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1661252164825_10 páginas EU - Milena Cassal e Priscilla Farfal - INQUIETAÇÕES CONTEMPORÂNEAS DA ANTROPOLOGIA

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TÓPICO 3
INQUIETAÇÕES CONTEMPORÂNEAS DA
 ANTROPOLOGIA
UNIDADE 2
1 INTRODUÇÃO
Vimos, até aqui, quanto os conceitos vão se delimitando e explicitando 
formas, modelos, perspectivas para interpretar as sociedades, entretanto, o 
modo como elas são percebidas perpassa as definições dadas por pontos de vista 
diferentes. Assim, percebemos que os próprios conceitos são construções que 
podem ser questionadas, reinterpretadas e reavaliadas, o que tensiona ainda mais 
os autores estudados até o momento no âmbito da Antropologia.
Nesse sentido, este tópico vai apresentar possibilidades de repensar a 
produção de conhecimento em antropologia, e também fazer com que se possa 
acessar as discussões contemporâneas sobre essa disciplina. Longe de ser um 
conteúdo pronto, cabe mostrar novas ideias e reflexões, que partem dos clássicos, 
para ir adiante nessa fonte infindável que é o conhecimento.
2 CULTURA COMO INVENÇÃO
FIGURA 26 - PAPANGUS 
FONTE: Disponível em: <http://bezerroshoje.ne10.uol.com.br/papangus-podem-se-
tornar-patrimonio-cultural-da-humanidade-pela-unesco/>. Acesso em: 12 jul. 2016.
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UNIDADE 2 | PERSPECTIVAS SÓCIO-HISTÓRICAS DA ANTROPOLOGIA
Autores como o antropólogo Roy Wagner, nascido em Ohio-EUA, em 1938, 
explicitam que a antropologia, muitas vezes, estuda a cultura como se houvesse 
uma única "cultura humana", ou pensam cultura num registro de tradições 
geográficas e históricas definidas. Desse modo, questiona-se o uso do conceito 
definido a partir de elementos ou aspectos de um padrão geral que é aplicado ao 
estudo de diferentes povos, e se pensa que talvez o conceito de cultura seja, de fato, 
uma invenção. 
Entretanto, o antropólogo que usa habitualmente o conceito de cultura, 
ao colocar as definições dadas em suspenso, ele também se coloca em suspenso. 
Compreender uma cultura a partir de termos universais não seria reduzir suas 
possibilidades interpretativas? Cultura engloba apenas ações e propósitos humanos? 
E ao repensar o termo cultura, como o entendimento do fazer antropológico se 
modifica? E o antropólogo, quem é ele a partir dessa nova reflexão?
Assim, Wagner se propõe a renunciar à pretensão racionalista das definições 
conceituais mais "fechadas" para buscar uma objetividade relativa, na qual o 
conceito pode ser reavaliado e repensado. Deste modo, o antropólogo é obrigado 
a fazer também uma investigação de si para pensar o objeto de estudo, pois suas 
perspectivas teóricas e metodológicas é que vão permitir um certo enquadramento 
na análise social. Logo, ter noção dessa reflexão é algo importante para pensar 
produção de conhecimento sobre o estudo do homem. 
A possibilidade de realização do trabalho de campo é percebida pelo autor 
como experiência criativa e produtiva, ainda que a produção final de análise não 
englobe tudo o que foi visto, percebido e refletido no espaço do Outro. Ainda que 
se estruture uma rotina de trabalho, ela pode ser frustrante, pois nem sempre o 
trabalho intenso e a vocação refletem num produto final desejável, essa é apenas 
uma ideia ocidental, da qual nos valemos no nosso cotidiano de estudos do Outro. 
Para realizar a etnografia, vai interessar como o etnógrafo está engajado em 
suas pesquisas e o modo como ele implementa esse engajamento em campo em 
meio aos seus interlocutores. Aqui, a ideia de "nativos" e "informantes" também 
é ultrapassada, e emerge a discussão de que o antropólogo está em campo com 
interlocutores que vão trocar questões sobre a sociedade analisada.
Ou seja, tanto a questão conceitual como a questão metodológica estão 
sendo colocadas em xeque para que se possa repensar os atributos da antropologia 
como disciplina que questiona o seu fazer científico ao mesmo tempo em que se 
legitima como matéria necessária na área das ciências humanas. Essa reflexão 
sobre o Outro é uma reflexão sobre nós mesmos.
Nesse sentido, Wagner (2010) aponta que o conceito de cultura utilizado 
por muitos anos era uma invenção moderna ocidental para falar sobre os outros, e 
reforça que a sociedade humana se constitui como uma máquina de símbolos que 
opera por meio de uma dialética sem síntese entre convenção e invenção.
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E se a antropologia coloca esse questionamento, ela não é mais em si 
uma linguagem, mas realiza sobre si uma metalinguagem. Ou seja, repensar-
se é fundamental para que se tenha noção da apropriação da cultura ocidental 
do discurso do Outro. Assim, outros discursos são possíveis e é importante a 
antropologia ter essa noção.
Esses novos constructos conceituais possibilitam apreender os significados 
dispostos nas sociedades, deixando de lado a ideia de que a Antropologia está se 
constituindo como um museu de cera, que apenas disponibiliza curiosidades e 
particularidades dos povos, para se aproximar do que é a cultura para os povos 
estudados, de fato. 
Perceber que os modelos construídos pelos antropólogos sempre seriam 
aceitos pelos próprios "nativos" estudados, fazendo com que a construção teórica 
sobre uma outra sociedade perca seu estatuto de dado e universal. Por isso, 
Wagner (2010) enfatiza que busquemos uma objetividade relativa com relatividade 
cultural, na qual quem observa é observado, estabelecendo uma mediação da sua 
própria cultura para a compreensão do Outro. Por isso, o antropólogo experiencia 
a relativização da sua própria cultura para acessar a cultura do Outro.
Dessa forma, a experiência etnográfica questiona as próprias categorias 
analíticas do antropólogo e propõe algo que se constrói na mediação com o Outro se 
justificando como invenção e reinvenção. Ou seja, esse processo de reconhecimento 
de alteridade para com o Outro é que emerge na cultura como algo universal do 
fenômeno humano. A partir desse diálogo, Wagner ainda propõe uma noção de 
antropologia reversa, na qual pensar a dicotomia "nós e os outros" faz parte da 
prática e da reflexão antropológica. 
DICAS
Para se aproximar ainda mais da ideia de antropologia reversa de Roy Wagner, 
recomendamos o texto da antropóloga Sônia Maluf sobre "A antropologia reversa e "nós": 
alteridade e diferente", em que versa sobre a discussão acima, disponível no link: <https://
periodicos.ufsc.br/index.php/ilha/article/view/2175-8034.2010v12n1-2p41/20799>.
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UNIDADE 2 | PERSPECTIVAS SÓCIO-HISTÓRICAS DA ANTROPOLOGIA
2.1 AUTORIDADE DO ETNÓGRAFO E POSSIBILIDADE DE 
ESCRITAS
FIGURA 27 - MÃOS QUE SE ESCREVEM
FONTE: Disponível em: <http://www.estranho.com/show_img.
 php?id=925>. Acesso em: 19 jul. 2016.
Ao mesmo tempo, questionar a escrita dessa etnografia também é uma 
questão latente, afinal de contas, o modo como o antropólogo apresenta a cultura 
do Outro é, muitas vezes, através da escrita. Então, por que não se questionar sobre 
essa escrita? Ou mesmo, qual é a forma mais legítima de apresentar o Outro por 
meio da descrição? Ou mesmo, quanto estamos autorizados a falar sobre o Outro 
de maneira contundente? Quais são os limites que essa apresentação pela escrita 
impõe? Todas essas questões são questionamentos da própria antropologia, e não 
podemos mais passar desapercebidos por elas. 
Nesse sentido, o antropólogo norte-americano James Clifford lança seu 
livro "A experiência etnográfica", em 1998, justamente a fim de pensar a autoridade 
da produção etnográfica e questionar sobre os engodos da experiência descritiva 
da escritura do Outro. Num limiar entre literatura e antropologia, o rigor científico 
tenta se afastar da poética, mas é aí que o autor reforça que poético e político são 
inseparáveis, constituindo assim, etnografias como verdades parciais. 
Pensar o papel do texto no processo etnográfico coloca em questão a 
representação social dos discursos presentes e a relação de poder que o antropólogo 
estabelece com seus interlocutores na leitura do produto final sobre a cultura do 
Outro. Sair da perspectiva clássica confere um exercício de tradução e de um 
cuidado maior, no qual a etnografia se coloca entre sistemasde significação. Ou 
seja, ela está na fronteira entre civilizações, culturas, classes, raças e gênero. 
Assim, o texto se configura como um método de apreensão da realidade. 
O que cria uma implicação estética, mas também ética sobre os recortes temporais, 
espaciais e conceituais que o antropólogo escolhe para falar sobre e expor o Outro. 
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Assim, a ciência também acontece nesse registro de negociações, imposições e 
escolhas no qual se dá o trabalho etnográfico. 
Desse modo, Clifford (1998) reforça que as etnografias são ficções, 
pois trazem a parcialidade das verdades históricas e culturais, enfatizando 
a sistematicidade etnográfica de apreensão da totalidade e exclusividade da 
experiência entre os interlocutores. 
A tradução da experiência para forma textual deve contemplar a polifonia 
das vozes naquele campo, de modo a apresentar os sistemas culturais muito mais 
como um conjunto dialógico, interpretativo, experiencial, trazendo as camadas 
presentes do objeto estudado, no qual a apresentação coerente pressupõe o modo 
controlador de autoridade. Assim, considerando as múltiplas leituras possíveis é 
que se desestabiliza a compreensão de que o monopólio de certas culturas e classes 
é apenas do Ocidente.
Logo, a etnografia depende muito mais do leitor do que propriamente do 
autor do texto. Essa reflexão nos provoca a repensar nossa escrita sobre o Outro e 
a relativizar o que lemos sobre os outros. 
FIGURA 28 - BIQUÍNI E A BURCA
FONTE: Disponível em: <http://blogdomarcelogurgel.blogspot.com.br/
 2013/02/o-biquini-e-burca.html>. Acesso em: 19 jul. 2016.
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UNIDADE 2 | PERSPECTIVAS SÓCIO-HISTÓRICAS DA ANTROPOLOGIA
2.2 GRANDES RUPTURAS E NOVOS QUESTIONAMENTOS
FIGURA 29 - A CHEGADA DOS ANTROPÓLOGOS
FONTE: Disponível em: <http://www.cafecomsociologia.com>.
Acesso em: 19 jul. 2016.
A perspectiva que influencia a antropologia é uma perspectiva ocidental. 
Esse pensamento europeu e norte-americano, no qual se fundou a antropologia, é 
um ponto de vista possível, mas não é o único. Cada vez mais universidades de 
todas as partes do mundo produzem discussões antropológicas com persistência 
e seriedade. Por isso, neste último subtítulo queremos refletir sobre a relação da 
hegemonia e subalternidade no âmbito da Antropologia. Não se trata de uma 
questão geográfica, mas geopolítica. 
Pensar em uma antropologia do mundo é considerar a produção clássica, 
mas também a produção antropológica apropriada pelos nativos e, de certa maneira, 
ressignificada a seu modo. Por isso, trata-se da emergência e visibilização de uma 
comunidade transnacional a partir da premissa da globalização, questionamento 
do pensamento hegemônico, transcendência da ideia de centro e periferia, indo 
além das estruturas de poder para propor uma disciplina mais simétrica. Nesse 
sentido, um olhar local se amplia e pode se tornar um olhar global. 
Num contexto pós-colonial, considera-se que o sistema está baseado nas 
relações entre unidades heterogêneas, que disputam poderes e saberes para 
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se constituírem como tal. É preciso estabelecer negociações entre os mundos 
imaginados e os mundos vividos, a fim de que a alteridade prevaleça e todos 
possam ser ouvidos. Estar preparado para analisar esse novo mundo deve ser 
um exercício constante do antropólogo, para que ele possa ser dialógico, e não 
unilateral. 
As sociedades complexas moderno-contemporâneas são heterogêneas, 
híbridas e têm suas fronteiras borradas pelo convívio com outros contextos, povos 
e histórias, por isso, o estudo antropológico, na atualidade, tem de estar atento 
a essas multiplicidades e camadas sobrepostas. Nesse sentido, para aprender 
é preciso desaprender. Trazer a perspectiva do escravizado, do indígena, do 
subalterno por ele mesmo é uma luta de todos nós. O falar "por" é limitado e as 
teorias nem sempre se encaixam. 
E então, pergunta-se: com que ou quem a antropologia está compromissada? 
As questões do nativo são as mesmas que as do antropólogo? Como a academia 
interfere e modela a prática da experiência etnográfica? Quais posições temos em 
campo? Qual posição política que vamos adotar? Que implicações isso tem para 
nossos interlocutores? Somos militantes ou apenas evidenciamos uma realidade 
parcial? De onde partimos para pesquisar? 
Todas essas são questões novas aos antropólogos, entretanto pertinentes 
ao contexto da prática etnográfica e suas implicações na sociedade. E por isso 
temos de estar atentos não à antropologia, mas às antropologias que estão sendo 
produzidas, para saber a qual queremos nos filiar e, conjuntamente, produzir 
conhecimento sobre o mundo. 
DICAS
Para maior aprofundamento da questão, indicamos o livro organizado 
pelos antropólogos Gustavo Lins Ribeiro e Artur Escobar, intitulado 
"Antropologias Mundiais: transformações da disciplina em sistema de 
poder".
Fonte: Disponível em: <http://aa.revues.org/722>.
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UNIDADE 2 | PERSPECTIVAS SÓCIO-HISTÓRICAS DA ANTROPOLOGIA
LEITURA COMPLEMENTAR
O RITUAL DO CORPO ENTRE OS NACIREMA
Horace Minner 
Todas as culturas possuem uma configuração particular, um estilo. 
Frequentemente, um determinado valor central ou uma forma de perceber o mundo 
deixam suas marcas em várias instituições da sociedade. Neste artigo, Horace 
Minner demonstra que “atitudes quanto ao corpo” têm influência generalizada 
em muitas instituições da sociedade Nacirema. As crenças e práticas mágicas deste 
povo apresentam aspectos tão pouco usuais, que nos parece importante descrevê-
las como exemplos dos extremos a que o comportamento humano pode chegar. 
Embora, há mais de 20 anos, o Prof. Linton já tivesse chamado a atenção 
dos antropólogos para o complexo ritual dos Nacirema, a cultura deste povo ainda 
é pouco compreendida. Eles constituem um grupo norte-americano que vive no 
território que se estende entre os Cree, do Canadá, aos Yaqui e Tarahumara, do 
México, e aos Caribe e Aruque, das Antilhas. Pouco se sabe quanto à sua origem, 
embora a tradição mítica afirme que eles vieram do Leste. 
A cultura Nacirema se caracteriza por uma economia de mercado altamente 
desenvolvida, que se beneficiou de um ‘habitat’ natural muito rico. Embora, 
nesta sociedade, a maior parte do tempo das pessoas seja devotada à ocupação 
econômica, uma grande porção dos frutos destes trabalhos, e uma considerável 
parte do dia, são despendidas em atividades rituais. O foco destas atividades é 
o corpo humano, cuja aparência e saúde constituem a preocupação dominante 
dentro do ‘ethos’ deste povo. 
A crença fundamental subjacente a todo o sistema parece ser a de que 
o corpo humano é feio, e que sua tendência natural é a debilidade e a doença. 
Encarcerado em tal corpo, a única esperança do homem é evitar essas características, 
através do uso de poderosas influências do ritual e da cerimônia. Todo o grupo 
doméstico possui um ou mais santuários dedicados a tal propósito. Os indivíduos 
mais poderosos desta sociedade têm vários santuários em sua casa e, de fato, a 
opulência de uma moradia é frequentemente aferida em termos da quantidade 
destes centros de rituais que abrigam. O ponto focal do santuário é uma caixa ou 
arca embutida na parede. Nesta arca são guardados os inúmeros feitiços e poções 
mágicas, sem os quais nenhum nativo acredita que poderia viver. 
Tais feitiços e poções são obtidos de vários curandeiros cujos serviços devem 
ser retribuídos por meio de presentes substanciais. No entanto, o curandeiro não 
fornece as poções curativas para os fiéis, decidindo apenas os ingredientes que 
nela devem entrar, escrevendo-os, em seguida, em linguagem antiga e secreta. Tal 
escrita deve ser decifrada pelos herbanários, os quais, mediante outros presentes, 
fornecem o feitiço desejado. O feitiço não é descartado depois de ter servido a seu 
propósito, mas colocado na caixa de mágica do santuário doméstico. 
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Como esses materiais mágicos são específicos para certas doenças, e 
considerando-se que as doenças reais ou imaginárias deste povo são muitas, a 
caixa de mágica costuma estar sempre transbordando. Os pacotes mágicos são tão 
numerosos que as pessoas esquecem sua serventia original, e temem usá-los de 
novo. 
Embora os nativos tenham se mostrado vagos em relação a essa questão, 
só podemos concluir que a ideia subjacente ao costume de se guardar todos os 
velhos materiais mágicos é a de que sua presença na caixa de mágica, diante da 
qual os rituais do corpo são encenados, protege de alguma forma o fiel. Embaixo 
da caixa de mágica existe uma pequena fonte. Todo dia, cada membro da família, 
em sucessão, entra no santuário, curva a cabeça diante da caixa de mágica, mistura 
diferentes tipos de água sagrada na fonte e realiza um breve rito de ablução. 
Na hierarquia dos profissionais da magia, e abaixo do curandeiro em termos de 
prestígio, estão os que são designados como ‘homens-da-boca-sagrada’. 
Os Nacirema nutrem um misto de horror pela fascinação por suas bocas 
que chega às raias da patologia. Acredita-se que a condição da boca possui uma 
influência sobrenatural nas relações sociais. Assim, o ritual do corpo, cotidianamente 
realizado por todos, inclui um rito bucal. O rito consiste na introdução de um 
pequeno feixe de cerdas na boca, juntamente com uma espécie de creme mágico e, 
em seguida, na movimentação deste feixe, segundo uma série de gestos altamente 
ritualizados. Além deste rito bucal privado, as pessoas procuram um ‘homem-
da-boca-sagrada’, uma ou duas vezes por ano. No seu templo, este mago possui 
uma impressionante parafernália que consiste em uma variedade de perfuratrizes, 
furadores, sondas e agulhas. 
O uso destes objetos no exorcismo dos perigos da boca implica uma quase 
e inacreditável tortura ritual do fiel e, usando as ferramentas citadas, alarga 
qualquer buraco que o uso tenha feito nos dentes. Se não se encontram buracos 
naturais nos dentes, grandes seções de um ou mais dentes são serradas, para que 
a substância sobrenatural possa ser aplicada. Na imaginação do fiel, o objetivo 
destas aplicações é deter o apodrecimento dos dentes e atrair amigos. O caráter 
extremamente sagrado e tradicional do mito fica evidente no fato de que os nativos 
retornam, todo ano, ao ‘homem-da-boca-sagrada’, embora seus dentes continuem 
a se deteriorar. Os curandeiros possuem um templo imponente, o Latipsoh, em 
cada comunidade, de algum tamanho. As cerimônias mais elaboradas, necessárias 
para o tratamento de fiéis considerados muito doentes, só podem ser realizadas 
neste templo. Tais cerimônias envolvem não só o taumaturgo, mas também um 
grupo permanente de vestais que se movimentam nas câmaras do templo com 
uma roupa distintiva.
As cerimônias no Latipsoh podem chegar a ser tão violentas que 
surpreende o fato de que uma razoável proporção dos nativos realmente doentes, 
que entram no templo, consiga se curar. Crianças pequenas, cuja doutrinação é 
ainda incompleta, costumam resistir às tentativas de levá-los ao templo, alegando 
que ‘é aonde você vai para morrer’. Apesar disso, os doentes adultos não apenas 
desejam, como ficam ansiosos para submeter-se à prolongada purificação ritual, se 
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possuem meios para tanto. Os guardiães do templo, não importa quão doente o 
suplicante esteja ou quão grave a emergência, não admitem o fiel se ele não puder 
dar um rico presente ao zelador. 
Mesmo depois que se conseguiu a admissão e se sobreviveu às cerimônias, 
os guardiães não permitem a saída do neófito até que este dê ainda outro presente. 
O(a) suplicante, ao entrar no templo, é despido(a) de todas as suas roupas. Na 
vida cotidiana, os Nacirema evitam a exposição de seus corpos quando das suas 
funções naturais. O banho e a excreção são realizados somente na intimidade do 
santuário doméstico, aonde são ritualizados, fazendo parte dos ritos corporais. 
Poucos suplicantes no templo estão suficientemente bem para fazer qualquer coisa 
que não seja ficar deitado em suas camas duras. 
As cerimônias implicam desconforto e tortura. Com precisão ritual, as 
vestais acordam a cada madrugada seus miseráveis crentes, rolam-nos em seus 
leitos de dor, enquanto realizam abluções, cujos movimentos formalizados são 
objeto de treinamento intensivo das vestais. Em outros momentos, elas inserem 
varas mágicas na boca do fiel, ou obrigam-no a ingerir substâncias que são 
consideradas curativas. De tempos em tempos, os curandeiros vêm até seus fiéis e 
atiram agulhas, magicamente tratadas, em sua carne. O fato de que estas cerimônias 
do templo possam não curar, ou até matar o neófito, não diminui de modo algum 
a fé do povo nos curandeiros. 
Para concluirmos, deve-se mencionar certas práticas que estão baseadas na 
estética nativa, mas que dependem da aversão generalizada ao corpo e às funções 
naturais. Há jejuns rituais para fazer pessoas gordas ficarem magras, e banquetes 
cerimoniais para fazer pessoas magras ficarem gordas. Outros ritos ainda são 
usados para tornar maiores os seios das mulheres, se eles são pequenos, e menores, 
se são grandes. Nossa descrição da vida dos Nacirema certamente mostrou que eles 
são um povo obcecado pela magia. É difícil compreender como eles conseguiram 
sobreviver por tanto tempo, sob os pesados fardos que eles próprios se impuseram. 
Mas, mesmo costumes tão exóticos quanto estes ganham seu verdadeiro sentido 
quando encarados a partir do esclarecimento feito por Malinowski: “Olhando de 
cima e de longe, dos lugares seguros e elevados da civilização desenvolvida, é 
fácil ver toda a rudeza e a irrelevância da magia. Mas, sem este poder e este guia, 
o homem primitivo não poderia ter dominado as dificuldades práticas como fez, 
nem poderia o homem ter avançado até os mais altos estágios de civilização”.
FONTE: MINNER, Horace. Body ritual among the Nacirema. American Anthropologist, 1956.

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