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Lazer, Trabalho e Sociedade Material Teórico Responsável pelo Conteúdo: Prof. Dr. Pedro Fernando Avalone Athayde Revisão Textual: Prof. Esp. Claudio Pereira do Nascimento Aspectos históricos da relação entre lazer e trabalho • Introdução; • As reivindicações pela diminuição da jornada de trabalho; • O Surgimento do Lazer; • Características Gerais da Origem do Lazer no Brasil. · Conhecer os elementos históricos das lutas pela diminuição da jornada de trabalho e seus impactos no uso do tempo livre; · Localizar historicamente a gênese do lazer; · Conhecer as funções iniciais do lazer em seu surgimento global e local. OBJETIVO DE APRENDIZADO Aspectos históricos da relação entre lazer e trabalho Orientações de estudo Para que o conteúdo desta Disciplina seja bem aproveitado e haja maior aplicabilidade na sua formação acadêmica e atuação profissional, siga algumas recomendações básicas: Assim: Organize seus estudos de maneira que passem a fazer parte da sua rotina. Por exemplo, você poderá determinar um dia e horário fixos como seu “momento do estudo”; Procure se alimentar e se hidratar quando for estudar; lembre-se de que uma alimentação saudável pode proporcionar melhor aproveitamento do estudo; No material de cada Unidade, há leituras indicadas e, entre elas, artigos científicos, livros, vídeos e sites para aprofundar os conhecimentos adquiridos ao longo da Unidade. Além disso, você também encontrará sugestões de conteúdo extra no item Material Complementar, que ampliarão sua interpretação e auxiliarão no pleno entendimento dos temas abordados; Após o contato com o conteúdo proposto, participe dos debates mediados em fóruns de discus- são, pois irão auxiliar a verificar o quanto você absorveu de conhecimento, além de propiciar o contato com seus colegas e tutores, o que se apresenta como rico espaço de troca de ideias e de aprendizagem. Organize seus estudos de maneira que passem a fazer parte Mantenha o foco! Evite se distrair com as redes sociais. Mantenha o foco! Evite se distrair com as redes sociais. Determine um horário fixo para estudar. Aproveite as indicações de Material Complementar. Procure se alimentar e se hidratar quando for estudar; lembre-se de que uma Não se esqueça de se alimentar e de se manter hidratado. Aproveite as Conserve seu material e local de estudos sempre organizados. Procure manter contato com seus colegas e tutores para trocar ideias! Isso amplia a aprendizagem. Seja original! Nunca plagie trabalhos. UNIDADE Aspectos históricos da relação entre lazer e trabalho Introdução O que você achou de nossa primeira unidade de conteúdo? Teve dificuldade com os temas apresentados? Ficou surpreso com a abordagem dada aos temas? Se sim, leia novamente o material, converse com seus colegas, busque ajuda de seu tutor. O estudo coletivo é sempre uma ótima forma de aprendizado, pois nos coloca em contato com outras leituras e interpretações sobre o conteúdo abordado, compartilhando dificuldades e buscando superá-las em conjunto. Como forma de ajudá-lo, antes de iniciarmos esta segunda Unidade, apresentaremos uma rápida revisão dos temas tratados anteriormente. Figura 1 Fonte: iStock/Getty Images Inicialmente, buscamos compreender quão importante o trabalho é para o desenvolvimento do gênero humano. Você se recorda da afirmação que o trabalho representa a essência humana? Essa afirmativa está baseada em que quatro características que diferenciam o trabalho de atividades realizadas por outros animais, são elas: 1) não ser realizado diretamente sobre a matéria natural (necessidade de instrumentos); 2) não se realizar a partir de determinações genéticas; 3) não possuir uma lista limitada de necessidades a serem supridas; e 4) ser sempre uma atividade coletiva. Após abordarmos as propriedades do trabalho como essência humana, buscamos compreender as etapas do processo de trabalho no intercâmbio estabelecido entre homem e natureza, nos referimos às três fases: projeto, execução e produto. Reconhecendo a importância do estudo da mercadoria como chave interpretativa da dinâmica da sociedade capitalista, estudamos também as condições para que um objeto produzido para atender uma necessidade humana (inicialmente apenas com valor de uso) passe a ser considerado mercadoria, acrescentando a ele também 8 9 o valor de troca. E, a partir dessa compreensão, foi possível observar como se organiza o trabalho na sociedade vigente, caracterizando-se como o aspecto principal para a valorização do capital e, então, se tornando ele mesmo uma mercadoria, denominada força de trabalho. Ademais, abordamos a separação do trabalhador das etapas do processo de trabalho, o que constitui a forma de alienação do trabalho. Em outras palavras, o sujeito passa a produzir para outra pessoa, deixando de ser o detentor dos meios de produção e, consequentemente, se separando do próprio produto de seu trabalho. Na parte final da unidade inicial, tratamos das possibilidades de extração de mais-valia pelo empregador. A primeira, mais evidente, com a extensão da jornada de trabalho, ampliando o número total de horas trabalhadas, denominada de mais- valia absoluta. Já a segunda, como consequência do incremento tecnológico nas manufaturas, ocorre com o aumento da produtividade e recebe o nome de mais- valia relativa. De forma resumida, esses foram os assuntos abordados em nossa primeira unidade. Você percebeu que ainda nem tocamos no tema do lazer? Calma, pois chegaremos nele! Entretanto, conforme já havíamos avisado na disciplina de Lazer e Entretenimento, há uma forte ligação entre trabalho e lazer e, portanto, precisamos conhecer bem esses dois fenômenos, para, então, entender melhor a relação entre eles. Agora, você se sente mais preparado para nossa segunda parada? Incialmente, é importante destacar que partimos de um pressuposto epistemológico que para melhor compreender um objeto de estudo, precisamos conhecer sua origem e seu desenvolvimento. Nesse sentido, vamos focar na reflexão e compreensão histórica das relações entre o lazer e o trabalho. Prontos? Então...vamos lá! As reivindicações pela diminuição da jornada de trabalho A quantidade de tempo “livre” ou disponível para vivenciarmos e praticarmos as atividades de lazer está diretamente condicionado pelo tempo que gastamos com nossas obrigações sociais e profissionais. Nesse último caso, nos referimos às horas dedicadas ao trabalho, ou seja, à jornada de trabalho. De forma muito simplista, quanto menor a jornada de trabalho, teoricamente, maior seria o tempo livre. Entretanto, vejamos com mais calma essa relação! 9 UNIDADE Aspectos históricos da relação entre lazer e trabalho Figura 2 Fonte: iStock/Getty Images Carga horária de trabalho no Brasil: Recentemente, o Brasil passou por uma reforma trabalhista, apesar das mudanças realizadas a jornada de trabalho manteve-se em até 44 horas semanais. Esse limite foi estabelecido em 1988, distanciando-se do limite de 48 horas, em vigor desde 1934. Por motivos bem distintos, esse número é alvo de críticas tanto de empresários quanto de entidades sindicais. Por um lado, o empresariado defende a flexibilização da jornada de trabalho e, por outro lado, os sindicatos reivindicam a redução para 40 horas semanais. Ex pl or Após verificarmos, na unidade anterior, a subsunção real do trabalho ao capital, ou seja, o fato de o trabalhador encontrar-se completamente submetido à lógica do capital. Nessa situação, o trabalho passa a ser compreendido não mais como forma de exteriorização de sua essência humana, mas, sim, como forma de negação de sua humanidade, pois passa a representar somente a maneira de garantir um salário que garantirá sua existência e de sua família. Queremos dizer é que o sujeito-trabalhador para sobreviver, vende sua força de trabalho ao empregador, para ter meios financeiros de sustentar sua existência. Dessa forma, o trabalho deixa de seraquela expressão de liberdade representada “pela alteração intencional do homem sobre a natureza”. Salvo algumas exceções, em geral, o trabalho não é um momento que priorize o desenvolvimento humano, como vimos no primeiro momento de compreensão do sentido do trabalho. 10 11 Figura 3 Fonte: iStock/Getty Images Se, por um lado, o trabalho na ordem social capitalista se reduz à forma de garantir a sobrevivência do trabalhador, por outro lado, proporciona as condições objetivas para que ele perceba sua condição existencial. Em outras palavras, o sujeito passa a compreender qual é o papel social que ele ocupa. Neste caso, o de gerar valor para os produtos por meio do seu trabalho, embora a apropriação disso seja realizada pelo seu empregador. O que isso quer dizer? Bem, a partir do momento em que o trabalhador passa a compreender o sistema capitalista e a se enxergar nesse sistema, ele também percebe que para uma existência digna é necessário que tenha condições para morar, comer, beber, dormir e entre outras coisas. No entanto, os trabalhadores se encontravam em condições de vida muito duras e que afetavam sua própria existência. Um filme já citado na disciplina Lazer e Entretenimento e que retrata a condição precária dos trabalhadores do século XIX na França é o “Germinal”, baseado no romance original de Émile Zola. A partir da compreensão do funcionamento da ordem capitalista, os trabalhadores pud- eram perceber o problema das desigualdades entre eles e seus empregadores. Dessa forma, se organizavam para buscar soluções e melhores condições de vida, procurando alternativas para superar as difi culdades impostas por essas desigualdades. E dessa organização e mobi- lização da classe trabalhadora que começam a surgir os atos revolucionários e as principais teorizações a respeito de outras formas de organização social. Ex pl or 11 UNIDADE Aspectos históricos da relação entre lazer e trabalho Numa visão onde os trabalhadores eram vistos somente pelo que eles representavam – a valorização do capital – eles próprios acabavam sendo considerados como mercadorias: a força de trabalho. Igualado a qualquer tipo de mercadoria, a jornada de trabalho era calculada como se as 24 horas do trabalhador fossem propriedade de seu empregador, que pagava por esta “mercadoria-homem”. Não havia uma preocupação com a extensão da jornada de trabalho, era disponibilizado somente o tempo necessário para o descanso do trabalhador, sem o qual não voltaria a produzir novamente. Figura 4 Fonte: iStock/Getty Images Perceba que o trabalhador era circunscrito a sua força de trabalho e, portanto, todo o seu tempo social era visto como tempo de trabalho. Não havia nenhuma preocupação em garantir ao trabalhador momentos para escolarização, convívio social, espiritualização etc. Ou seja, não era proporcionado nenhum tempo para outras atividades que pudessem desenvolver as capacidades humanas. O dia do trabalhador era destinado à produção nas fábricas e algumas horas para reposição de suas energias para voltar a produzir no dia seguinte. Tem-se o registro histórico de jornadas de trabalho diárias que chegavam a 16 horas. Você já se imaginou em uma situação como essa? Como ter qualquer tipo de apropriação qualitativa do tempo livre nessas condições? Atualmente, atingimos novos patamares de civilidade e de regulação das leis trabalhistas, que impedem jornadas muito extensas e em condições degradantes. No entanto, é verdade que mesmo nos dias de hoje ainda encontraríamos empregadores que, se permitido, colo- cariam seus empregados sob condições desumanas de trabalho, dado o caráter dos interess- es capitalistas em obtenção de valorização e acumulação de capital. A prova do que estamos falando é que, de forma ilegal, existe um conjunto de pessoas trabalhando em condições próximas da escravidão nos grandes centros urbanos do mundo, especialmente aqueles que são imigrantes ilegais e, portanto, estão impedidos de assumir um trabalho formal. Ao estudar a estrutura do capitalismo, no século XIX, Karl Marx descreveu esse processo de extensão da jornada de trabalho de forma desumana. Ele relata a existência de crianças com menos de 12 anos de idade em fábricas, cumprindo jornadas que começavam às 5h da manhã e se estendendo até depois das 20h, sem finais de semana. As condições eram tão degradantes que este autor saudava a conquista dos trabalhadores ingleses na regulamen- tação de uma jornada de trabalho de 12 horas, que hoje ainda é uma jornada extensa para nossa realidade, mas que representou uma vitória para os trabalhadores daquela época. Ex pl or 12 13 Importante! Origem das lutas pela redução da jornada de trabalho: De acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), a redução da jornada de trabalho era um dos objetivos originais da legislação trabalhista. A principal técnica para alcançar essa meta, a imposição de limites de horas que podem ser trabalhadas em cada dia ou na semana, apareceu pela primeira vez em leis editadas em países europeus em meados do século XIX para reduzir a jornada de trabalho das crianças (OIT, 1967). Você Sabia? Para saber mais sobre o tema, leia o material disponível em: https://goo.gl/am9eU3 Ex pl or Diante dessa situação, os trabalhadores começam a se organizar para reivindicar melhores condições de trabalho e a redução da jornada de trabalho. Percebe-se aqui o surgimento de uma organização da classe dos trabalhadores, uma primeira manifestação do chamado movimento operário. Figura 5 Fonte: iStock/Getty Images A organização dos trabalhadores tinha uma bandeira de luta que ainda hoje é válida, qual seja: reposição adequada das energias vitais, o atendimento das necessidades básicas, e a ampliação do “tempo livre” para a realização de atividades humanas para além do trabalho, tais como: educação, descanso, lazer, organização classista, entre outras. Polato (2003, p. 156) afirma que “O tempo livre e o lazer têm, inevitavelmente, um caráter de classe, pois estão inseridos nas esferas das lutas políticas e ideológicas da classe trabalhadora”. Não há como discordar dessa afirmação, já que se não fossem pelas lutas do movimento operário, as jornadas de trabalho continuariam sem permitir que o trabalhador realizasse qualquer outra atividade além de produzir e repor as energias para voltar a produzir. 13 UNIDADE Aspectos históricos da relação entre lazer e trabalho Você pode perceber que, até este momento, o trabalhador não dispunha de nenhum “tempo livre”. Os poucos momentos de divertimento que aconteciam se limitavam ao consumo de bebidas nas tabernas e alguns festejos populares. Na maioria dos casos, não havia espaço para outras atividades diferentes da produção nas manufaturas. Entretanto, aos poucos, esse cenário come- çava a se alterar com as conquistas dos traba- lhadores pela redução da jornada de trabalho, o que poderia garantir novas formas de apropria- ção do tempo de não trabalho. Surge, então, uma maior preocupação dos empregadores em relação àquilo que seus empregados realizavam no momento em que não estavam dentro das fábricas. O Surgimento do Lazer Na seção anterior, falamos sobre a jornada de trabalho no surgimento da socie- dade industrial. Nesse primeiro momento, demonstramos que a carga horária e as condições de trabalho impediam o trabalhador de qualquer apropriação com qua- lidade do tempo livre. No entanto, esse cenário começa a ser modificado a partir das primeiras mobilizações e reinvindicações do movimento operário em relação à redução da jornada de trabalho. Importante! Em fala transcrita, proferida no II Ciclo de Debates Lazer e Motricidade, na Unicamp, o professor Ricardo Antunes apresentou sete teses sobre a relação entre tempo de trabalho e tempo livre, são elas: (I) redução da Jornada de Trabalho; (II) a conquista da redução da Jornada de Trabalho é condição necessária para a reflexão sobre o tempo de trabalho e o tempo da vida, bem como para uma vida dotadade sentido fora do trabalho; (III) uma vida cheia de sentido fora do trabalho supõe uma vida dotada de sentido dentro do trabalho; (IV) uma vida repleta de sentido dentro e fora do trabalho só é possível com o fim das barreiras entre o tempo de trabalho e o tempo de não trabalho (uma outra sociabilidade); (V) a luta pela redução da jornada de trabalho deve ser o centro das ações do mundo do trabalho; (VI) mesmo antes da conquista da redução é necessário defender o direito ao trabalho; e, (VII) luta pelo direito ao tempo livre. Você está de acordo com as teses levantadas para o autor? Na sua concepção, o que significa uma vida com sentido dentro e fora do trabalho? Trocando ideias... Figura 6 Fonte: iStock/Getty Images 14 15 Essa modificação na situação de vida dos trabalhadores, com a ampliação do tempo “livre” ou disponível, levou a uma maior preocupação dos empregadores com aquilo que os trabalhadores faziam nesses momentos. Relacionado a essa preocupação, encontra-se o surgimento do lazer, conforme veremos nesta Unidade. Para compreendermos o surgimento do lazer, precisamos entender como foi se modificando a organização e percepção do tempo. Hoje é muito natural ao perguntarmos as horas e alguém olhar para o seu relógio ou Smartphone, mas esses aparelhos são invenções modernas. Sendo assim, como as pessoas faziam antes disso para saber as horas e minutos do dia? Será que a humanidade sempre se organizou a partir dessas unidades de medida do tempo? Como faziam para estabelecer o tempo de duração da jornada de trabalho? Thompson (1998) nos ajuda a responder algumas das questões acima, demons- trando que a divisão do tempo nem sempre foi realizada da forma como a que co- nhecemos atualmente. Em sociedades e comunidades mais antigas, a percepção do tempo estava diretamente ligada à realização de tarefas ou às condições climáticas. Em muitas dessas civilizações, havia, ao contrário de hoje, um descaso/desprezo pela pressa e pelo tempo rígido e cronometrado. Um exemplo do que estamos falando pode ser encontrado na disciplina Lazer e Entretenimento, quando Melo e Alves Junior (2003) demonstram que na Grécia Antiga o tempo livre era valorizado para o cultivo à atividade contemplativa e os valores nobres da época. Portanto, era um tempo para a reflexão e autoconhecimento e não um tempo a ser utilizado de forma rápida e eficiente. Importante! E. P. Thompson (1998) nos faz duas perguntas importantes sobre as mudanças na organização do tempo, são elas: De que forma a mudança no senso do tempo afetou a disciplina do trabalho? E até que ponto infl uenciou a percepção interna de tempo dos trabalhadores? Importante! É possível observar que naquelas sociedades, que se organizavam a partir da realização das tarefas, há pouca ou nenhuma separação entre o “trabalho” e a “vida”. Ou seja, o trabalho se mistura com as relações sociais e com outras atividades do cotidiano. A orientação pela tarefa leva em consideração o atendimento às necessidades humanas daquela época. Nesse sentido, não te parece que essa forma de organização seja, humanamente, mais compreensível do que a do trabalho de horário marcado? Marcassa (2002) afirma que é a partir do século XVII que podemos perceber o movimento de controle e racionalização do tempo, por meio do desenvolvimento da ciência moderna, com o incentivo uso da razão para descobrir e dominar a verdade, até então revelada por explicações místicas ou religiosas. 15 UNIDADE Aspectos históricos da relação entre lazer e trabalho Antes da Idade Moderna, a verdade “era revelada por Deus a seus representantes na Terra”. Temos, então, com o advento da Idade Moderna, a passagem do “teo” para o “antropo” centrismo. O homem passa a ser o centro das preocupações e, portanto, detentor de inteligência para desvendar os mistérios do mundo e, portanto, dominá-lo, a partir do pensamento, da observação e dos experimentos científicos. Ex pl or Figura 7 Fonte: iStock/Getty Images Esse ímpeto em conhecer, explicar e controlar os fenômenos, como o funciona- mento do mundo e do corpo humano, foi projetado também em conhecer e con- trolar a vida social e, para seu controle, seria necessário quantificar, dividir e definir o ritmo do tempo social. Para auxiliar nesse controle, elaboraram-se instrumentos de medição do tempo, o mais conhecido deles o relógio mecânico. Importante! A invenção do relógio: Apesar de parecer um acessório banal – e muitas vezes em desuso - nos dias de hoje, o relógio, naquela época, era um importante instrumento para regular os novos ritmos da vida industrial e, ao mesmo tempo, uma das mais urgentes necessidades que o capitalismo industrial exigia para impulsionar seu avanço. Sua importância era tão grande que seu uso dentro das fábricas era proibido para evitar que os trabalhadores pudessem autocontrolar sua jornada de trabalho. Além disso, era um objeto muito caro para ser comprado por um trabalhador comum e, portanto, acabava sendo um patrimônio da família, além de um elemento de distinção de classe. Era comum entre os mais ricos a formação de “clubes de relógio”. Ademais, nessa época, chegaram a existir tentativas de criar leis para a taxação de relógios. Você Sabia? 16 17 Figura 8 Fonte: iStock/Getty Images A essa altura, você pode estar se perguntando o que o controle do tempo e a invenção do relógio têm a ver com o surgimento do lazer? Para responder a essa questão, é importante lembrarmos que no tópico anterior demonstramos que os trabalhadores não dispunham de tempo para realizar outra atividade além do trabalho e do descanso necessário para continuar a produzir. No entanto, por outro lado, já dissemos que os estudos de Thompson (1998) demonstravam que em sociedades mais antigas o cenário era diferente, pois havia uma clara distinção entre trabalho, diversão, descanso e convívio familiar e social. Esses elementos permitem observarmos que nas sociedades pré-capitalistas não existia o lazer, já que não havia uma divisão entre tempo de trabalho e tempo de não trabalho. Marcassa (2002), então, afirma que a consolidação do capitalismo, a urbanização, a modernização das cidades e o processo de industrialização romperam com essa “falta” de organização e divisão do tempo. Passa a ser necessário, então, medir, controlar e definir as atividades a serem desenvolvidas em cada espaço de tempo. Ficando, dessa forma, evidente a divisão entre o tempo de trabalho e o tempo de não trabalho. Assim que o trabalhador passa a ser contratado e remunerado por sua força de trabalho, a antiga orientação por tarefas começa a se tornar trabalho de horário marcado. Entretanto, no início das manufaturas era possível identificar uma multiplicidade de tarefas sendo realizada por um mesmo trabalhador. Essa característica ainda dificultava um rígido controle do ritmo de trabalho e tampouco uma especialização da tarefa a ser realizada. 17 UNIDADE Aspectos históricos da relação entre lazer e trabalho Após essa clara separação do tempo, o trabalhador foi submetido a extensas jornadas de trabalho. Além disso, a introdução das máquinas nas manufaturas acabou por controlar o ritmo de trabalho e disciplinar os trabalhadores. O advento da tecnologia se juntou a outras estratégias de controle do tempo e de aumento da produtividade, tais como: folha de controle horário de trabalho, controlador/ supervisor do tempo, delatores e multas por atrasos, condenação moral às atividades desenvolvidas no momento de ócio, ataque moralista contundente aos costumes, hábitos e festejos populares. Ao mesmo tempo, na seção anterior, também vimos que surgiram as primeiras organizações dos trabalhadores e com elas as lutas pela redução da jornada de trabalho e ampliação do “tempo livre”. Tratava-se também de uma resistência à tentativa dos empregadores de expropriar os trabalhadores de todo o conhecimento sobre o tempo. Diante desse cenário, Marcassa (2002), afirma: [...] o chamado tempo livre é uma produção históricado processo mesmo de desenvolvimento capitalista que, por um lado ambiciona reduzir todo o tempo de vida do homem a tempo de trabalho e, por outro, é pressionado pelo movimento reivindicatório dos trabalhadores em favor da redução da jornada de trabalho. É fruto, pois, das contradições do próprio sistema capitalista, é uma conquista de classe. De acordo com Melo e Alves Junior (2003), juntamente com a artificialização do tempo social e com a demarcação da jornada de trabalho, surge o que hoje definimos como lazer. Para os autores, o surgimento do lazer é consequência da organização e reivindicação por direitos das camadas populares e, concomitantemente, das tentativas de dissolução das formas de organização e controle da diversão. Importante! Pelos elementos que apresentamos até esse momento, é importante perceber o papel dos movimentos operários na conquista do “tempo livre”. Ou seja, a ampliação do tempo de não-trabalho não é apenas uma consequência da substituição do trabalho humano pelas máquinas e da vontade dos empregadores. Importante! É importante também destacarmos que a compreensão dessa separação entre os tempos (de trabalho, de não trabalho e “livre”) não foi consensual, devido à na- tureza deles. Desde sua conquista, há a preocupação dos setores conservadores em controlar esse “novo tempo” garantido ao trabalhador. Isso porque, entre outros usos desse tempo, os trabalhadores também estavam utilizando esse período para se organizarem, para refletirem e compreenderem o funcionamento do modo de 18 19 produção da sociedade capitalista. Uma bela representação desse tipo de aconte- cimento é retratada no filme “Segunda-feira ao Sol” – já destacado na disciplina Lazer e Entretenimento. Daí o porquê da grande preocupação dos empregadores para com o que seus empregados faziam em seus momentos de ócio. É muito fácil compreender o porquê dessa preocupação com o “tempo livre” dos trabalhadores, pois este tempo pode se tornar instrumento de resistência e luta. Então é compreensível a existência de discursos moralistas e com conotações punitivas no intuito de atrelar o ócio à vagabundagem, imoralidade, indolência e vadiagem. O próprio poder público, à época, tomava medidas coercitivas e criava espaço para novas atividades como forma de combater o ócio. Ex pl or A partir desse pensamento de modernização e de racionalidade produtiva, houve um esforço generalizado em promover e desenvolver estratégias ligadas ao controle corporal da população, com o intuito de banir essa improdutividade ligada à vadiagem, preguiça, inutilidade atreladas ao ócio. Começa-se, então, a se constituir o lazer! A partir de atividades recreativas e educativas, construção de espaços e equipamentos específicos para sua prática. Com efeito, o tempo livre começa a fazer parte das preocupações dos governantes e industriais, a partir do momento que as atividades nele desenvolvidas, e entre elas o ócio como prática subversiva aos novos padrões de comportamento, opõem-se aos objetivos do capital. Se por um lado a ordem, a moral e o descanso eram vistos como elementos fundamentais para que o trabalhador apresentasse mais disposição para o trabalho, as práticas culturais do tempo livre, ao contrário, configuravam- se como ameaça às normas e aos valores da sociedade vigente. Mais do que depressa, o divertimento passa a ser direcionado, disciplinado e conduzido por uma série de novas atividades lúdicas. Tratava-se de substituir o ócio por uma outra atividade moderna, mais “sadia”, mais “organizada”, mais “educativa”: o lazer (MARCASSA, 2002, s/n) Até aqui você deve ter percebido que há um conflito social em torno do lazer? Se a classe trabalhadora conquista o “tempo livre” e pode utilizar a seu favor, empregadores e o próprio Estado tratam de se apropriar desse tempo para a execução de atividades orientadas para o divertimento esvaziado, estimulando a vertente funcionalista do lazer. Ou seja, o lazer surge como forma de controle social, afastando os trabalhadores do ócio indiscriminado. Esse cenário que descrevemos, até o momento, diz respeito a uma conjuntura histórica e global. Mas... será que ele apresenta conotações distintas no âmbito local? Em síntese, será que temos características diferentes no surgimento do lazer no Brasil? 19 UNIDADE Aspectos históricos da relação entre lazer e trabalho Características Gerais da Origem do Lazer no Brasil Estamos chegando ao final dessa segunda unidade de conteúdo. Na parte anterior realizamos um resgate histórico das lutas operárias para a conquista do “tempo livre” e, ao mesmo tempo, demonstramos a tentativa de controlar esse tempo, pela burguesia e pelo Estado, no estabelecimento de atividades orientadas (lazer) para que ele não fosse tão livre assim. Essa disputa e esse momento histórico marcam o surgimento do lazer. Adiante, falaremos disso com mais calma, mais por ora, é importante lembrar que as funções do lazer presentes em sua origem vão sofrer modificações ao longo do tempo. Finalizamos a seção anterior nos indagando se no Brasil temos as mesmas características de surgimento do lazer que aquelas ocorridas nas principais países industrializados da época. Segundo Marcassa (2002), o começo das reivindicações e das organizações trabalhistas no Brasil aconteceu em fins do séc. XIX e início do séc. XX, quando o movimento operário consegue construir e definir melhor suas pautas e bandeiras de lutas para realizarem os primeiros movimentos grevistas. Juntamente com as mobilizações dos trabalhadores, observaremos mudanças significativas na estrutura social brasileira. Em nome da modernidade e da racionalidade produtiva, havia um esforço generalizado pelo desenvolvimento de estratégias higiênicas ligadas ao projeto de controle corporal da população brasileira, em que a vadiagem, a preguiça, a inutilidade e a improdutividade significavam doenças sociais que precisavam ser banidas. Importante! A capoeira no Brasil: Em função dos discursos moralistas e religiosos acerca do uso do ócio, um conjunto de divertimentos populares no Brasil passou a ser controlado, pois se opunham a lógica de trabalho árduo e eram formas de manutenção de antigos estilos de vida, que incomodavam a nova ordenação social. Dentre as diversões populares que mais sofreram com o controle das autoridades públicas estava a capoeira, que permaneceu proibida no Brasil até os anos 1930. Você Sabia? Assim como em outros países, também no Brasil, o lazer se desenhou a partir da necessidade de controle do “tempo livre” conquistado pela força do movimento operário, a partir da organização de classe dos trabalhadores. Cheibub (2014) afirma que, no Brasil: “...as reivindicações e conquistas sociais ocorridas no início do século XX geraram a regulamentação da jornada de trabalho na década de 1930 e, consequentemente, o aumento do tempo de não trabalho. Essa parte da história brasileira emoldura e ajuda a desenhar o caminho do lazer 20 21 enquanto direito, pois nesse período houve aumento das preocupações institucionais e governamentais com o lazer. Enxergado pela classe dominante como uma dimensão importante da sociedade, o lazer passou a ser visto como problema social.” (p.204) Os autores pioneiros sobre a finalidade dos espaços públicos de lazer no país tinham a preocupação em minimizar os problemas desencadeados pela modernidade. Estavam preocupados com as mazelas sociais, mas não em relação às injustiças sociais. (MELO E ALVES JUNIOR, 2003). As atividades recreativas, numa visão funcionalista, eram entendidas como remédios para mascarar os sintomas dos problemas sociais. Além disso, eram utilizadas como instrumentos para a manutenção da saúde e recuperação da força de trabalho. Essa visão desencadeou algumas ações no Brasil, descritas por Cheibub (2014). Como resultado do crescimento da visibilidade do lazer como questão social, observou-se, entre as décadas de 1920 e 1940, a construção de parques públicosurbanos e a criação de serviços públicos de recreação. Outro marco importante para esse processo foi o surgimento do sistema S – entre as instituições que o compõem, destacamos o Serviço Social do Comercio (SESC), que, a partir dos anos de 1950, passou a oferecer sistematicamente atividades programadas de lazer (p. 204). Podemos perceber, então, a partir desse resgate histórico que as atividades de lazer sugiram somente após a conquista do “tempo livre” para sua realização e que foram fruto das preocupações conservadoras sobre quais tipos de atividades os trabalhadores se dedicariam nesse período. Então, para “minimizar os riscos”, desenvolveram atividades e criaram espaços onde pudessem ser realizadas. Tudo bem... compreendemos como se deu o processo de conquista do “tempo livre” e entendemos que o lazer surgiu como resultado dessas lutas e, ao mesmo tempo, como forma de controle da classe trabalhadora. No entanto, provavelmente, você deve estar se perguntando se o lazer mantém essas características até os dias de hoje? Essa é uma questão pertinente, sobretudo quando é notório que a sociedade brasileira passou por muitas mudanças desde a década de 1930. Para buscar respostas a essa questão, algumas áreas de conhecimento e autores de referência se dedicaram ao estudo do lazer frente às mudanças no mundo do trabalho e na própria sociedade. Essas transformações e o impacto delas sobre o tempo livre ou de não-trabalho será o tema de nossa próxima unidade. 21 UNIDADE Aspectos históricos da relação entre lazer e trabalho Material Complementar Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade: Livros Título do Livro ADORNO, Theodor. Tempo Livre. In: Palavras e Sinais, modelos críticos 2. Petrópolis: Vozes, 1995, pp. 70-82. CHAUÍ, M. Introdução. In: Lafargue, P. O direito à preguiça. São Paulo: Hucitec, 1999. HOBSBAWN, E. Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. Filmes Segunda-feira ao Sol. Espanha, 2002. Direção: Fernando Leon de Aranoa. Duração: 113 min. 22 23 Referências ANTUNES, R. Tempo de trabalho e tempo livre: algumas teses para discussão. In: BRUHNS, H. e GUTIERREZ, G. L. Representações do lúdico: II Ciclo de Debates Lazer e Motricidade. Campinas: Autores Associados/FEF UNICAMP, 2001 pp. 21-25. CHEIBUB, B. L. A história do “turismo social” no Serviço Social do Comércio – SP. 2014. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-graduação em História, Política e Bens culturais - Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 2014. MARCASSA, L. Do ócio ao lazer: uma (re)significação dos usos do tempo livre na cidade de São Paulo (1888-1935). 2002. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2002. MELO, V. A.; ALVES JUNIOR, E. D. Introdução ao lazer. Barueri: Manole, 2003. POLATO, T. H. P. Lazer e Trabalho: algumas reflexões a partir da ontologia do ser social. Revista Motrivivência. Ano XV, nº 20-21, P. 139-162 Mar/Dez-2003. THOMPSON, E. P. Tempo, disciplina de trabalho e o capitalismo industrial. In: Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular e tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. 23
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