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Conselho Editorial Internacional Presidente: Prof. Dr. Rodrigo Horochovski (UFPR – Brasil) Profª. Dra. Anita Leocadia Prestes (ILCP – Brasil) Profª. Dra. Claudia Maria Elisa Romero Vivas (UN – Colômbia) Profª. Dra. Fabiana Queiroz (Ufl a – Brasil) Profª. Dra. Hsin-Ying Li (NTU – China) Prof. Dr. Ingo Wolfgang Sarlet (PUC/RS – Brasil) Prof. Dr. José Antonio González Lavaut (UH – Cuba) Prof. Dr. José Eduardo Souza de Miranda (UniMB – Brasil) Profª. Dra. Marilia Murata (UFPR – Brasil) Prof. Dr. Milton Luiz Horn Vieira (Ufsc – Brasil) Prof. Dr. Ruben Sílvio Varela Santos Martins (UÉ – Portugal) Comitê Científi co da área Ciências da Saúde Presidente: Prof. Dr. Daniel Canavese (UFRGS – Saúde Coletiva) Prof. Dr. Almir de Oliveira Ferreira (Uenp – Educação Física) Prof. Dr. Rui Gonçalves Marques Elias (Uenp – Educação Física) Profª. Dra. Carmem Lucia Mottin Duro (UFRGS – Enfermagem) Prof. Dr. Eduardo Ramirez Asquieri (UFG – Farmácia) Prof. Dr. Flávio Marques Lopes (UFG – Farmácia) Profª. Dra. Maria de Fátima Duques de Amorim (UFPB – Nutrição) Prof. Dr. Roberto Teixeira Lima (UFPB – Nutrição) Prof. Dr. Marcos C. Sgnorelli (UFPR – Saúde Coletiva) Profª. Dra. Milene Z. Vosgerau (UFPR – Saúde Coletiva) Prof. Dr. Aurean D’eça Junior (Ufma – Saúde Coletiva) Profª. Dra. Simone Travi Canabarro (Ufcspa – Pediatria) Profª. Dra. Aline Correa Carvalho (Unifesspa – Doenças Tropicais) Profª. Dra. Joana Corrêa de Magalhães Narvaez (Ufcspa – Psiquiatria) Profª. Dra. Letícia Pacheco Ribas (Ufcspa – Fonoaudiologia) Prof. Dr. Alex Guedes (EBMSP – Medicina) Aline Vieira Scarlatelli-Lima Jaime Lin Leticia Domingos Ronzani Neuro em Cena Aprendendo Neurologia Através do Cinema Brazil Publishing Autores e Editores Associados Rua Padre Germano Mayer, 407 Cristo Rei - Curi� ba, PR - 80050-270 +55 (41) 3022-6005 Associação Brasileira de Editores Cien� fi cos Rua Azaleia, 399 - Edi� cio 3 Offi ce, 7º Andar, Sala 75 Botucatu, SP - 18603-550 +55 (14) 3815-5095 Associação Brasileira de Normas Técnicas Av. 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CDD 616.8 (22.ed) CDU 616.8 [1ª edição – Ano 2021] www.aeditora.com.br Abstract The mystery and impact related to pathologies of the human brain are com- monly reported in cinematographic works. In this sense, there are movies well-founded in the scopes of medicine, and there are movies lost in the translation of Neurology to art. In “Neuro em Cena” Neuroliga Unisul, assisted by Neurologists, Neuropediatrics, Psychiatrics and Geneticists, brings scien- tific reviews of neurological and neuropsychiatric diseases accompanied by film critics about the clinical veracity of those disease’s representations. Aiming to spread neurological knowledge, “Neuro em Cena” will demystify the cinematographic representations of human brain diseases and review the pathologies mentioned during the process. SUMÁRIO Capítulo 1 - AFETO PSEUDOBULBAR 9 Isabella Paes Angelino; Ana Paula Goulart, M.Sc Capítulo 2 - AMNÉSIA 16 Daiana Gomes de Sousa; Aline Vieira Scarlatelli-Lima, M.Sc Capítulo 3 - AUTISMO 22 Thainy Côrrea Beluco; Jaime Lin, M.Sc Capítulo 4 - ACIDENTE VASCULAR CEREBRAL ISQUÊMICO 29 Leticia Domingos Ronzani; Gabriela Costa Bernades; Ana Caroline Benin Capítulo 5 - CEFALEIA 42 Daniel Fontelles; Linério Ribeiro de Novais Júnior; Thalita Martinelli Capítulo 6 - COMA 52 Gabriela Costa Bernades; Andreia Bittencourt Rodrigues Capítulo 7 - DEMÊNCIA 60 Gabriela Costa Bernades; Aline Vieira Scarlatelli-Lima, M.Sc Capítulo 8 - DOENÇAS DO NEURÔNIO MOTOR 69 Taís Luise Denicol; Jaime Lin; Louise Lapagesse de Camargo Pinto, PhD Capítulo 9 - DISTÚRBIOS DO SONO 76 Laíse Koenig de Lima; Linério Ribeiro de Novais Júnior; Aline Vieira Scarlatelli-Lima, M.Sc Capítulo 10 - DOENÇA DE ALZHEIMER 86 Linério Ribeiro de Novais Jr.; Aline Vieira Scarlatteli-Lima, M.Sc Capítulo 11 - DOENÇA DE HUNTINGTON 94 Laíse Koenig de Lima;Andréia Bittencourt Rodrigues, Esp. Capítulo 12 - DOENÇA DE LYME 98 Linério Ribeiro de Novais Jr.; Aline Vieira Scarlatteli Lima, M.Sc Capítulo 13 - DOENÇA DE PARKINSON 103 Laíse Koenig de Lima Andréia Bittencourt Rodrigues, Esp. Capítulo 14 - ENCEFALITES 111 Lia Zumblick Machado; Thalita Martinelli Capítulo 15 - ESCLEROSE MÚLTIPLA 117 Daiana Gomes de Sousa; Aline Vieira Scarlatelli-Lima, M.Sc Capítulo 16 - ESQUIZOFRENIA 126 Hannah Bang; Ana Paula Goulart, M.Sc Capítulo 17 - MENINGITE 135 Taís Luise Denicol; Andréia Bittencourt Rodrigues Capítulo 18 - NEUROGENÉTICA 140 Tuany Batista Santos; Louise Lapagesse de Camargo Pinto, PhD Capítulo 19 - PARALISIA CEREBRAL 147 Ricardo Souza Cabral; Jaime Lin, Esp. Capítulo 20 - POLIOMIELITE 156 Laíse Koenig de Lima; Jaime Lin, M.Sc Capítulo 21 - SÍNDROME DE TOURETTE 160 Taís Luise Denicol; Ana Paula Goulart, M.Sc Capítulo 22 - SÍNDROME DO ENCARCERAMENTO 167 Linério Ribeiro de Novais Jr.; Andréia Bittencourt Rodrigues, Esp. Capítulo 23 - TRANSTORNO AFETIVO BIPOLAR 172 Daiana Gomes de Sousa; Jaime Lin Capítulo 24 - TRANSTORNO OBSESSIVO-COMPULSIVO 179 Hannah Bang; Ana Paula Goulart, M.Sc Capítulo 25 - TRANSTORNO DO DÉFICIT DE ATENÇÃO COM HIPERATIVIDADE 190 Leticia Domingos Ronzani; Jaime Lin Capítulo 26 - TRANSTORNOS POR USO DE SUBSTÂNCIAS 199 Isabella Paes Angelino; Ana Paula Goulart, M.Sc Capítulo 27 - TRAUMA RAQUIMEDULAR 208 Leticia DomingosRonzani; Andréia Bittencourt Rodrigues, Esp. ÍNDICE REMISSIVO 215 SOBRE OS AUTORES 216 9 Capítulo 1 AFETO PSEUDOBULBAR Isabella Paes Angelino1 Ana Paula Goulart, M.Sc2 Paciente masculino, cerca de 40 anos, solteiro, tabagista, trabalha como palhaço e sonha em ser comediante. Apresenta episódios de riso sem motivo aparente e riso exagerado em situações em que não há algum estímulo para tal. Não tem controle sobre a risada, apesar de estar deprimido na maioria das vezes em que ela ocorre. Sente-se constrangido quando essas crises acontecem em ambientes públicos, por isso anda com um folheto com os dizeres: “Perdoe meu riso. Tenho uma doença. É uma condição médica que causa risos repentinos, frequentes e incontroláveis, que não correspondem à maneira como me sinto. Pode acontecer em pessoas com lesões cerebrais ou em certas doenças neurológicas”. Vítima de abandono paterno e com passado de internação psiquiátrica, comparece semanalmente a encontros com agente social para acompanhamento. Vive em situação precária e necessita de auxílio governamental para manter sua saúde. Mora com a mãe, que também é portadora de doença mental e precisa de cuidados diários, que são prestados pelo filho. 1 Liga Acadêmica de Neurologia (Neuroliga), médica formada pela Universidade do Sul de Santa Catarina, Unisul – Tubarão/SC. 2 Médica Psiquiatra Especialista em Psiquiatria da Infância e Adolescência. Professora e Mestre do curso de Medicina pela faculdade de medicina da Universidade do Sul de Santa Catarina, Unisul – Tubarão/SC. Aprendendo neurologiA AtrAvés do CinemA 10 O afeto pseudobulbar é caracterizado por descontrole emocional, de curta duração, manifestando-se por choro e/ou riso desproporcional ou inapropriado no contexto em que o indivíduo está inserido. A diferença entre humor e afeto se torna importante para compreensão do transtorno, uma vez que ambos são incongruentes nessa situação. Cheniaux define “humor” como um somatório de vivências afetivas, sendo um elemento mais dura- douro e que não se relaciona a um determinado objeto. Já o afeto, trata-se de um elemento de curta duração, uma vivência momentânea relacionada a um objeto (uma representação), sendo, portanto, mais específica. Ou, ainda, o afeto corresponde a uma resposta emocional de alguém a eventos, pensamentos, ideias, memórias e reflexões. A terminologia é variável e até mesmo confusa, por isso são adotados sinônimos como: transtorno da expressão emocional involuntária, labilidade emocional, desregulação emocional, riso e choro patológico e emocionalismo. A condição ocorre por consequência de um distúrbio neurológico ou lesão cerebral, tais como esclerose lateral amiotrófica, desordens extrapiramidais e cerebelares, esclerose múltipla, traumatismos cranianos, síndromes demen- ciais, acidente vascular encefálico (AVE) e tumores cerebrais. A terminologia é considerada uma manifestação clínica subjacente e, por essa razão, não consta no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) e no Código Internacional de Doenças (CID 10). O afeto pseudobulbar impacta diretamente na funcionalidade do paciente, prejudicando sua interação social e qualidade de vida, predis- pondo-o a doenças psiquiátricas, como ansiedade e depressão. O estudo PRISM obteve taxas de prevalência do transtorno de 36,7% em uma po- pulação com seis desordens neurológicas (esclerose lateral amiotrófica, doença de Parkinson, esclerose múltipla, traumatismo craniano, doença de Alzheimer e acidente vascular encefálico), utilizando escala específica para mensuração de sintomas de afeto pseudobulbar, chamada Center for Neurologic Study – Lability Scale. Dados na literatura mostram que a condição prevalece em 5% a 11% dos pacientes no primeiro ano após um traumatismo craniano. Sabe-se também que a moléstia pode ter instalação tardia, a exemplo de pacientes vítimas de acidente vascular encefálico. Aprendendo neurologiA AtrAvés do CinemA 11 O mecanismo do afeto pseudobulbar parece ser a perda do controle voluntário, também conhecido como desinibição, mas as vias neurais ainda não foram totalmente elucidadas. Estudos de neuroimagem e neurofisio- lógicos vêm demonstrando que o cerebelo apresenta importante função de modulação das respostas emocionais, de modo que a interrupção dos circuitos corticopontino-cerebelares causa comprometimento dessa atividade e estaria envolvido na gênese do afeto pseudobulbar por meio da redução do limiar para a expressão motora da emoção. Acredita-se que os principais neurotransmissores envolvidos sejam serotonina e glutamato. Critérios diagnósticos foram propostos por Cummings et al. (2006) de maneira mais estruturada do que existia previamente. Fazem parte dos critérios necessários para o diagnóstico: episódios frequentes e breves de choro ou riso incontroláveis e incongruentes com o humor ou ainda con- gruentes, mas excessivos, demonstrando uma inabilidade de controlar o afeto; há doença ou dano encefálico estrutural e se pode estabelecer uma relação de temporalidade entre esse dano e a alteração de comportamento; há comprometimento funcional ou social do indivíduo e os episódios não podem ser explicados por outra condição neurológica, psiquiátrica ou mes- mo por uso de substâncias. O principal diagnóstico diferencial a ser considerado é o transtorno depressivo maior. Os transtornos de humor se caracterizam por um estado emocional subjetivo sustentado, durando um longo período (vários dias, semanas ou meses). Deve-se salientar, ainda, entre outras características, que na depressão o humor e o afeto são sempre congruentes. Além disso, alterações do sono e do apetite estão mais relacionadas à depressão e sinais e sintomas pseudobulbares (disartria, disfagia, disfonia e deficiência dos músculos voluntários da língua) estão associados ao afeto pseudo- bulbar. Outros diagnósticos diferenciais são crises epilépticas dacrísticas e gelásticas, distonias faciais, tiques, discinesias faciais, mania e psicose. O objetivo do tratamento é a redução da frequência e intensidade dos episódios. Para tal, utiliza-se antidepressivos tricíclicos, inibidores seletivos da recaptação da serotonina (ISRS) ou a combinação de dextro- metorfano e do antiarrítmico quinidina, aprovada em outubro de 2010 pela Food and Drug Administration (FDA). Para a escolha do medicamento, deve Aprendendo neurologiA AtrAvés do CinemA 12 ser considerado o perfil de tolerância do paciente, bem como os efeitos adversos do composto. Os antidepressivos atuam ampliando a disponibilidade da seroto- nina em vias corticolímbicas e cerebelares. No entanto, a eficácia desses medicamentos não parece estar relacionada ao tratamento da depressão, já que as doses necessárias são menores e o início da ação para o trata- mento do afeto pseudobulbar é mais rápido, ao contrário do que ocorre no transtorno depressivo. Antidepressivos tricíclicos (nortriptilina e amitriptili- na), devido sua ação anticolinérgica, podem causar boca seca, constipação, hipotensão ortostática, sedação e potencial cardiotoxicidade, e por isso devem ser utilizados com parcimônia em idosos. Os ISRS (fluoxetina, cita- lopram e sertralina) apresentam menos efeitos colaterais e, por isso, menor chance de descontinuação do tratamento. Já o dextrometorfano é um inibidor glutamatérgico que exerce ação em receptores N-metil-D-aspartato e sigma-1. A quinidina, por meio da inibição do metabolismo hepático do dextrometorfano pelo citocromo P-450, eleva o nível sérico da droga. A experiência é ainda limitada devido aprovação recente, mas os efeitos adversos descritos foram: tontura, náu- sea, fadiga, diarreia, nasofaringite, cefaleia, constipação e disfagia. Fluoxetina e citalopram → Dose de 20mg/dia. Sertralina → Dose de 50mg/dia. Amitriptilina e nortriptilina→ Dose varia de 20 a 100 mg/dia e deve ser utilizada em dose única, à noite, para redução de efeitos adversos. Nuedexta ® (20mg dextrometorfano + 10 mg quinidina) → A dose aprovada pelo FDA é de 1 cápsula ao dia por 7 dias, seguida por 1 cápsula de 12 em 12 horas. Quadro 1 – Medicações em dose padrão no tratamento do afeto pseudobulbar Fonte: Elaborado pelas autoras (2021). Aprendendo neurologiA AtrAvés do CinemA 13 Imagem 1 – “Coringa”/“Joker”. Fonte: Cartaz do filme “Joker” (2019). O paciente do caso apresentado é Arthur Fleck, do filme estadu- nidense “Coringa”/“Joker”. Arthur leva uma vida difícil e, paradoxalmente à sua profissão de palhaço, não tem muitas alegrias. Mora com a mãe em um apartamento pequeno em Gotham City e depende do governo para ter acesso a seus medicamentos e cuidados em saúde mental. Seu sonho é ser reconhecido como comediante e ser “visto” pela sociedade que o cerca. Após ser demitido da agência em que trabalhava, Arthur atira em três pas- sageiros do metrô, que o agrediram. Os assassinatos geram uma onda de protestos contra a elite da cidade, em que os manifestantes se fantasiam de palhaço, em homenagem ao assassino não identificado. [SPOILER ALERT] As coisas só pioram para Arthur: o programa de assistência social é cortado, seu fracasso como comediante é exibido em um programa de televisão, ele descobre que sua mãe permitia que o antigo companheiro o abusasse e que é adotado. O filme desvenda a origem do famoso vilão dos quadrinhos e permite que o telespectador o enxergue de uma maneira totalmente diferente. Aprendendo neurologiA AtrAvés do CinemA 14 Filme Nota “Coringa”/“Joker” 9,5 Quadro 2 – Ranking de veracidade dos filmes que abordam o afeto pseudobulbar e a sua repercussão na vida dos pacientes de acordo com a Neuroliga/Unisul-SC Fonte: Elaborado pelas autoras (2021). “Coringa”/“Joker” – 9,5 Um filme riquíssimo, digno de Oscar 2020 nas categorias: melhor ator e trilha sonora original. Levanta a questão da desassistência em saúde mental, exclusão social, violência doméstica e discriminação que os pa- cientes com transtornos neuropsiquiátricos sofrem e suas consequências. As características do personagem principal preenchem todos os critérios diagnósticos para afeto pseudobulbar e o ator Joaquin Phoenix consegue brilhantemente expressar extrema melancolia e sofrimento emo- cional enquanto ri. A possível causa seriam as agressões que Arthur sofreu pelo companheiro de sua mãe, que teriam causado traumatismo craniano durante a infância. Não demos 10 pontos pois a patologia de base do personagem não é explicitada durante o filme, o que foi categorizado como infração leve (des- contamos 0,5 pontos). Ficamos em dúvida sobre seu diagnóstico principal. Seria um transtorno bipolar grave com sintomas psicóticos? Esquizofrenia? REFERÊNCIAS AHMED, Aiesha; SIMMONS, Zachary. Pseudobulbar affect: Prevalence and management. Therapeutics and Clinical Risk Management, [s. l.], v. 9, n. 1, p. 483-489, 2013. BENJAMIN, Rix B. et al. PRISM: A novel research tool to assess the prevalence of pseudobul- bar affect symptoms across neurological conditions. PLoS ONE, [s. l.], v. 8, n. 8, p. 1-8, 2013. CHENIAUX, Elie. Manual de Psicopatologia. 3. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2008. CUMMINGS, Jeffeey L. et al. Defining and diagnosing involuntary emotional expression disorder. CNS Spectr, [s. l.], v. 11, n. 6, p. 1-7, 2006. Aprendendo neurologiA AtrAvés do CinemA 15 MILLER, Ariel; PRATT, Hillel; SCHIFFER, Randolph B. Pseudobulbar affect: The spectrum of clinical presentations, etiologies and treatments. Expert Review of Neurotherapeutics, [s. l.], v. 11, n. 7, p. 1077-1088, 2011. SARTORI, Helga Cristina Santos; BARROS, Tomas; TAVARES, Almir. Transtorno da expressão emocional involuntária. Revista de Psiquiatria Clínica, São Paulo, v. 35, n. 1, p. 20-25, 2008. WORK, Susan S. et al. Pseudobulbar affect: An under-recognized and under-treated neurologi- cal disorder. Advances in Therapy, [s. l.], v. 28, n. 7, p. 586-601, 2011. 16 Capítulo 2 AMNÉSIA Daiana Gomes de Sousa3 Aline Vieira Scarlatelli-Lima, M.Sc4 Feminino, 26 anos, professora, há um ano sofreu acidente auto- mobilístico que resultou em amnésia anterógrada. A paciente acredita que todos os dias são o dia do acidente. Não apresenta outros sintomas. “Amnésia” é o nome que se dá à perda parcial ou total das me- mórias já adquiridas ou a não fixação de novas informações. Ela pode ser dividida nos subtipos anterógrada e retrógrada e pode acontecer os dois tipos simultaneamente. Amnésia anterógrada é a mais comum, o paciente sofre um problema físico (por exemplo, um trauma cerebral) e a partir disso não consegue fixar novas memórias, preservando a lembrança de aconte- cimentos anteriores ao acidente. Pode ocorrer também por traumas físicos, emocionais e fatores não traumáticos (uso de medicamentos ou drogas ilícitas). A memória pode ser formada, no entanto, ela não é consolidada. Esse efeito pode acontecer de forma temporária, como em um blecaute causado por excesso de álcool, ou ser permanente (quando acontece um dano na região do hipocampo, área cerebral que exerce papel na conso- lidação das memórias). O subtipo amnésia retrógrada acontece quando o paciente não se recorda dos eventos anteriores ao problema de saúde. 3 Liga Acadêmica de Neurologia (Neuroliga), Universidade do Sul de Santa Catarina, Unisul – Tubarão/SC. 4 Médica Neurologista Neurofisiologia Clínica. Professora e Mestre do curso de Medicina pela faculdade de medicina da Universidade do Sul de Santa Catarina, Unisul. Além disso, faz parte da Liga Acadêmica de Neurologia (Neuroliga) na Universidade do Sul de Santa Catarina, Unisul – Tubarão/SC. Aprendendo neurologiA AtrAvés do CinemA 17 Dessa forma, consegue lembrar dos acontecimentos após o trauma, porém não se lembra de fatos que lhe eram familiares antes do distúrbio aconte- cer. A duração dos episódios de amnésia é variável e os esquecimentos não costumam ir além de seis meses antes do trauma. A amnésia pode acontecer por causa traumática, como um traumatismo craniano devido a um acidente automobilístico. Esses indivíduos podem apresentar amnésia de ambos os tipos e geralmente a perda de memória é temporária. Quando a perda de memória ocorre por alto consumo de álcool e por carência de vitamina B pode ser chamada de síndrome de Korsakoff (encefalopatia induzida por álcool), a doença possui característica progressiva. Nessa síndrome, além das alterações de memória podem existir outros sinais e sintomas neurológicos, como falta de coordenação e alterações de sensibilidade. A amnésia global transitória (AGT) é um acontecimento neuroló- gico de perda repentina de memória e orientação em tempo e espaço. O sintoma principal é a desorientação, sem apresentar outras alterações neu- rológicas. O quadro pode durar horas em alguns casos e, quando o paciente recupera a memória, ele não se recorda do acontecimento. O paciente não vai possuir alterações cerebrais e os exames estarão adequados. Doenças degenerativas também podem desencadear amnésia quando o paciente possui recordações do passado, porém apresenta dificuldades de fixar novas memórias, exemplo disso é a doença de Alzheimer. A diferença entre as síndromes demenciais com as outras alterações de memória é que na demência o paciente apresenta prejuízo funcional e dificuldade na realiza- ção de atividades diárias. A causa psicológica ocorre por estresse intenso, que gera uma perda de memória parcial ou total, acontecendo, geralmente, de forma transitória. O indivíduo com amnésia vai apresentar problemas em recordar novas informações ou em lembrar fatos do passado. Memórias falsas, to- talmente criadas ou feitas com base em lembranças pré-existentes podem estar presentes. Em alguns casos é visto desorientação e até alterações neurológicas, como movimentos descoordenados e tremores. O grau de alteração na memória pode variar desde um problema com a memóriade Aprendendo neurologiA AtrAvés do CinemA 18 curto prazo, uma perda parcial ou total e até existir uma incapacidade de reconhecer rostos e lugares. Com o objetivo de esclarecer o tipo e a causa dessa disfunção, é necessário realizar uma história clínica detalhada com a ajuda de familiares, diferenciar se a dificuldade é lembrar de eventos recentes ou passados, tempo de início, se houve melhora ou piora desde o início do quadro, quais as possíveis etiologias desse déficit e se o paciente possui familiares com algum tipo de alteração de memória ou doenças neurológicas e psiquiátricas. Sobre a história pregressa, questionar sobre o consumo de álcool, medicações ou drogas ilegais, histórico de câncer, depressão ou convulsões. Importante definir se os sintomas alteram a capacidade funcional e de autocuidado do paciente. Essa avaliação permitirá compreender a extensão da perda de me- mória e definir qual a etiologia da queixa. Para avaliação de lesões cerebrais, podem ser solicitado exames como: ressonância magnética (RM), tomogra- fia computadorizada (TC), eletroencefalograma e exames laboratoriais para investigação de infecções ou deficiências nutricionais. A maioria dos casos de amnésia não necessitam de tratamento. Quando existem disfunções físicas ou mentais deve ser feito o tratamento específico. Ferramentas podem ser usadas para que o paciente estimule sua memória, como: apoio familiar, terapia ocupacional (para auxiliar no consumo de novos informações) e utilizar uma agenda ou lembretes. Não existe um tratamento farmacológico para restauração da memória em pa- cientes com amnésia. Um exemplo de tratamento específico é o realizado na síndrome de Korsakoff, com o uso de tiamina. Aprendendo neurologiA AtrAvés do CinemA 19 Imagem 1 – “Como se Fosse a Primeira Vez”/“50 First Dates”. Fonte: Cartaz do filme “50 First Dates” (2004). Henry Roth é um veterinário que conhece Lucy, uma professora de arte, em um café. Eles iniciam a conversa e marcam um encontro para o dia seguinte, porém, quando Henry volta no local, Lucy não o reconhece. A dona do café explica a Henry que Lucy sofre de síndrome de Goldfield, nome fictício para a amnésia anterógrada. Lucy sofreu um acidente de carro e agora possui essa disfunção e, para evitar a dor de Lucy, sua família finge que todos os dias são o dia do acidente. Henry, apaixonado por Lucy, inventa novas formas de se aproximar. Lucy então começa a anotar em seu diário informações sobre eles para conseguir lembrar dos fatos e os dois se apaixonam. No final, o casal sai em uma viagem de barco e Henry produziu um vídeo contando a história deles para Lucy assistir todos os dias ao acordar. Filmes/Séries Notas “Dinastia”/“Dynasty” 10,0 “Como se Fosse a Primeira Vez”/“50 First Dates” 9,0 “Amnésia”/“Memento” 9,0 Quadro 1 – Ranking de veracidade dos filmes/séries que abordam a amnésia e sua repercussão na vida dos pacientes de acordo com a Neuroliga/Unisul-SC Fonte: Elaborado pelas autoras (2021). Aprendendo neurologiA AtrAvés do CinemA 20 “Como se Fosse a Primeira Vez”/“50 First Dates” – 9,0 Interessante a maneira como o filme aborda a amnésia, tornando essa alteração, que é extremamente séria, em algo mais leve. Com a de- monstração do filme é possível compreender com mais clareza como essa amnésia acontece e como afeta a vida do indivíduo. O filme criou uma do- ença fictícia para chamar a amnésia anterógrada, entretanto, isso não era necessário, pois poderiam usar a oportunidade para mostrar uma doença real que afeta muitas pessoas, servindo como fonte de informação para o público (infração moderada – houve o desconto de 1,0 ponto). “Amnésia”/“Memento” – 9,0 O filme começa com um acidente automobilístico. No carro estavam um casal e uma menina. Após isso, ocorre uma mudança de cena e surge um homem acamado sendo cuidado pela esposa. Ele acorda sem lembrar de nada e a mulher conta que ele sofreu um acidente. O caso do filme é uma amnésia retrógrada pós-traumática, o paciente possui remotas lembranças dos acontecimentos após o acidente, como imagens e gritos, porém não se recorda de mais nada, nem seu nome. Filme monótono e nada empolgante, mostra a amnésia, porém poderia explorar mais a doença, por exemplo: como é feito o diagnóstico correto e mais detalhes dos sintomas apresentados pelo paciente (infração moderada – perde 1,0 ponto). O filme não expõe a história com clareza, o problema está com a direção em geral e não apenas por não terem explorado a alteração neurológica. “Dinastia”/“Dynasty” – 10,0 A série americana, em sua terceira temporada, abordou o tema com um episódio de trauma. Após o evento, o personagem Liam apre- senta uma amnésia retrograda pós-traumática, na qual não se lembra de nada e, ao longo do tempo, começa a se recordar de lugares e pessoas. Aprendendo neurologiA AtrAvés do CinemA 21 A série abordou bem o processo da amnésia, apresentando o trauma, a internação com um período de coma e a tentativa dos personagens de fazer Liam melhorar sua memória com estímulos visuais, gustativos e olfativos, e sua lenta recuperação. Referências CHAVES, Márcia L. F. Memória humana: aspectos clínicos e modulação por estados afetivos. Psicologia USP, São Paulo, v. 4, n. 1-2, p. 139-169, 1993. NEVES, Maila de Castro L. et al. Amnésia retrógrada funcional grave: relato de caso. Revista de Psiquiatria Clínica, São Paulo, v. 35, n. 1, p. 26-30, 2008. SILVA, Silvia Cristina Fürbringer e; SETTERVALL, Cristina Helena Constanti; SOUSA, Regina Marcia Cardoso de. Amnésia pós-traumática e qualidade de vida pós-trauma. Revista da Escola de Enfermagem da USP, São Paulo, v. 46, n. especial, p. 30-37, 2012. 22 Capítulo 3 AUTISMO Thainy Côrrea Beluco5 Jaime Lin, M.Sc6 Paciente masculino, 18 anos, solteiro, estudante, diagnóstico de transtorno do espectro autista há 14 anos, vem para consulta de acompanhamento psicológico inicial pós-crise sensorial em transporte público. Paciente relata dificuldade de interação social e controle de cri- ses sensoriais após sofrer quebra de acompanhamento psicológico com terapeuta anterior. Segundo os pais do paciente, o jovem teria desenvol- vido afeto romântico voltado para sua terapeuta, o que impossibilitou a continuação do acompanhamento. Os pais relatam ainda exacerbação de movimentos estereotipados, piora de interação no convívio social e dssificuldade para manejo e controle de crises. Houve regressão alimen- tar no período, episódios de agressividade e aumento no hiperfoco de assuntos relacionados aos pinguins da Antártida. O transtorno do espectro autista (TEA) se caracteriza por padrões comportamentais repetitivos em conjunto com dificuldades de interação social, sendo capaz de afetar o desenvolvimento pessoal do indivíduo. His- toricamente, embora tenha sido relacionado à esquizofrenia, em 1911, pelo psiquiatra Eugene Bleuler, foi Léo Kanner, também psiquiatra, que, mais 5 Liga Acadêmica de Neurologia (Neuroliga), Universidade do Sul de Santa Catarina, Unisul – Tubarão/SC. 6 Liga Acadêmica de Neurologia (Neuroliga), Universidade do Sul de Santa Catarina, Unisul – Tubarão/SC. É pesquisador no Laboratório de Pesquisa em Autismo e Neurodesenvolvimento, Programa de Pós-Gradua- ção em Ciências da Saúde, Universidade do Extremo Sul Catarinense – Unesc. Aprendendo neurologiA AtrAvés do CinemA 23 de 30 anos após essa menção, publicou relatos utilizando a terminologia “autista” ao se referir a uma série de achados de pacientes, cujos casos possuíam sintomatologia comum. Seguido dos estudiosos, o pediatra Hans Asperger também passou a estudar a síndrome em 1944. A sintomatologia a qual Kanner se referia é, como descrito por ele, “resistência à mudança” associada à “insistência nas mesmas coisas”, considerando indispensável para seu diagnóstico a presença de isolamento social somados a comportamentos atípicos. A definição de seu primeiro conceito veio com Michael Rutter, em 1978, pontuando critérios relaciona- dosà interação social e problemas de comunicação associados a movi- mentos estereotipados, considerando o início do quadro sendo anterior aos 30 meses de idade. No ano de 1980, o autismo passou a ser reconhecido e definido como Transtorno Pervasivo do Desenvolvimento – chamados transtornos invasivos do desenvolvimento (TIDs) – apresentado na terceira edição das diretrizes diagnósticas oficiais da American Psychiatric Association (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais; DSM-3). Dentro dessa definição, foram decompostos cinco diferentes diagnósticos, estando entre eles: autismo clássico, síndrome de Asperger, transtorno invasivo do desenvolvimento, síndrome de Rett e transtorno desintegrativo da infância. Em sua última edição, o DSM-5 definiu o autismo como sendo um transtorno de definições exclusivas, passando os déficits de interação social e de comunicação a pertencerem a um único critério, sendo clas- sificados como TEA. Ou seja, diferentes apresentações clínicas, mas que compartilham das mesmas características principais, foram agrupadas no mesmo segmento, com exceção da síndrome de Rett, que passou a ser considerada uma entidade própria. Segundo a classificação do DSM-5, o TEA consiste no conjunto de anormalidades qualitativas de interação social associadas a comportamentos e interesses restritos, repetitivos e estereotipados, sendo eles motores ou verbais, ou ainda percepções sensoriais incomuns somadas a distúrbios de comunicação verbal e não verbal, apresentando notoriedade ao quadro por vol- ta dos 3 anos de idade. As características essenciais são o prejuízo persistente na comunicação social recíproca e na interação social e padrões restritos e Aprendendo neurologiA AtrAvés do CinemA 24 repetitivos de comportamento. Interesses e atividades variam tanto por conta do grau de comprometimento inicial quanto pelas intervenções apresentadas e mecanismos compensatórios utilizados para minimização clínica. Com base em dados da Organização Pan Americana da Saúde (Opas), estudos epidemiológicos apontam um aumento no número de pre- valência de TEA nos últimos 50 anos. Conforme a rede de monitoramento de deficiências no desenvolvimento do autismo (ADDM), afere-se que cerca de 1 em cada 59 crianças apresenta diagnóstico de TEA nos Estados Unidos da América. No Brasil, por conta da falta de dados epidemiológicos concretos, o Congresso Nacional alterou a Lei nº 7.853 com o objetivo de incluir as especi- ficidades inerentes ao TEA nos censos demográficos. Já em Santa Catarina, estima-se que há 3,94 diagnósticos para cada 10 mil habitantes. Diversos fatores de risco e mecanismos biológicos vêm sendo es- tudados em relação à neurofisiopatologia do TEA, dentre eles as relações estruturais, disfunções do sistema imunológico, alterações genéticas e intervenções ambientais. Embora estudos de imagem tenham encontra- do alterações de conectividade cerebral e um crescimento acelerado em algumas regiões cerebrais, tais achados podem estar relacionados como consequência do transtorno. Dentre as diversas hipóteses apresentadas, as hipóteses de anor- malidades inflamatórias, neuroquímicas e de hipoperfusão cerebral asso- ciadas a achados genéticos e ambientais são as mais apontadas quanto à viabilidade de estudos. Em estudos recentes, foram encontradas evidências referentes à ativação de micróglia no líquor, podendo fazer a associação entre sistema imunológico e sistema nervoso central (SNC), assim como foram encontradas relações entre a via de sinalização de Notch, atuante no desenvolvimento embrionário, e a fisiopatologia do autismo. Os achados recentes de diversas frentes de estudos reforçam a hipótese da pluralidade de causas, porém semeiam um norte para novos estudos e discussões. Correlacionando o uso de citocinas como sinalizadores pelas células neurais e não neurais em desenvolvimento com a função modula- dora imunitária delas, sugere-se a hipótese da neuroinflamação intraútero, resultado de uma ativação imune materna (AIM), como responsável por uma desregulação imune, acarretando alterações no crescimento e desen- Aprendendo neurologiA AtrAvés do CinemA 25 volvimento fetal. A presença de processos neuroinflamatórios em cérebros post mortem de pacientes autistas confirmam a validade dessa hipótese, mesmo que o mecanismo pelo qual essas alterações acontecem ainda permanece incerto. Dessa maneira, a administração de substâncias pró-inflamatórias administradas antes do fechamento do tubo neural em modelos animais simulam o comportamento apresentado pelo espectro, resultando em alterações similares. O uso de lipopolissacarídeo (LPS) mimetiza infecções pré-natais, baseado no conhecimento prévio de que a ativação imune materna tem influência sobre o SNC da prole. Estudos apontam que, após a indução, os roedores apresentam comportamentos estereotipados, ativi- dade exploratória desregulada, além de atraso do crescimento. Existem muitas abordagens terapêuticas disponíveis buscando obter melhora clínica nos pacientes com diagnóstico de TEA, porém, até o momento, nenhuma delas se mostrou eficaz para reverter completamente os sintomas. A análise do comportamento aplicada (ABA) é uma das práticas comportamentais com foco no desenvolvimento da comunicação, compor- tamento e habilidades adaptativas. Intervenções farmacológicas também fazem parte do aparato disponível para o tratamento dos achados clínicos do TEA, dentre elas, pode-se citar o uso da risperidona para controle de agres- sividade e indução do sono. O tratamento se dá de forma combinada, asso- ciando formas de intervenção comportamental, cognitiva, desenvolvimento da linguagem e da comunicação, acrescidas de terapia medicamentosa quando indicado. Torna-se importante ressaltar que o uso de medicações enfrenta resistência dos cuidadores tanto por apresentação de efeitos cola- terais quanto pela possibilidade de dependência. Considerando as hipóteses da neuroinflamação, o uso de substâncias capazes de inibir a via inflamatória se apresentam como uma estratégia terapêutica em potencial. A busca por tratamentos ainda é incerto, mas promissora. O que se mostra indispensável e mostra resultados positivos, sem dúvidas, ainda é o estímulo constante ao desenvolvimento desses indivíduos. Para isso, a rede familiar de acompanhamento precisa ser bem estruturada, o diagnós- tico deve ser precoce e o trabalho multidisciplinar é indispensável, sempre voltado para as características daquele indivíduo em específico, sempre Aprendendo neurologiA AtrAvés do CinemA 26 considerando que as formas de apresentação de cada indivíduo do espec- tro são únicas, apresentando limitações e necessidades diferenciadas, no mais variado grau. Imagem 1 – “Atypical”. Fonte: Cartaz da série “Atypical” (2017). O paciente do caso apresentado é Sam Gardner, um jovem de 18 anos que teve seu diagnóstico aos 4 anos. A série retrata as dificuldades de um adolescente na fase do colegial, somadas às dificuldades de um indivíduo dentro do espectro. Durante as três temporadas da série, é pos- sível acompanhar o progresso de Sam em diversos meios, tanto buscando entender a dinâmica dos relacionamentos interpessoais como na busca da sua própria independência. A série enfatiza diversas dificuldades reais enfrentadas por pacientes que se encaixam no que se chama síndrome de Asperger, classificação que está inserida no espectro. Esses pacientes são os chamados “autistas de alto funcionamento”, sendo aqueles que possuem intelecto sem alterações, apresentando como maior dificuldade a interação social e a comunicação, porém podendo ser capazes de desen- volver uma rotina que se assemelha muito ao dito “normal”. Com humor e leveza, “Atypical” foi capaz de introduzir o tema e gerar visibilidade para uma população em crescimento que, muitas vezes, não recebe o devido amparo Aprendendo neurologiA AtrAvés do CinemA 27 social por falta de recursos ou ainda falta de conhecimento da populaçãogeral sobre o assunto. Uma das cenas que demonstra a incapacidade social da população de lidar com tais indivíduos é a que retrata uma intervenção policial em que o profissional interpreta Sam como um usuário de drogas e, por meio de uma abordagem incorreta, causa uma crise sensorial no garoto. Outro aspecto interessante da série é o desenvolvimento do conflito familiar, relatando as dificuldades de gestão da condição tanto pelos pais quanto pelos demais membros que fazem parte da rotina do portador de TEA. A partir do momento do diagnóstico a rotina familiar passa a ser voltada para o bom funcionamento de Sam, o que traz as atenções da mãe Elsa para o filho mais velho, em detrimento da atenção e cuidado que a filha mais nova, Casey, necessita, sem falar no conflito do próprio casal, Elsa e Doug. No decorrer das temporadas, o amadurecimento dos personagens para lidar com tais experiências é o foco principal da narrativa. Séries Notas “Atypical” 10,0 “O Bom Doutor”/“The Good Doctor” 8,5 Quadro 1 – Ranking de veracidade das séries que abordam o TEA e sua repercussão na vida dos pacientes de acordo com a Neuroliga/Unisul-SC. Fonte: Elaborado pelas autoras (2021). “Atypical” – 10,0 Apesar de representar apenas 20% dos pacientes com diagnóstico de TEA, “Atypical” cumpriu sua missão de informar e gerar visibilidade para a questão. Em diversos momentos são retratadas dificuldades reais apre- sentadas por grande parte desses pacientes. Um desses comportamentos são os movimentos estereotipados, usados por esses pacientes como uma forma de “reorganizar as ideias”. Outro ponto bem retratado na série é a questão do hiperfoco, que no caso de Sam é voltado para os pinguins. A ecolalia (repetir diversas vezes a mesma palavra) é algo também retratado na série, momento em que o portador de TEA relata como “insistência da Aprendendo neurologiA AtrAvés do CinemA 28 palavra em aparecer da sua mente e saltar da sua boca”. Características como conflitos sociais, desorganização por excesso de estímulos, reações espontâneas não reprimidas, questões sensoriais e de relacionamentos são bem exploradas na série. Por esse motivo e por retratar a rede de apoio que Sam necessita, não encontramos motivos para retirar pontos da série. “O Bom Doutor”/“The Good Doctor” – 8,5 Emocionante em diversos momentos, porém romantizada. A série se passa em ambiente hospitalar, onde o personagem principal Shaun Murphy – também portador de síndrome de Asperger – é residente do serviço de Cirurgia Geral do hospital. A série teve tal decréscimo de pontos por romantizar as questões sociais e comportamentais de um portador de TEA, mostrando o personagem principal como um gênio capaz de lidar perfeitamente bem com a rotina diária. Faz-se necessário pontuar que esse tipo de personagem não representa, por exemplo, autistas que apresentam grave dificuldade de fala e de alterações sensoriais, o que pode levar a uma desinformação social sobre a verdadeira natureza das dificuldades apre- sentadas por pessoas que vivem dentro do espectro. REFERÊNCIAS ARAFAT, E. A.; SHABAAN, D. A. The possible neuroprotective role of grape seed extract on the histopathological changes of the cerebellar cortex of rats prenatally exposed to Valproic Acid: animal model of autism. Acta Histochem, Almançora, v. 121, n. 7, p. 1-11, 2019. BARKER, J. H.; WEISS, J. P. Detecting lipopolysaccharide in the cytosol of mammalian cells: lessons from MD-2/TLR4. Journal of Leukocyte Biology, Iowa City, v. 106, n. 1, p. 1-6, 2019. DEPINO, A. M. Molecular and Cellular Neuroscience Peripheral and central in fl ammation in autism spectrum disorders. Molecular and Cellular Neuroscience, Buenos Aires, v. 53, p. 69-76, 2013. GOEL, R. et al. International Review of Psychiatry An update on pharmacotherapy of autism spectrum disorder in children and adolescents. International Review of Psychiatry, Baltimore, v. 30, n. 1, p. 1-18, 2018. LUNA, B. et al. Neocortical system abnormalities in autism an fMRI study of spatial working memory. Neurology, Pitsburgo, v. 59, n. 6, p. 834-840, 2002. 29 Capítulo 4 ACIDENTE VASCULAR CEREBRAL ISQUÊMICO Leticia Domingos Ronzani7 Gabriela Costa Bernades8 Ana Caroline Benin9 Paciente feminina, 80 anos, foi submetida à angioplastia de ar- téria carótida interna esquerda, consequente de um episódio de acidente vascular cerebral isquêmico – AVCI lacunar (1,5cm) em coroa radiada esquerda, causando hemiparesia direita com força grau 4. No transope- ratório, evoluiu com piora de déficit motor puro proporcionado à direita, hemiparesia grau 2, e escala funcional modificada Rankin 2. Após alta hos- pitalar, recebeu cuidados domiciliares do marido de 82 anos. De manhã, comparece à unidade de pronto atendimento devido à hemiparesia facial à direita, afasia e disartria. A paciente foi vista bem na noite anterior, e teve os déficits percebidos ao despertar no dia seguinte. Tomografia compu- tadorizada (TC) de crânio evidenciou nova e extensa área hipodensa em território de artéria cerebral média esquerda. O acidente vascular cerebral isquêmico (AVCI), ou acidente vascu- lar encefálico (AVE), faz parte das doenças cerebrovasculares e representa 7 Liga Acadêmica de Neurologia (Neuroliga), Universidade do Sul de Santa Catarina, Unisul – Tubarão/SC. 8 Liga Acadêmica de Neurologia (Neuroliga), Universidade do Sul de Santa Catarina, Unisul – Tubarão/SC. 9 Departamento de Neurologia, Instituto de Ensino e Pesquisa – Hospital Santa Catarina em Blumenau/SC. Pós-Graduanda em Neurointensivismo pelo Hospital Israelita de Ensino e Pesquisa Alberta Einstein (2020) com atuação em Neuro-Hospitalismo. Aprendendo neurologiA AtrAvés do CinemA 30 cerca de 80% dos AVCs, sendo os 20% restantes representados pelo AVC hemorrágico (AVCH). O AVCI é definido por um déficit neurológico devido à lesão aguda e focal causada por restrição de fluxo sanguíneo cerebral (FSC). Pode ocorrer no encéfalo, na retina ou na medula espinal. É considerado a segunda principal causa de morte em adultos no Brasil e no mundo e a terceira principal causa de incapacidade, em que sete a cada dez pacientes acometidos não irão voltar ao trabalho. Diferencia-se do acidente vascular isquêmico transitório (AIT), pois este apresenta recuperação total do déficit em até 24 horas e ausência de sinais de infarto cerebral em exames de imagem, no caso, ressonância magnética. A incidência estimada de AVC é de 750 mil casos ao ano e, de acor- do com o Global Burden Disease de 2016, estima-se que uma a cada quatro pessoas irão sofrer um AVCI durante o curso de sua vida. Após os 65 anos, observa-se maior incidência de AVCI, dobra a cada década a partir dos 55 anos de idade e é mais prevalente no sexo feminino. Tratando-se da etiologia de AVCI, três principais subtipos de isque- mia cerebral são explorados: trombose, embolia e hipoperfusão sistêmica. Entre as principais etiologias, destacam-se as doenças ateroscleróticas, cardioembólicas, doença de pequenos vasos e causas raras, como vas- culites, dissecção arterial cervical, síndrome do anticorpo antifosfolípide e trombose de seio venoso. Considera-se como principal etiologia do AVCI a doença aterosclerótica de grandes vasos, estenose carotídea ou ruptura de placa ateromatosa aórtica e desenvolvimento de trombo, ou chamado mecanismo ateroembólico. Mas não devemos esquecer que a doença aterosclerótica de artérias intracranianas também se faz presente. Dentre as causas cardioembólicas, destacam-se a fibrilação atrial, endocardite, trombose de válvulas cardíacas, miocardiopatias dilatadas e fo- rame oval patente (FOP). A presença de FOP não é suficiente para gerar meca- nismo trombótico, mas possibilita que trombos oriundos de outras partes do corpo, como de uma trombose venosa profunda, alcancem o átrio esquerdo e, consequentemente, a artéria carótida interna e o sistema nervoso central, causando isquemia transitória ou infarto cerebral. As alterações e patologias da microcirculaçãoe do parênquima cerebral são a base da doença de pe- quenos vasos, caracterizada por angiopatia e microinfartos. Entre as causas Aprendendo neurologiA AtrAvés do CinemA 31 raras, destacam-se as dissecções arteriais cervicais, mais comuns em terri- tório de artérias carótidas e vertebrais e com maior incidência em pacientes jovens, bem como sua possível relação com histórico de traumas cervicais e doenças do colágeno como displasia fibromuscular. Nesses casos, exames como angiotomografia e angiografia por ressonância magnética auxiliam no diagnóstico etiológico. A investigação etiológica do AVCI é fundamental para determinação da etiologia do evento e para prevenção secundária e terciária, prevenindo eventos recorrentes a partir de modificação de fatores de risco identificados com metas terapêuticas estabelecidas. Os fatores de risco para AVCI se dividem em modificáveis e não mo- dificáveis e seu conhecimento é o pilar da prevenção primária, fundamental ao tratamento e reabilitação. Entre os fatores modificáveis, identificam-se hipertensão arterial sistêmica, fibrilação atrial, diabetes mellitus, estenose carotídea, AIT, dislipidemia, tabagismo, etilismo, sedentarismo, obesidade, síndrome da apneia e hipopneia obstrutiva do sono (Sahos) e migrânea com aura. Entre os fatores de risco não modificáveis, são identificados: idade acima de 50 anos, sexo feminino, etnia negra e asiática e hereditariedade (histórico de AVCI em parentes de primeiro grau). Aproximadamente 90% dos AVCI são atribuídos a fatores de risco modificáveis, sendo o principal deles a hipertensão arterial sistêmica. A apresentação clínica do AVC varia de acordo com o acometimento topográfico, segmento e hemisfério acometido. Em geral, as diferentes apre- sentações de um AVCI compartilham dois aspectos: instalação súbita de déficit neurológico, ou ictus, e lesão isquêmica em neuroimagem, por TC de crânio sem contraste e por vezes exigindo análise por ressonância magnética. Dentre as escalas validadas para avaliação clínica emergencial e sequencial do AVCI, a mais famosa e comumente utilizada é a do National Institutes of Health Stroke Scale – NIHSS (quadro 2). Essa escala utiliza 11 itens para avaliar, de forma global, o status neurológico pós-ictal do paciente, bem como sua evolução antes, durante e após a terapia trombolítica, com intuito de facilitar a comunicação entre a equipe de saúde e o time AVC. Sua pontuação não tem relação absoluta com indicação ou contraindicação de trombólise, e também não se relaciona diretamente com a gravidade, pois, por exemplo, pode subestimar acidentes isquêmicos de fossa posterior, por Aprendendo neurologiA AtrAvés do CinemA 32 ser mais direcionada aos sinais de sintomas de território de artéria cerebral média. No entanto, considera-se na prática que maiores pontuações se rela- cionam a eventos mais graves. Quanto à incapacidade funcional após AVCI, utiliza-se a graduação pela escala de Rankin modificada – MRS (quadro 3), sendo que o rápido e adequado reconhecimento e tratamento são fundamen- tais para reduzir a incapacidade após AVCI e aumentar a sobrevida. Os estudos em neurologia vascular estão em constante avanço, possibilitando maior efetividade dos protocolos de atendimento ao AVC isquêmico agudo, bem como maior janela terapêutica de acordo não ape- nas com tempo mas também com o tamanho da área de core isquêmico, colateralidade de vasos e mismatch clínico e radiológico. Nem todos os serviços no Brasil contam com terapia endovascular, representada pela trombectomia no cenário do AVCI. A maioria dos centros aplica protocolos, baseados no estudo Ecass III, de janela terapêutica para o uso do trombo- lítico de 4h30 a partir do ictus, com tempo porta-agulha ideal inferior a 60 minutos. Durante esse tempo, deve-se: - Identificar o paciente com AVCI e definir o tempo “zero” do ictus. A pergunta ideal ao paciente ou familiar deve ser: “Quando foi visto bem pela última vez?”. - Realizar controle de glicemia capilar, e excluir “camaleões” ou stroke mimickers (hipoglicemia, embriaguez e comas infecciosos/metabólicos). - Estabelecer dois acessos venosos periféricos calibrosos e ofertar cateter de O2 de saturação < 95%. - Realizar exame neurológico direcionado em caso de clínico sem expertise em neurologia e cálculo periódico do NIHSS em caso de clínico experiente. - Realizar TC de crânio não contrastada para diferenciar lesões isquêmicas de lesões hemorrágicas, ou ressonância magnética de acordo com protocolo institucional, preferencialmente dentro dos dez minutos da entrada do paciente no serviço. Sequências sugeridas: gradiente Eco, difusão (DWI), Flair e perfusão. - Manter monitorização eletrocardiográfica. - Avaliar indicações e contraindicações de trombólise. Aprendendo neurologiA AtrAvés do CinemA 33 - Manter pressão arterial dentro da meta terapêutica, sendo indica- do tratar pressões sistólicas maiores que 185mmHg ou diastólicas maiores que 110mmHg em pacientes candidatos a trombólise, e pressões sistólicas maiores que 220mmHg ou diastólicas maiores que 120mmHg naqueles com contraindicação a trombólise. Em cenário ideal, o NIHSS deve ser calculado periodicamente desde a admissão hospitalar até a alta do paciente. Na ausência de clínico experiente, deve-se realizar exame neurológico de admissão direcionado identificando: alterações do nível de consciência, presença de desvio de rima labial, alterações da mímica facial, fluência verbal, resposta a comandos e força dos compartimentos flexores e extensores dos quatro membros. A realização de neuroimagem deve ser rápida a fim de afastar sangramento e estimar o tamanho da lesão e risco de complicações. Frente a AVCI, áreas hipodensas na TC são denominadas áreas de core, em que o fluxo sanguíneo cerebral (FSC) já é menor que 8ml/100g de parênquima e há dano irreversível com morte neuronal. Mas, em áreas de penumbra com FSC entre 10-20ml/100g, há possibilidade de reperfusão. Utiliza-se o escore de Alberta Stroke Program Early CT Score (Aspects) para avaliar alterações precoces do parênquima encefálico antes do desenvolvimento de área de core e predizer risco de complicações como sangramento. Nesse sentido, escores de Aspects iguais ou abaixo de sete são considerados equivalentes ao “sinal de um terço” do core isquêmico, que se relaciona a um maior risco de transformação hemorrágica e contraindica a trombólise. Um dos marcos da terapia trombolítica foi o estudo Ecas-III, que estendeu a janela terapêutica de 3h para 4h30 pós-ictus. Além do tempo de janela, há critérios de elegibilidade dos pacientes, como: idade acima de 18 anos, ausência de sangramento em neuroimagem, ausência de con- traindicações ao trombolítico (quadro 4), pressão arterial (PA) menor que 185:110mmHg sustentada e acesso à neurocirurgia dentro de 30 minutos. No caso de trombectomia mecânica/stent retriever, após o estudo Dawn, possibilita-se janela terapêutica de até 24h devido ao benefício observa- do em pacientes com ictus entre 6 e 24 horas com mismatch definido, isto é, desproporção entre déficit clínico e extensão da área isquêmica em neuroima- gem. A trombectomia é indicada formalmente em pacientes que se enquadram Aprendendo neurologiA AtrAvés do CinemA 34 nos seguintes critérios elegíveis: escala Rankin modificada (MRS) prévia ao evento de zero a um, oclusão proximal com trombo em artéria carótida interna ou no segmento M1 de artéria cerebral média, idade acima de 18 anos, NIHSS após evento ≥ 6 e TC com Aspects ≥ 6. Apesar dos benefícios reconhecidos da trombectomia mecânica, esta ainda não se encontrava oficialmente no rol de procedimentos oferecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS). No entanto, com auxílio do estudo brasileiro de Martins et al. (2020), adjunto do projeto Resilient, evidenciou-se custo efetividade do procedimento e, no dia 22 de fevereiro de 2021, a trombectomia foi finalmente incorporada ao SUS. Como dito anteriormente, a neurovascular contemporâneaestá em constante refinamento científico, progredindo sobre a era da janela de tempo e adentrando a era da janela tecidual. Cada vez mais, não só o tempo menor entre o ictus e o atendimento contam, mas também a avaliação individu- alizada do paciente e da sua perfusão tecidual. Nesse contexto, a seleção de pacientes que podem se beneficiar de janelas terapêuticas estendidas para tratamento do AVCI agudo considera dois fatores: a progressão rápida ou lenta da injúria isquêmica em oclusões proximais e o recrutamento de circulação colateral. O progressor rápido é dito como o paciente que sofre AVCI com oclusão proximal e cuja área isquêmica progride rapidamente, denotando rápida necessidade de intervenção. Em contrapartida, o progressor lento é aquele que, frente a uma oclusão isquêmica proximal, consegue recrutar e manter a circulação colateral por mais tempo, estendendo áreas de penum- bra e possibilitando benefícios mesmo em intervenções mais tardias. A circulação colateral intracraniana pode ser amplamente dividida em segmentos curtos de desvio do polígono de Willis e rotas anasto- móticas leptomeníngeas. Pacientes acima de 50 anos e com síndrome metabólica tendem a ter baixo recrutamento de circulação colateral por haver maior acometimento microvascular sistêmico prévio. Frente a AV- CIs agudos há diferentes protocolos e exames para avaliação do status de recrutamento da circulação colateral, como: doppler transcraniano, angiotomografia computadorizada, tomografia por emissão de pósitrons (PET-CT), angioressonância magnética e angiografia por subtração digital, considerada o padrão-ouro. Aprendendo neurologiA AtrAvés do CinemA 35 Apesar da extensão de janela com base na viabilidade tecidual, a janela de tempo segue sendo fator importante, com evidências de que trombectomias realizadas em até 8h pós-ictais se relacionam a um aumen- to de até três vezes na chance de o paciente permanecer independente, como observado no grande estudo brasileiro Resilient. Ou seja, “tempo é cérebro”, mas a “quantidade” de cérebro perdida é variável entre pacientes e essa variabilidade deve ser avaliada frente a decisões terapêuticas. No contexto da trombólise, sabe-se que o benefício com o uso do trombolítico é mais expressivo naqueles com intervenção mais precoce e que tenham déficits moderados. Quando a trombólise é realizada antes das 3h pós-ictais, aproximadamente um a cada quatro pacientes terá taxa de incapa- cidade reduzida, melhorando sua performance no NIHSS. Quando é realizada após 3h e antes de 4h30, esse número cai para um a cada sete pacientes. A droga indicada é a alteplase na dose de 0,9mg/kg, em dose má- xima de 90mg (10% bolus e 90% na hora seguinte). Durante a trombólise, deve-se permanecer ao lado do paciente monitorando sua frequência car- díaca e PA, bem como avaliando seu status neurológico e possíveis compli- cações. Como complicação, pode haver sangramento em área isquêmica. Nos cuidados pós-trombólise, deve-se seguir com monitoramento da PA e glicemia, evitar hipertermia (pois hipertermia e hiperglicemia são deletérios à área de penumbra), e repetir a TC após 24 horas. Além disso, nas primeiras 24 horas também se evita uso de antiagregantes e anticoagulantes, punção venosa em sítio não compressível ou cateterização arterial, bem como uso de dispositivos invasivos como sondas nasoenterais e urinárias devido ao risco de sangramento. Quando contraindicado o uso de trombolítico, devem-se ado- tar medidas como hipertensão permissiva, tolerando pressões de até 220:120mmHg nas primeiras 24 horas, iniciar AAS de 300mg, estatinas e considerar profilaxia de trombose venosa profunda com heparina de baixo peso molecular. Aprendendo neurologiA AtrAvés do CinemA 36 Alteplase → 0,9mg/kg de peso, 10% da dose em bolus e 90% em bomba de infusão em uma hora, com dose máxima de 90mg. O kit virá com dois frascos e um conector, sendo um frasco de 50ml, o diluente, e outro de 50mg, em pó. Deve-se fazer cuidadosa emulsificação com o diluente até se obter solução homogênea. Não se deve agitar o frasco, pois as moléculas de alteplase podem ser quebradas e inutilizadas. Se o seu paciente pesa acima de 50kg (como a maioria dos adultos), já solicite 2 kits. Nitroprussiato de sódio → Iniciar infusão endovenosa contínua em dose de 0,5mcg/kg/minuto (frasco de 50mg + 2ml de soro glicosado à 5%), ajustar velocidade se necessária a cada dez minutos. Dose máxima 8mcg/kg/minuto. Tartarato de metoprolol → Dar bolus endovenoso de 5mg, frasco de 5ml com 1mg/ml, e repetir bolus de 5mg a cada dez minutos se necessário. Quadro 1 – Medicamentos utilizados para trombólise e manejo da pressão arterial em pacientes vítimas de AVE Fonte: Elaborado pelas autoras (2021). 1A – Nível de Consciência 0 = Acordado 1 = Sonolento (responde a pequeno estímulo) 2 = Estupor (responde a estímulo intenso ou doloroso) 3 = Comatoso (sem resposta verbal) 1B – Nível de Consciência/Questões - Qual sua idade? - Em que mês estamos? 0 = Ambas corretas 1 = Apenas uma correta 2 = Nenhuma correta 1C – Nível de Consciência/Comandos - Abra e feche os olhos - Abra e fecha a mão 0 = Ambas corretas 1 = Apenas uma correta 2 = Nenhuma correta 2 – Olhar conjugado 0 = Normal 1 = Paresia do olhar conjugado 2 = Desvio do olhar conjugado 3 – Campos Visuais 0 = Normal 1 = Hemianopsia parcial 2 = Hemianopsia completa 3 = Hemianopsia bilateral ou cego 4 – Paralisia Facial 0 = Normal 1 = Paralisia facial minor 2 = Paralisia facial central completa 3 = Paralisia facial periférica 5 – Força de membros superiores - MSD - MSE 0 = Sem queda em 10s 1 = Queda parcial antes de 10s, sem encostar na cama 2 = Queda antes dos 10s, encostando na cama 3 = Não vence gravidade, mas possui movimento no plano 4 = Nenhum movimento Aprendendo neurologiA AtrAvés do CinemA 37 6 – Força de membros inferiores - MID - MIE 0 = Sem queda em 10s 1 = Queda parcial antes de 10s, sem encostar na cama 2 = Queda antes dos 10s, encostando na cama 3 = Não vence gravidade, mas possui movimento no plano 4 = Nenhum movimento 7 – Ataxia *para pontuar, deve haver ataxia desproporcional ao déficit motor. 0 = Ausente 1 = Presente em 1 membro 2 = Presente nos 2 membros 8 – Sensibilidade 0 = Normal 1 = Hipoestesia ao toque 2 = Anestesia ao toque 9 – Linguagem 0 = Normal 1 = Afasia leve a moderada 2 = Afasia grave 10 – Disartria 0 = Normal 1 = Disartria leve a moderada 2 = Disartria grave 11 – Extinção e Desatenção 0 = Normal 1= Desatenção (1 modalidade sensorial) 2 = Extinção/Heminegligência (2 modalidades sensoriais) Quadro 2 – National Institutes of Health Stroke Scale. Fonte: Adaptado de National Institute of Health Stroke Scale (NIHSS) (1989). Pontuação Descrição 0 Sem qualquer sintoma. 1 Sem incapacidade significante apesar dos sintomas, capaz de realizar todos os deveres e atividades usuais. 2 Incapacidade leve, incapaz de realizar todas as atividades prévias, mas é capaz de cuidar de si próprio sem auxílio. 3 Incapacidade moderada, necessita de alguma ajuda, mas é capaz de caminhar sem assistência (com bengala ou andador). 4 Incapacidade moderadamente grave, incapaz de caminhar sem assistência e incapaz de atender às suas necessidades físicas sem assistência. 5 Incapacidade grave, acamado, incontinente, requer constante atenção e cuidados de enfermagem. 6 Óbito. Quadro 3 – Escala modificada de Rankin. Fonte: Adaptado de The Modified Rankin Score (MRS) (2002). Aprendendo neurologiA AtrAvés do CinemA 38 CONTRAINDICAÇÕES ABSOLUTAS TCE ou AVC nos últimos 3 meses. Punção em sítio arterial não compressível. História de sangramento intracraniano prévio. Neoplasias intracranianas, MAV ou aneurismas. PA >185:110mmHg sustentada. Cirurgia intracraniana ou medular recente. Sangramento interno ativo. Plaquetopenia conhecida ou anticoagulação nas últimas 48h. Glicemia <50mg/dl. TC de crânio com >1/3 da artéria cerebral média comprometida. CONTRAINDICAÇÕES RELATIVAS Melhora rápida dos sintomas. Melhorarápida dos sintomas. Cirurgia de grande porte nos últimos 14 dias (ex.: colocação de prótese de quadril). Sangramento do trato gastrointestinal ou do trato genitourinário nos últimos 21 dias. Crise convulsiva na instalação com ictus prolongado. Quadro 4 – Contraindicações absolutas e relativas ao uso do trombolítico Fonte: Adaptado de Hacke et al. (2008). Imagem 1 – “Amor”/“Amour”. Fonte: Cartaz do filme “Amour” (2012). Aprendendo neurologiA AtrAvés do CinemA 39 A paciente descrita no caso clínico é Anne, do filme francês “Amour”. Logo no início do filme Anne tem seu primeiro ictus enquanto toma café com seu marido George, ficando afásica e torporosa por 3 minutos, depois retomando a fala sem lembrar do ocorrido, confusa. Tanto ela quanto seu marido não percebem o quadro imediato como grave até que Anne mostra extrema incoordenação ao tentar servir uma xícara de chá. Ao procurarem o hospital, diagnosticou-se AVCI devido à estenose suboclusiva de artéria carótida interna esquerda. Por isso, Anne passou por cirurgia para coloca- ção de stent. Foi alertada dos riscos, que eram pequenos, e que se não operasse poderia sofrer outro evento mais grave. Porém, Anne evoluiu den- tro da prevalência estimada para complicações de 5%, sofrendo embolia de artéria cerebral média esquerda durante a operação. O filme foca suas lentes nas nuances da reabilitação pós-AVC, seu ritmo de vida, mudanças do ambiente residencial, frustrações, impactos psicológicos e sociais e o estresse do cuidador... Acima de tudo é um filme sobre a vida de um casal de idosos, que se ama muito, na ótica de um AVCI. Filmes Notas “Amor”/“Amour” 10,0 “Lendas da Paixão”/“Legends of the Fall” 5,0 Quadro 5 – Ranking de veracidade dos filmes que abordam o AVEI e sua repercussão na vida dos pacientes de acordo com a Neuroliga/Unisul-SC. Fonte: Elaborado pelas autoras (2021). “Amor”/“Amour” – 10,0 Logo no início do filme, a atriz interpreta muito bem a hemiparesia direita, a rigidez e a marcha hemiparética. Após ocorrência de novo evento, a afasia, o discurso sem sentido e o desvio de rima também são bem encena- dos. Além disso, as fraldas, as enfermeiras, a alimentação líquido-pastosa, o hand-feeding, os banhos, os grunhidos, a recusa alimentar, a ecolalia, a frustração familiar com a irreversibilidade da morte neuronal... o estresse do cuidador. São muitos os detalhes e pontos fidedignos dessa obra, há inclusive insinuações de afeto pseudobulbar também presentes em certos Aprendendo neurologiA AtrAvés do CinemA 40 quadros de AVC. Retrato impecável, talvez por isso um filme tão aclamado e doloroso de se assistir. “Lendas da Paixão”/“Legends of the Fall” – 5,0 O relato de AVCI aparece no personagem Coronel William Ludlow, que após uma discussão calorosa com o filho tem um evento encefálico isquêmico. Pelo relato e pela cena, subentende-se que o Coronel tem um pico hipertensivo que desestabiliza uma placa de ateroma e leva ao acidente vascular, fato que condiz com o principal fator modificável res- ponsável pela ocorrência dos AVCI: a hipertensão arterial. Porém, o filme comete duas infrações gravíssimas, perdendo 5,0 pontos devido à forma como o déficit neurológico é encenado. O ator Anthony Hopkins interpreta bem a hemiparesia à direita, a espasticidade, o mutismo e a incoordenação motora do acometimento de hemisfério esquerdo, mas encena a paralisia facial de forma errada. O primeiro erro ocorre quando o ator fecha com força o olho direito, dando a entender que o andar superior da face também é acometido em paralisias faciais centrais, o que sabemos que é mentira. O segundo erro é o desvio de rima para a direita, dando a entender que a hemiface paralisada é à esquerda, o que também é incoerente com o déficit. Tanto o hemicorpo quanto o andar inferior da face acometidos em um AVCI cortical ou subcortical acima da decussação das pirâmides são do lado contralateral ao da lesão. Logo, se o hemicorpo paralisado era o direito, a hemiface paralisada deveria ser também a direita. REFERÊNCIAS BÉJOT, Y. et al. Epidemiology of stroke in Europe and trends for the 21st century. La Presse Médicale, Paris, v. 45, n. 12, p. 391-398, 2016. BROTT, T. et al. Measurements of acute cerebral infarction: a clinical examination scale. Stroke, Waltham, v. 20, n. 7, p. 864-870, 1989. CAMPBELL, B. C. V.; KHATRI, P. Stroke. Lancet, Londres, v. 396, n. 10244, p. 129-142, 2020. Aprendendo neurologiA AtrAvés do CinemA 41 HACKE, W. et al. Thrombolysis with alteplase 3 to 4.5 hours after acute ischemic stroke. New England Journal of Medicine, Massachucetts, v. 359, n. 13, p. 1317-1329, 2008. KIM, J. S.; CAPLAN, L. R. Clinical Stroke Syndromes. Frontiers of Neurology and Neuroscien- ce Home, Lausanne, v. 18, n. 13, p. 352-354, 2016. MARTINS, S. O. et al. Thrombectomy for Stroke in the Public Health Care System of Brazil. New England Journal of Medicine, Massachucetts, v. 328, n. 4, p. 2316-2326, 2020. NOGUEIRA, R. G. et al. Thrombectomy 6 to 24 hours after stroke with a mismatch between deficit and Infarct. New England Journal of Medicine, Massachucetts, v. 378, n. 1, p. 11-21, 2018. POWERS, W. J. et al. Guidelines for the Early Management of Patients with Acute Ischemic Stroke. Stroke, Waltham, v. 49, n. 3, p. 46-110, 2018. WILSON, J. T. L. et al. Improving the assessment of outcomes in stroke: Use off a structured interview to assign grades on the modified rankin scale. Stroke, Waltham, v. 33, n. 22, p. 2243-2246, 2002. 42 Capítulo 5 CEFALEIA Daniel Fontelles10 Linério Ribeiro de Novais Júnior11 Thalita Martinelli12 Paciente masculino, 28 anos (idade estimada), solteiro, teórico matemático. Possui diagnóstico de esquizofrenia paranoica, transtorno de ansiedade social e cefaleia em salvas. Apresentou a primeira crise de cefaleia aos 6 anos de idade, enquanto se recuperava de lesão fótica das retinas que ocorreu ao olhar fixamente para o sol. Suas crises ocorrem em salvas constantes, com períodos superiores há um ano de duração e com intervalos sem crises com duração menor que um mês, classificada como cefaleia em salvas crônica. Durante a crise, o paciente apresenta intensa cefaleia unilateral dilacerante associada à fotofobia, fonofobia, náuseas, vômitos, rinorreia e alucinações visuais e auditivas. É refratário à terapia com sumatriptano, betabloqueadores, bloqueadores de canal de cálcio, anti-inflamatórios não esteroides (Aines), corticosteroides, opioides, vaso- pressores e metisergida. Apresenta crises mais intensas em períodos de sobrecarga cognitiva. Recentemente, apresentou ingurgitamento da artéria temporal direita (ipsilateral à cefaleia) e, em meio ao desespero de sua última crise, realizou uma trepanotomia improvisada com uma furadeira. “Cefaleia” é o termo técnico para dores localizadas em qualquer região da cabeça: face, região orbital, couro cabeludo, crânio e interior da 10 Liga Acadêmica de Neurologia (Neuroliga), Universidade do Sul de Santa Catarina, Unisul – Tubarão/SC. 11 Liga Acadêmica de Neurologia (Neuroliga), Universidade do Sul de Santa Catarina, Unisul – Tubarão/SC. 12 Médica formada UCPel, Residência em Neurologia pelo Hospital Santa Isabel, em Blumenau/SC, resi- dente em Neurofisiologia Huap/UFF. Aprendendo neurologiA AtrAvés do CinemA 43 cabeça, relacionada a uma ampla série de patologias e condições. As cefa- leias podem se apresentar de forma primária ou secundária à outra doença. Cefaleias primárias são entidades que cursam com dores de cabeça epi- sódicas ou crônicas na aparente ausência de outra condição ou processo patológico que as justifique. De acordo com a International Classification of Headache Disorders (ICHD), as cefaleias primárias incluem: migrânea, cefaleia tensional, cefaleia trigêmino-autonômica e outras formas de cefa- leia primária. Já as cefaleias secundárias ocorrem na presença de alguma condição subjacente como causa provável ou com forte relação temporal ao início da dor, podendo ter origem emprocessos de somatização, absti- nência ou uso de substâncias, traumas, infecções, neoplasias, distúrbios homeostáticos, acidentes vasculares, entre outros. Um dos pontos mais importantes ao nos depararmos com uma queixa de cefaleia é verificar a presença de sinais de alarme, a fim de excluir ou considerar causas mais graves de cefaleia secundária. Tanto pacientes com cefaleia primária quanto com cefaleia secundária podem aparecer na emergência em busca de alívio imediato da dor, sem descrever qualquer ou- tro sintoma. Por isso, é necessária uma busca ativa por sinais de alarme a fim de estratificar adequadamente cada paciente em alto ou baixo risco. Os principais sinais de alarme podem ser abordados por meio do mnemônico SSNOOPP (Systemic Symptoms, Secondary Risk Factors, Neurologic Symp- toms, Onset, Older Age Onset, Pattern Change, Previous Headache History): S: Systemic Symptoms Sinais e sintomas sistêmicos. S: Secondary Risk Factors Fatores de risco associados às condições subjacentes. N: Neurologic Symptoms Sinais e sintomas neurológicos. O: Onset Início abrupto, súbito, “pior cefaleia da vida”. O: Older Age Onset Cefaleia com início após os 50 anos. P: Pattern Change Aprendendo neurologiA AtrAvés do CinemA 44 Alteração de padrão da dor. P: Previous Headache History Alteração de frequência, severidade e progressão das crises. Na presença de algum sinal de alarme, deve-se atentar para eventos potencialmente graves. Os pacientes de baixo risco são, portanto, aqueles que: não apresentam mudanças no padrão das crises, não possuem sinto- mas sistêmicos, sem alterações no exame neurológico, sem comorbidades que impliquem em alto risco e com padrão típico de cefaleias primárias. As cefaleias possuem grande importância no campo da saúde pública pela sua alta incidência e comprometimento funcional, podendo ter uma prevalência anual superior a 50%, em que 40% se manifesta na forma de cefaleia tensional, 10% a 14% se apresenta na forma de enxaqueca, e, aproximadamente, 2% a 3% na forma de cefaleia trigêmino autonômica. Cerca de 3% da população mundial sofre com cefaleias por mais de 15 dias ao mês, tendo grande prejuízo funcional. A fisiopatologia das cefaleias é muito variada e complexa, ficando além do escopo desta publicação discutir esse aspecto com a profundidade merecida. As principais formas de cefaleia primária serão brevemente apresentadas neste capítulo. Migrânea/enxaqueca → Condição neurológica crônica e debilitante com alta carga global de doença (GBD), ficando atrás apenas da lombalgia em anos vividos com incapacidade (YLD). Acredita-se que sua fisiopatolo- gia se baseia em uma série de fenômenos centrais envolvendo alteração da excitabilidade cerebral, originando-se em diversas áreas cerebrais e se expressando, predominantemente, no sistema trigêmino-vascular. A migrâ- nea típica se apresenta com dor unilateral em pulsação de moderada ou forte intensidade, com piora ao estresse físico e ao movimento e associada à fonofobia, náuseas e/ou vômitos; ocorrendo de forma episódica, com ataques que duram entre 4 e 72 horas, ou crônica (ocorrendo ao menos 15 dias no mês, por no mínimo 3 meses, com característica migranosa em pelo menos 8 dias no mês). A migrânea pode ocorrer com ou sem auras: sintomas visuais, sensitivos, de fala/linguagem, retinianos, motores ou ba- silares, plenamente reversíveis, com acometimento gradual e duração entre 5 e 60 minutos, acompanhados ou seguidos pela fase álgica da migrânea Aprendendo neurologiA AtrAvés do CinemA 45 dentro de 60 minutos. O início das crises pode ser precedido por sintomas premonitórios (pródomo), como alterações de humor, fadiga, bocejos, rigidez nucal e dificuldade de concentração. Sintomas similares podem suceder a fase álgica (epílogo). O tratamento da migrânea envolve terapias abortivas e profiláticas. O objetivo primário é reduzir a dor e reestabelecer a qualidade de vida, o objetivo secundário é evitar a progressão da migrânea episódica para a crônica. Dentre as estratégias de tratamento, é fundamental a educação do paciente, incluindo orientações quanto às mudanças de estilo de vida e manejo de fatores ambientais de gatilho e de agravo. Opções não farmaco- lógicas para manejo da migrânea crônica ou episódica incluem terapia cog- nitivo-comportamental, biofeedback, acupuntura, técnicas de relaxamento e práticas integrativas. Quanto ao tratamento farmacológico nas unidades de urgência, a sociedade brasileira de cefaleia recomenda a administração de dipirona 1g endovenoso associada à cetoprofeno 100mg endovenoso em soro fisioló- gico 0,9% ou intramuscular para casos em que a dor tiver duração inferior a 72 horas, em caso de refratariedade se deve administrar sumatriptano 6mg subcutâneo (podendo repetir a dose em duas horas). Pacientes não responsivos à terapia devem ser encaminhados para hospital terciário por meio da central de regulação para avaliação por médico neurologista. Para casos em que a dor apresenta duração superior a 72 horas (estado migra- noso), deve-se associar dexametasona 10mg endovenoso à terapia inicial com dipirona e cetoprofeno, em caso de refratariedade deve se administrar clorpromazina nas doses de 0,1–0,25mg/kg via endovenosa. Se houver remissão do quadro, o paciente deve ser encaminhado ambulatorialmente para avaliação por médico neurologista. Quanto à terapia profilática para migrânea episódica, pode-se utilizar betabloqueadores como metoprolol (50–200mg/dia), ácido val- proico (500–2000mg/dia) e topiramato (50–200mg/dia). A amitriptlina (50–100mg/dia) também é uma opção, apesar de apresentar menor nível de evidência. Quanto à profilaxia para migrânea crônica, pode ser acres- centada a terapia com a toxina botulínica e a acupuntura. Os anticorpos monoclonais, especialmente tendo como alvo o peptídeo relacionado ao Aprendendo neurologiA AtrAvés do CinemA 46 gene da calcitonina (CGRP), despontam como alternativa terapêutica para casos refratários e crônicos, no entanto, seu elevado custo ainda é um pro- blema. A neuromodulação invasiva e não invasiva também vêm galgando espaço como alternativa terapêutica a casos refratários e de difícil controle. Cefaleia tensional → É a mais prevalente das cefaleias primárias, caracterizada por uma dor tipicamente leve à moderada, intensidade e ca- ráter opressivo, holo craniana, não associada a náuseas e vômitos, mas, ocasionalmente, associada a foto ou fonofobia. Pode ser classificada como infrequente episódica (menos de 1 episódio ao mês em média, pelo menos 10 episódios no total), frequente episódica (entre 1 a 14 episódios ao mês por pelo menos 3 meses) e crônica (mais de 15 episódios ao mês por pelo menos 3 meses). Mecanismos periféricos de sensibilidade pericraniana, hiperalgesia mecânica à pressão e aumento de tônus mus- cular desempenham papel importante no desenvolvimento da cefaleia tensional. A sensibilização central provavelmente é um fator importante em alguns pacientes, assim como fatores psicológicos, em especial nos pacientes com cefaleia tensional crônica. O diagnóstico diferencial entre cefaleia tensional e migrânea sem aura pode ser um desafio na prática diária, por isso é importante uma anamnese cuidadosa a fim de estudar, detalhadamente, o padrão da dor. No exame físico, a palpação manual dos músculos da mastigação e cervicais deve ser realizada, os trigger points e tônus muscular aumentado podem estar presentes. Anti-inflamatórios não esteroidais como ibuprofeno, dipirona e pa- racetamol são a primeira linha de tratamento farmacológico para cefaleia tensional episódica, podendo ser associados à cafeína para maior eficácia. Tricíclicos como a amitriptilina (50–100mg/dia) são uma opção de trata- mento, bem como a estimulação elétrica do nervo supraorbitário. Diversas alternativas não farmacológicas, como terapia cognitivo comportamental, biofeedback, massoterapia, acupuntura e práticas integrativas se mostram efetivas como adjuvantes ou agentes principais
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