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Documento de Thainá Donatti

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FENOMENOLOGIA E EXISTÊNCIA
Discussão do filme “Tempo de Despertar”, dirigido por Penny Marshall, numa perspectiva fenomenológico-existencial
FENOMENOLOGIA E EXISTÊNCIA
Apresentação do filme
O filme Tempo de Despertar é o relato de pesquisa da prática terapêutica do neurologista e escritor inglês Oliver Sacks (1933-2016), realizada entre os anos 1969 e 1972, no hospital psiquiátrico Mount Carmel (EUA), para doentes crônicos. 
O trabalho foi realizado junto a pacientes pós-encefalíticos, enclausurados há mais de 30 anos, vítimas de uma epidemia de encefalite letárgica (doença do sono), ocorrida pouco depois da Primeira Guerra Mundial.
O Dr. Von Economo, que meio século antes descrevera pela primeira vez a encefalite letárgica, designara os pacientes mais afetados como “vulcões extintos”.
FENOMENOLOGIA E EXISTÊNCIA
Oliver Sacks em suas descrições, relatadas no livro TEMPO DE DESPERTAR (1ª publicação em 1973), mobilizou médicos e cientistas, muitos contrapondo-se aos seus manuscritos, pois evidenciavam os riscos de uma terapia restritiva ao uso de uma droga – a Levodopa – que era cultuada como o milagre da vida para as vítimas do Parkinsonismo. 
 Outros poucos, entre eles, A.R.Luria, dando-lhe decisivo apoio e incentivo para a continuidade da publicação de seus trabalhos. 
FENOMENOLOGIA E EXISTÊNCIA
1a Cena – Médico neurologista recém formado procurando trabalho num hospital psiquiátrico
Objeto de pesquisa na universidade e objeto de pesquisa no cotidiano do hospital.
Dr. Sayer – o que se evidencia do seu modo-de-ser. 
FENOMENOLOGIA E EXISTÊNCIA
2ª Cena - O médico entrando em contato com o cotidiano do hospital. 
O que se evidencia no modo de cuidar dos pacientes?
As pessoas sendo apresentadas como “doença”. 
A identidade dos pacientes é um diagnóstico, um rótulo.
O diagnóstico e prognóstico – a “rotulação”, o pré-estabelecido.
“É um hospital de doentes crônicos, doutor. Não há o que fazer... Chamamos este lugar de jardim. Damos comida e água para eles.” 
 A condição existencial dos pacientes foi reduzida a um aspecto vegetativo. 
O interesse do médico para pesquisas no cotidiano hospitalar.
Ser-no-mundo : Facticidade no cotidiano hospitalar.
O pesquisador assume uma posição mundana, considerando que a fenomenologia
merleau-pontyana é também uma filosofia que recoloca a essência na existência, 
não pensa que se possa compreender o homem e o mundo de outra forma, que não
seja a partir de sua facticidade.
FENOMENOLOGIA E EXISTÊNCIA
3ª Cena – 14 min. O atendimento à paciente Lucy
Dr. Sayer buscando compreender seus pacientes
Atitude investigativa. Atitude de busca de conhecimento, que implica num constante procurar, sabendo que há coisas para se ver e se dizer, “revelando o mistério do mundo e o mistério da razão”. Enfim, “reaprender a ver o mundo”.
Fenomeno-logia
Considera a relação entre a paciente e o objeto. 
Atenta-se ao fenômeno. O termo deriva-se do verbo phainesthai, que significa mostrar-se. 
Phainomenon Indica “trazer à luz do dia”, para o claro, para que se manifeste, para que vigore entre o manifesto ( a “realidade”). Os entes podem se mostrar de diversos modos, inclusive como eles não são, mas parecem ser. 
FENOMENOLOGIA E EXISTÊNCIA
FENOMENO – LOGIA significa literalmente legein ta phainomena “fazer ver a partir dele mesmo o que se mostra tal como ele por si mesmo se mostra” (Heidegger, 1927/2012, p.119, § 7). Por isso fenomenologia refere-se a um como (modo) e não a um o quê (conteúdo-do-objeto).
 
Fenomenologia é um modo de proceder (método) no sentido de tornar discursivamente manifesto aos demais aquilo que se toma como tema da investigação, cuidando para receber do tema a indicação do modo de acessá-lo. 
FENOMENOLOGIA E EXISTÊNCIA
O método fenomenológico – ou seja, a descrição compreensiva dos fenômenos; permite olhar para a realidade mais atentamente.
Abertura à realidade 
 A primeira atitude que convém ao psicólogo ter em seu trabalho é não partir de um pré-conceito, de uma ideia pré-estabelecida. Dadas as constantes surpresas, a riqueza, a plasticidade e a singularidade da experiência humana, é necessário que o psicólogo esteja sempre em uma postura de pergunta frente à realidade que encontra, aberto a aprender algo novo, a encontrar uma nova experiência. Ele deve se portar como um investigador respeitoso diante do grande mistério – a pessoa – que está conhecendo e ser curioso para encontrar a novidade, a aventura que o aguarda. Assim, o psicólogo inicia o seu trabalho interrogando o fenômeno (...), respeita as dúvidas existentes sobre o fenômeno pesquisado e procura mover-se lenta e cuidadosamente de forma que ele possa permitir aos seus sujeitos trazerem à luz o sentido por eles percebido sobre o mesmo.
FENOMENOLOGIA E EXISTÊNCIA
Na pesquisa da psicopatologia da encefalite letárgica, o pesquisador poderá
 buscar a essência desta doença (dentro da tradição fenomenológica
 idealista), que consistirá na descrição e compreensão do que é invariante, ou
 universal nesta patologia. ( abordagem fenomenológica de Jaspers, que em 
1912 inaugura o início da psicopatologia enquanto um campo de estudos 
próprio, com sua proposta de uma Psicopatologia Geral).
Ou poderá buscar compreender a experiência da encefalite letárgica
 com seus significados de múltiplos contornos, isto é, determinados por 
aspectos endógenos, culturais e situacionais,que consiste em compreender o 
significado da experiência vivida enquanto uma experiência mundana. (Moreira, 2004)
FENOMENOLOGIA E EXISTÊNCIA
Experiência vivida do corpo próprio.
De que corpo estamos falando?
 Embora pareça, à primeira vista, estranha esta pergunta, certamente não abordaremos o corpo que aprendemos na escola: cabeça, tronco e membros. Não se trata de uma aula de fisiologia, até porque não é neste corpo que os fenomenólogos irão se deter. Não me refiro à ideia de corpo do latim, “corpus”, ou ainda do alemão “körper”, visto de modo material, em sua natureza física, objética e inanimada.
Vamos para um corpo animado, vivo, dotado de sentimentos e emoções, corpo como fenômeno, do grego “soma” ou do alemão, “leib”.
FENOMENOLOGIA E EXISTÊNCIA
4ª Cena – 28 min. “Dr. Sayer busca conhecer a história de Leonard Lowe “-
A atitude investigativa do médico ressignificada no cotidiano do hospital
O cuidado e o vínculo afetivo mãe-filho possibilitando conhecer o paciente
Dr.Sayer conhece Leonard na perspectiva da mãe.
Leonard ocupou seu tempo lendo. Esta vivência no mundo da literatura está presente? Como saber?
Quando o “objeto” de pesquisa é o ser humano o ato de pesquisar deve contemplar a sua complexidade existencial – método fenomenológico.
A busca do significado da experiência vivida será sempre o fim último da pesquisa fenomenológica.
O diagnóstico deixa de ser um “rótulo”, para buscar compreender o paciente no seu contexto histórico, cultural, social, familiar.
FENOMENOLOGIA E EXISTÊNCIA
5ª Cena – A rotina do trabalho cotidiano no hospital sendo ressignificada.
Oliver Sacks ressignifica o modo de perceber as vítimas da encefalite letárgica, focando seus estudos e preocupações centrais na IDENTIDADE – ou a luta de seus pacientes para manter a identidade, observando-os, ajudando-os e por fim descrevendo-os, numa junção de biologia e biografia, numa Atitude Fenomenológica, que encontramos nos escritos de M.Ponty como:
“ A fenomenologia é uma filosofia que repõe as essências na existência, e não pensa que possa compreender o homem e o mundo de outra maneira senão a partir de sua “facticidade”(...) É a tentativa de uma descrição direta de nossa experiência tal como ela é, sem nenhuma deferência à sua gênese psicológica e às explicações causais (...) Trata-se de descrever, não de explicar nem de analisar (...) A fenomenologia se deixa praticar e reconhecer como maneira ou como estilo; ela existe como movimento... (M.Ponty,1999, pg.1 a 3).
FENOMENOLOGIA E EXISTÊNCIA
6ª cena– Dr. Sayer e Leonard – a explicitação da vivência de Leonard na poesia
A proximidade de Sayer com Leonard possibilita a expressão através da escrita com o tabuleiro.
O vivido de Leonard expresso através da poesia PANTHER de Rainer Maria Rilke, quebrando o pré estabelecido pelo diagnóstico: Não pensam, não sentem, só dormem.
Leonard busca na sua experiência vivida, na sua possibilidade de leitura, o recurso para comunicar-se com o médico, “falando”, expressando a essência da sua Corporeidade, limitada pela doença. 
"Pela ficção, pela poesia, abrem-se novas possibilidades de ser-no-mundo na realidade cotidiana. Ficção e poesia visam ao ser, não mais sob o modo de ser-dado, mas sob a maneira do poder-ser." (Ricoeur 1977, p. 57, In Amatuzzi, 1990).
(...) Eu não estou diante de meu corpo, estou em meu corpo, ou antes sou meu corpo(...) Se ainda se pode falar, na percepção do corpo próprio, de uma interpretação, seria preciso dizer que ele se interpreta a si mesmo(...) Não é ao objeto físico que o corpo pode ser comparado, mas antes à obra de arte.( M.Ponty,1999, pg. 208)
FENOMENOLOGIA E EXISTÊNCIA
A PANTERA
Rainer Maria Rilke
(Trad. José Paulo Paes)
(No Jardin des Plantes, Paris)
Seu olhar, de tanto percorrer as grades,
está fatigado, já nada retém.
É como se existisse uma infinidade
de grades e mundo nenhum mais além.
O seu passo elástico e macio, dentro
do círculo menor, a cada volta urde
como que uma dança de força: no centro
delas, uma vontade maior se aturde.
Certas vezes, a cortina das pupilas
ergue-se em silêncio. – Uma imagem então
penetra, a calma dos membros tensos trilha –
e se apaga quando chega ao coração.
FENOMENOLOGIA E EXISTÊNCIA
 “Não foi a levodopa nem o que ela oferecia o que tanto me empolgou quando, jovem médico saído da residência havia um ano, cheguei a Mount Carmel. O que me instigou na época foi o espetáculo de uma doença que nunca era a mesma em dois pacientes ... Destacando-se mais do que o distúrbio e seus efeitos diretos, estavam todas as reações dos pacientes à sua doença – por isso, o que se tinha pela frente, o que se estudava, não era apenas a doença ou a fisiologia, mas as pessoas, sua luta para adaptar-se e sobreviver ... Desenvolveu-se uma nova preocupação, um novo vínculo: o do comprometimento com os pacientes, com os indivíduos sobre meus cuidados. Por meio deles eu exploraria o que é ser humano, permanecer humano em face de adversidades e ameaças inimagináveis. Assim, embora monitorando continuamente sua natureza orgânica – suas complexas e sempre mutáveis fisiopatologias e biologias -, meu estudo e preocupação centrais passaram a ser a identidade”. (SACKS, 1997, p. 26).
FENOMENOLOGIA E EXISTÊNCIA
7ª cena – A Pesquisa com a Levodopa.
Pergunta que o Dr. Sayer está buscando responder com a pesquisa: A droga Levodopa funciona para pacientes com encefalite letárgica da mesma forma que para os pacientes com Parkinson?
O foco da pesquisa está na reação do corpo organismo na presença da Levodopa.
A Levodopa mostrando-se impotente no controle do homem ... mas a experiência continua...
O controle do corpo pela droga é impossível. 
 
O corpo é mais que um organismo vivo ... É existência.
O que foi esquecido na pesquisa com os doentes?
O espírito humano é mais forte que a droga Levodopa.
Houve o esquecimento do que precisa ser alimentado: o trabalho, o lazer, a família. Enfim, as coisas simples.
FENOMENOLOGIA E EXISTÊNCIA
Foi esquecido o corpo animado, vivo, dotado de sentimentos e emoções, corpo como fenômeno, do grego “soma” ou do alemão, “leib”.
O fenomenólogo, ao exercitar sua fenomenologia do cotidiano, vai descrever o vivido inclusive antes de ser tematizado, refletido, restaurando o que foi separado pelo pensamento, buscando a qualidade da experiência com o outro, no mundo.
Pensar o corpo em si, separado, isolado do mundo, é outra abstração da qual pouco resulta. Toda a nossa apreensão do mundo é dada pelos sentidos do corpo que somos. É justamente porque somos assim que aprendemos de maneira especificamente humana. Ex. Leonard ; Luci...
 Cada um dos pacientes traz a sua história (historicidade), que diz do presente vivido, de como estão significando a experiência vivida deflagrada com a introdução da Levodopa, alterando as condições que estão vivendo. Qual o sentido da vida? A angústia emerge...
FENOMENOLOGIA E EXISTÊNCIA
“O sentido não se reduz ao que é dito, mas é a fonte que nos faz dizer. Podemos metaforicamente dizer que o sentido precede e acompanha o conhecimento na significação como o ar precede e acompanha a respiração”. (RUI JOSGRILBERG, 2016)
M.Ponty:
“Corpo vivido que se revela como berço de experiência do vivido. Ele é o unificador e o unificado; ele mostra a roupa dos dois lados, o direito e o avesso ao mesmo tempo; ele é a síntese do que vivo e não só a representação do que penso.”
Eu sou meu corpo e não eu tenho um corpo...
M.Ponty citando A . de Saint-Exupéry: 
“O homem é somente um nó de relações, as relações só contam para o homem.”
 
FENOMENOLOGIA E EXISTÊNCIA
O corpo é mais que um organismo vivo ... É existência.
O que é Existência?
 
De tudo, ao meu amor serei atento 
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.
 
Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor, hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.
 
E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama
 
Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.
 
 Soneto da Fidelidade
 Vinícius de Moraes
 
FENOMENOLOGIA E EXISTÊNCIA
 ... “É sendo sem restrições nem reservas aquilo que sou presentemente 
que tenho oportunidade de progredir, é vivendo meu tempo que posso
compreender os outros tempos, é me entranhando no presente e no mundo,
 
assumindo resolutamente aquilo que sou por acaso, querendo aquilo que 
quero, fazendo aquilo que quero que posso ir além.” M.Ponty, 1999, pg. 611)
Referências
HEIDEGGER, M. (2012)Ser e Tempo (F. Castilho, trad. Campinas, SP Editora da Unicamp/Petrópolis, RJ, Vozes, [1927].
MOREIRA, V. O Método Fenomenológico de Merleau-Ponty como Ferramenta
Crítica na Pesquisa em Psicopatologia. Psicologia: Reflexão e Crítica, 2004, 
17(3), pp.447-456. Disponível em
http://www.scielo.br/pdf/prc/v17n3/a16v17n3.pdf
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
MICHELAZZO, J.C. Perspectivas de um novo paradigma em Heidegger:
superar a metafísica, resgatar a terra e salvaguardar o homem. In CASTRO, 
D.S. et al (orgs.). Existência e Saúde, SBC: UMESP, 2002, p. 131-150.
SACKS, O. Tempo de Despertar. São Paulo: Cia das Letras, 1997.

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