes, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 2004. Baudrillard, J. Tela-Total: Mito-ironias do virtual e da imagem. P. Alegre: Sulina, 2002. Birman, Joel. O Mal Estar na Atualidade. São Paulo: Civilização Brasileira, 2005. Bragaglia, Ana Paula. A Sociedade das Imagens e Seus Modelos de Subjetividade. Semiosfera. Revista de Comunicação e Cultura – ECO/UFRJ. Ano 5, n.8. out/2005. Coimbra, Cecília M.R. Mídia e Produção de Modos de Existência.Psicologia: Teoria e Pesquisa. V.17, n.1, Brasília Jan/Abr. 2001. Debord, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Rio de Janeiro, : 1977. Fischer, Rosa Maria Bueno. Foucault e a Analise do Discurso em Educação. Cadernos de Pesquisa. N.114, nov. – 2001 (on line) acesso em 11/05/2005 http://www.scielo.br/scielo.php?script=sciarttext&pid=S0100- 15742001000300009&lng=en&nrm=iso Foucault, Michel. A Ordem do Discurso: aula inaugural no collège de France pronunciada em 02 de dezembro de 1970. Tradução: Laura Fraga de Almeida Santiago. São Paulo: Loyola, 1996. Original de 1971. Foucault, Michel. Arqueologia do Saber. (6ª. Edição) Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. Foucault, Michel. Microfisica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1988. Hacking, Ian. Philosophie et Histoire des Concepts Scientifiques. (online) Résumé des Cours: Façonner les gens : 2001-2002. Acesso em 07/09/2005www.College_de_france.fr/media/phi_his/upl51957hackingR01_02. Maffesoli, Michel. Um Desenho Geral da Pós-Modernidade. Líbero- Revista Acadêmica de Pós-Graduação da Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero. Ano III, vol 3, n.5. Primeiro Semestre - 2000. Peters, Michael. Pós-estruturalismo e Filosofia da Diferença: Uma introdução. Tradução: Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. Rorty, Richard. Contingência, Ironia e Solidariedade. Lisboa: Presença, 1994. Rose, Nikolas. Como se deve fazer a história do eu? Revista Educação & Realidade. V.26, n.1, Jan/Jun 2001. Silva, Patrícia R.M.; Barros, C.; Ferreira, J.; Lima, M.C. Além dos muros e dentro da tela: o discurso psi, a mídia e o cotidiano. Revista Psicologia para a América Latina, n.5 :2006. [1] Professor de Psicopatologia da Infância e Adolescência e Psicopatologia na Vida Adulta na Unisal (Universidade Salesiana de São Paulo – Unidade de Ensino: Lorena) Psicólogo. Mestre em Psicopatologia e Psicologia Clinica – ISPA – Lisboa/Pt e Doutorando em Lingüística Aplicada – IEL/Unicamp – Laboratório Discurso e Identidade. E-Mail: c.sathler@uol.com.br
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