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2 – DILEMAS E PERSPECTIVAS DA ECONOMIA BRASILEIRA NO PRÉ-64 (Francisco Oliveira) A primeira colocação diante da indagação da economia brasileira às vésperas de 1964 deve esclarecer uma confusão generalizada em todas as discussões que parecem encaminhar-se para um apocalipse do e para qual não há remédio, nem alternativas. O golpe de 64 aparecia assim, e foi muitas vezes interpretado dessa forma. É comum, nos dilemas que a economia atravessa, aparecer aquilo que na verdade é uma alternativa, uma opção política, como algo inexoravelmente determinado pela história, como algo do qual não se pode escapar. Mais recentemente, tivemos no Brasil, depois de mais de uma década, algumas opções que se fantasiaram de únicas possíveis, daquilo para o qual a economia vai como boi vai para o matadouro. Para poder discutir o golpe de 64, é preciso recusar essa posição e analisar as opções que foram tomadas. Há uma parte de verdade nisso, pois seria leviandade dar a impressão de que, frente as conjunturas dramáticas, as economias, e a economia brasileira em particular, disporiam de um amplo leque de alternativas, de sorte que pudessem ser determinadas de forma aleatória, como se existisse uma cesta de alternativas em que alguém metesse a mão e tirasse qualquer uma delas. Isso não é verdade, porque esses processos criam estruturas que, em grande medida, mas não de forma absoluta, predeterminam o papel dos homens e sua capacidade de ação. Portanto, não se trata nem dessa história de que só havia aquele caminho, nem da história, mais fácil inclusive para os críticos, de que qualquer alternativa estava à disposição. Na bela tradição da economia política, as alternativas estavam à disposição dos sujeitos e autores que tinham recursos políticos, econômicos e sociais para implementá-las. Dito isso, afastando esse determinismo ideológico, é preciso examinar o golpe de 64 exatamente no contexto da estrutura de relações vigentes na economia brasileira, responsável pela capacidade, potência e operações das classes, dos sujeitos sociais à época de uma conjuntura tão dramática quanto a de 1964. A economia brasileira atual, os dilemas da economia hoje, os indicadores sintéticos e usuais em relação aos quais se chama a atenção para a dramaticidade de uma conjuntura econômica – taxa de inflação, dívida externa, dívida interna, porcentagem de investimento sobre o produto, salário – fazem parecer absolutamente ridículos os dilemas de 1964. Considere-se, por exemplo, os 80% da inflação anual às vésperas do golpe, que se convertem, no último mês de administração de Maílson da Nóbrega, em 80% de inflação ao mês! O serviço da dívida externa brasileira consome hoje praticamente de 5 a 6% do produto bruto nacional. Não se trata aqui de arrolar números, mas, apenas, de indicar o contraste entre esses dois momentos: em 64, o montante chegava à cifra, que parece hoje ridícula, de 3,5 a 4 bilhões de dólares, que poderia ser paga, toda ela, com dois meses de exportação. O coeficiente de investimento da economia brasileira em 64 beirava o patamar de 17 a 18% do produto, o que era levado, ainda que menor que aquele que a economia brasileira havia conseguido em anos anteriores. Essa relação entre inversão e produto nacional na economia brasileira, hoje, deve situar-se abaixo ou em torno dos 14%. A inexistência de dívida interna é uma característica especial que tem que ser levada em conta, assim como o serviço da dívida externa, esta constituída basicamente de empréstimos de entidades internacionais, de um lado, e dívida a fornecedores, de outro. A dívida externa não passava disso; portanto, era de razoavelmente fácil manejo. A questão reside em: por que, diante de uma situação dessas, dá-se um golpe de Estado? Diante disso, aquele quadro ridículo deixa de ser tão ridículo. A economia vinha, desde os anos 30, num notável desempenho, alinhando-se entre as taxas de crescimento de uma economia capitalista das mais notáveis do mundo, neste século. A economia brasileira, já nos anos 30, com breve interrupção nos anos 30-33, surpreendentemente, ao contrário de toda a economia capitalista central, alcança taxas de crescimento de 10 a 11% ao ano, prosseguindo assim até 64. Num período de trinta anos manter-se uma taxa média de crescimento histórica em torno de 8% reais ao ano, uma façanha poucas vezes repetidas na história capitalista. Motorizada no período JK, em que se instala a estrutura industrial que, basicamente, está presente no país até hoje. Os grandes ramos e setores da economia estavam fundamentalmente implantados, ainda que não suficientemente maduros; alguns, como o da indústria aeronáutica, ainda deixavam incompleta a estrutura industrial. O mesmo não se passava com o setor agrícola. Apesar de alguns bolsões de notável capitalização, de avanço de relações trabalhistas, de mercadorias, não só de produção para a exportação, mas alguns de produção interna para o consumo interno, o setor agrícola configurava-se como um dos setores mais atrasados na economia brasileira, na conjuntura do golpe de 64. Aquela economia tinha alguns impasses? Sem dúvida, impasses fortes: talvez o maior impasse, do ponto de vista estritamente econômico, estivesse situado na estreiteza da base fiscal do Estado. Uma economia que tinha crescido enormemente, que havia se diversificado de forma notável, a qual correspondia uma estrutura fiscal estreita. O Estado brasileiro, nesse novo estilo que o capitalismo desenvolve no pós-30, tem precocemente, devido ao próprio tamanho da economia brasileira, um papel central, que pode ser resumido, embora não se esgote nisso, no papel central que as empresas estatais desempenharam e desempenham no processo de acumulação. Ora, a este Estado correspondia uma base fiscal estreita que o levava a financiar o próprio papel na expansão capitalista por meio da simples emissão monetária, que injetava diretamente gasolina no fogo da inflação, embora modesta, que nunca chegou, no pré-64, à dos 100%. Hoje, qualquer ministro da Fazenda será um grande vitorioso se reduzir as taxas de inflação ao nível da de 64. No que se refere ao setor agrário, a agricultura paulista e a paranaense certamente poderiam ser classificadas, à época, como “agriculturas capitalistas”, no sentido pleno da palavra. Mas, certamente, isso não corresponde ao resto do Brasil. Daí que uma das principais bandeiras dos anos 60 e da reforma agrária, com o que se casavam duas coisas importantes para a expansão capitalista: de um lado, uma redução do custo de reprodução da força do trabalho urbano-industrial, dado que o centro de gravitação da acumulação de capital já havia transitado, desde os anos 30, para o setor industrial. Então, o agricultor tinha um papel a cumprir nesse rebaixamento relativo do custo de reprodução da força de trabalho. De outro, evidentemente – o que é a outra face da mesma moeda -, a agricultura podia se constituir num dos grandes polos da criação de um mercado interno que a indústria já criava aceleradamente, mas que não encontrava contrapartida no mundo agrário. Este certamente era o impasse. E o impasse estava, de um lado, na incapacidade do Estado brasileiro de romper com a relação de força sobre a qual se assentava o par PSD/PTB – que não eram os PTBs e nem os PSDs de agora. Era uma categoria de políticos talvez – muito mais malandra e muito mais azeitada no comando do Estado, de tal forma que, não impunemente, levaram bem uns sessenta anos no controle dele, desde a República Velha. E, de outro, no impasse financeiro no sentido de encontrar formas de financiar uma economia que se realizava numa taxa de crescimento que girava numa média histórica 8%, com isto começando a criar-se um grave problema financeiro. Eu localizaria nestes três aspectos o que pode ser considerado, o ponto de vista econômico stritu sensu, os impasses da economia brasileirade então. As perspectivas da economia brasileira não eram absolutamente desabonadoras, caso aquelas três questões fossem resolvidas, pois, certamente a economia tinha em si mesma a capacidade de crescimento que já havia concretizado numa sequência de mais de trinta anos de contínua expansão. Por que se dá o golpe? Devido às restrições da aliança de classes que estava no poder e ao deslocamento que, nessa aliança, algumas sofrem em detrimento de outras. A burguesia brasileira estava sendo deslocada, pelo próprio processo de expansão capitalista, de seu lugar central; ela não era mais a única detentora de um poder de classe dominante, senão que, devido ao crescimento e à recepção dos capitais internacionais, aquele lugar estava sendo ocupado por outro ator, união de classes, não-cordial. Evidentemente, a burguesia não desapareceu, mas perdeu importância; ou melhor, exclusividade; compete, então, com a burguesia internacional no comando da economia brasileira. Ao longo dos últimos 30 anos, ela sofre um importante deslocamento em alguns setores; por exemplo, no automobilístico, de onde ela foi varrida pelas empresas internacionais. A famosa aliança de classes que presidiu à estruturação do chamado sistema populista, começava a ser abalada por deslocamentos, tensões a que a própria expansão capitalista levava. De outro lado, os dois grandes atores sociais tinham suas posições e seus pesos redefinidos pelo próprio processo de crescimento. Em primeiro lugar, o proletariado e os assalariados urbanos. Estes, que haviam sido uma espécie de força secundária na aliança populista, graças à própria expansão capitalista e ao fato de essas classes sociais realizarem uma ação política, começaram a não se comportar mais como subordinados do ponto de vista do tripé populista, (formado pela burguesia nacional, pelos proprietários rurais – mas não pelo campesinato – e por uma classe trabalhadora emergente). O proletariado cresce significativamente e suas organizações vão deixando de ter um papel subalterno; é a isso que, na verdade, a reação chamava de projeto de “república sindicalista”. Na verdade, isso nunca passou de um engodo, de um blefe; mas esse deslocamento, essa mudança do papel subalterno que os assalariados urbanos tinham no tripé populista, ameaçava romper o controle das classes dominantes sobre o processo de desenvolvimento. De outro lado, uma classe sempre calada, esmagada, sempre mais reprimida que os trabalhadores urbanos, começava a afirmar o que tinha a ver com esse processo de desenvolvimento, qual era o seu lugar e quais eram as suas reivindicações. No pré-64, o movimento agrário, por meio de sindicatos rurais ativos em algumas regiões do país, não exatamente nas mais importantes, mas nas periféricas (ainda que com um enorme apelo, messiânico em muitos casos), com uma enorme capacidade de mobilização, retira da servidão uma parcela importante da sociedade brasileira. Estes são alguns dos atores que começaram a emergir e a colocar em xeque a aliança de classes da época e, portanto, a aliança política que regia o Estado brasileiro. Todas as reformas feitas no pós-64, se vistas, evidentemente, de fora de seu contexto histórico, resultariam razoavelmente absorvíveis pela burguesia brasileira e internacional. O golpe de 64 não fez, como não podia fazer, nenhuma agressão a propriedade, nem o pré-64 ameaçava, do ponto de vista mais dramático, decisivo no sentido do socialismo, a propriedade brasileira; ele ameaçava, sim, pôr em xeque uma propriedade inativa, uma propriedade que se recusava ao uso social, para o que tantas encíclicas bem-intencionadas como a Rerum Novarum foram escritas. Ninguém queria outra coisa senão o uso capitalista da terra, por exemplo. Portanto, o golpe de 64 foi uma opção de forças políticas que, quebrando alianças de classes, traduzem numa nova aliança política a relação de classes que se estabelece com o golpe de Estado. Donde nem o determinismo, nem a falta de caminhos e nem a “cesta” repleta de alternativas. A relação de força que se estabelece será a responsável pela opção política que encaminhará os negócios das economia e da sociedade brasileira no pós-64. A opção tem consequências que se projetam até hoje. Evidentemente, não se trata de inventar uma história de que tudo começou em 1964, porque dessa forma se estaria isentando as classes sociais, os partidos políticos e as organizações das opções concretas que têm de tomar a cada momento. Embora a economia tenha um alto grau de sobredeterminação, pois se trata de estruturas capitalistas de acumulação de capital, elas não são imunes à vontade e à capacidade dos homens e dos atores sociais; isso seria uma falsificação do que é forte na economia política. Apesar disso, é preciso enfatizar que, no pós-64, cada ator, cada classe social, cada representação, cada organização política tomou posições e fez opções, inclusive depois da democratização. Mas, é preciso reconhecer que há heranças deixadas pelo golpe de 64, a mais importante das quais é ter decretado e ter congelado, durante vinte anos, uma minoria política do povo brasileiro em sua extensão (e de suas classes sociais especificamente). Esta minoria política é a responsável pelas decisões, isto é, pela exclusão das classes sociais, pela repressão ao movimento camponês, ao operário, aos sindicatos de trabalhadores, aos intelectuais. As classes médias apoiaram essa repressão que o povo brasileiro viveu durante vinte anos de ditadura. A incapacidade daí decorrente, de participar e de ter o seu lugar, voz e voto nas decisões mais importantes no que se refere a economia, não é retórica de sociólogo. Esta minoridade tem consequências graves e dramáticas porque, ainda agora, quando se está de novo frente a um plano econômico, o neoliberalismo avança serenamente, em virtude de que as novas estruturas sociais que o próprio capitalismo criou foram duramente reprimidas durante o período de minoridade da ditadura. É preciso, ao resgatar essa memória, fazê-lo como os clássicos da escola de Fankfurt – não como a uma saudade, uma nostalgia ou um resgate inativo do passado: - resgatar o passado, colocando-o dentro de nosso presente. Nosso futuro estará concluído, ou estará projetado na medida em que tivermos capacidade de resgatar a luta pela qual muitos homens, mulheres e crianças deste país morreram, deram suas vidas e seus ideais.
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