Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
113 TÓPICO 3 INQUIETAÇÕES CONTEMPORÂNEAS DA ANTROPOLOGIA UNIDADE 2 1 INTRODUÇÃO Vimos, até aqui, quanto os conceitos vão se delimitando e explicitando formas, modelos, perspectivas para interpretar as sociedades, entretanto, o modo como elas são percebidas perpassa as definições dadas por pontos de vista diferentes. Assim, percebemos que os próprios conceitos são construções que podem ser questionadas, reinterpretadas e reavaliadas, o que tensiona ainda mais os autores estudados até o momento no âmbito da Antropologia. Nesse sentido, este tópico vai apresentar possibilidades de repensar a produção de conhecimento em antropologia, e também fazer com que se possa acessar as discussões contemporâneas sobre essa disciplina. Longe de ser um conteúdo pronto, cabe mostrar novas ideias e reflexões, que partem dos clássicos, para ir adiante nessa fonte infindável que é o conhecimento. 2 CULTURA COMO INVENÇÃO FIGURA 26 - PAPANGUS FONTE: Disponível em: <http://bezerroshoje.ne10.uol.com.br/papangus-podem-se- tornar-patrimonio-cultural-da-humanidade-pela-unesco/>. Acesso em: 12 jul. 2016. 114 UNIDADE 2 | PERSPECTIVAS SÓCIO-HISTÓRICAS DA ANTROPOLOGIA Autores como o antropólogo Roy Wagner, nascido em Ohio-EUA, em 1938, explicitam que a antropologia, muitas vezes, estuda a cultura como se houvesse uma única "cultura humana", ou pensam cultura num registro de tradições geográficas e históricas definidas. Desse modo, questiona-se o uso do conceito definido a partir de elementos ou aspectos de um padrão geral que é aplicado ao estudo de diferentes povos, e se pensa que talvez o conceito de cultura seja, de fato, uma invenção. Entretanto, o antropólogo que usa habitualmente o conceito de cultura, ao colocar as definições dadas em suspenso, ele também se coloca em suspenso. Compreender uma cultura a partir de termos universais não seria reduzir suas possibilidades interpretativas? Cultura engloba apenas ações e propósitos humanos? E ao repensar o termo cultura, como o entendimento do fazer antropológico se modifica? E o antropólogo, quem é ele a partir dessa nova reflexão? Assim, Wagner se propõe a renunciar à pretensão racionalista das definições conceituais mais "fechadas" para buscar uma objetividade relativa, na qual o conceito pode ser reavaliado e repensado. Deste modo, o antropólogo é obrigado a fazer também uma investigação de si para pensar o objeto de estudo, pois suas perspectivas teóricas e metodológicas é que vão permitir um certo enquadramento na análise social. Logo, ter noção dessa reflexão é algo importante para pensar produção de conhecimento sobre o estudo do homem. A possibilidade de realização do trabalho de campo é percebida pelo autor como experiência criativa e produtiva, ainda que a produção final de análise não englobe tudo o que foi visto, percebido e refletido no espaço do Outro. Ainda que se estruture uma rotina de trabalho, ela pode ser frustrante, pois nem sempre o trabalho intenso e a vocação refletem num produto final desejável, essa é apenas uma ideia ocidental, da qual nos valemos no nosso cotidiano de estudos do Outro. Para realizar a etnografia, vai interessar como o etnógrafo está engajado em suas pesquisas e o modo como ele implementa esse engajamento em campo em meio aos seus interlocutores. Aqui, a ideia de "nativos" e "informantes" também é ultrapassada, e emerge a discussão de que o antropólogo está em campo com interlocutores que vão trocar questões sobre a sociedade analisada. Ou seja, tanto a questão conceitual como a questão metodológica estão sendo colocadas em xeque para que se possa repensar os atributos da antropologia como disciplina que questiona o seu fazer científico ao mesmo tempo em que se legitima como matéria necessária na área das ciências humanas. Essa reflexão sobre o Outro é uma reflexão sobre nós mesmos. Nesse sentido, Wagner (2010) aponta que o conceito de cultura utilizado por muitos anos era uma invenção moderna ocidental para falar sobre os outros, e reforça que a sociedade humana se constitui como uma máquina de símbolos que opera por meio de uma dialética sem síntese entre convenção e invenção. TÓPICO 3 | INQUIETAÇÕES CONTEMPORÂNEAS DA ANTROPOLOGIA 115 E se a antropologia coloca esse questionamento, ela não é mais em si uma linguagem, mas realiza sobre si uma metalinguagem. Ou seja, repensar- se é fundamental para que se tenha noção da apropriação da cultura ocidental do discurso do Outro. Assim, outros discursos são possíveis e é importante a antropologia ter essa noção. Esses novos constructos conceituais possibilitam apreender os significados dispostos nas sociedades, deixando de lado a ideia de que a Antropologia está se constituindo como um museu de cera, que apenas disponibiliza curiosidades e particularidades dos povos, para se aproximar do que é a cultura para os povos estudados, de fato. Perceber que os modelos construídos pelos antropólogos sempre seriam aceitos pelos próprios "nativos" estudados, fazendo com que a construção teórica sobre uma outra sociedade perca seu estatuto de dado e universal. Por isso, Wagner (2010) enfatiza que busquemos uma objetividade relativa com relatividade cultural, na qual quem observa é observado, estabelecendo uma mediação da sua própria cultura para a compreensão do Outro. Por isso, o antropólogo experiencia a relativização da sua própria cultura para acessar a cultura do Outro. Dessa forma, a experiência etnográfica questiona as próprias categorias analíticas do antropólogo e propõe algo que se constrói na mediação com o Outro se justificando como invenção e reinvenção. Ou seja, esse processo de reconhecimento de alteridade para com o Outro é que emerge na cultura como algo universal do fenômeno humano. A partir desse diálogo, Wagner ainda propõe uma noção de antropologia reversa, na qual pensar a dicotomia "nós e os outros" faz parte da prática e da reflexão antropológica. DICAS Para se aproximar ainda mais da ideia de antropologia reversa de Roy Wagner, recomendamos o texto da antropóloga Sônia Maluf sobre "A antropologia reversa e "nós": alteridade e diferente", em que versa sobre a discussão acima, disponível no link: <https:// periodicos.ufsc.br/index.php/ilha/article/view/2175-8034.2010v12n1-2p41/20799>. 116 UNIDADE 2 | PERSPECTIVAS SÓCIO-HISTÓRICAS DA ANTROPOLOGIA 2.1 AUTORIDADE DO ETNÓGRAFO E POSSIBILIDADE DE ESCRITAS FIGURA 27 - MÃOS QUE SE ESCREVEM FONTE: Disponível em: <http://www.estranho.com/show_img. php?id=925>. Acesso em: 19 jul. 2016. Ao mesmo tempo, questionar a escrita dessa etnografia também é uma questão latente, afinal de contas, o modo como o antropólogo apresenta a cultura do Outro é, muitas vezes, através da escrita. Então, por que não se questionar sobre essa escrita? Ou mesmo, qual é a forma mais legítima de apresentar o Outro por meio da descrição? Ou mesmo, quanto estamos autorizados a falar sobre o Outro de maneira contundente? Quais são os limites que essa apresentação pela escrita impõe? Todas essas questões são questionamentos da própria antropologia, e não podemos mais passar desapercebidos por elas. Nesse sentido, o antropólogo norte-americano James Clifford lança seu livro "A experiência etnográfica", em 1998, justamente a fim de pensar a autoridade da produção etnográfica e questionar sobre os engodos da experiência descritiva da escritura do Outro. Num limiar entre literatura e antropologia, o rigor científico tenta se afastar da poética, mas é aí que o autor reforça que poético e político são inseparáveis, constituindo assim, etnografias como verdades parciais. Pensar o papel do texto no processo etnográfico coloca em questão a representação social dos discursos presentes e a relação de poder que o antropólogo estabelece com seus interlocutores na leitura do produto final sobre a cultura do Outro. Sair da perspectiva clássica confere um exercício de tradução e de um cuidado maior, no qual a etnografia se coloca entre sistemasde significação. Ou seja, ela está na fronteira entre civilizações, culturas, classes, raças e gênero. Assim, o texto se configura como um método de apreensão da realidade. O que cria uma implicação estética, mas também ética sobre os recortes temporais, espaciais e conceituais que o antropólogo escolhe para falar sobre e expor o Outro. TÓPICO 3 | INQUIETAÇÕES CONTEMPORÂNEAS DA ANTROPOLOGIA 117 Assim, a ciência também acontece nesse registro de negociações, imposições e escolhas no qual se dá o trabalho etnográfico. Desse modo, Clifford (1998) reforça que as etnografias são ficções, pois trazem a parcialidade das verdades históricas e culturais, enfatizando a sistematicidade etnográfica de apreensão da totalidade e exclusividade da experiência entre os interlocutores. A tradução da experiência para forma textual deve contemplar a polifonia das vozes naquele campo, de modo a apresentar os sistemas culturais muito mais como um conjunto dialógico, interpretativo, experiencial, trazendo as camadas presentes do objeto estudado, no qual a apresentação coerente pressupõe o modo controlador de autoridade. Assim, considerando as múltiplas leituras possíveis é que se desestabiliza a compreensão de que o monopólio de certas culturas e classes é apenas do Ocidente. Logo, a etnografia depende muito mais do leitor do que propriamente do autor do texto. Essa reflexão nos provoca a repensar nossa escrita sobre o Outro e a relativizar o que lemos sobre os outros. FIGURA 28 - BIQUÍNI E A BURCA FONTE: Disponível em: <http://blogdomarcelogurgel.blogspot.com.br/ 2013/02/o-biquini-e-burca.html>. Acesso em: 19 jul. 2016. 118 UNIDADE 2 | PERSPECTIVAS SÓCIO-HISTÓRICAS DA ANTROPOLOGIA 2.2 GRANDES RUPTURAS E NOVOS QUESTIONAMENTOS FIGURA 29 - A CHEGADA DOS ANTROPÓLOGOS FONTE: Disponível em: <http://www.cafecomsociologia.com>. Acesso em: 19 jul. 2016. A perspectiva que influencia a antropologia é uma perspectiva ocidental. Esse pensamento europeu e norte-americano, no qual se fundou a antropologia, é um ponto de vista possível, mas não é o único. Cada vez mais universidades de todas as partes do mundo produzem discussões antropológicas com persistência e seriedade. Por isso, neste último subtítulo queremos refletir sobre a relação da hegemonia e subalternidade no âmbito da Antropologia. Não se trata de uma questão geográfica, mas geopolítica. Pensar em uma antropologia do mundo é considerar a produção clássica, mas também a produção antropológica apropriada pelos nativos e, de certa maneira, ressignificada a seu modo. Por isso, trata-se da emergência e visibilização de uma comunidade transnacional a partir da premissa da globalização, questionamento do pensamento hegemônico, transcendência da ideia de centro e periferia, indo além das estruturas de poder para propor uma disciplina mais simétrica. Nesse sentido, um olhar local se amplia e pode se tornar um olhar global. Num contexto pós-colonial, considera-se que o sistema está baseado nas relações entre unidades heterogêneas, que disputam poderes e saberes para TÓPICO 3 | INQUIETAÇÕES CONTEMPORÂNEAS DA ANTROPOLOGIA 119 se constituírem como tal. É preciso estabelecer negociações entre os mundos imaginados e os mundos vividos, a fim de que a alteridade prevaleça e todos possam ser ouvidos. Estar preparado para analisar esse novo mundo deve ser um exercício constante do antropólogo, para que ele possa ser dialógico, e não unilateral. As sociedades complexas moderno-contemporâneas são heterogêneas, híbridas e têm suas fronteiras borradas pelo convívio com outros contextos, povos e histórias, por isso, o estudo antropológico, na atualidade, tem de estar atento a essas multiplicidades e camadas sobrepostas. Nesse sentido, para aprender é preciso desaprender. Trazer a perspectiva do escravizado, do indígena, do subalterno por ele mesmo é uma luta de todos nós. O falar "por" é limitado e as teorias nem sempre se encaixam. E então, pergunta-se: com que ou quem a antropologia está compromissada? As questões do nativo são as mesmas que as do antropólogo? Como a academia interfere e modela a prática da experiência etnográfica? Quais posições temos em campo? Qual posição política que vamos adotar? Que implicações isso tem para nossos interlocutores? Somos militantes ou apenas evidenciamos uma realidade parcial? De onde partimos para pesquisar? Todas essas são questões novas aos antropólogos, entretanto pertinentes ao contexto da prática etnográfica e suas implicações na sociedade. E por isso temos de estar atentos não à antropologia, mas às antropologias que estão sendo produzidas, para saber a qual queremos nos filiar e, conjuntamente, produzir conhecimento sobre o mundo. DICAS Para maior aprofundamento da questão, indicamos o livro organizado pelos antropólogos Gustavo Lins Ribeiro e Artur Escobar, intitulado "Antropologias Mundiais: transformações da disciplina em sistema de poder". Fonte: Disponível em: <http://aa.revues.org/722>. 120 UNIDADE 2 | PERSPECTIVAS SÓCIO-HISTÓRICAS DA ANTROPOLOGIA LEITURA COMPLEMENTAR O RITUAL DO CORPO ENTRE OS NACIREMA Horace Minner Todas as culturas possuem uma configuração particular, um estilo. Frequentemente, um determinado valor central ou uma forma de perceber o mundo deixam suas marcas em várias instituições da sociedade. Neste artigo, Horace Minner demonstra que “atitudes quanto ao corpo” têm influência generalizada em muitas instituições da sociedade Nacirema. As crenças e práticas mágicas deste povo apresentam aspectos tão pouco usuais, que nos parece importante descrevê- las como exemplos dos extremos a que o comportamento humano pode chegar. Embora, há mais de 20 anos, o Prof. Linton já tivesse chamado a atenção dos antropólogos para o complexo ritual dos Nacirema, a cultura deste povo ainda é pouco compreendida. Eles constituem um grupo norte-americano que vive no território que se estende entre os Cree, do Canadá, aos Yaqui e Tarahumara, do México, e aos Caribe e Aruque, das Antilhas. Pouco se sabe quanto à sua origem, embora a tradição mítica afirme que eles vieram do Leste. A cultura Nacirema se caracteriza por uma economia de mercado altamente desenvolvida, que se beneficiou de um ‘habitat’ natural muito rico. Embora, nesta sociedade, a maior parte do tempo das pessoas seja devotada à ocupação econômica, uma grande porção dos frutos destes trabalhos, e uma considerável parte do dia, são despendidas em atividades rituais. O foco destas atividades é o corpo humano, cuja aparência e saúde constituem a preocupação dominante dentro do ‘ethos’ deste povo. A crença fundamental subjacente a todo o sistema parece ser a de que o corpo humano é feio, e que sua tendência natural é a debilidade e a doença. Encarcerado em tal corpo, a única esperança do homem é evitar essas características, através do uso de poderosas influências do ritual e da cerimônia. Todo o grupo doméstico possui um ou mais santuários dedicados a tal propósito. Os indivíduos mais poderosos desta sociedade têm vários santuários em sua casa e, de fato, a opulência de uma moradia é frequentemente aferida em termos da quantidade destes centros de rituais que abrigam. O ponto focal do santuário é uma caixa ou arca embutida na parede. Nesta arca são guardados os inúmeros feitiços e poções mágicas, sem os quais nenhum nativo acredita que poderia viver. Tais feitiços e poções são obtidos de vários curandeiros cujos serviços devem ser retribuídos por meio de presentes substanciais. No entanto, o curandeiro não fornece as poções curativas para os fiéis, decidindo apenas os ingredientes que nela devem entrar, escrevendo-os, em seguida, em linguagem antiga e secreta. Tal escrita deve ser decifrada pelos herbanários, os quais, mediante outros presentes, fornecem o feitiço desejado. O feitiço não é descartado depois de ter servido a seu propósito, mas colocado na caixa de mágica do santuário doméstico. TÓPICO 3 | INQUIETAÇÕES CONTEMPORÂNEASDA ANTROPOLOGIA 121 Como esses materiais mágicos são específicos para certas doenças, e considerando-se que as doenças reais ou imaginárias deste povo são muitas, a caixa de mágica costuma estar sempre transbordando. Os pacotes mágicos são tão numerosos que as pessoas esquecem sua serventia original, e temem usá-los de novo. Embora os nativos tenham se mostrado vagos em relação a essa questão, só podemos concluir que a ideia subjacente ao costume de se guardar todos os velhos materiais mágicos é a de que sua presença na caixa de mágica, diante da qual os rituais do corpo são encenados, protege de alguma forma o fiel. Embaixo da caixa de mágica existe uma pequena fonte. Todo dia, cada membro da família, em sucessão, entra no santuário, curva a cabeça diante da caixa de mágica, mistura diferentes tipos de água sagrada na fonte e realiza um breve rito de ablução. Na hierarquia dos profissionais da magia, e abaixo do curandeiro em termos de prestígio, estão os que são designados como ‘homens-da-boca-sagrada’. Os Nacirema nutrem um misto de horror pela fascinação por suas bocas que chega às raias da patologia. Acredita-se que a condição da boca possui uma influência sobrenatural nas relações sociais. Assim, o ritual do corpo, cotidianamente realizado por todos, inclui um rito bucal. O rito consiste na introdução de um pequeno feixe de cerdas na boca, juntamente com uma espécie de creme mágico e, em seguida, na movimentação deste feixe, segundo uma série de gestos altamente ritualizados. Além deste rito bucal privado, as pessoas procuram um ‘homem- da-boca-sagrada’, uma ou duas vezes por ano. No seu templo, este mago possui uma impressionante parafernália que consiste em uma variedade de perfuratrizes, furadores, sondas e agulhas. O uso destes objetos no exorcismo dos perigos da boca implica uma quase e inacreditável tortura ritual do fiel e, usando as ferramentas citadas, alarga qualquer buraco que o uso tenha feito nos dentes. Se não se encontram buracos naturais nos dentes, grandes seções de um ou mais dentes são serradas, para que a substância sobrenatural possa ser aplicada. Na imaginação do fiel, o objetivo destas aplicações é deter o apodrecimento dos dentes e atrair amigos. O caráter extremamente sagrado e tradicional do mito fica evidente no fato de que os nativos retornam, todo ano, ao ‘homem-da-boca-sagrada’, embora seus dentes continuem a se deteriorar. Os curandeiros possuem um templo imponente, o Latipsoh, em cada comunidade, de algum tamanho. As cerimônias mais elaboradas, necessárias para o tratamento de fiéis considerados muito doentes, só podem ser realizadas neste templo. Tais cerimônias envolvem não só o taumaturgo, mas também um grupo permanente de vestais que se movimentam nas câmaras do templo com uma roupa distintiva. As cerimônias no Latipsoh podem chegar a ser tão violentas que surpreende o fato de que uma razoável proporção dos nativos realmente doentes, que entram no templo, consiga se curar. Crianças pequenas, cuja doutrinação é ainda incompleta, costumam resistir às tentativas de levá-los ao templo, alegando que ‘é aonde você vai para morrer’. Apesar disso, os doentes adultos não apenas desejam, como ficam ansiosos para submeter-se à prolongada purificação ritual, se 122 UNIDADE 2 | PERSPECTIVAS SÓCIO-HISTÓRICAS DA ANTROPOLOGIA possuem meios para tanto. Os guardiães do templo, não importa quão doente o suplicante esteja ou quão grave a emergência, não admitem o fiel se ele não puder dar um rico presente ao zelador. Mesmo depois que se conseguiu a admissão e se sobreviveu às cerimônias, os guardiães não permitem a saída do neófito até que este dê ainda outro presente. O(a) suplicante, ao entrar no templo, é despido(a) de todas as suas roupas. Na vida cotidiana, os Nacirema evitam a exposição de seus corpos quando das suas funções naturais. O banho e a excreção são realizados somente na intimidade do santuário doméstico, aonde são ritualizados, fazendo parte dos ritos corporais. Poucos suplicantes no templo estão suficientemente bem para fazer qualquer coisa que não seja ficar deitado em suas camas duras. As cerimônias implicam desconforto e tortura. Com precisão ritual, as vestais acordam a cada madrugada seus miseráveis crentes, rolam-nos em seus leitos de dor, enquanto realizam abluções, cujos movimentos formalizados são objeto de treinamento intensivo das vestais. Em outros momentos, elas inserem varas mágicas na boca do fiel, ou obrigam-no a ingerir substâncias que são consideradas curativas. De tempos em tempos, os curandeiros vêm até seus fiéis e atiram agulhas, magicamente tratadas, em sua carne. O fato de que estas cerimônias do templo possam não curar, ou até matar o neófito, não diminui de modo algum a fé do povo nos curandeiros. Para concluirmos, deve-se mencionar certas práticas que estão baseadas na estética nativa, mas que dependem da aversão generalizada ao corpo e às funções naturais. Há jejuns rituais para fazer pessoas gordas ficarem magras, e banquetes cerimoniais para fazer pessoas magras ficarem gordas. Outros ritos ainda são usados para tornar maiores os seios das mulheres, se eles são pequenos, e menores, se são grandes. Nossa descrição da vida dos Nacirema certamente mostrou que eles são um povo obcecado pela magia. É difícil compreender como eles conseguiram sobreviver por tanto tempo, sob os pesados fardos que eles próprios se impuseram. Mas, mesmo costumes tão exóticos quanto estes ganham seu verdadeiro sentido quando encarados a partir do esclarecimento feito por Malinowski: “Olhando de cima e de longe, dos lugares seguros e elevados da civilização desenvolvida, é fácil ver toda a rudeza e a irrelevância da magia. Mas, sem este poder e este guia, o homem primitivo não poderia ter dominado as dificuldades práticas como fez, nem poderia o homem ter avançado até os mais altos estágios de civilização”. FONTE: MINNER, Horace. Body ritual among the Nacirema. American Anthropologist, 1956.
Compartilhar