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Mary Jane Spink Organizadora PRÁTICAS DISCURSIVAS E PRODUÇÃO DE SENTIDOS NO COTIDIANO Aproximações teóricas e metodológicas Rio de Janeiro 2013 Esta publicação é parte da Biblioteca Virtual de Ciências Humanas do Centro Edelstein de Pesquisas Sociais – www.bvce.org Copyright © 2013, Mary Jane Spink. Copyright © 2013 desta edição on-line: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais Ano da última edição: 2004, Editora Cortez. Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer meio de comunicação para uso comercial sem a permissão escrita dos proprietários dos direitos autorais. A publicação ou partes dela podem ser reproduzidas para propósito não comercial na medida em que a origem da publicação, assim como seus autores, seja reconhecida. ISBN: 978-85-7982-068-7 Centro Edelstein de Pesquisas Sociais www.centroedelstein.org.br Rua Visconde de Pirajá, 330/1205 Ipanema – Rio de Janeiro – RJ CEP: 22410-000. Brasil Contato: bvce@centroedelstein.org.br http://www.bvce.org/ http://www.centroedelstein.org.br/ mailto:bvce@centroedelstein.org.br I SOBRE OS SENTIDOS… Ao contrário do que em geral se crê, sentido e significado nunca foram a mesma coisa, o significado fica-se logo por aí, é directo, literal, explícito, fechado em si mesmo, unívoco, por assim dizer; ao passo que o sentido não é capaz de permanecer quieto, fervilha de sentidos segundos, terceiros e quartos, de direcções irradiantes que se vão dividindo e subdividindo em ramos e ramilhos, até se perderem de vista, o sentido de cada palavra parece-se com uma estrela quando se põe a projectar marés vivas pelo espaço fora, ventos cósmicos, perturbações magnéticas, aflições. José Saramago Todos os nomes II SUMÁRIO APRESENTAÇÃO .....................................................................................IV CAPÍTULO I Práticas Discursivas e Produção de Sentido: Mary Jane P. Spink e Rose Mary Frezza ............................................ 1 CAPÍTULO II Produção de Sentido no Cotidiano: Mary Jane P. Spink e Benedito Medrado.......................................... 22 CAPÍTULO III A Pesquisa como Prática Discursiva: Mary Jane P. Spink e Vera Mincoff Menegon ................................... 42 CAPÍTULO IV Rigor e Visibilidade: Mary Jane P. Spink e Helena Lima .................................................. 71 CAPÍTULO V Análise de Documentos de Domínio Público Peter Spink .................................................................................... 100 CAPÍTULO VI Garimpando Sentidos em Bases de Dados Lia Yara Lima Mirim ..................................................................... 127 CAPÍTULO VII Entrevista: uma Prática Discursiva Odette de Godoy Pinheiro .............................................................. 156 CAPÍTULO VIII Por Que Jogar Conversa Fora? Vera Mincoff Menegon .................................................................. 188 III CAPÍTULO IX Textos em Cena: Benedito Medrado ......................................................................... 215 CAPÍTULO X Imagens em Diálogo: Carlos André F. Passarelli ............................................................. 242 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................... 252 AUTORES .............................................................................................. 263 IV APRESENTAÇÃO Esta coletânea é fruto de uma longa trajetória. De empreitada típica dos fazeres intelectuais, pautada pela interface entre leituras e pesquisas e tornada visível em texto e fala, assumiu, progressivamente, um caráter coletivo. Não se trata de uma proposta coletiva em sua origem, mas de um coletivismo resultante do próprio desenvolvimento teórico. Pensar, afinal, é uma prática social e como tal, perpassada por dialogia. Em retrospecto, seria possível propor que o caráter coletivo desta obra definiu-se a partir de várias etapas. Primeiramente, é claro, uma forma específica de pesquisar em Psicologia Social foi se definindo para mim a partir de leituras e de pesquisas. Não por acaso, esses interesses tinham na Saúde Pública o seu foco. Não por acaso, portanto, a perspectiva coletiva se fazia presente. Mas para que as ideias extrapolassem esse âmbito mais intimista foi preciso que fizessem sentido também para outros. Esses outros foram inicialmente os vários orientandos de Mestrado e Doutorado para quem as ideias encontravam ecos. Esses eram ainda fóruns acanhados: diálogos travados em momentos de orientação; leituras compartilhadas – ideias testadas, quando muito, nos encontros no Núcleo de Pesquisa em Psicologia Social e Saúde, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Emergiu dessas discussões a demanda de uma apresentação mais sistemática dessas ideias, gerando, a partir de 1996, as propostas de seminários avançados e as inúmeras participações em congressos, já em formas coletivas: mesas, papers e painéis em coautoria. Ampliavam-se as oportunidades para levar as ideias a passear e fazê-las conversar com outros autores, outros referenciais. Coletivizava-se paulatinamente a proposta através da disponibilidade de falar sobre e de escutar as dúvidas, as críticas, os encontros e desencontros. Sendo muitos os colaboradores, expandia-se a proposta. Mas crescia também a dificuldade de socializá-la. Eram poucos os textos escritos por V nós. As reflexões estavam confinadas às teses e dissertações – sempre de difícil circulação – ou às apresentações orais em congressos – de circulação ainda mais difícil. Tornava-se urgente, assim, uma apresentação mais sistemática das reflexões que fazíamos; surgiu dessa premência a proposta de elaboração de uma coletânea de textos que refletissem o que propúnhamos. Não um projeto acabado pois eles nunca o são. Mas como uma oportunidade para ampliar o debate. Sendo muitos os autores e novas as ideias, a própria elaboração do livro suscitou um rico debate. Não só entre os autores; muitas outras pessoas contribuíram, às vezes sem nem ao menos terem consciência da imensa contribuição que fizeram. Por exemplo, Pedrinho Guareschi, em seminário recente,1 inadvertidamente forneceu um conceito que se tornou central para nossos esforços de desfamiliarização das perspectivas essencialistas. Referia- se ele à sociabilidade intrínseca do conceito de pessoa, elaborado no âmbito da Teologia, fornecendo uma pista valiosa para redefinir subjetividade (e o conceito de indivíduo aí abrigado) a partir da perspectiva construcionista. Mesmo sem compartilhar dos pressupostos que embasam nossa proposta, Pedrinho é uma voz que se faz presente neste livro. Também Rogério Costa, professor da PUC-SP cujas virtudes filosóficas tantas vezes nos iluminaram, teve um papel ativo para além do que ele possa estar ciente. Os debates, aí sim propiciando contribuições deliberadas, travaram-se em dois momentos. No início desse ano fomos convidados para discutir nossas ideias no 4 o Encontro Científico do Centro de Investigação Sobre Desenvolvimento e Educação Infantil – CINDEDI. 2 Foi uma experiência muito rica. Não se tratava de fazer uma palestra, ou um seminário, mas de fornecer alguns textos por nós considerados básicos que foram lidos e discutidos anteriormente pelo grupo. Travou-se nesse contexto um rico debate visando problematizar conceitos e esclarecer dúvidas. Foi uma primeira oportunidade de testagem de conceitos e do inter-relacionamento 1 Simpósio Internacional sobre Representações Sociais – Questões Epistemológicas; Natal, Rio Grande do Norte, 22 a 25 de novembro de 1998. 2 Realizadono período de 2 a 5 de fevereiro de 1999 na FFCL da USP em Ribeirão Preto. VI desses em um ambiente receptivo e disposto a dialogar com o referencial em desenvolvimento. Foram muitas as pessoas presentes e muitas as contribuições; impossível, portanto, dar nomes às muitas vozes que se fizeram ouvir. Mas impossível também deixar de mencionar duas colegas – Maria Clotilde Rossetti Ferreira e Ana Maria Almeida Carvalho – pelo carinho com que acolheram nossos posicionamentos teóricos; de mencionar o nome de Carmem Craidy, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, pela importante sugestão de leitura de um texto de Fernand Braudel; de agradecer a Ana Paula Soares da Silva e os membros do Grupo de Trabalho de Entrevista, que leram nossos textos com tanta atenção e conduziram o debate com tanta propriedade. Um segundo momento de debate ocorreu já na fase de elaboração dos capítulos desta coletânea. Tendo em vista a riqueza da experiência junto ao CINDEDI, achamos que seria interessante apresentar esses capítulos ao Núcleo de Pesquisa em Psicologia Social e Saúde de modo a usufruir das experiências que os membros do Núcleo já tinham no manuseio dos conceitos-chave que serão aqui discutidos. Como participam do Núcleo, direta ou indiretamente, alunos e pesquisadores de outras instituições, comunicamos a eles essa proposta. Ficamos encantados com a receptividade. Muitos compareceram às reuniões do Núcleo especificamente para a discussão dos quatro capítulos iniciais. Muitos não puderam comparecer, mas se fizeram ouvir enviando seus comentários por correio. Foram discussões preciosas. Uma experiência inesquecível de trocas pautadas pelo respeito mútuo – até mesmo quando os pressupostos não podiam ser compartilhados. Agradecemos muito especialmente as contribuições dos colegas que enfrentaram algumas horas de estrada para estarem presentes nessas discussões: Marisa Japur, professora da FFCL da USP de Ribeirão Preto; Ana Paula Silva, doutoranda; Emerson Fernando Rasera (o Mera), mestrando nessa mesma Instituição; e Daniel Gonzalo Eslava, doutorando na Faculdade de Enfermagem da USP de Ribeirão Preto. Reconhecemos também as contribuições de colegas da Faculdade de Saúde Pública da USP: Oswaldo VII Tanaka, professor do Departamento de Saúde Materno Infantil; Sônia Andrade e Cristina Melo, doutorandas nesse mesmo Departamento. E, ainda, os alunos do Mestrado e Doutorado da PUC-SP, membros atuais – ou futuros – do Núcleo. Agradecemos ainda os comentários de colegas que se fizeram presentes por vias eletrônicas, como Jacqueline Machado Brigagão, que da lonjura do Kentucky enviou tantas contribuições preciosas; e Marcos Reigota, que em suas perambulações globais encontrou tempo para nos enviar por correio (nada eletrônico) suas ponderações. Restou-nos, assim, o problema da autoria. O que vem a ser autoria quando tantas vozes se fazem presentes? Quando fazemos interlocução com tantos autores? Quem somos, o que fizemos? Talvez tudo o que podemos fazer é concordar com Dom Toríbio de Cáceres y Virtudes, personagem do conto de Gabriel Garcia Marquez, Do amor e outros demônios. Conversavam ele e o marquês de Casalduero, quando foram surpreendidos pelas badaladas das cinco. – É horrível – disse o bispo. – cada hora me ressoa nas entranhas como um tremor de terra. A frase surpreendeu o marquês, pois era o mesmo que ele pensara quando soaram as quatro. Ao bispo aquilo pareceu uma coincidência natural. – As ideias não são de ninguém – disse. Com o indicador, desenhou no ar uma série de círculos contínuos, e concluiu: – Andam voando por aí, como os anjos. Quiçá, como herdeiros de Bakhtin, não poderia ser de outra forma!! Mas vivendo em outras épocas, coloca-se, sim, a necessidade de contabilizar esforços. Trata-se de reconhecer as contribuições e o tempo despendido e de aceitar a responsabilidade pelas ideias formuladas no conjunto dos textos desta coletânea. Acatar a natureza coletiva das ideias não elimina a responsabilidade de cada um por fazê-las circular. Assumo eu, portanto, a responsabilidade pela organização desta coletânea. Deixo público meu reconhecimento pelo empenho e investimento de dois dos VIII meus colaboradores mais próximos – Benedito Medrado e Vera Menegon. Agradeço, ainda, a cuidadosa revisão dos textos feita por Teresa Cecília de Oliveira Ramos, Maria Helena de Carvalho e Rita de Cássia Q. Gorgati. De resto, as autorias definem as características do próprio livro. A primeira parte, mais coletiva e foco dos debates travados, compreende quatro capítulos escritos em coautoria. O primeiro, intitulado Práticas discursivas e produção de sentido: a perspectiva da Psicologia Social, foi escrito em coautoria com Rose Mary Frezza e visa fornecer o contexto histórico da perspectiva teórica endossada na coletânea como um todo. Situa a perspectiva construcionista e a forma de trabalhar com linguagem no âmbito da Psicologia Social. O segundo capítulo, Produção de sentido no cotidiano: uma abordagem teórico-metodológica para a análise das práticas discursivas, foi escrito em coautoria com Benedito Medrado e tem por objetivo discutir os pressupostos e definir os conceitos que vêm fornecendo subsídios para a compreensão da produção de sentidos no cotidiano a partir da análise das práticas discursivas. O terceiro capítulo, A pesquisa como prática discursiva: superando os horrores metodológicos, escrito em coautoria com Vera Mincoff Menegon, volta-se à discussão metodológica. Tem como objetivo problematizar o conceito instituído de pesquisa científica e apresentar a posição construcionista, buscando ressignificar, nesse processo, o conceito de rigor. O capítulo quatro, Rigor e visibilidade: a explicitação dos passos da interpretação, escrito em coautoria com Helena Lima, retoma a problemática do rigor à luz dos processos de interpretação. Fazendo uma ponte com os capítulos seguintes da coletânea, introduz algumas das técnicas que vêm sendo utilizadas por nós para dar visibilidade ao processo de interpretação. Os capítulos seguintes, fruto de reflexões e pesquisas realizadas pelo grupo, têm, como não poderia deixar de ser, autoria única. Buscam, em seu conjunto, abordar a diversidade de formas de coletar informações para dar subsídios à compreensão dos processos de produção de sentido a partir das práticas discursivas. Constituem por vezes exemplos de uso das técnicas apresentadas no capítulo quatro, sem ser esse entretanto seu objetivo IX explícito. Focalizam as diferentes maneiras em que a construção dialógica do sentido se faz presente no cotidiano. Assim, o capítulo cinco, intitulado Análise de documentos de domínio público, de autoria de Peter Spink, explora as possibilidades de trabalhar os documentos de domínio público (relatórios, arquivos, jornais etc.) como processos sócio-históricos de construção de saberes e fazeres. Chama a atenção para as importantes contribuições que os historiadores podem trazer para a Psicologia Social, seja pela forma de análise e identificação do material ou pelo tratamento que dão à temática do tempo. Mas pontua também a especificidade do tratamento que a Psicologia Social dá a esses documentos visto que eles refletem práticas discursivas que, para além do que está impresso em suas páginas, são parte do processo de construção da esfera pública. O capítulo seis, Garimpando sentidos nas bases de dados, de autoria de Lia Yara Lima Mirim, tem por objetivo discutir a utilização da literatura científica como recurso metodológico em pesquisa. Para isso, inicia com uma discussão sobre a ciência como linguagem social que tem formas peculiares de apresentação e circulação de discursos. Focaliza então a crescente importância das bases de dados como acesso à literatura científica e fornece um exemplo de uso de uma base específica (o Medline)utilizada em pesquisa sobre a construção social do sentido do teste HIV. O capítulo sete, Entrevista: uma prática discursiva, de Odette de Godoy Pinheiro, discute os aspectos teórico-metodológicos relacionados à (inter)ação dos interlocutores na situação de entrevista. Busca ainda exemplificar os procedimentos de análise e interpretação de dados relacionados à entrevista, entendida como prática discursiva, a partir de pesquisa focalizada na entrevista inicial de um Serviço de Saúde Mental da rede básica. O capítulo oito, intitulado Por que jogar conversa fora? Pesquisando no cotidiano, de Vera Mincoff Menegon, propõe que as conversas podem ser algo mais do que um mero hábito corriqueiro do cotidiano. Posiciona assim as conversas como modalidades privilegiadas para o estudo da X produção de sentido. Traz, dessa forma, algumas reflexões sobre as peculiaridades e a importância das conversas nas interações sociais de nosso cotidiano, baseando-se na pesquisa que realizou com conversas cujo assunto em pauta era a menopausa. No capítulo nove, Textos em cena: a mídia como prática discursiva, Benedito Medrado focaliza conceitos e processos que são centrais aos estudos em mídia. Discute a reconfiguração entre as dimensões do público e privado proporcionada pela mídia a partir de seu poder de dar visibilidade aos fenômenos sociais e de construir novas dinâmicas interacionais. De modo a ilustrar alguns processos que caracterizam a produção midiática, apresenta algumas experiências de pesquisa com jornais e comerciais de televisão. O capítulo dez, Imagens em diálogos: filmes que marcaram nossas vidas, de autoria de Carlos André F. Passarelli, busca discutir os pressupostos do processo de recepção de sons e imagens em movimento que constitui o campo de análise de filmes. Para tanto, apresenta os elementos que compõem a linguagem cinematográfica, buscando entendê- los a partir da perspectiva teórica dos estudos de linguagem de Bakhtin. Com base nos conceitos de dialogia, enunciação e gêneros discursivos busca compreender que imagens podem se formar no campo da Psicologia Social a partir das que são projetadas na tela do cinema. São todos eles trabalhos estimulantes. Propostas de análise que buscam entender os fenômenos do cotidiano a partir de um olhar pautado pela dialogia dos processos sociais implícita nas práticas discursivas que permeiam nosso dia-a-dia. São olhares novos. Ou talvez apenas novas configurações de velhos olhares. Mary Jane Paris Spink São Paulo, 15 de junho de 1999 1 CAPÍTULO I PRÁTICAS DISCURSIVAS E PRODUÇÃO DE SENTIDO: A perspectiva da psicologia social Mary Jane P. Spink e Rose Mary Frezza objetivo deste capítulo é fornecer o contexto histórico necessário para a compreensão da proposta teórico-metodológica do estudo da produção de sentido no cotidiano, que será apresentada nos capítulos que compõem esta coletânea. A contextualização a ser feita aqui busca situar, no âmbito da Psicologia Social, o estudo da produção de sentido a partir da análise das práticas discursivas. Busca, ainda, situar a produção de sentido como forma de conhecimento que se afilia à perspectiva construcionista e situar as práticas discursivas dentre as várias correntes voltadas ao estudo da linguagem. Faz-se necessário esclarecer que o objetivo é nos posicionarmos no debate contemporâneo. Não pretendemos, assim, fazer uma análise histórica da Psicologia Social, do construcionismo ou das correntes filosóficas que privilegiam a linguagem. Consideramos necessário, entretanto, esclarecer quais afiliações pautam nossa proposta. Do ponto de vista da Psicologia Social, buscaremos situar brevemente a genealogia da temática produção de sentido, aspecto que será explorado na primeira parte deste capítulo. Concebendo o sentido como uma construção dialógica, buscaremos, na segunda parte do capítulo, explicitar os fundamentos epistemológicos desta proposta a partir de uma breve apresentação da perspectiva construcionista em Psicologia Social. Finalmente, entendendo ser necessário também situar a noção de linguagem que embasa a proposta de trabalho com práticas discursivas, abordaremos essa temática na terceira parte do capítulo. Embora focando o estudo da produção de sentido na Psicologia Social, consideramos que a proposta teórico-metodológica em construção é O 2 necessariamente interdisciplinar. Buscando responder à pergunta: como damos sentido ao mundo em que vivemos?, tornou-se imprescindível estabelecer uma interface com a História e com a Antropologia – como resultado da necessária reflexão sobre o contingente e o universal –, e também com a Filosofia (e mais especificamente com a Epistemologia), a partir da reflexão sobre as formas possíveis de concretizar uma proposta metodológica. Essas interfaces serão expostas e discutidas ao longo dos capítulos seguintes. 1. Psicologia Social e a compreensão do sentido na vida cotidiana A expressão dar sentido ao mundo nem sempre fez parte do projeto da Psicologia Social, ou pelo menos da ortodoxia da disciplina. Falava-se em percepção, em atitudes, em cognição, em interação, e até mesmo na força do grupo em direção à conformidade, uma espécie de tendência central operando socialmente em direção ‘a média. No afã de definir conceitos e mecanismos universais passíveis de demonstração empírica de cunho experimental, o interesse pela compreensão dos sentidos na vida cotidiana era, no mínimo, visto como suspeito. Até os anos setenta, vivia-se o sonho da Psicologia Científica, pensando ciência como um fazer pautado pela demonstração e generalização dos resultados. Ernest Hilgard, 1 em influente obra publicada nos anos cinquenta, reiterava o discurso corrente na época, afirmando que a Psicologia, tal como outras ciências, busca compreender, predizer e controlar o comportamento de homens e outros animais. Para concretizar o projeto científico, apoiava- se sobretudo no método, traduzido em sua prática, a partir da hegemonia do método científico: “... um procedimento regular, explícito e passível de ser repetido para conseguir-se alguma coisa”, na definição fornecida por Mario 1 Hilgard, E. (1953), Introduction to Psychology. London: Methuen. 3 Bunge. 2 Emerge, desse contexto, a influente vertente da Psicologia Experimental 3 com suas ressonâncias na Psicologia Social Experimental. 4 Com raras exceções, falava-se pouco em bases filosóficas. 5 É isso é o que aponta Rom Harré, 6 em recente reavaliação da Psicologia Social contemporânea, quando afirma, de forma maliciosa, que os psicólogos são avessos à metafísica, visto que a ciência moderna define-se sobretudo pela contraposição à metafísica. Harré, ao usar o termo metafísica, faz um jogo de palavras; emprega-o no sentido de “reflexão crítica sobre a natureza do ‘mundo’ a ser investigado”. Diz ele: ao contrário dos físicos, poucos psicólogos, com exceção de figuras notáveis como Jerome Bruner (...), Michael Billig (...) e John Shotter (...), engajam-se em investigações filosóficas de sua prática ou no exame crítico das bases metafísicas implícitas de suas teorias (1993:24). Eram essas as forças hegemônicas que empurravam os psicólogos sociais para o laboratório, abandonando as raízes mais sociais dos fundadores da disciplina (entre eles George Mead e Kurt Lewin) e fortalecendo a perspectiva individualista em Psicologia Social. 7 O estudo das atitudes é um excelente exemplo desse movimento de progressiva individualização dos conceitos centrais da disciplina. Exploradas inicialmente por sociólogos e psicólogos, na tradição inaugurada em 1918 2 Bunge, M. (1980), Epistemologia. São Paulo: T.A. Queiroz, p. 19. 3 Veja-se, por exemplo: Woodworth, R. & Schlosberg,H. (1938). Experimental Psychology. London: Methuen (revisado em 1954); Osgood, C. (1953). Method and Theory in Experimental Psychology. New York: Oxford University Press (já na sétima edição em 1962). 4 Em livro publicado em 1966, Robert Zajonc afirmava: “A Psicologia Social não é um ‘tipo’ ou uma ‘escola’ da Psicologia. É decididamente um ramo da Psicologia, e reconhece integralmente as leis da Psicologia Geral e Experimental”. Zajonc, R. (1966). Social Psychology: an Experimental Approach. Califórnia: Wadsworth, p. 2. 5 Por exemplo, Piaget, J. (1970). L'Épistémologie Génétique. Paris: Presses Universitaires de France (traduzido para o português pela Editora Vozes). 6 Psicólogo e filósofo que contribuiu para as obras iniciais de psicologia crítica. 7 A esse respeito, ver Farr, R. (1996). The Roots of Modern Social Psychology. Oxford: Blackwell (traduzido para o português pela Editora Vozes, 1998). 4 pelo estudo de William Thomas e Florian Znaniecki 8 sobre camponeses poloneses emigrados para os Estados Unidos, passaram primeiramente por uma purgação nominal, deixando de ser denominadas de atitudes sociais para adotar apenas a qualificação de atitudes. 9 Passaram, a seguir, a ser estudadas preferencialmente por meio de escalas e situações experimentais em laboratório, abandonando, em larga medida, os estudos de campo. No final dos anos cinquenta e na década de sessenta, esboçava-se uma reação ao paradigma dominante de fazer ciência em Psicologia Social, impulsionada inicialmente em duas direções: a valorização da observação dos comportamentos em situações naturais e o estudo de comportamentos em seu ambiente natural. A valorização da observação minuciosa dos comportamentos pode ser exemplificada com o fortalecimento do ensino da Etologia nos cursos de graduação 10 e com as pesquisas sobre comportamento infantil da Psicologia do Desenvolvimento. 11 Já a perspectiva naturalista do estudo de comportamentos em seu ambiente natural tem na obra de Edwin Willems e Harold Rauch 12 um marco importante. Inevitavelmente, sair do laboratório implicava acatar a visão do outro, o que levou a uma revalorização do estudo dos processos sociais – inspirada, por exemplo, no trabalho de Erving Goffman 13 sobre dramaturgia 8 Thomas, W. & Znaniecki, F. (1958). The Polish Peasant in Europe and America. New York: Dover Publ. 9 Estamos nos referindo, aqui, ao artigo de G. W. Allport sobre atitudes, publicado em C. A. Murchinson (org.) (1935). Handbook of Social Psychology. Worcester, Mass.: Clark University Press. 10 O fortalecimento do ensino de Etologia foi impulsionado pelo trabalho de Lorenz e Tinbergen, entre outros. Por exemplo, Lorenz, K. (1966). On Aggression. London: Methuen. 11 Nesse contexto destaca-se John Bolwby como precursor. Ver Ferreira, M.C.R. (1986). Mães e Crianças – separação e reencontro. São Paulo: Edicon. 12 Willems, E. P. & Rauch, H. L. (1969). Naturalistic Viewpoints in Psychological Research. New York: Holt. 13 Os trabalhos de Goffman marcam uma distinção na produção do conhecimento em Psicologia Social, fazendo parte de uma vertente denominada Psicologia Social Sociológica que se constituiu em contraposição à Psicologia Social Experimental. Dentre eles destacamos: The Presentation of Self in Everyday Life. New York: Doubleday Anchor, 1959 (traduzido para o português pela Editora Vozes), e Stigma. New Jersey, USA: Prentice Hall, 1963 (traduzido pela Editora Zahar) 5 e de Serge Moscovici 14 sobre o conhecimento do senso comum. Tratava-se, antes de mais nada, de uma virada metodológica, que reagia contra a psicologia de laboratório. Obviamente o impulso metodológico tem implicações para a própria definição do que vem a ser o objeto da Psicologia Social. A partir dos anos sessenta, e especialmente na década de setenta, surgiram importantes reflexões críticas focando tanto a naturalização do fenômeno psicológico (que faz perder de vista o fato de que os conceitos e teorias são produtos culturais, socialmente construídos e legitimados) como a despolitização da disciplina (que faz perder de vista o papel da disciplina, entendida como domínio de saber, na legitimação da ordem social). Dentre as obras importantes para esta reflexão destacamos (no contexto Europeu): The Context of Social Psychology, organizado por Joachim Israel e Henri Tajfel e publicado em 1972; Reconstructing Social Psychology, organizado por Nigel Armistead e publicado em 1974; Radical Perspectives in Psychology, de Nick Heather, publicado em 1976. Essas obras congregam muitos dos autores que, na Europa, definiram as bases para a Psicologia Social Crítica, solo em que se ancoraram os teóricos pós-modernos da Psicologia Social. 15 Um pouco mais tarde, com forte influência na América Latina, foram publicadas as obras de Ignacio Martín Baró (Acción e Ideología, 1983; e Sistema, Grupo y Poder, 1989 e o livro Psicologia Social: o Homem em Movimento, organizado por Silvia Lane e Wanderley Codo, publicado pela primeira vez em 1984. São obras que focalizam, tal como os antecessores europeus, a naturalização e despolitização da Psicologia, mas que adquirem uma conotação singular por serem reflexões feitas a partir do ponto de vista dos dominados. É esse, portanto, o contexto histórico em que se apoia a proposta de estudo da produção de sentido por meio das práticas discursivas. Antes de adentrar a caracterização dos posicionamentos construcionistas e suas 14 La Psychanalise – son image et son public. Paris: Presses Universitaires de France, 1961 (traduzido para o português pela Editora Zahar). 15 Ver, por exemplo, Parker, I. (1989). The Crisis in Modern Social Psychology – and how to end it. London: Routledge. 6 implicações para o trabalho com linguagem, é importante frisar que, como em tantos outros domínios de nossa vida, o novo e o velho convivem, lado a lado, na Psicologia Social. Nem toda a Psicologia Social é uma psicologia crítica; e também a psicologia crítica apresenta-se polissêmica: muitos são os seus sentidos. Nas palavras de Harré: A história da psicologia social nos últimos vinte anos tem sido (...) uma mistura desconcertante de desenvolvimentos e desapontamentos. Ocorreram expansões e aplicações vigorosas do “novo paradigma”, mas, paralelamente, em vários lugares, algumas das piores características do antigo programa persistiram praticamente inalteradas (1993:24). Há, segundo Harré, duas fontes de conservadorismo na Psicologia Social: uma filosófica e outra cultural. A primeira, como mencionamos anteriormente, decorre da falta de reflexão filosófica entre os psicólogos. A segunda, admite ele, é mais sutil e seus efeitos mais difíceis de identificar sem cair em afirmações tendenciosas. Trata-se da longa hegemonia norte- americana na psicologia acadêmica, a qual tem exercido uma pressão contínua no sentido da incorporação do individualismo e do cientificismo na Psicologia Social e, como consequência, a resistência às inovações. 2. Construcionismo e Psicologia Social A perspectiva construcionista é resultante de três movimentos: na Filosofia, como uma reação ao representacionismo; na Sociologia do Conhecimento, como uma desconstrução da retórica da verdade, e na Política, como busca de empowerment de grupos socialmente marginalizados. Os três movimentos são, obviamente, interdependentes, refletindo um movimento mais amplo de reconfiguração da visão de mundo própria a nossa época. Sendo impossível fazer uma discussão mais ampla no escopo deste trabalho, iremos focalizar o construcionismo a partir da Psicologia Social e da Sociologia do Conhecimento, apoiando-nos, para isso, em quatro autores: Peter Berger e Thomas Luckmann, Kenneth Gergen e Tomás Ibáñez. 7 Esses autores utilizam,preferencialmente, a expressão construção social para falar da ação, e construcionismo para referir-se à abordagem teórica. Há autores que empregam o termo construtivismo, como por exemplo aqueles vinculados às correntes teóricas da terapia familiar sistêmica, herdeiros de Gregory Bateson e Paul Watzlawick, da Escola de Palo Alto, Califórnia. 16 O uso desse termo pode, entretanto, gerar confusões conceituais, uma vez que ele é empregado também pelos autores vinculados à escola piagetiana para referir-se à centralidade da atividade do sujeito no desenvolvimento cognitivo. O termo construtivismo, dessa forma, dá margem à adesão (ainda que não intencional) a uma perspectiva individualista, mesmo quando o indivíduo é concebido como um ser em sociedade; lembramos que, para o construcionismo, a própria noção de indivíduo é uma construção social. 17 Decorre daí nossa opção por essa nomenclatura. 2.1. O construcionismo na perspectiva da Sociologia do Conhecimento Quando falamos em construcionismo, vem à mente o nome de Peter Berger e Thomas Luckmann, e de seu livro, já um clássico, intitulado A Construção Social da Realidade, publicado originalmente em 1966. A Sociologia do Conhecimento tem ancestrais imponentes: Karl Marx, pela reflexão sobre a relação entre a atividade humana e a consciência, presente sobretudo nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos; Friedrich Nietzsche, pelo anti-idealismo ferrenho da Genealogia da Moral e de A Vontade de Potência, e Wilhem Dilthey, pelo historicismo marcante de sua obra. Mas a disciplina propriamente dita tem como fundadores Max Scheler, filósofo alemão que cunhou o termo Sociologia do Conhecimento na década de vinte, e Karl Mannheim, que lhe deu os contornos clássicos, centrados na relação entre ideologia e verdade. Em seus primórdios, a Sociologia do Conhecimento focalizava questões epistemológicas utilizando, como campo empírico, a história das 16 Ver, por exemplo, Watzlawick, P.; Beavin, J. H. & Jackson, D. D. (1968). Pragmatics of Human Communication. London: Faber and Faber. 17 Vide, por exemplo, a excelente análise de Nicholas Rose sobre o tema. Rose, N. (1992). Individualizing Psychology. Em J. Shotter & K. J. Gergen: Texts of Identity. London: Sage. 8 ideias ou a história das ciências. Berger e Luckmann subvertem essa ordem instituída partindo de uma reorientação da reflexão, centrando-se no conhecimento do homem comum. A crítica que fazem é com relação à compreensão intelectualista do conhecimento que o restringe ao pensamento teórico, pois, nessa dimensão, não se leva em conta o conhecimento que os homens comuns têm da realidade, ou seja, o conhecimento do senso comum. Para esses autores, a importância de focar essa dimensão do conhecimento se justifica à medida que “é precisamente este ‘conhecimento’ que constitui o tecido de significados sem o qual nenhuma sociedade poderia existir” (Berger & Luckmann, 1966/1976:30). Berger e Luckmann são inovadores, mas pertencem a sua época. Falam em homens para referirem-se às pessoas, não reconhecendo os avanços da reflexão feminista; usam e abusam de conceitos problemáticos como realidade e conhecimento, embora os usem entre aspas, e fazem uma distinção, hoje suspeita, entre ideias – domínio dos homens sábios – e senso comum – domínio do povo. Na obra acima referida, os autores partem do pressuposto de que a realidade é socialmente construída e que a Sociologia do Conhecimento deve analisar como isso ocorre. Eles operacionalizam sua proposta a partir da indagação: como é possível que os significados subjetivos se tornem facticidades objetivas? Essa indagação é respondida a partir de três conceitos centrais da proposta teórica dos autores: tipificação, institucionalização e socialização. A partir do conceito de tipificação, eles propõem que a sociedade é um produto humano (ou seja, a realidade é construída socialmente). Essa é uma proposta interacionista, à medida que a base da realidade da vida cotidiana são as interações face a face em que o outro é apreendido a partir de esquemas tipificadores. As heranças de Mead e Goffman são visíveis. Um exemplo de esquemas tipificadores são os preconceitos (de gênero, de raça etc.). Partindo do pressuposto de que a sociedade é uma realidade objetiva, usam o conceito de institucionalização para situar como essa objetividade é 9 construída. Defendem que os esquemas tipificadores, a partir dos quais o outro é apreendido, tornam-se habituais com o decorrer das gerações e, como hábitos, adquirem autonomia e institucionalizam-se. É justamente esse processo de institucionalização que gera a objetividade percebida. Essa objetividade instituída é internalizada por meio de processos de socialização primária e secundária. O pressuposto, aqui, é que o homem é um produto social. Mas não se trata de um modelo estático pois, se a socialização é um instrumento de conservação, os processos de ressocialização e as rupturas decorrentes do enfrentamento do não familiar possibilitam a ressignificação e a transformação social. 2.2. O construcionismo na Psicologia Social Berger e Luckmann, como sociólogos, preocuparam-se sobretudo com os processos de conservação e transformação social: daí focalizarem os processos de tipificação, institucionalização e socialização. Já os autores da Psicologia Social, que são porta-vozes dessa perspectiva no âmbito da disciplina, tendem a focalizar justamente o momento da interação, ou seja, os processos de produção de sentido na vida cotidiana. Kenneth Gergen, um dos primeiros psicólogos sociais a focalizar o conhecimento nessa perspectiva, será nosso principal interlocutor com base em um artigo publicado no American Psychologist em 1985. 18 Nesse artigo, ele define o que vem a ser a investigação construcionista: “A investigação socioconstrucionista preocupa-se sobretudo com a explicação dos processos por meio dos quais as pessoas descrevem, explicam ou dão conta do mundo (incluindo a si mesmos) em que vivem” (Gergen, 1985:266). A investigação, sob essa perspectiva, difere do enfoque tradicional por transferir o locus da explicação dos processos de conhecimento internos à mente para a exterioridade dos processos e estruturas da interação humana. Gergen afirma: 18 Para uma versão mais recente da posição de Gergen, ver: Gergen, K. (1994). Realities and Relationships: soundings in social construction. Cambridge, Mass.: Harvard University Press. 10 Os termos em que o mundo é conhecido são artefatos sociais, produtos de intercâmbios historicamente situados entre pessoas (...). Nesse sentido, convida-se à investigação das bases históricas e culturais das variadas formas de construção de mundo (...). As descrições e explicações sobre o mundo são formas de ação social. Desse modo, estão entremeadas com todas as atividades humanas (1985:267-268). Essa forma de posicionar-se perante o conhecimento implica, por um lado, abdicar da visão representacionista do conhecimento, a qual tem como pressuposto a concepção de mente como espelho da natureza (Rorty, 1979/1994); e, por outro, adotar a concepção de que o conhecimento não é uma coisa que as pessoas possuem em suas cabeças, e sim algo que constroem juntas. A adoção plena da perspectiva construcionista exige, assim, um esforço de desconstrução de noções profundamente arraigadas na nossa cultura. O termo desconstrução é utilizado, aqui, para se referir ao trabalho necessário de reflexão que possibilita uma desfamiliarização com construções conceituais que se transformaram em crenças e, enquanto tais, colocam-se como grandes obstáculos para que outras possam ser construídas. Damos preferência ao termo desfamiliarização porque dificilmente “des-construímos” o quefoi construído. Criamos espaço, sim, para novas construções, mas as anteriores ficam impregnadas nos artefatos da cultura, constituindo o acervo de repertórios interpretativos disponíveis para dar sentido ao mundo. Decorre daí a espiral dos processos de conhecimento, um movimento que permite a convivência de novos e antigos conteúdos (conceitos, teorias) e a ressignificação contínua e inacabada de teorias que já caíram em desuso. Para falar desses esforços de desfamiliarização nos apoiaremos nos escritos de Tomás Ibáñez, psicólogo social da Universidade Autônoma de Barcelona. Utilizaremos mais especificamente um texto publicado em 1994 no qual Ibáñez aborda quatro temáticas que estão no cerne do realismo fundante da retórica da ciência na modernidade: a dualidade sujeito-objeto, a concepção representacionista do conhecimento, a retórica da verdade e o cérebro como instância produtora de conhecimento. 11 A crença na dualidade sujeito-objeto apoia-se em três posturas epistemológicas: o empirismo, o idealismo e o interacionismo. Para o empirismo, o objeto é a determinação última do conhecimento, de modo que o projeto científico consiste em aproximações, cada vez mais precisas, a esse objeto. Já para o idealismo, a possibilidade do conhecimento não se encontra do lado do objeto, mas sim do sujeito. Trata-se das categorias do entendimento, constitutivas da mente humana, as quais são universais e necessárias para o conhecimento. Por fim, para o interacionismo, o conhecimento é produzido na interação entre sujeito e objeto, apresentando, portanto, características de ambos. Essa é, a bem dizer, uma versão fraca de construcionismo. Na perspectiva construcionista, tanto o sujeito como o objeto são construções sócio-históricas que precisam ser problematizadas e desfamiliarizadas. Acatar essa afirmação, entretanto, implica problematizar a noção de realidade. Alguns dos pensadores construcionistas acabam por acatar uma dupla noção de realidade, pautada, por um lado, pelo realismo ontológico (ou seja, a postulação da existência da realidade) e, por outro, pelo construcionismo epistemológico, ou seja, a postulação de que a realidade não existe independente de nosso modo de acessá-la. 19 Isso significa que é o nosso acesso à realidade que institui os objetos que a constituem. Dito de outra forma, só apreendemos os objetos que se nos apresentam a partir de nossas categorias, convenções, práticas, linguagem: enfim, de nossos processos de objetivação. Por sua vez, a crítica da concepção representacionista do conhecimento é uma decorrência da desfamiliarização da dicotomia sujeito- objeto. Se os objetos da natureza são constituídos por nossas categorias, se essas categorias são artefatos humanos, produtos de interações historicamente situadas, então a hegemonia dos sistemas de categorias depende das vicissitudes dos processos sociais e não da validade interna dos constructos. Isso significa dizer que o conhecimento não é uma 19 Por exemplo, Baskar, R. (1997). On the ontological status of ideas. J. for the Theory of Social Behavior 27: 2/3. 12 representação nem uma tradução de algo que pertence à realidade externa. Entretanto, essas construções não são ficções desenfreadas. Não se trata de um vale-tudo, porque elas têm como limite as próprias características dos humanos que as produzem, ou seja, as características sociais e biológicas de pessoas historicamente situadas. A obra Making Sex, de Thomas Laqueur (1990), é exemplar para ilustrar o que acaba de ser dito. Nesse livro, o autor focaliza a mudança de concepção que ocorreu nos últimos séculos sobre a anatomia dos órgãos sexuais femininos. Desde Galeno (130 a 200 a.C.) acreditou-se que os órgãos sexuais femininos eram, anatomicamente, iguais aos masculinos, só que internalizados. Essa concepção anatômica implicava uma série de restrições à vida da mulher, pois os exageros poderiam acarretar na expulsão desses órgãos e na consequente mudança de sexo. Com o advento da anatomia e com a dissecação sistemática de cadáveres, as evidências acabaram por mostrar que essa concepção era infundada. Daí, então, outro modelo interpretativo tornou-se possível. No entanto, apesar das evidências anatômicas, foi preciso ainda quase um século para a construção de uma nova concepção. A antiga desfez-se, perdendo sua coerência interna; entretanto, muitos de seus elementos ainda hoje estão presentes, reconfigurados numa teoria de gênero. Basta pensar no poder organizador da dualidade ativo-passivo. A desfamiliarização da objetividade implícita na retórica da verdade baseia-se na crítica da concepção de verdade como conhecimento absoluto. Trata-se, aqui, de perceber que não há uma verdade absoluta. A verdade é a verdade de nossas convenções, embora, nem por isso, menos impositiva. Segundo Ibáñez, se os critérios de verdade são estabelecidos socialmente, “não há portanto nada que seja verdade no sentido estrito da palavra” (1994:45). No entanto, Ibáñez não propõe que vivamos num mundo sem verdades; sugere apenas que elas são sempre específicas e construídas a partir de convenções pautadas por critérios de coerência, utilidade, inteligibilidade, moralidade, enfim, de adequação às finalidades que designamos coletivamente como relevantes. É importante observar que essa mudança de perspectiva sobre a verdade não significa que possamos abrir mão dela, 13 incondicionalmente, no sentido de que não existem diferenças entre enunciados verdadeiros e falsos ou de que alguém pode estabelecer o que é verdadeiro, de livre e espontânea vontade. O que a postura construcionista reivindica é a necessidade de remeter a verdade à esfera da ética; pontuar sua importância não como verdade em si, mas como relativa a nós mesmos. A concepção do cérebro como a instância produtora do conhecimento parte da constatação óbvia de que não podemos pensar se não possuímos um cérebro e de que o pensamento fica prejudicado quando lesionamos determinadas partes do cérebro. Com base nessas constatações, afirma-se, frequentemente, que os mecanismos do pensamento estão situados apenas na complexa estrutura de neurônios. Ibáñez procura mostrar que, embora o cérebro constitua uma condição de possibilidade para o pensamento, essa não é a única condição. O conhecimento é contingente, também, às ferramentas disponíveis – como, por exemplo, a própria estrutura linguística –, as quais são produções sociais. Entretanto, seria uma redução dizer que o pensamento é produto apenas das práticas sociais. Para Ibáñez, o mais correto seria dizer que o pensamento tem sua condição na interface entre cérebro e sociedade, “e, portanto, não numa substância, mas num processo” (1994:47). Consequentemente, se todo o corpo social se constitui a partir dos organismos que lhe dão sustento, sendo esse o nível que cabe às ciências biológicas (por exemplo, o estudo do cérebro), o pensamento, por se constituir na interface cérebro-social, deve se situar no nível das ciências sociais. Para entender a linha de argumentação utilizada por Ibáñez, basta pensar no impacto das tecnologias da inteligência – a escrita, a imprensa, a microinformática, entre outras. Entender o pensamento e o conhecimento como fenômenos intrinsecamente sociais possibilita superar três premissas que impedem uma adesão plena ao construcionismo: 1) o internalismo, que situa os processos cognitivos dentro da cabeça e reduz a explicação aos processos neurológicos; 2) o essencialismo, que faz da cognição um objeto natural, e 3) o universalismo, que faz da nossa forma atual de pensar a forma canônica de pensamento. 14 Os antipodianos, seres ficcionais que habitam um planeta em outra galáxia, utilizados por Richard Rorty (1979/1994) para desnaturalizar a perspectiva da mente como espelhoda natureza, constituem bons exemplos da possibilidade de outras formas de pensamento. Muito semelhantes a nós, eles diferiam num aspecto fundamental: não sabiam que tinham mentes, nem o que significavam os estados mentais. Como as disciplinas mais avançadas eram a neurologia e a bioquímica, grande parte da conversação entre as pessoas referia-se ao estado de seus nervos: diziam, “Isso faz o meu feixe neurônico G-14 estremecer”, mas não tinham noções como “sentir-se maravilhosamente bem”. Rorty imagina, então, a chegada de uma expedição vinda da Terra, trazendo consigo alguns filósofos, e a polêmica que se estabeleceria com a tentativa de traduzir os modos de apreensão antipodianos para os terráqueos. A possibilidade de ruptura com o habitual, de estranhamento, é, pois, o passo primeiro para a desfamiliarização de noções que foram naturalizadas. 2.3. Objeções ao construcionismo Como toda proposta que se contrapõe ao que nos parece óbvio, natural e legítimo, a abordagem construcionista do conhecimento tende a ser ou absolutamente ignorada ou violentamente contestada. A contestação tem como principais alvos o relativismo e o reducionismo linguístico. A crítica endereçada ao relativismo associado ao construcionismo pauta-se numa definição específica do termo a partir da qual toda e qualquer crença sobre um dado tópico é igualmente aceitável. Crítica semelhante é endereçada ao pragmatismo, perspectiva filosófica intrinsecamente associada ao construcionismo. Richard Rorty (1996) comenta: “Os filósofos que são chamados de ‘relativistas’ são os que afirmam que as razões para a escolha entre tais opiniões [referindo-se a opiniões incompatíveis] são menos pautadas por algoritmos do que se pensava” (Rorty, 1996:166). A querela, diz ele, não é entre pessoas que acham que um ponto de vista é tão bom quanto qualquer outro e os que não pensam assim. A querela é “entre aqueles que pensam que nossa cultura, 15 nossos objetivos (purpose) e instituições não podem ser sustentados a não ser conversacionalmente, e as pessoas que ainda almejam outros tipos de suporte” (Rorty, 1996:167). Trata-se, em suma, da querela entre os que almejam atingir as essências, os princípios transcendentais – herdeiros de Platão, ressignificado por Kant – e os que enfatizam a conversação como princípio básico da liberdade – herdeiros da dialética, 20 portanto. Sendo uma vertente do historicismo – de Hegel, reinterpretado por Dilthey –, o construcionismo incorpora a noção de que os critérios e conceitos que utilizamos para descrever, explicar, escolher entre as opções que se apresentam são construções humanas, produtos de nossas convenções, práticas e peculiaridades. Como construções históricas e culturais, elas não podem, por princípio, ser invariantes. Entretanto, esse relativismo histórico e cultural só se torna claro numa perspectiva de análise de “tempo longo”. No cotidiano de nossas vidas, somos, de fato, produtos de nossa época e não escapamos das convenções, das ordens morais e das estruturas de legitimação. A pesquisa construcionista é, portanto, um convite a examinar essas convenções e entendê-las como regras socialmente construídas e historicamente localizadas. É um convite a aguçar a nossa imaginação e a participar ativamente dos processos de transformação social. Impõe-se, em contrapartida, a necessidade de explicitação de nossas posições: não a escolha arbitrária entre opções tidas como equivalentes, mas a opção refletida a partir de nossos posicionamentos políticos e éticos. Quanto ao reducionismo linguístico, não há dúvida de que, para o construcionismo, algo adquire o estatuto de objeto a partir do processo de construção linguístico-conceitual. Isso não quer dizer, entretanto, que todos os fenômenos se reduzam à linguagem; que esse algo que adquire estatuto de objeto a partir da linguagem seja de natureza linguística. Quer dizer, apenas, que o construcionismo reconhece a centralidade da linguagem nos processos de objetivação que constituem a base da sociedade de humanos. Lembramos, ainda, que a centralidade da linguagem no pensamento não é 20 Tomado, aqui, no sentido de “arte da conversação”, conforme o termo grego. 16 absolutamente um privilégio do construcionismo. Outras correntes focalizaram os processos linguísticos: por exemplo, Vygotsky, 21 importante precursor de uma perspectiva que dá à linguagem papel central no desenvolvimento cognitivo e que, sobretudo, conceitua a linguagem numa perspectiva social. O próximo tópico busca, assim, situar a perspectiva linguística com a qual nos propomos a trabalhar. 3. A linguagem como prática social A linguagem tornou-se um tópico moderno e, como tal, passou a ser moda falar na virada linguística e citar Wittgenstein ad nauseum. Trata-se de um terreno complexo por ser transdisciplinar e contar, portanto, com uma multiplicidade de abordagens, cada qual presa a seu sistema de referência teórico e metodológico. A proposta, aqui, não é dar uma visão de conjunto da linguagem no pensamento contemporâneo, até porque isso requereria um aprofundamento na Filosofia da Linguagem que extrapolaria o escopo deste capítulo. O objetivo é tão-somente situar a perspectiva linguística que vem sendo usada na Psicologia Social de cunho construcionista e, mais particularmente, os pressupostos linguísticos que vêm norteando esse trabalho. Destacaremos, assim, brevemente, duas correntes analíticas: a que focaliza as trocas linguísticas e a que focaliza o discurso. 3.1. O foco nas trocas linguísticas Sem dúvida, o que está em pauta nas análises discursivas da Psicologia Social é a linguagem em uso. Fica mais fácil entender essa perspectiva apoiando-nos em autores que buscam, justamente, situá-la no conjunto dos trabalhos sobre linguagem. Esse é o caso de Jerome Bruner. Em um artigo publicado em 1984, Bruner propõe que, ao estudarmos a linguagem, nossos objetivos associam-se a três possíveis critérios, descritos a seguir. 1) Foco na boa formatação (well formedness): “(...) perguntamos dos enunciados se eles são bem formados no sentido de conformar-se às 21 Vygotsky, L. S. (1989). Pensamento e Linguagem. São Paulo: Martins Fontes. 17 regras gramaticais que governam a linguagem” (Bruner, 1984:969). Trata-se da esfera da sintaxe cuja análise refere-se às relações entre significantes, e que não busca entender o sentido dos enunciados ou o uso que deles é feito. 2) Foco no sentido (meaningfulness): “(...) isso, como sabemos, é uma dupla questão. Um enunciado refere-se a algo no mundo ‘real’, ou em um mundo possível, e tem um sentido. Os dois aspectos juntos constituem o sentido (meaning)” (1984:971). Estamos, aqui, na esfera da semântica, cuja análise refere-se aos significados. Estritamente falando, o debate histórico principal centra-se na gênese primeira, se gramática (sintaxe) ou semântica. O contexto não foi problematizado até o filósofo H. Grice 22 publicar um artigo em 1957 no qual propunha a existência de dois possíveis tipos de sentido: o sentido a-histórico (timeless) e o sentido ocasional, preso ao contexto de uso. Isso nos leva, assim, a um terceiro critério possível para a análise linguística, o performático. 3) Foco na performática: “as regras da pragmática (ou melhor, as máximas da pragmática) têm a ver com quando, em que condições, com que intenção e, obviamente, de que modo devemos falar” (1984:972). Essa é a esfera da pragmática da linguagem, a qual se refere às condições de uso dos enunciados e que tem como figuras fundantes dois filósofos: John Austin, que em 1962 publicou o influente livro How to do Things with Words, e John Searle, que em 1969 publicou o livro Speech Acts: an essay in the philosophy of language.Obviamente, são esses mesmos critérios que pautam as reflexões de outro influente filósofo da linguagem, Wittgenstein, cujo livro Philosophical Investigations foi publicado em 1953. Essa tipologia é útil à medida que possibilita situar as contribuições de filósofos e linguistas, contrapondo, por exemplo, Noam Chomsky, que focaliza a gramática generativa, e Mikhail Bakhtin, que focaliza os aspectos 22 Grice, H. P. (1957). Meaning. Philosophical Review, 66. 18 performáticos subsumidos na perspectiva dialógica que será discutida mais tarde. Entretanto, sendo nosso foco o uso da linguagem, são as tramas e repercussões no âmbito das Ciências Humanas que mais nos interessam e, nesse sentido, há duas correntes importantes, centradas na linguagem em uso, que precisam ser mencionadas: a etnometodologia e a análise de conversação. A etnometodologia é uma abordagem desenvolvida por um sociólogo assaz hermético, de difícil leitura (o que, possivelmente, inibiu a difusão de sua obra). Trata-se de Harold Garfinkel, que publicou seu livro Studies in Ethnomethodology em 1967. A etnometodologia busca analisar a racionalidade do senso comum; ou seja, procura entender como os atores sociais obtêm uma apreensão compartilhada do mundo social. Garfinkel parte do pressuposto de que o compartilhamento cognitivo, do qual depende a interação e a comunicação, resulta de uma multiplicidade de métodos tácitos de formas de raciocinar. Esses métodos são socialmente organizados e compartilhados, e usados incessantemente no cotidiano para dar sentido a objetos e eventos sociais. Garfinkel desenvolveu uma série de métodos para estudar a compreensão compartilhada. Todos têm como cerne entender o poder normativo e o conteúdo moral das regras subjacentes à ação social. Como sair das normas gera raiva e frustração, tende a haver uma demanda pela justificação – o que os etnometodólogos chamam de accountability. Muitos dos métodos usados para entender essas normas consistem, justamente, em observar episódios de quebra das regras. A análise de conversação – uma derivação metodológica da etnometodologia – tem por objetivo entender as estruturas normativas do raciocínio que estão imbricadas na compreensão e produção de formas de interação inteligíveis. 23 A análise visa a descrever os procedimentos usados para sustentar e negociar as relações sociais, tendo como foco a sequência de interações (turn of talk) na conversação, sobretudo as interações que ocorrem, preferencialmente, sem a intervenção do pesquisador. 23 Por exemplo, Atkinson, J. & Heritage, J. (orgs.) (1984). Structures of Social Actions: Studies in Conversational Analysis. Cambridge: Cambridge University Press. 19 No entanto, ambas são abordagens minimalistas que focalizam as minúcias da interação linguística tão excessivamente que perdem de vista o contexto da interação. Em contraste com esse tipo de análise, a segunda corrente aqui considerada – a perspectiva discursiva – procura problematizar o contexto discursivo, sem perder de vista a interação. 3.2. A perspectiva discursiva A linguagem também se tornou foco de interesse para autores voltados à compreensão do poder dos discursos emanados de diversas esferas de saber, cunhando-se aí a expressão análise de discursos. Dois autores servem de referência a essa área. O primeiro deles é Michel Foucault, que exerceu grande influência nos debates e investigações sobre as relações entre saber e poder, especialmente por meio de seus trabalhos de arqueologia, que têm no livro A Arqueologia do Saber, publicado em 1969, uma sistematização dos aspectos conceituais que orientaram suas obras anteriores: História da Loucura, Nascimento da Clínica e As Palavras e as Coisas 24 . O segundo autor, mais hermético, mas também essencial para entender o que vem a ser um esforço de desconstrução do texto, é Jacques Derrida. É dele a afirmação de que “não há nada além do texto”, o que o leva a um embate com as vertentes interpretativas que buscam o sentido do texto privilegiando o que está fora do texto, tomando o contexto como referente do sentido. Embora os autores teóricos mencionados venham de uma tradição pós-estruturalista, o termo análise de discurso tende a ser identificado com o método introduzido por M. Pêcheux – a análise automática do discurso –, que é essencialmente um empreendimento estruturalista. Para Pêcheux, um discurso é determinado pelas condições de produção e por um sistema linguístico. “Desde que se conheçam as condições de produção e o sistema linguístico, pode-se descobrir a estrutura organizadora ou processo de produção, através da análise da superfície semântica e sintática desse discurso (ou conjunto de discursos)” (Bardin, 1979:214). As condições de 24 Publicação original em 1961, 1963 e 1966, respectivamente. 20 produção, para Pêcheux, são definidas pelos lugares ocupados pelo emissor e receptor na estrutura de uma formação social. Essa é uma proposta que se aproxima das configurações atuais da Psicologia Social Discursiva, que tem em Jonathan Potter (Potter & Wetherell, 1987; Potter, 1996a) e Ian Parker (Parker, 1989; Burman & Parker, 1993) seus mais loquazes teóricos. Parker, com certeza, identifica-se com a perspectiva pós-estruturalista, termo que ele emprega para referir-se às diversas abordagens que suspeitam da pretensão de que é possível experienciar um mundo que estaria para além da linguagem. Dentro dessa perspectiva, os pesquisadores buscam, segundo Parker, entender como os objetos (tais como personalidade, atitudes e preconceitos) são construídos no discurso e como são aí construídos os sujeitos – como nós nos experienciamos quando falamos e quando ouvimos outros falarem sobre nós. Potter e colaboradores aproximam-se dessa perspectiva ao incluírem entre os aspectos centrais de sua teoria a noção de repertórios interpretativos – o conjunto de termos, lugares-comuns e descrições usado em construções gramaticais e estilísticas específicas. Mas a ênfase de sua proposta é no uso da linguagem e, para isso, ancoram-se na tradição da etnometodologia. A análise de discurso, segundo Potter e colaboradores, focaliza três temáticas: a função, a construção e a variação. A função refere-se ao discurso tomado como ação, pois é tão produtor de realidade quanto qualquer ação concreta. Esse aspecto de sua teoria tem forte influência de Austin, Searle e Wittgenstein. Já a construção diz respeito ao uso dos recursos linguísticos preexistentes – os repertórios interpretativos –, o que implica seleção e escolha. Por fim, a variação é concebida como consequência da função e da construção, ou seja: se o discurso é construído para a ação, diferentes situações implicariam a construção de diferentes discursos. As práticas discursivas, assim situadas, constituem o foco central de análise na abordagem construcionista. Implicam ações, seleções, escolhas, linguagens, contextos, enfim, uma variedade de produções sociais das quais 21 são expressão. Constituem, dessa forma, um caminho privilegiado para entender a produção de sentido no cotidiano. Para concluir, é importante retomar em seus diversos aspectos o contexto histórico do qual emerge o projeto teórico-metodológico de estudo da produção de sentido a partir das práticas discursivas, pois é esse o solo que lhe dá sustentação e possibilita seus desenvolvimentos. Propor que a produção de sentido é uma força poderosa e inevitável da vida em sociedade e buscar entender como se dá sentido aos eventos do nosso cotidiano fez com que novos horizontes se abrissem e novas perspectivas pudessem ser consideradas. Quando a questão do sentido não pode mais ser respondidasomente no âmbito da língua, da sintaxe e da semântica; quando a produção do conhecimento começa a ser questionada por desconsiderar, justamente, aquilo que é sua base, o senso comum; quando a Psicologia Social começa a fazer sua própria crítica quanto ao que produz e quanto à despolitização daí resultante, tem-se, então, a configuração de um contexto propício para novas buscas: conceitos, métodos, epistemologia, teoria, visão de mundo. É, portanto, no bojo desse movimento que se vem construindo essa nova proposta que denominamos práticas discursivas e produção de sentido. 22 CAPÍTULO II PRODUÇÃO DE SENTIDO NO COTIDIANO: Uma abordagem teórico-metodológica para análise das práticas discursivas Mary Jane P. Spink e Benedito Medrado sentido é uma construção social, um empreendimento coletivo, mais precisamente interativo, por meio do qual as pessoas – na dinâmica das relações sociais historicamente datadas e culturalmente localizadas – constroem os termos a partir dos quais compreendem e lidam com as situações e fenômenos a sua volta. Neste capítulo, pretendemos discutir pressupostos e conceitos que nos têm fornecido subsídios para apreender, por meio da análise das práticas discursivas, a produção de sentido no cotidiano. Em nossa perspectiva, dar sentido ao mundo é uma força poderosa e inevitável na vida em sociedade. Esse pressuposto está na base do desenvolvimento da Psicologia Social, seja na sua vertente sociocognitiva, seja na sua vertente interacional. Quanto à vertente sociocognitiva, basta recordarmos que, em suas raízes, estão as proposições da teoria da Gestalt e sua ênfase na seletividade dos processos perceptivos. 1 Quanto à vertente interacional, lembramos que, nas bases das teorizações sobre a interação humana, estão os processos de comunicação e a atividade de interpretação que os acompanha. 2 Coerentes com a perspectiva psicossocial, propomos, aqui, que a produção de sentido não é uma atividade cognitiva intraindividual, nem 1 Ver, por exemplo: Codol, Jean Paul (1988). Vingt ans de cognition sociale. Bulletin de Psychologie. XLII (390), 472-491. 2 Ver, por exemplo: Blumer, Herbert (1986). Symbolic Interactionism – perspectives and methods. Berkeley, Los Angeles e California: University of California Press. O Megaware Realce Megaware Realce Megaware Realce 23 pura e simples reprodução de modelos predeterminados. Ela é uma prática social, dialógica, que implica a linguagem em uso. A produção de sentido é tomada, portanto, como um fenômeno sociolinguístico – uma vez que o uso da linguagem sustenta as práticas sociais geradoras de sentido – e busca entender tanto as práticas discursivas que atravessam o cotidiano (narrativas, argumentações e conversas, por exemplo), como os repertórios utilizados nessas produções discursivas. Essa abordagem teórico-metodológica está embasada no referencial do construcionismo social, 3 como apresentado no capítulo um, e alia-se aos psicólogos sociais que trabalham, de formas variadas, com práticas discursivas, 4 sendo melhor definida a partir de três dimensões básicas: linguagem, história e pessoa. 1. Linguagem em uso: Introduzindo o conceito de práticas discursivas A concepção de linguagem que adotamos está centrada na linguagem em uso. Mais precisamente, entendemos a linguagem como prática social e, com base em nossa abordagem teórico-metodológica, buscamos trabalhar a interface entre os aspectos performáticos da linguagem 5 e as condições de produção, entendidas tanto como contexto social e interacional, quanto no sentido foucaultiano de construções históricas. Usamos, portanto, terminologia distinta para trabalharmos em diferentes níveis de análise. É necessária, assim, uma distinção entre discurso e práticas discursivas. O discurso, em nossa perspectiva, remete às regularidades linguísticas, ou, para utilizarmos uma expressão de Bronwyn Davies e Rom 3 Autores como Rorty (1979/1994), Gergen (1985) e Ibáñez (1993a) são alguns dos que se identificam com o referencial construcionista e que embasam nossa abordagem. 4 Alguns desses autores(as) são: Moscovici (1961), Potter e Mulkay (1985), Potter e Reicher (1987), Potter e Wetherell (1987), Jodelet (1989), Parker (1989), Davies e Harré (1990), Potter et alli (1990), Billig (1991), Potter e Billig (1992), Shotter (1993), Potter (1996a). 5 Sobre a linguagem e sua dimensão performática, ver capítulo um. Megaware Realce Megaware Realce Megaware Realce Megaware Realce Megaware Realce Megaware Realce Megaware Realce 24 Harré (1990), ao uso institucionalizado da linguagem e de sistemas de sinais de tipo linguístico. Esse processo de institucionalização pode ocorrer tanto no nível macro dos sistemas políticos e disciplinares, como no nível mais restrito de grupos sociais. Diferentes domínios de saber – tais como a Psicologia, a Sociologia, a Antropologia, a História – têm seus discursos oficiais. Diferentes grupos sociais – como uma organização não governamental, um sindicato, um partido – têm seus discursos. Diferentes estruturas de poder têm seus discursos. Sendo institucionalizado, há uma tendência à permanência no tempo, embora o contexto histórico possa mudar radicalmente os discursos: basta atentarmos, por exemplo, para o discurso médico sobre a homossexualidade, ao longo dos anos. Além disso, num mesmo contexto histórico, é possível identificar, como defendem Davies e Harré (1990), discursos que podem competir entre si ou criar versões distintas e incompatíveis acerca de um dado fenômeno social. Assim concebidos, os discursos aproximam-se da noção de linguagens sociais, que, na definição de Mikhail Bakhtin (1929/1995), são os discursos peculiares a um estrato específico da sociedade – uma profissão, um grupo etário etc. –, num determinado contexto, em um determinado momento histórico. Além disso, o contexto – situação, interlocutores presentes ou presentificados, o espaço, o tempo etc. – molda a forma e o estilo ocasional das enunciações, isto é, os speech genres. Segundo Bakhtin (1995), os speech genres ou gêneros de fala, são as formas mais ou menos estáveis de enunciados, que buscam coerência com o contexto, o tempo e o(s) interlocutor(es). Por exemplo, ao se encontrarem, duas pessoas com frequência empregam enunciados típicos, como: 1. Oi, tudo bem? 2. Tudo bem, e você?; ou, num primeiro encontro: 1. Muito prazer! 2. O prazer é todo meu! Num enterro, é comum o enunciado Meus pêsames! E, raríssimas vezes, alguém dirá Meus parabéns!, embora, apesar da baixa probabilidade, isso não seja completamente improvável. Megaware Realce Megaware Realce Megaware Realce Megaware Realce Megaware Realce Megaware Realce Megaware Realce Megaware Realce 25 Assim, é inegável que existem prescrições e regras linguísticas situadas que orientam as práticas cotidianas das pessoas e tendem a manter e reproduzir discursos. Sem elas, a vida em sociedade seria impraticável. Mas, embora o conceito de discurso aponte para uma estrutura de reprodução social – ou seja, a linguagem vista a partir das regularidades –, ele não desconsidera a diversidade e a não regularidade presentes em seu uso diário pelas pessoas. É, antes de tudo, uma questão de foco, de distinção entre o que se elege como figura/fundo. Qualquer fenômeno social pode ser visto à luz das regularidades, como no caso, por exemplo, da Epidemiologia, em relação aos fenômenos do campo da saúde. Entretanto, se procurarmos entender os sentidos que uma doença assume no cotidiano das pessoas, passamos a focalizar a linguagem em uso. O olhar recai sobre a não regularidade e a polissemia (diversidade) das práticas discursivas. É interessante resgatar aqui a metáfora do binóculo. Se olharmosatravés desse instrumento, conseguimos visualizar uma cena composta de tal forma que a especificidade de seus elementos pouco interferem no conjunto, a totalidade aponta para além da soma de suas partes. Vemos, por exemplo, uma densa floresta. Ao invertermos esse mesmo instrumento, passaremos a visualizar não mais a primeira cena, mas uma outra imagem, uma outra cena. Vemos, por exemplo, uma formiga sobre uma pequena folha seca. A formiga estava lá, por certo, desde a primeira observação, porém nosso olhar, no primeiro momento, só nos permitiu nomear a floresta. Por meio desse exercício, é possível perceber que focos diferentes produzem objetos distintos, irredutíveis um ao outro. Não se trata, portanto, de observar a especificidade diante do global, nem de observar o global em detrimento da especificidade. Usualmente, é pela ruptura com o habitual que se torna possível dar visibilidade aos sentidos. É essa, precisamente, uma das estratégias centrais da pesquisa social. Por exemplo, numa entrevista, as perguntas tendem a focalizar um ou mais temas que, para os entrevistados, talvez nunca tenham sido alvo de reflexões, podendo gerar práticas discursivas diversas, não diretamente Megaware Realce Megaware Realce Megaware Realce Megaware Realce Megaware Realce Megaware Realce 26 associadas ao tema originalmente proposto. Estamos, a todo momento, em nossas pesquisas, convidando os participantes à produção de sentido. Discurso, linguagem social ou speech genre são conceitos que focalizam, portanto, o habitual gerado pelos processos de institucionalização. O conceito de práticas discursivas remete, por sua vez, aos momentos de ressignificações, de rupturas, de produção de sentido, ou seja, corresponde aos momentos ativos do uso da linguagem, nos quais convivem tanto a ordem como a diversidade. Podemos definir, assim, práticas discursivas como linguagem em ação, ou seja, as maneiras a partir das quais as pessoas produzem sentidos e se posicionam em relações sociais cotidianas. As práticas discursivas têm como elementos constitutivos: a dinâmica, ou seja, os enunciados orientados por vozes; as formas, que são os speech genres (definidos acima); e os conteúdos, que são os repertórios interpretativos. Os conceitos de enunciados e vozes caminham juntos na abordagem de Bakhtin: ambos descrevem o processo de interanimação dialógica que se processa numa conversação. Em outras palavras, os enunciados de uma pessoa estão sempre em contato com, ou são endereçados a, uma ou mais pessoas e esses se interanimam mutuamente, mesmo quando os diálogos são internos. As vozes compreendem esses interlocutores (pessoas) presentes (ou presentificados) nos diálogos. O enunciado é o ponto de partida para a compreensão da dialogia. Bakhtin (1994b) define os enunciados como expressões (palavras e sentenças) articuladas em ações situadas, que, associados à noção de vozes, adquirem seu caráter social. As vozes compreendem diálogos, negociações que se processam na produção de um enunciado. Elas antecedem os enunciados, fazendo-se neles presentes no momento de sua produção, tendo em vista que o próprio falante é sempre um respondente em maior ou menor grau. Na visão desse autor, é impossível pensar a ideia de um “primeiro locutor a quebrar o silêncio do universo”. Megaware Realce Megaware Realce Megaware Realce Megaware Realce Megaware Realce Megaware Realce Megaware Realce Megaware Realce 27 Na perspectiva bakhtiniana, linguagem é, por definição, uma prática social. A pessoa não existe isoladamente, pois os sentidos são construídos quando duas ou mais vozes se confrontam: quando a voz de um ouvinte (listener) responde à voz de um falante (speaker) (Wertsch, 1991). Entretanto, as vozes às quais um enunciado é dirigido podem estar espacial ou temporalmente distanciadas. Dessa forma, inclusive o pensamento é dialógico: nele habitam falantes e ouvintes que se interanimam mutuamente e orientam a produção de sentidos e enunciados. Se um entrevistado, por exemplo, ao ser indagado sobre um assunto qualquer, diz: “Pois é, eu me lembro da minha infância, quando meu pai…”, nesse momento, num esforço de produzir sentido, ele traz para a dialogia a voz do pai. Pode trazer também a voz da professora, do amigo, da mãe. Todas essas vozes permeiam essa prática discursiva e se fazem nela presentes, com maior ou menor ênfase, dependendo do tema em pauta, do local, de quem pergunta, enfim, do contexto em que são produzidas. A compreensão dos sentidos é sempre um confronto entre inúmeras vozes. Ao mesmo tempo, é preciso entender que a linguagem é ação e produz consequências. 6 Nosso trabalho, como cientistas sociais que analisam práticas discursivas, é exatamente estudar a dimensão performática do uso da linguagem, trabalhando com consequências amplas e nem sempre intencionais. Num movimento constante de argumentação, de exercício retórico (Billig, 1991), quando falamos, estamos invariavelmente realizando ações – acusando, perguntando, justificando etc. –, produzindo um jogo de posicionamentos com nossos interlocutores, tenhamos ou não essa intenção. Esse processo, contudo, não se restringe às produções orais. Um texto escrito, por exemplo, constitui um ato de fala impresso, um elemento de comunicação verbal que provoca discussões ativas: pode ser elogiado, comentado, criticado, pode orientar trabalhos posteriores. Assim, nos dias 6 As práticas discursivas, em seu caráter performático, constituem speech acts ou atos de fala, expressão cunhada pela etnometodologia para se referir à orientação do uso da linguagem para a ação. Megaware Realce Megaware Realce Megaware Realce Megaware Realce Megaware Realce Megaware Realce Megaware Realce Megaware Realce 28 atuais, o rádio, a televisão, os sites da Internet etc. podem também ser considerados atos de fala. Além disso, um enunciado não surge, magicamente, do nada. Ele constitui uma unidade do ato de comunicação, um dos elos de uma corrente de outros enunciados, complexamente organizados. Em outras palavras, ao produzir um enunciado, o falante utiliza um sistema de linguagem e de enunciações preexistente, posicionando-se em relação a ele. O que estamos propondo é que, no cotidiano, o sentido decorre do uso que fazemos dos repertórios interpretativos de que dispomos. Os repertórios interpretativos são, em linhas gerais, as unidades de construção das práticas discursivas – o conjunto de termos, descrições, lugares-comuns e figuras de linguagem – que demarcam o rol de possibilidades de construções discursivas, tendo por parâmetros o contexto em que essas práticas são produzidas e os estilos gramaticais específicos ou speech genres. Jonathan Potter e Margareth Wetherell (1987), baseados nos trabalhos de Gilbert e Mulkay, 7 definem os repertórios interpretativos como dispositivos linguísticos que utilizamos para construir versões das ações, eventos e outros fenômenos que estão a nossa volta. Eles estão presentes em uma variedade de produções linguísticas e atuam como substrato para uma argumentação. Os repertórios interpretativos, na visão desses autores, são componentes fundamentais para o estudo das práticas discursivas, pois é por meio deles que podemos entender tanto a estabilidade como a dinâmica e a variabilidade das produções linguísticas humanas. Em outras palavras, esse conceito é particularmente útil para entendermos a variabilidade usualmente encontrada nas comunicações cotidianas, quando repertórios próprios de discursos diversos são combinados de formas pouco usuais, obedecendo a uma linha de argumentação, mas gerando, frequentemente, contradições. 7 Gilbert, N. e Mulkay, M. (1984). Opening Pandora’s’ Box: a sociological analysis
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