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Lazer, Trabalho e Sociedade Material Teórico Responsável pelo Conteúdo: Prof. Dr. Pedro Fernando Avalone Athayde Revisão Textual: Prof. Esp. Luciano Vieira Francisco Lazer na Sociedade de Consumo • Do Ócio ao Lazer: as Diversas Interpretações do Fenômeno; • Mercantilização do Lazer; • Características da Indústria do Lazer e Entretenimento. · Compreender as principais características de uma sociedade de consumo; · Diferenciar o lazer de suas formações pretéritas, bem como de suas funções sociais; · Entender o processo de transformação do lazer em mercadoria e sua incorporação pela chamada “indústria do entretenimento”. OBJETIVO DE APRENDIZADO Lazer na Sociedade de Consumo Orientações de estudo Para que o conteúdo desta Disciplina seja bem aproveitado e haja maior aplicabilidade na sua formação acadêmica e atuação profissional, siga algumas recomendações básicas: Assim: Organize seus estudos de maneira que passem a fazer parte da sua rotina. Por exemplo, você poderá determinar um dia e horário fixos como seu “momento do estudo”; Procure se alimentar e se hidratar quando for estudar; lembre-se de que uma alimentação saudável pode proporcionar melhor aproveitamento do estudo; No material de cada Unidade, há leituras indicadas e, entre elas, artigos científicos, livros, vídeos e sites para aprofundar os conhecimentos adquiridos ao longo da Unidade. Além disso, você também encontrará sugestões de conteúdo extra no item Material Complementar, que ampliarão sua interpretação e auxiliarão no pleno entendimento dos temas abordados; Após o contato com o conteúdo proposto, participe dos debates mediados em fóruns de discus- são, pois irão auxiliar a verificar o quanto você absorveu de conhecimento, além de propiciar o contato com seus colegas e tutores, o que se apresenta como rico espaço de troca de ideias e de aprendizagem. Organize seus estudos de maneira que passem a fazer parte Mantenha o foco! Evite se distrair com as redes sociais. Mantenha o foco! Evite se distrair com as redes sociais. Determine um horário fixo para estudar. Aproveite as indicações de Material Complementar. Procure se alimentar e se hidratar quando for estudar; lembre-se de que uma Não se esqueça de se alimentar e de se manter hidratado. Aproveite as Conserve seu material e local de estudos sempre organizados. Procure manter contato com seus colegas e tutores para trocar ideias! Isso amplia a aprendizagem. Seja original! Nunca plagie trabalhos. UNIDADE Lazer na Sociedade de Consumo Introdução Espera-se que o conteúdo abordado até este momento lhe tenha ajudado a melhor entender as relações estabelecidas entre lazer, Estado e sociedade. Vale lembrar que tratamos de relações que são complexas, pois somam o enredamento de cada um desses elementos ao movimento permanente – dialético e contraditório – de interações e transformação entre os quais. Essa dificuldade e complexidade devem ter sido percebidas por você na nossa Unidade anterior. No entanto, para reavivar a sua memória, relembremos que na Unidade III fizemos uma parada para compreender as diferentes formações sociais vivenciadas em nossa história. Ao mesmo tempo, verificamos que essa transição não se deu de forma tranquila e consensual, mas sim a partir de processos revolucionários, que, por vezes, envolveram conflitos e disputas sobre os projetos societários hegemônicos. Observamos, também, as diferentes características de cada formação social, com um olhar mais específico sobre o modo de produção e a organização da economia e do trabalho. Entendemos que a passagem do comunismo primitivo pelo escravismo, pelo feudalismo até a chegada ao capitalismo não foi um processo linear e tampouco de etapas graduais. Esse passeio pela história nos oportunizou compreender o surgimento da propriedade privada e o papel da intensificação do trabalho humano para o aumento da produção e do capital. Destacamos a capacidade de o sistema capitalista se reinventar para responder aos problemas engendrados pelo seu próprio desenvolvimento e desencadeadores de períodos de crises econômicas e/ou estruturais. Complementarmente, apresen- tamos as formas recentes de como o capitalismo vem se reestruturando e como essas alterações afetaram os mais diferentes âmbitos da vida humana, em seus contextos social, cultural, econômico e político. A partir dessa compreensão, verificamos como essas transformações afetaram diretamente o mundo do trabalho, a partir do aumento do desemprego estrutural, da flexibilização das leis trabalhistas, da redução dos direitos conquistados pelo movimento operário, dos contratos temporários, entre outros fatores. Ademais, ressaltamos como as alterações na sociedade e no mundo do trabalho impactaram também no tempo livre. Nesse aspecto, destacamos que o desenvolvi- mento tecnológico substituiu o trabalho humano e criou as possibilidades concretas para a ampliação do “tempo livre”; mas esse possível ganho quantitativo não foi, necessariamente, acompanhado por ganhos qualitativos na experiência vivida des- se tempo ampliado. Nesse sentido, observamos que o uso desse – maior – tempo disponível não é preenchido por atividades que promovam a humanização – desenvolvimento humano – ou a apropriação crítica de cultura historicamente aprimorada pelos homens. Em contraponto, destaca-se a utilização desse tempo para qualificação e 8 9 ativação do mercado de trabalho ou para atividades que complementem e aumen- tem a renda familiar. Finalizamos a Unidade de conteúdo anterior acentuando um cenário paradoxal, simbolizado pela seguinte reflexão: Com toda essa escassez de uma apropriação qualitativa do tempo livre e das atividades de lazer, por que, ainda sim, a indústria do lazer e entretenimento vem crescendo e aumentando o seu investimento? A procura por elementos que possibilitem responder a esse questionamento concentrará as discussões e conteúdo desta quarta Unidade, abordando o pro- cesso de mercantilização do lazer e como este “se comporta” na denominada sociedade de consumo. Pronto(a) para melhor conhecermos as características do lazer na sua interface com o mercado? Então vamos lá! Do Ócio ao Lazer: as Diversas Interpretações do Fenômeno Nas unidades anteriores, verificamos que o lazer surge como consequência das disputas pela redução da jornada de trabalho, conquistada pelo movimento operário, e da tentativa, por parte dos empregadores, de controle do uso do tempo livre. O lazer surgiu como forma de controle do tempo livre, para que o capital pudesse controlar o que os trabalhadores faziam quando não estavam em suas atividades laborais. A preocu- pação dos empregadores era de que esse tempo fosse preenchido com atividades educacio- nais ou políticas, que permitissem a tomada de consciência e organização em classe. Perce- beram, então, a necessidade de criar estratégias que preenchessem esse tempo, orientadas por princípios de dispersão, distração e desmobilização dos trabalhadores. Ex pl or Mas, será que o lazer se reduz a mero objeto de controle da vida das pessoas? Obviamente que não! Se assim fosse, por que desejaríamos tanto ter as nossas experiências de lazer ampliadas? Por que aguardaríamos ansiosamente pelos momentos de lazer, tais como um feriado prolongado, as férias, o jogo com os amigos, ou uma festa comemorativa? Tais questões já demonstram que o lazer possui funções que vão além do controle social. Portanto, qual tipo de lazer devemos desejar? Na Disciplina Lazer e Entretenimento realizamos um passeio pela história da humanidade, resgatando as formas pretéritas do lazer na tentativa de melhor conhecer as suas diferentes funções. Esse percurso também nos fornece um conjunto de informações para responder às questões do parágrafo anterior. Nesse sentido, faremos a retomada desse assunto sem o aprofundamento já realizado. 9 UNIDADE Lazer na Sociedade de Consumo Há, na contemporaneidade, quem defenda o retornoao ócio, conforme praticado na Grécia Antiga, como forma de contemplação e cultivo de valores ao desenvolvimento humano, pois o “antigo” ócio grego – scholé – era o tempo em que o cidadão dispunha para se dedicar à filosofia, arte, poesia e política. Figura 1 Fonte: iStock/Getty Images Apenas pelas informações apresentadas no parágrafo anterior fica fácil entender os motivos para defender que essas atividades sejam retomadas, não é mesmo? Afinal, como ser contrário(a) à retomada de um tempo – e de atividades – dedicado ao desenvolvimento dos indivíduos? Mas vejamos essa sugestão com um pouco mais de calma e levando em consideração os diferentes contextos históricos e sociais. Nesse sentido, inicialmente podemos observar que para Mascarenhas (2006), o ócio nos dias atuais não seria possível devido às características históricas que determinavam aquela sociedade e que são muito distintas da nossa atual conjuntura. Você se recorda dos tipos de formação social existentes? Na Grécia Antiga, a formação social se dava pelo escravismo. Por isso Mascarenhas (2006) afirma a impossibilidade de reproduzirmos o ócio daquela maneira, pois já superamos essa forma de organização social, onde o ser humano era escravizado e submetido à vontade de outros seres humanos – de maneira convencionalmente aceita como natural. Ex pl or Mascarenhas (2006) afirma ainda que essa alusão ao ócio corresponde à forma dissimulada do lazer, como uma atividade desprendida de utilidade prática – entenderemos a seguir o porquê esse entendimento é “dissimulado”, pois compreenderemos a utilidade do lazer em nossa sociedade. Há aqui uma aproximação com a vertente romântica do uso funcionalista do lazer (MARCELLINO, 1987), situando o lazer dentro de uma perspectiva nostálgica ao apontar para a necessidade de manutenção de certas tradições ou do cultivo de hábitos e valores antepassados. 10 11 Esse teórico também destaca a forma caricaturada do lazer caracterizada por uma perspectiva pejorativa do próprio lazer, sendo tratado como ociosidade – como sinônimo de vadiagem –, ou seja, um momento para não fazer nada e, portanto, “perda de tempo”. A resposta a essa visão pode ser a vertente utilitarista do lazer funcionalista, que percebe as atividades de lazer como instrumentos de recuperação e manutenção da força de trabalho. Figura 2 Fonte: iStock/Getty Images Você consegue perceber que, tanto na visão dissimulada, quanto pejorativa, a compreensão do ócio é distorcida de seu conteúdo concreto? Em outras palavras, a sua imagem idealizada ou ideal permanece apenas como uma ilusão de um tempo e de um modelo de sociedade que já foram superados. É o reforço a valores românticos de uma possível e desejada volta a uma civilização mais natural ou humana. Entretanto, não podemos dizer que o ócio foi banido por completo da sociedade atual. Afinal, de acordo com Mascarenhas (2006, p. 19), o ócio persiste, mas [...] certamente não é com a força de outrora. Ao contrário, constitui hoje muito mais um ideal do que propriamente uma realidade. Entretanto, por mais afastados que possamos estar na história de sua concreta e dominante experi- ência, o ócio continua a exercer a função de preservar valores já alcançados, cultivando acesa a possibilidade de um tempo e espaço em que o homem possa reconciliar-se consigo e com a natureza, entregando-se integralmente ao desenvolvimento multilateral de suas capacidades físicas e intelectuais. 11 UNIDADE Lazer na Sociedade de Consumo Figura 3 Fonte: iStock/Getty Images Mas, se o ócio é uma abstração e impossível de se concretizar em nossa materialidade, por que essa ideia nos é tão aprazível? Para nos ajudar a refletir sobre esta questão, lançamos mão de uma longa e esclarecedora citação da Crítica à economia política, de Karl Marx (1982, p. 21): Mas a dificuldade não está em compreender que a arte grega e a epopéia estão ligadas a certas formas de desenvolvimento social. A dificuldade reside no fato de que nos proporcionam ainda um prazer estético e de ter ainda para nós, em certos aspectos, o valor de normas e modelos inacessíveis. [...] Um homem não pode voltar a ser criança sem cair na puerilidade. Mas não acha prazer na inocência da criança e, tendo alcançado um nível superior, não deve aspirar ele próprio a reproduzir a sua verdade? Em todas as épocas, o seu próprio caráter não revive na verdade natural da natureza infantil? Por que então a infância histórica da humanidade, precisamente naquilo em que atingiu seu mais belo florescimento, por que essa etapa para sempre perdida não há de exercer um eterno encanto? Há crianças mal educadas e crianças precoces. Muitos dos povos da Antigüidade pertencem a essa categoria. Crianças normais foram os gregos. O encanto que a sua arte exerce sobre nós não está em contradição com o caráter primitivo da sociedade em que ela se desenvolveu. Pelo contrário, está indissoluvelmente ligado ao fato de as condições sociais insuficientemente maduras em que essa arte nasceu, e somente sob as quais poderia nascer, não poderão retornar jamais. 12 13 Chegamos ao entendimento de que não é possível voltar na história para revivermos os tempos da Grécia Antiga, haja vista que tratamos de um modelo que foi construído sobre as características de sua época. Entretanto, essa com- preensão nos coloca novas questões: Mas, então, como construir algo novo para ser usufruído nesse “tempo livre”? O que o lazer representa para a nossa atual sociedade? Mascarenhas (2005) reconhece que é difícil precisar e conceituar o que seria uma nova forma histórica de apropriação do tempo livre. Isso porque as barreiras entre o tempo de trabalho e tempo livre dificultam a construção dessa nova proposta. Para esse autor, uma nova concepção de tempo livre só é possível “[...] em formas radicalmente novas de sociabilidade, em que liberdade e necessidade se conjugam frente à utilização criativa e a determinação autônoma do tempo como princípio da produção e reprodução social” (MASCARENHAS, 2005, p. 234). De toda forma, a proposição de uma nova abordagem de um fenômeno social passa por entender aquilo que é no tempo presente. Em outras palavras, para propormos novas formas de apropriação do tempo livre e das atividades de lazer, necessitamos conhecer o que o lazer é atualmente. Quais são as suas características, determinações e relações? Certamente, uma característica que demarca esse momento mais atual é a compreensão do lazer a partir do signo da mercadoria, determinada pela sua relação com o mercado. Mercantilização do Lazer No momento contemporâneo, a dimensão mais estimulada e presente em nossas vidas é a do lazer como mercadoria. Você concorda com essa hipótese? No seu dia a dia é comum você pa- gar para ter acesso ao lazer? Questionado de outra forma, você paga para praticar esportes, para ir à academia, para assistir a um filme no cinema, para comparecer a um espetáculo musical ou artístico? Percebe, por esses exemplos simples do nosso cotidiano, como nós consumimos atividades re- lacionadas aos nossos momentos de lazer? No entanto, antes de nos aprofundarmos no conhecimento sobre o processo de mercantilização do lazer, façamos um exercício para melhor compreendermos o lazer em nossa sociedade, tomando como ponto de partida o seguinte excerto: [...] o lazer permanece como categoria interna da economia política, sendo gerado e apropriado em decorrência das mesmas relações sociais. É por isso que ele traduz – à sua maneira – as esferas da produção, da distribuição, da troca e do consumo [...] quanto mais acentuada a hierarquia de classes; maiores se apresentam as distinções do tempo e das atividades do lazer (CUNHA, 1987, p. 20). 13 UNIDADE Lazer na Sociedade de Consumo Esta citação reforça a importância de contextualizarmos o lazer nos marcos de uma sociedade capitalista, com todas as suas características históricas, políticas, econômicas, sociais e, portanto, levando em consideração todasas transformações da sociedade e do trabalho que abordamos em unidades anteriores. Ao mesmo tempo, o trecho reafirma a necessidade da compreensão das lutas de classe para a garantia do tempo livre. A desconsideração desse aspecto traz o risco de uma análise e contextualização do lazer idealizada e a-histórica. Ignorando os elementos destacados, podemos ser levados a pensar, apressada- mente, que o tempo livre – e consequentemente o lazer – se opõe à lógica de or- ganização do capitalismo, tendo em vista a sua suposta característica de liberdade. O lazer pode parecer uma experiência lúdica e autônoma, desinteressada; porém, essa é apenas a sua aparência mais imediata. Buscando ir além do aparente, Mascarenhas (2006, p. 19) afirma que “[...] o lazer é hegemonicamente subserviente e útil às exigências e necessidade do capital”. Para Mascarenhas (2003, p. 97), o lazer é um “[...] fenômeno tipicamente moderno, resultante das tensões entre capital e trabalho, que se materializa como um tempo e espaço de vivências lúdicas, lugar de organização da cultura, perpassado por relações de hegemonia”. De acordo com esse autor, o que a aparência do lazer oculta é a sua funcionalidade prática aos interesses do capital: Se o sujeito particular não percebe conscientemente o caráter prático- material do lazer, enxergando-o apenas como algo desinteressado, isto não significa que sua leitura corresponda à verdade. Para além da esfera subjetiva, olhando para sua dimensão objetiva, o lazer revela-se como um fenômeno por demais interessado, altamente servil às demandas emanadas a partir do sistema de metabolismo social estruturado pelo capital (MASCARENHAS, 2006, p. 19). Figura 4 Fonte: iStock/Getty Images 14 15 Um exemplo dessa relação utilitária ou funcionalista do lazer ao capital foi apresentado em momentos anteriores, quando destacamos as funções do lazer em sua gênese. Aqui, referimo-nos ao uso do lazer como instrumento de controle social, em detrimento da possibilidade de seu usufruto como tempo e espaço de desenvolvimento e emancipação humana ou de promoção da qualidade de vida. Importante! Você se lembra das alterações no mundo do trabalho que estudamos na Unidade III? Que a reestruturação produtiva aumentou o desemprego e a instabilidade dos trabalhadores? Lembra, também, que a saída de muitos foi utilizar o “tempo livre” para buscar qualifi cação profi ssional, a fi m de tentar garantir a própria colocação no mercado de trabalho? Pois então, esse é um exemplo prático da submissão do tempo livre às demandas do mundo do trabalho. Importante! Na Unidade III destacamos que todos os aspectos da vida são impactados e influenciados pela forma como o sistema capitalista se organiza e funciona. Em outras palavras, os modos como acontecem a produção, divulgação e o consumo são transferidos para outros âmbitos da nossa vida. Dessa forma, não poderia ser diferente com o fenômeno do lazer. Outra informação que já destacamos nesta Disciplina é a alienação dentro do processo de trabalho, afastando o trabalhador dos meios e produtos de trabalho. Esse processo alienante não se restringe ao momento da produção econômica no trabalho, estendendo-se também à esfera do chamado “tempo livre”, momento no qual ocorrem as atividades e experiências do lazer. Ao mesmo tempo, Paulo Netto e Braz (2009) alertam que o capitalismo contemporâneo criou um “mercado mundial de bens simbólicos”, acentuado pela universalização do processo de mercantilização dos fenômenos sociais e de construção da cultura do consumo. Essa lógica comercial e de estímulo ao consumo alcança e penetra o campo do lazer, inclusive com desdobramentos sobre o seu conteúdo, que se adapta às tendências de mercado. Outro elemento que se soma à mercantilização, consumismo e reificação do lazer é o hedonismo. Mas o que é hedonismo? Tem como princípio básico a busca do prazer. Existem correntes filosóficas que defendem o prazer como o principal objetivo de nossas vidas. Entretanto, se em algum momento histórico a realização desse prazer esteve vinculada à esfera coletiva e pública da sociedade, atualmente o cenário é diferente. Hoje em dia, o que percebemos é uma exacerbação do individualismo hedonista. Ou seja, a efetivação do prazer se circunscreve à esfera do indivíduo. Portanto, não há mais espaço para uma consciência de classe, dado que a significação das coisas não se constrói no coletivo, mas determina-se pelos sentimentos individuais. É para atender a esses desejos pessoais – personalizados – e, ao mesmo tempo, efêmeros que o lazer deve se orientar. 15 UNIDADE Lazer na Sociedade de Consumo O hedonismo aceita as necessidades e interesses dos indivíduos como algo simplesmente dado e valioso em si. Nessas necessidades e interesses (e não em sua satisfação) se esconde já a mutilação, a repressão e a inverdade com que os homens crescem na sociedade de classes (MARCUSE, 1997, p. 169). Marx (1982, p. 9) afirma que “[...] a produção não se limita a fornecer um objeto material à necessidade, fornece ainda uma necessidade ao objeto material”. Dessa forma, na esfera do lazer, o capital cria uma necessidade: a felicidade fetichizada, atendendo às necessidades hedonistas da felicidade! Figura 5 Fonte: iStock/Getty Images Mas como se realiza essa felicidade em tempos recentes? Se juntarmos os elementos que destacamos, é possível observar que o ideal distorcido de felicidade é preenchido pela capacidade de consumo. Ou seja, é comum condicionarmos a nossa alegria e o prazer – ainda que de forma “inconsciente” – ao consumo de um universo cada vez mais amplo e diversificado de mercadorias. No caso do lazer, a oferta desses produtos é realizada pela indústria cultural e do entretenimento, que oferece ao sujeito-consumidor atividades como viajar, comer, beber, divertir- se em cinemas, bares e shoppings centers. Voltamos, neste ponto, àquela situação paradoxal, mas que, na verdade, é um paradoxo aparente: Mas, afinal, de qual paradoxo ou contradição estamos 16 17 tratando? Perceba que novamente podemos ser conduzidos a pensar que as atividades de lazer, à primeira vista, parecem ser um momento de liberdade e livre escolha dos sujeitos e, por conseguinte, um contraponto ao trabalho alienado. Entretanto, Chauí (1999, p. 48) chama nossa atenção de que o tempo livre está sob controle e as atividades e experiências de lazer, adaptadas à lógica do mercado. [...] a sociedade administrada também controla as conquistas proletárias sobre o tempo de descanso, ou chamado “tempo livre”. A indústria cultural, a indústria da moda e do turismo, a indústria do esporte e do lazer estarão estruturadas em conformidade com as exigências do mercado capitalista e são elas que consomem todo o tempo [...]. Você consegue notar o que a autora está tentando demonstrar? Chauí (1999) apresenta a relação direta entre as atividades de lazer e os interesses do capitalismo. E é por isso que não há paradoxo ou contradição real; o que existe é uma relação de complementariedade e adaptação entre o lazer-mercadoria e o capital, entre tempo de trabalho e tempo livre. A produção, difusão e circulação de bens culturais estão diretamente atreladas aos interesses do mercado capitalista. Mas, então, por que desejamos tanto o lazer? Por que buscamos momentos de diversão e fuga das demandas do cotidiano? O fato é que como, muitas vezes, não encontramos a nossa realização pessoal ou um sentido em nosso trabalho, tal dimensão de nossas vidas não representa um momento de liberdade ou felicidade. Ao contrário disso, é visto como um momento importante, de responsabilidade, mas igualmente penoso e árduo. Diante disso, apostamos todas as nossas “fichas” no lazer, sem percebermos que esse também pode não representar o espaço do exercício da liberdade. Em função da sensação de diversão e alegria momentânea que, normalmente, nos proporciona, depositamos as nossas expectativas nas atividades de lazer como “válvulas deescape” ao trabalho alienado. Importante! Cunha (1987) afi rma que, em decorrência das imposições do trabalho e da fragmentação do tempo e das relações de trabalho, as atividades de lazer são vistas como ações compensatórias, recuperando a integridade humana do indivíduo em momentos e situações particulares. No entanto, essa é uma falsa impressão de liberdade. Trocando ideias... 17 UNIDADE Lazer na Sociedade de Consumo Figura 6 Fonte: iStock/Getty Images Valquíria Padilha (2000), ao se debruçar sobre a análise do tempo livre na sociedade contemporânea, afirma também que a felicidade e o bem-estar nesta sociedade estão atrelados ao consumo alienado e abstrato de mercadorias e que o lazer não escapou desse processo de mercantilização, apresentando-se como atividade prioritariamente de consumo. Paul Lafargue escreveu, em 1880, um texto provocativo denominado O direito à preguiça. Provavelmente, hoje esse autor estaria extremamente decepcionado se estivesse vivo para presenciar o desenrolar dessa história. O tempo livre não apenas desconsiderou as “virtudes da preguiça”, como também se tornou, por meio do lazer, um importante espaço de realização das relações comerciais e, portanto, das demandas do mercado. Ao contrário de sua pretensão, o tempo livre tem se tornado cada vez mais funcional às necessidades do capital. Ficou claro para você, estudante, como o lazer se tornou também uma mercado- ria? Que se encontra inserido e em consonância ao mercado capitalista, reprodu- zindo a sua forma de organização a partir do consumo? E a partir da fetichização da felicidade como fim último de sua prática? Em síntese, podemos perceber que a relação das pessoas que vivem do trabalho com o seu tempo de lazer apresenta, basicamente, duas possibilidades: No primeiro caso, quando estão fora do mercado de trabalho, suas alternativas de uso e experiências de lazer se reduzem, além de preencher o tempo livre com atividades que auxiliem à reinserção no mercado de trabalho. 18 19 No segundo caso, essas pessoas estão empregadas, mas ficam à mercê da fetichização do tempo livre ou de atividades que venham a complementar a renda familiar. Em outras palavras, restringe-se o lazer ao seu consumo, de modo que apenas tem acesso ao divertimento – sem discutir sequer o seu conteúdo – quem pode pagar pelo qual. A partir desse entendimento e, para melhor definir esse fenômeno, o professor Fernando Mascarenhas (2005), em sua tese de Doutorado, desenvolve a categoria mercolazer. Figura 7 Fonte: iStock/Getty Images Mas o que seria mercolazer? Veremos os elementos necessários para responder a esta questão na próxima seção deste Material teórico, onde abordaremos a indústria do lazer e entretenimento – considerando que esse setor é o principal responsável pela proliferação e circulação do mercolazer. Características da Indústria do Lazer e Entretenimento Mascarenhas (2006), ao explicar mercolazer, faz a partir da definição de uma pirâmide social, na ponta da qual se localiza uma pequena parcela da população, que tem amplo acesso ao lazer-mercadoria. Atualmente, temos cada vez menos tempo livre em função das demandas do cotidiano que vão além do trabalho e também fazem com que tenhamos um ritmo de vida cada vez mais acelerado. Diante desse cenário, como forma de compensação concentrada para o estresse provocado pelo dia a dia, os indivíduos buscam prazer intenso, imediato e de curta duração. Para atender a essa demanda, Mascarenhas (2005) afirma que a forma mais avançada elaborada de mercolazer seria o “êxtase-lazer”’. Exemplos de atividades desse formato de lazer seriam aqueles envolvendo sempre um alto 19 UNIDADE Lazer na Sociedade de Consumo grau de adrenalina e risco – esportes e turismo de aventura –, além dos festivais de música eletrônica – festas raves – que, por vezes, vêm acompanhados de um pacote de serviços – alimentação, bebida, viagem, hospedagem e vestuário – de custo muito elevado, mais a presença de drogas sintéticas. Figura 8 Fonte: iStock/Getty Images Importante! Recorde que já dissemos em outro momento desta Unidade que a nossa sociedade contemporânea apresenta, entre outras características, o individualismo, hedonismo e a efemeridade, sendo que tais particularidades perpassam as vivências do “êxtase-lazer”. Importante! No nível intermediário da pirâmide encontramos a classe média da popula- ção – com as suas variações – e que não tem acesso ao lazer-mercadoria mais sofisticado. Esse grupo comumente paga pelas atividades de lazer, porém, acaba recorrendo a versões mais baratas e simples do chamado “êxtase-lazer”, inclusive com significativa incorporação da cultura de massa. Ao mesmo tem- po, transitam também pelas oportunidades do lazer gratuito, sobretudo quando esse ocorre junto a seus locais de moradia. 20 21 Figura 9 Fonte: iStock/Getty Images Na base da pirâmide está a grande maioria da população, que deve se con- tentar com lazer muito barato ou gratuito; neste último caso, destaca-se ainda a televisão. Outra possibilidade para esse estrato é o lazer filantrópico como, por exemplo, as atividades esportivas, artísticas e culturais promovidas como políticas sociais, cujo objetivo é auxiliar as áreas de risco e vulnerabilidade social, afastando os jovens das drogas e da violência. Aqui é preciso fazer algumas ressalvas para evitar generalizações indevidas: primeiro, é possível perceber que há trânsito entre os níveis das pirâmides; além disso, nota-se que algumas atividades de lazer e expressões artístico-culturais surgidas em determinado nível da pirâmide são incorporadas por outro e, assim, ressignificadas. A título de exemplo, há muitas festas altamente sofisticadas e de alto custo, mas que fazem uso de expressões da cultura popular, como o samba e a música sertaneja. Mascarenhas (2006) apresenta ainda outro segmento da indústria do lazer representado pelas práticas corporais: o mundo fitness. Para esse teórico, uma parcela da população procura a academia como espaço não apenas para exercícios que lhe permitam suportar o acelerado ritmo de vida, mas também como forma de responder às frustrações despertadas pelos veículos midiáticos; 21 UNIDADE Lazer na Sociedade de Consumo “[...] a academia opera hoje como uma espécie de fast food das práticas corporais, prometendo respostas rápidas e aquilo que não é capaz de cumprir”. Dessa forma, tais empresas trabalham com a lógica da descartabilidade das práticas corporais, de modo que possuem capacidade de investimento para lançar sempre uma nova mercadoria – outra prática corporal –, com o intuito de manter o interesse do cliente, sem a preocupação com a sua fidelidade – para utilizar um termo próprio da lógica do business. Figura 10 Fonte: iStock/Getty Images Assim, o mercolazer e as suas diferentes representações – ou formas de acesso – ratificam a transformação do tempo livre e do lazer em um espaço da circulação de amplo leque de serviços e produtos ofertados pela indústria do entretenimento. No entanto, não podemos perder de vista que essa maneira de compreender e agir sobre o lazer não retira desse fenômeno a sua determinação original – que também era a do trabalho: sua estreita ligação com a emancipação humana. 22 23 Seria possível o surgimento de uma nova forma de lazer? Nesse caso, a melhor opção seria voltarmos ao ócio grego? Conseguiríamos materializar as qualidades da preguiça? Como concretizar no “tempo livre” o espaço para atividades que possibilitassem a emancipação humana? Ex pl or Figura 11 Fonte: iStock/Getty Images Teorizar e buscar respostas para tais perguntas seriam possíveis com o fim da regência do capital sobre o trabalho e, consequentemente, acerca do tem- po livre. Como vimos, no capitalismo é falsa a ideia de que lazer e trabalho são contrários, afinal, o capital tornou o lazer mais uma de suas mercadorias, possibilitando, de forma ilusória, a fuga do trabalho alienado. Em uma espécie de emboscada ou labirintosomos aprisionados exatamente naquilo que ten- tamos fugir, pois a nossa fuga acaba tendo como destino final a alienação na maioria das atividades de lazer. 23 UNIDADE Lazer na Sociedade de Consumo Figura 12 Fonte: iStock/Getty Images Em uma sociedade emancipada, ou seja, onde pudéssemos superar esse do- mínio do capital, tal característica alienante não existiria. Dessa forma, o tempo disponível poderia ser utilizado para o desenvolvimento do sujeito, de modo que seria possível uma aproximação do indivíduo ao gênero. Não se trata de termos uma sociedade robotizada e/ou homogeneizada, mas sim de que o sujeito tenha as condições concretas de se apropriar de toda a construção histórico-social da humanidade – nessa condição, o trabalho não seria alienante e desumanizante. De toda forma, é necessário refletir sobre as possibilidades e os limites do lazer na luta por uma sociedade mais humanizada – emancipada. Nas atuais circunstâncias de sociabilidade, essa conquista passa pela redução da jornada de trabalho – com consequente aumento do “tempo livre”, já que o atual avanço tecnológico nos permite sonhar com essa possibilidade. Ao mesmo tempo, é igualmente importante uma preocupação com a ocupação desse “tempo livre” com atividades que estimulem o desenvolvimento humano, a 24 25 vida com qualidade e a constituição de sujeitos críticos e criativos. Tais elementos têm o potencial para a construção de condições reais de uma vida com sentido – e não somente em busca de uma felicidade momentânea e hedonista. Mas será que é possível, dentro da conjuntura em que vivemos, desenvolver atividades que sejam, de fato, emancipatórias? Não há uma resposta fácil, pois muitos dirão que se trata de uma utopia. Diferente disso, pensamos que há a possibilidade de uma resposta positiva para tal questão. Acreditamos nisso olhando para as atividades educativas de caráter transformador, cujos exemplos podem estar na própria educação popular desenvolvida no País; nas atividades políticas que, diferentemente dos episódios negativos que nos acostumamos a ver, ocupem tempo e espaço da construção coletiva e do exercício de participação; e nas atividades artístico-culturais de resistência à chamada indústria cultural. Como o lazer surgiu em forma de controle do tempo livre – lembra-se da segunda Unidade? –, com o intuito de manipular as consciências – em forma de entretenimento –, percebemos certa dificuldade nesse processo de aproximação do indivíduo ao desenvolvimento de todo o gênero. Ora, muitas vezes o trabalhador, em seu “tempo livre”, acaba por “escolher” ir ao shopping center ou, então, opta por ouvir músicas que vulgarizam e estereotipam a figura das mulheres; ou assiste a filmes considerados banais, ou seja, destituídos de conteúdo mais reflexivo. Aqui não cabe julgamento em relação às escolhas do trabalhador, pois precisamos reconhecer a dura vida que o cotidiano lhe impõe. Ao contrário disso, nosso objetivo, no âmbito do lazer, é apresentar outras possibilidades para além do mercolazer ou de suas formas manipuladoras. E como podemos, então, pensar em outras possibilidades para o lazer além das formas de manipulação? Não há uma única resposta para essa pergunta, porém, uma alternativa é exigirmos do Estado o cumprimento de seu dever. Mas se trata de qual dever estatal? Aqui não há dúvidas, afinal, referimo-nos à garantia do acesso ao direito social ao lazer, permitindo a promoção universal – para toda a população – a atividades com conteúdo e não alienantes. Outra forma importante de resistência é garantir, na escola, o espaço de produ- ção e adequação de conteúdos culturais e de formação para a apreciação de ativida- des que extrapolem os conteúdos disseminados pela mídia, a fim de que os alunos consigam apreciar a cultura para além do que é exibido na televisão, que ouçam músicas que não reproduzam as expressões empobrecidas, e que se interessem pela participação política, ao invés de vê-la como algo extremamente negativo. 25 UNIDADE Lazer na Sociedade de Consumo Material Complementar Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade: Livros Lazer e humanização MARCELLINO, N. C. Lazer e humanização. Campinas, SP: Papirus, 1983. Gestão pública e política de lazer: a formação de agentes sociais MASCARENHAS, F. Outro lazer é possível! Desafio para o esporte e lazer da cidade. In: CASTELLANO FILHO, L. Gestão pública e política de lazer: a formação de agentes sociais. Campinas, SP: Autores Associados, 2007. p. 17-40. Lazer, cultura e educação: contribuição ao debate contemporâneo PADILHA, V. Trabalho, lazer e consumo nas sociedades contemporâneas. In: MAS- CARENHAS, F.; LAZZAROTTI FILHO, A. Lazer, cultura e educação: contribuição ao debate contemporâneo. Goiânia, GO: UFG, 2012. p. 51-74. Filmes Criança, a alma do negócio Criança, a alma do negócio. Dir. Estela Renner. Brasil, 2008. 49min. O Preço do Amanhã O preço do amanhã. Dir. Andrew Niccol. Estados Unidos, 2011. 1h49. 26 27 Referências CHAUÍ, M. Introdução. In: LAFARGUE, P. O direito à preguiça. São Paulo: Hucitec, 1999. CUNHA, N. A felicidade imaginada. São Paulo: Brasiliense, 1987. MARCELLINO, N. C. Lazer e educação. Campinas, SP: Papirus, 1987. MARCUSE, H. Cultura e sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. MARX, K. Prefácio [à Crítica da economia política]. In: Para a crítica da economia política [e outros escritos]. São Paulo: Abril Cultural, 1982. (Col. Os economistas). MASCARENHAS, F. Em busca do ócio perdido: idealismo, panaceia e predição histórica à sombra do lazer. In: PADILHA, V. Dialética do lazer. São Paulo: Cortez, 2006. ________. Entre o ócio e o negócio: teses acerca da anatomia do lazer. 2005. Tese (Doutorado)-Faculdade de Educação Física da Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, 2005. ________. Lazer como prática de liberdade: uma proposta educativa para a juventude. Goiânia, GO: UFG, 2003. PADILHA, V. Tempo livre e capitalismo: um par imperfeito. Campinas, SP: Alínea, 2000. PAULO NETTO, J.; BRAZ, M. Economia política: uma introdução crítica. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2009. 27
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