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Agosto / 2020 Professor/autor: Mestrando Cezar Flora Projeto Gráfico e Capa: Mauro Rota - Departamento de Marketing e Comunicação Todos os direitos em língua portuguesa reservados por: Rua: Martinho Lutero, 277 - Gleba Palhano - Londrina - PR 86055-670 Tel.: (43) 3371.0200 3Antropologia da Religião | FTSA | SUMÁRIO Antropologia da Religião Unidade I - Fundamentos Introdução.......................................................................................................................04 1.1. Pensar a partir da antropologia......................................................................................04 1.2. Religião e cultura.............................................................................................................21 Unidade II - Símbolos e práticas Introdução.......................................................................................................................35 2.1. Símbolos..........................................................................................................................35 2.2. Mitos................................................................................................................................49 2.3. Rituais..............................................................................................................................60 Unidade III - Crenças Introdução.......................................................................................................................69 3.1. Antropologia da crença.................................................................................................69 3.2. Entidades religiosas.......................................................................................................87 3.3. Magia e religião...............................................................................................................98 Unidade IV - Antropologia missionária Introdução....................................................................................................................105 4.1. Perspectivas da missiologia.......................................................................................105 4.2. Desafi os contemporâneos...........................................................................................117 Resultado dos exercícios .........................................................................................139 | Antropologia da Religião | FTSA4 UNIDADE I - Fundamentos Introdução Para aqueles que criam que a religião desapareceria, a vida contemporânea insiste em mostrar que a religião ainda está viva e exerce um papel signifi cativo na vida das pessoas e na sociedade. Não é raro nos depararmos com noticiários que ressaltam alguns dos novos desafi os colocados para a religião em contraste com alguns desvios, por vezes até violentos, de conduta em relação ao outro. O pluralismo sempre se fez presente de uma forma ou de outra, porém, o pluralismo atual coloca às religiões o desafi o de promoverem um convívio pacífi co. Neste sentido, o nosso contexto requer que repensemos as nossas formas de olhar para o outro. Uma das marcas características da antropologia é seu olhar para o outro, para o diferente, em busca de compreensão. E é aqui que a antropologia se coloca como uma ferramenta frente aos desafi os que nos são lançados pelas dinâmicas da vida. Nosso recorte será especifi camente a religião, assim, buscaremos pontuar nesta primeira unidade as contribuições da antropologia para o desenvolvimento de uma melhor compreensão da religião do outro, ou da outra religião. 1.1. Pensar a partir da antropologia 1.1.1. Um olhar para o outro Hoje temos acesso a uma quantidade imensa de informações sobre culturas distantes. São textos, fotos, vídeos e outros tantos recursos que estão disponíveis à distância de um “clique”. Se antes essas informações dependiam de algumas poucas fontes, a internet possibilitou uma explosão de diferentes fontes. Assim, ao mesmo tempo em que o acesso ao distante se torna mais fácil também assistimos a uma multiplicação dos pontos de vista através dos quais podemos olhar para o outro. 5Antropologia da Religião | FTSA | A familiaridade com as nossas práticas culturais nos faz ver as práticas do outro como algo exótico, excêntrico. Quando se trata da religião a questão não é diferente. Porém, temos distintas possibilidades de olharmos para a religião do outro. Iniciemos com o olhar do turista cultural. Nessa modalidade de turismo o objetivo é vivenciar ou ter experiências com aspectos de outra cultura naquilo que ela tem de diferente. Quanto mais exótica ou excêntrica, melhor. Dentre os aspectos exóticos da cultura do outro encontra-se a religião. Tomemos como exemplo as viagens turísticas para a Índia. A religião hindu, com a arquitetura de seus templos e suas práticas religiosas diferentes das nossas, atrai a atenção dos inúmeros turistas que anualmente visitam aquele país. Na bagagem de volta para a casa esses turistas trazem suvenires, muitas fotos e, para alguns, experiências espirituais novas. Talvez práticas de meditação ou algum amuleto que serão incrementados ao seu dia a dia. Por mais que esse olhar possa parecer desinteressado, não existe um olhar neutro para o outro. Qualquer forma de olhar sempre estará eivada por valores – pelos valores daquele que olha. Porém, cada forma de olhar será marcada por comportamentos distintos. Enquanto turista cultural, minha preocupação pode ser apenas vivenciar o clima exótico do outro. Todavia, ao olhar para a religião do outro a partir da minha própria religião a questão se coloca de outra maneira. Dentre as formas possíveis, listemos três. Em primeiro lugar, podemos olhar para a religião do outro a partir da apologética, que pode ser entendida como defesa da fé. Há uma forma de defesa que busca olhar para a religião do outro tendo por objetivo tanto validar as próprias crenças do quanto negar a validade das crenças do outro. Essa defesa pode ser feita através da declaração de nulidade das crenças, práticas e entidades do outro ou da atribuição das mesmas à esfera de atuação demoníaca. Ou, por outro lado, mesmo reconhecendo certo grau de validade na religião do outro – o anseio pelo divino está inscrito no coração do ser humano, mesmo que tenha sido distorcido pelo pecado – o apologeta declara a sua religião como verdadeira, no | Antropologia da Religião | FTSA6 sentido de contrapor à realidade do fenômeno indicado nas práticas e crenças do outro. Em segundo lugar, podemos observar a partir da ótica missionária. Aqui podemos indicar como exemplo clássico a disciplina de “Antropologia Missionária”. Esta disciplina busca na antropologia ferramentas para melhor compreensão de situações transculturais, visando o exercício das atividades próprias à prática missionária, tais como a compreensão da cultura dos povos a serem evangelizados e a tradução da Bíblia para os idiomas ou dialetos destes povos de forma contextual e relevante. Em terceiro lugar, a partir da prática do diálogo inter-religioso. A relação entre determinadas expressões de violência e a religião não é algo novo. Porém, para cada momento da história humana essa relação adquire contornos próprios a depender da forma como se constroem as interações possíveis entre a religião e as outras dimensões da sociedade, bem como os ideais para o convívio interpessoal e intersocial. Na busca de uma sociedade pautada no diálogo e atenta contra as relações violentas, uma sensibilidade diferente marca presença nas refl exões sobre o papel das religiões no mundo contemporâneo. Frente a tarefa da construção de caminhos que proporcionem uma redução ativa dos níveis de violência surge a possibilidade de se pensar novas formas de entendimento da relação entre os diferentes grupos religiosos, formas que contribuam para o estabelecimento de uma solidariedade mútua e comprometida com a paz. Nesse contexto ganhadestaque a prática do diálogo inter-religioso. O diálogo inter-religioso demonstra a possibilidade de uma nova perspectiva de atuação das religiões ao reconhecer que essas podem exercer um papel signifi cativo na construção de uma ética da superação da violência; que podem igualmente dedicar-se à tarefa comum de salvaguardar a integridade dos seres humanos e da terra ameaçada (Teixeira, 2003, p. 21). 7Antropologia da Religião | FTSA | Quando falamos da prática do diálogo inter-religioso não devemos confundi-la com uma única proposta, pois há muitas formas diferentes de se construir esse diálogo. Talvez uma tônica comum seja a salvaguarda contra o predomínio de uma religião sobre outra, o que não condiz com “o mito de uma ‘religião mundial’, que apagaria todas as diferenças e comprometeria a originalidade irredutível de cada tradição religiosa” (Idem, p. 24). Dentre as formas possíveis de diálogo, Faustino Teixeira destaca três: a cooperação religiosa em favor da paz, o intercâmbio teológico e o diálogo da experiência. Estas são apenas algumas das muitas possibilidades de abordagem do tema da religião. Nesse sentido convém pontuarmos a perspectiva de abordagem desta disciplina de Antropologia da Religião. Não faremos aqui antropologia missionária – o que não signifi ca que alguns dos princípios abordados aqui não possam ser aplicados na prática missionária da igreja. Assim, nesta disciplina nos limitaremos a olhar para a religião a partir de ferramentas próprias da antropologia. Abordagem que também tem muito a contribuir para o diálogo inter-religioso ao proporcionar a compreensão do fenômeno religioso a partir da perspectiva antropológica. | Antropologia da Religião | FTSA8 Exercício de Reflexão - 01 Vamos fazer o seguinte exercício refl exivo: primeiro, traga à memória um ritual indígena interessante que alguma vez já te chamou atenção, e te encantou pela beleza dos detalhes. Depois, olhe para a fi gura ao lado, e pense nos atabaques tocando em um terreiro de candomblé. Agora, responda, qual das duas atribuímos mais facilmente ao demônio e qual atribuímos a uma mera manifestação cultural da fantasia humana? 1.1.2. As questões da antropologia Em sua etimologia a palavra antropologia se compõe pela junção de dois termos gregos: anthropos e logos. Segundo uma possível tradução direta: estudo do homem. A simples defi nição etimológica da palavra mostra-se ao mesmo tempo muito geral e pouco esclarecedora quanto a especifi cidade da disciplina. Embora o olhar para o outro não seja uma atitude nova para o humano, a disciplina tal como a conhecemos hoje é fruto dos desdobramentos da modernidade. O fenômeno humano enquanto objeto de pesquisa apresenta-se como algo complexo, que permite a formação de múltiplas formas de abordagem. Diferentes campos de estudo são passíveis de se desdobrarem em disciplinas distintas, tais como a sociologia, a economia, e ciência política, a psicologia e outras. Levando em consideração a defi nição etimológica de antropologia talvez pudéssemos imaginar uma “superciência do ser humano” que englobaria e integraria todas as outras disciplinas. No entanto, não é assim. A antropologia é uma disciplina, ao lado de outras disciplinas, que buscam se aproximar do complexo fenômeno humano. Sagrega defi ne a antropologia nos seguintes termos: “é a disciplina que tem a tarefa urgente de explicar o homem em sua multiplicidade fenomênica” (apud Santisteban, 2018, p. 19). Esta defi nição acentua uma das principais tônicas da antropologia, o olhar para o outro. Em seus 9Antropologia da Religião | FTSA | primórdios a disciplina foi marcada pela análise de culturas não ocidentais, ou talvez, não europeias. O antropólogo encara o fato da multiplicidade fenomênica do humano e refl ete sobre o aparente paradoxo desse ser que um só, como ser-espécie da natureza, e ao mesmo tempo é multiforme em suas expressões coletivas. Frente a esse outro, o antropólogo se põe a descrever seu modo de vida a fi m de explicá-lo de forma teórica e, em alguns casos, propor aproximações comparativas ou esboçar teorias mais abrangentes. Enquanto grande parte da pesquisa antropológica antes do fi nal do século XIX era feita a partir de relatos de administradores de províncias, viajantes, comerciantes, missionários e outros, a partir do século XX, a experiência em campo começa a se tornar uma exigência fundamental para os pesquisadores na produção de suas monografi as. Essa experiência do antropólogo será descrita pelo termo etnografi a, que consiste em um dos métodos fundamentais, uma forma de aproximação da realidade a ser estudada. Para Geertz, a etnografi a é uma descrição densa. O que o etnógrafo enfrenta, de fato [...] é uma multiplicidade de estruturas conceptuais complexas, muitas delas sobrepostas ou amarradas umas às outras, que são simultaneamente estranhas, irregulares, inexplícitas, e que ele tem que, de alguma forma, primeiro apreender e depois apresentar (1989, p. 20). Glossário Etnografi a é o estudo descritivo da cultura dos povos, sua língua, raça, religião, hábitos etc., como também das manifestações materiais de suas atividades. É a ciência das etnias. Do grego ethos (cultura) + graphe (escrita). A etnografi a estuda e revela os costumes, as crenças e as tradições de uma sociedade, que são transmitidas de geração em geração e que permitem a continuidade de uma determinada cultura ou de um sistema social (https://www. signifi cados.com.br/etnografi a/). | Antropologia da Religião | FTSA10 Geertz compara esse fazer etnográfi co com a tentativa de ler um manuscrito cheio de desafi os para aquele que se põe a decifrá-lo. A etnografi a não consiste somente em uma coleta de dados, mas envolve um processo de compreensão e explicação. Pelo fato de a experiência humana ser integral – por mais que o pesquisador possa destacar determinada dimensão da vida, trata-se sempre de uma experiência integral – a antropologia buscará atentar para a totalidade de experiências do grupo/objeto de sua pesquisa. Desse modo, qualquer explicação de um costume, um rito, uma prática, uma instituição etc., deverá levar em conta uma perspectiva de conjunto. Saiba mais Há uma série de fenômenos de suma importância que de forma alguma podem ser registrados apenas com o auxílio de questionários ou documentos estatísticos, mas devem ser observados em sua plena realidade. A esses fenômenos podemos dar o nome de os imponderáveis da vida real. Pertencem a essa classe de fenômenos: a rotina do trabalho diário do nativo; os detalhes de seus cuidados corporais; o modo como prepara a comida e se alimenta; o tom das conversas e da vida social ao redor das fogueiras; a existência de hostilidade ou de fortes laços de amizade, as simpatias ou aversões momentâneas entre as pessoas; a maneira sutil, porém inconfundível, como a vaidade e a ambição pessoal se refl etem no comportamento de um indivíduo e nas reações emocionais daqueles que o cercam. Todos esses fatos podem e devem ser formulados cientifi camente e registrados; entretanto, é preciso que isso não se transforme numa simples anotação superfi cial de detalhes, como usualmente é feito por observadores comuns, mas seja acompanhado de um esforço para atingir a atitude mental que neles se expressa. É esse o motivo por que o trabalho de observadores cientifi camente treinados, aplicado ao estudo consciencioso dessa categoria de fatos, poderá, acredito, trazer resultados de inestimável valor. MALINOWSKI, Bronislaw. Os argonautas do pacífi co ocidental. Abril S.A. Cultural e Industrial: São Paulo, 1976, p. 34 11Antropologia da Religião | FTSA | A abordagem comparativa é também um dos desdobramentos possíveis da pesquisa antropológica. Em The Golden Bought (1890), James Frazer faz uma extensa investigação comparativa de mitos, ritos e religiões com vistas a propor a reconstrução de uma evolução hipotética das sociedades humanas. Essa forma de comparação não émais praticada entre antropólogos. Aqueles que praticam a abordagem comparativa hoje não mais isolam os recortes de seus contextos, buscando vê-los enquanto parte destes – como sistemas de relações. Outro desenvolvimento possível das pesquisas antropológicas é a proposição de teorias mais abrangentes a respeito das diversas sociedades humanas. Esse pode ser um passo válido, mas requer um nível maior de abstração, pois as monografi as antropológicas normalmente têm em vista o recorte bem específi co de determinado grupo humano. Sobre esse processo, Geertz assinala que “o antropólogo aborda caracteristicamente tais interpretações mais amplas e análises mais abstratas a partir de um conhecimento muito extensivo de assuntos extremamente pequenos” (2008, p. 15). Um exemplo são os estudos sobre “parentesco”. A prática antropológica não se caracteriza por uma abordagem única, mas, como toda ciência humana, é marcada por uma multiplicidade de formas de abordagem de seu objeto. Com já pontuamos, o fenômeno do humano é múltiplo. Ora essa multiplicidade também se mostra nas muitas formas possíveis de aproximação. Outro fator a destacarmos é que, sendo uma dentre várias disciplinas das ciências humanas, a antropologia não possui um objeto exclusivo, mas sua abordagem se sobrepõe a outras que também visam o ser humano em suas multiformes manifestações. Assim, ela tanto pode fazer uso de métodos e instrumentos de outras disciplinas quanto outras disciplinas podem dela fazer uso para seus propósitos. O que isto signifi ca na prática é que a antropologia pode recorrer à história, sociologia, psicologia, etc. no auxílio de seus estudos. Por último, vale destacar que a antropologia pode nos proporcionar um momento de estranhamento em relação à nossa própria realidade. | Antropologia da Religião | FTSA12 Olhar para o outro a partir da perspectiva da antropologia implica ir além de um fascínio ou aversão pelo exótico, pelo excêntrico, instaurando- se uma ocasião oportuna de irmos além de uma dicotomia simplista e enganosa entre nós e eles. O outro, o diferente, também pode ser a oportunidade para uma experiência de descentramento, uma ruptura com qualquer forma de etnocentrismo – ou seja, da tendência de colocar a nossa cultura (crenças, costumes, religião etc.) como centro a partir do qual avaliamos e julgamos o outro. A crítica pós-colonial denunciou essa atitude etnocêntrica inscrita às vezes no cerne da própria prática antropológica que, embora tenha interpretado de forma simpática outras culturas não ocidentais as defendeu por um apadrinhamento visando representar outros “que eram incapazes de representar a si mesmos” ou a partir de uma imagem uniformemente passível e imutável do outro – tornar o outro um objeto essencializado, congelando-o no tempo. 1.1.3. A abrangência da antropologia Na literatura antropológica podemos encontrar duas nomenclaturas para a disciplina: antropologia social e antropologia cultural. Essa distinção de nomes deve-se mais a ênfases dadas em determinadas escolas no início do século XX. Segundo Eriksen e Nielsen (2007), enquanto na Inglaterra, no período entre as duas grandes guerras, remodelou-se a disciplina em antropologia social – comparativa, de base sociológica, tendo como conceitos nucleares: estrutura social, normas, estatutos e interação social –, nos Estados Unidos ela se tornou conhecida como antropologia cultural. No sentido americano, a cultura é um conceito mais amplo do que a sociedade, ou seja, se “a sociedade é constituída de normas sociais, instituições e relações, a cultura consiste em tudo o que os seres humanos criaram, inclusive a sociedade – fenômenos materiais (um campo, um arado, uma pintura...), condições sociais (casamento, famílias, o Estado...) e signifi cado simbólico (língua, ritual, crença)” (p. 53). Assim, podemos dizer que se trata da mesma disciplina, mas com ênfases próprias a depender da tradição do pesquisador. 13Antropologia da Religião | FTSA | A fi m de corresponder a complexidade do fenômeno em análise a disciplina divide-se em alguns domínios, ou subdisciplinas: antropologia física ou biológica, arqueologia, linguística e antropologia cultural ou social. Pontuemos algumas das contribuições destes ramos para a antropologia. Porém, desde já ressaltemos que esses domínios não são exclusivos da antropologia, ou encontram-se a ela submetidos, mas, sim, são áreas que tem muito a contribuir com as pesquisas antropológicas. Comecemos pela antropologia física ou biológica. A publicação da Evolução das espécies, em 1859, pelo biólogo inglês Charles Darwin, revolucionou a forma de se pensar a diversidade das espécies na natureza e a ideia científi ca de vida. A despeito das ideias da teoria da evolução terem sido utilizadas para fundamentar o racismo científi co do século XIX, a antropologia superou esse uso, e hoje busca nos registros biológicos algumas chaves signifi cativas para a explicação do animal humano. Ela volta a sua atenção para a condição do ser humano enquanto uma espécie biológica, localizada na ordem dos primatas – o homo sapiens –, e a partir desta perspectiva, busca analisar o processo formativo do humano em seus aspectos físicos, examinando esqueletos dos ancestrais dessa espécie e alimentando-se também de informações advindas de pesquisas biológicas, através de comparações da carga genética e do comportamento do ser humano com outros antropoides. Todavia não se trata de partir de um quadro defi nido uma vez por todas quando se trata da reconstituição da evolução da linhagem humana. Vez ou outra somos informados sobre novas descobertas que colocam de cabeça para baixo quadros antes defi nidos. Porém, trata-se de uma pesquisa válida que busca encontrar o lugar da espécie humana na natureza e conhecer a sua especifi cidade. Por detrás desta busca encontra-se a questão sobre o quanto de animal existe no ser humano, perguntando-se em que medida seu comportamento é próximo ou distante de outros antropoides – e quanto de cultura está presente também nessas diferenças. Não se trata da busca de um determinismo biológico, pois os bioantropólogos não negam que a cultura contribuiu | Antropologia da Religião | FTSA14 para que o ser humano se tornasse naquilo que é hoje: a sua capacidade de comunicação através de um sistema linguístico complexo e sofi sticado, a fabricação e o emprego de ferramentas e a adoção generalizada da proibição do incesto como regra fundamental da sociedade humana (Gomes, 2014, p. 17). A pergunta pelas origens e desenvolvimento do ser humano é auxiliada também pela arqueologia. Não raro somos surpreendidos com notícias sobre novas descobertas de dados sobre culturas antigas, que apontam para outros modos de vida. Dentre os materiais “desenterrados” pelos antropólogos temos inúmeros vestígios da cultura material de povos que já não existem, e que testemunham da cultura material desenvolvida por eles, permitindo a identifi cação de padrões, similaridades, diferenças, singularidades etc. A arqueologia fornece material tanto para a antropologia cultural – com dados a respeito de culturas passadas – quanto para a antropologia biológica – com dados para que os bioantropólogos possam formular seus modelos e teorias sobre a evolução biológica do ser humano. A ideia [da arqueologia] é reconstruir o passado por meio das evidências concretas que podem ser, literalmente, desenterradas: lascas de pedras que um dia foram facas, furadores e raspadores; ossos, esqueletos e corpos mumifi cados, que podem dar dados sobre idade, doenças, hábitos alimentares, status social; pólens e dejetos fossilizados que podem indicar hábitos alimentares; madeira carbonizada, que ajuda a determinar a idade de seu uso e, portanto, a idade do sítio arqueológico; cerâmica, que indica técnicas, arte, alimentação; monumentos, templos, tumbas, enterramentos, cemitérios, depósitos de lixo, etc., que podem indicar nível econômico, organizaçãopolítica e religiosa, sedentarização, transumância ou nomadismo (Gomes, 2004, p. 21). 15Antropologia da Religião | FTSA | Por último, a linguística. Conscientes do papel da língua no processo de apreensão do mundo da natureza e da cultura, os estudos da linguagem se apresentam como um dos campos que auxiliam a antropologia. Enquanto um veículo da cultura, a língua se colocaria como a, ou uma das, intermediações entre o ser humano e a natureza. Dentre as contribuições da linguística, ressaltemos duas. Ainda sob o nome de Filologia – surgida em fi ns do século XVIII –, os estudiosos se deram conta do parentesco entre algumas línguas, daí a metáfora das famílias linguísticas que, num processo regressivo, remontariam a uma primeira língua mãe – hoje essa ideia é questionada pelo plurigenismo (múltiplas gêneses). Porém, independente de suas origens, o signifi cado atual de uma palavra não é determinado pela sua origem ou raiz, mas pelas circunstâncias em que a língua está inserida. A segunda contribuição advém da linguística contemporânea, que vê e língua enquanto um sistema coeso, onde a compreensão de qualquer som se dá apenas a partir de sua relação com seu sistema linguístico. Se a língua é uma das partes essenciais da cultura, não seria a cultura também estruturada da mesma forma? Neste ponto poderíamos imaginar talvez que a antropologia seja uma disciplina que olha apenas para o passado, para sociedades antigas e primitivas. Em seus primeiros passos, enquanto uma disciplina acadêmica, a antropologia foi marcada por pesquisas a respeito de sociedades primitivas, porém, com o objetivo de melhor compreender o humano do seu presente. Embora as pesquisas sobre povos primitivos estejam presentes na antropologia, ela se volta hoje para uma gama maior de temas, o que se pode constatar pelo título de algumas subáreas: urbana, camponesa, da violência, do poder, da alimentação, da guerra, da música, do consumo e muitas outras. Porém, independentemente se olha para hoje ou para o passado, ela se constitui em uma das ferramentas através das quais o ser humano se compreende. 1.1.4. Pensar a religião a partir da antropologia Ao fi nal deste primeiro percurso devemos levantar a questão das contribuições da antropologia para a compreensão do fenômeno religioso. Enquanto uma disciplina que se atenta para a diversidade | Antropologia da Religião | FTSA16 do humano a antropologia levará a sério a questão da diversidade das religiões, levantando questões tais como: Qual o leque de diversidade das religiões? Há alguma coisa que seja compartilhada por todas as religiões? Quais relações existem entre a religião e seu contexto cultural, social e natural? Porém, o que é religião para a antropologia? Comecemos com duas defi nições: ... uma religião é um sistema solidário de crenças e de práticas relativas a coisas sagradas, isto é, separadas, proibidas, crenças e práticas que reúnem numa mesma comunidade moral, chamada igreja, todos aqueles que a elas aderem (Durkheim, 1996, p. 32). religião é (1) um sistema de símbolos que atua para (2) estabelecer poderosas, penetrantes e duradouras disposições e motivações nos homens através da (3) formulação de conceitos de uma ordem de existência geral e (4) vestindo essas concepções com tal aura de fatualidade que (5) as disposições e motivações parecem singularmente realistas [...] um sistema de símbolos que atua para... (Geertz, 2008, p. 67). Ambos os autores levam em consideração o caráter multiforme do fenômeno religioso, mas o fazem a partir de perspectivas e propósitos diferentes. Émile Durkheim, buscando uma religião primitiva e simples, se volta para o sistema totêmico de tribos australianas a fi m de entender a natureza religiosa do ser humano e revelar aspectos essenciais e permanentes da humanidade – se volta para o simples a fi m de compreender o complexo. Por sua vez Clifford Geertz foca na religião como um sistema simbólico, sendo os símbolos aquilo que sintetizam o ethos (aspectos morais e estéticos) e a visão de mundo de um povo – este tema será abordado mais adiante nesta unidade. Por mais abstratas e abrangentes que sejam as defi nições, embora necessárias, sempre serão parciais, refl etindo o recorte e o enfoque do pesquisador. 17Antropologia da Religião | FTSA | Dispensando aqui algo que possa defi nir “a” essência da religião nos voltaremos para a descrição e explicação de elementos presentes em alguns sistemas de práticas e crenças – ou sistemas simbólicos – que são denominados de religião. Conforme veremos nas próximas unidades, a antropologia se coloca inicialmente de forma atenta diante do fato da diversidade existente entre as religiões – por exemplo, nem todas fazem referência a deuses nem têm a moralidade como uma questão central. Esta diversidade não se limita à relação entre religiões diferentes, mas que se faz notar também dentro de uma mesma religião. Como, por exemplo, no caso do cristianismo, que mesmo nos ramos maiores encontramos muitas variações regionais. Embora os dados sejam de 2010, veja abaixo um gráfi co que mostra não apenas a distribuição das religiões em cada país, mas também a proporção em relação a quantidade de pessoas. Assim, quanto mais populoso o país, maior o gráfi co e quanto menos populoso, menor o gráfi co. Para explorar melhor o gráfico, consulte a seguinte página na internet: https://dataworldatlas.com/demo/free- sample.html Para além da descrição e catalogação a antropologia busca apresentar explicações para o fenômeno religioso. Mas, o que seria explicar a religião a partir da antropologia? Eller (2007, p. 12) pontua que explicar a religião antropologicamente é explicá-la nos termos de outra coisa, ou seja, dar a razão ou encontrar a fundamentação da religião fora de si mesma. Isto signifi ca que a antropologia não busca uma causa transcendente para a fundamentação e explicação da religião (por exemplo, uma revelação | Antropologia da Religião | FTSA18 divina), mas sim, uma explicação em termos de uma causa psicológica, social, biológica, cultural, entre outras. A antropologia não é uma negação da religião, mas uma leitura a partir de outros registros, que não sejam teológicos. Saiba mais O futuro da religião Enquanto se desenrola a história política explosiva do século nascente, o desdobramento mais notável – e o mais surpreendente – que as ciências sociais se veem obrigadas a enfrentar na cena mundial é com certeza aquilo que se usa denominar, muitas vezes erroneamente, como “o retorno da religião”. Erroneamente porque na verdade a religião nunca desapareceu – foi a atenção das ciências sociais que se desviou a outros campos, enquanto estiveram dominadas por uma série de pressupostos evolutivos que consideravam o compromisso com a religião uma força em declínio na sociedade, um resíduo de tradições passadas inexoravelmente erodido pelos quatro cavaleiros da modernidade: secularismo, nacionalismo, racionalização e globalização. Desde a época das sociologias clássicas [...] a história da sociedade, e especialmente a da sociedade ocidental considerada como seu objetivo e estágio mais avançado, foi descrita como um movimento regular, inevitável e cumulativo de um pólo cultural claramente defi nido a outro – da magia à ciência, da solidariedade mecânica à solidariedade orgânica, da tradição à razão: o mundo desencantado, o eu liberado de seus entraves [...] A religião não se enfraqueceu como força social. Pelo contrário: parece se ter reforçado no período recente. Mas mudou – e muda cada vez mais – de forma. É essa situação – a emergência de confl itos religiosos mais a crescente migração de pessoas e famílias rumo a sociedades mais modernas, mas igualmente diversifi cadas, na Europa e América do 19Antropologia da Religião | FTSA | Norte, nas quais ela induz tensões e confl itos – que as ciências sociais precisam, hoje, descrever e explicar, e não uma tendência pretensamente generalizadaà secularização e ao declínio da fé [...] Aquilo de que precisamos é uma espécie de quadro que permita lançar luz sobre a mudança no seio de diferentes tradições progressivamente libertadas dos contextos sociais que as viram nascer e tomar forma. E isso nos leva a estudar a modernização no seio das religiões, a não mais avaliar o avanço ou recuo “da religião” em geral, mas, sim, apreender os processos de transformação e reformulação de cada religião específi ca no momento em que ela se vê penetrada, de bom grado ou de mau grado, pelas perplexidades e desordens da vida moderna. GEERTZ, Clifford. O futuro das religiões. Folha de São Paulo. São Paulo, 14 de maio de 2016. O tema da cultura é um destes registros possíveis de análise da religião. Nessa perspectiva, a atenção poderá voltar-se para a relação da religião com o seu contexto cultural. Como já pontuamos acima, a experiência humana é integral, e o antropólogo é conclamado a ter em conta o princípio do holismo. Quais são essas possíveis relações/determinações recíprocas entre cultura e religião? Em que medida a cultura pode lançar luz sobre determinadas práticas religiosas? Não seriam as religiões também um idioma para marcar a diferença entre grupos humanos? Quais são algumas das principais mudanças pelas quais o comportamento religioso tem passado em relação às transformações das condições de vida? A hermenêutica contextual acentua esse aspecto em relação a nossa leitura da bíblia, porém, a relação entre cultura e religião não se limita às páginas da bíblia, ela se relaciona profundamente com as práticas religiosas de nosso mundo contemporâneo. Na relação da religião com o seu contexto percebemos também que diversos elementos que estão presentes na religião possuem o seu correlato não religioso: há rituais religiosos e não religiosos, há mitos religiosos e não religiosos, há violência religiosa e não religiosa e outros. Dessa | Antropologia da Religião | FTSA20 forma a análise destes elementos deverá passar por uma consideração geral e somente depois focarmos em sua especifi cidade religiosa. Da mesma forma vale observar as estreitas relações entre a religião e outros temas que consideramos não religiosos tais como política, economia, identidade nacional, gênero, tecnologia e outros (Eller, 2007, p. xiv). Exercício de Aplicação - 02 “Não existe alternativa: ou construímos o futuro juntos, ou não haverá futuro. As religiões, de modo especial, não podem renunciar à urgente tarefa de construir pontes entre os povos e as culturas [...] Nossas tradições religiosas são uma fonte necessária de inspiração para fomentar a cultura do encontro, é fundamental a cooperação inter-religiosa, baseada na promoção de um diálogo sincero e respeitoso”. Papa Francisco, disponível em: https://www.vaticannews.va/pt/ papa/news/2019-11/papa-francisco-inter-religioso-argentina.html Pensando na tarefa de promoção de um diálogo sincero e respeitoso, quais são algumas das possíveis contribuições da antropologia? a) Mostrar que a religião não passa de uma fantasia, e que, desde os primórdios da humanidade, não passa de uma mera projeção de emoções confusas. b) Contribuir para formação de um bom entendimento do fenômeno religioso, possibilitando a compreensão de que todas as religiões são iguais. c) Possibilitar que as religiões articulem uma compreensão mais abrangente do fenômeno religioso, bem como pontuar as diferentes formas de sua manifestação e particularidades. 21Antropologia da Religião | FTSA | 1.2. Religião e cultura 1.2.1. O que é cultura? Cultura é um daqueles conceitos que possuem muitos signifi cados e que na maioria das vezes utilizamos sem precisar bem o sentido de seu uso. Pontuemos alguns desses sentidos possíveis. Comecemos por indicar aquilo que não faz parte do conceito antropológico de cultura. Assim, em primeiro lugar, a cultura pode ser empregada enquanto sinônimo de erudição, de refi namento social. Nesta acepção ela pode estar relacionada a posse de determinados conhecimentos humanísticos, tidos como um dos atributos de classes sociais superiores. Ainda nesta perspectiva fala-se de mais ou menos cultura. Outros sentidos podem enfocar parcialmente aspectos que estão dentro do interesse da antropologia. Aqui podemos pontuar as defi nições que identifi cam a cultura com as manifestações artísticas de um povo (dança, música, literatura etc.). Outros veem a cultura como hábitos e costumes que representam e identifi cam o modo de ser de um povo (hábitos nacionais, regionais e demais). Para outros a cultura se refere a identidade de uma coletividade formada em torno de elementos simbólicos compartilhados (por exemplo, o futebol para os brasileiros). Há uma concepção de cultura que pode ser considerada como “normativa”, ou seja, que diz o que a cultura deve ser. Como exemplo, podemos nos referir ao século XVIII onde cultura é sempre empregada no singular, refl etindo o humanismo e universalismo dos fi lósofos para os quais a cultura é própria do ser humano. “A palavra é associada às ideias de progresso, de evolução, de educação, de razão que estão no centro do pensamento da época” (Cuche, 1999, p. 21). Essa defi nição será descartada pela antropologia, que não buscará dizer o que a cultura deve ser, mas atentar-se para as formas múltiplas de sua manifestação. Assim, a cultura se apresentará como um dos principais instrumentos para a refl exão voltada para o humano em sua diversidade. | Antropologia da Religião | FTSA22 Uma atitude fundamental frente a uma defi nição fornecida por algum especialista é a percepção de que essa defi nição se dá sempre a partir de certa forma de abordagem. Ou seja, a forma como o fenômeno é descrito corresponde a estratégias próprias de investigação desenvolvida pelo autor. Assim, buscaremos fazer esse exercício à medida que caminhamos por três possibilidades de defi nição e análise do fenômeno cultural a partir da antropologia. Em primeiro lugar, uma concepção descritiva de cultura. Nesta perspectiva temos uma das primeiras defi nições formais, elaborada pelo antropólogo britânico Edward Tylor, em 1871: “Cultura [...] é todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, artes, moral, leis, costumes e quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade” (apud, Gomes, 2014, p. 35). De acordo com essa proposta a cultura pode ser vista como um todo complexo e inter-relacionado (crenças, costumes, ritos e outros) característico de determinada sociedade, passível de ser adquirido por indivíduos enquanto membros de determinada sociedade. Diante dessas totalidades complexas a tarefa do antropólogo seria “dissecar esses todos em suas partes componentes e classifi cá-los e compará-los de uma maneira sistemática” (Thompson, 2009, p. 171). Em segundo lugar, a concepção estrutural. O antropólogo que não pode fi car de fora nessa abordagem é Claude Lévi-Strauss, o pai do estruturalismo francês. Lévi-Strauss compreende a cultura como um conjunto de sistemas simbólicos, porém, segundo ele os tipos de cultura possíveis são limitados: “o conjunto dos costumes de um povo [...] formam sistemas. Estou convencido de que esses sistemas não são ilimitados e que as sociedades humanas [...] não criam jamais de maneira absoluta, mas se limitam a escolher certas combinações em um repertório ideal que seria possível reconstituir” (Tristes trópicos, apud Cuche, 1999, p. 96). Assim, a tarefa da antropologia estrutural será encontrar o que é necessário para qualquer sociedade humana e a partir daí estabelecer as estruturações possíveis dos materiais culturais. Tomando como exemplo um jogo de cartas, podemos dizer que a tarefa da antropologia 23Antropologia da Religião | FTSA | seria descrever quais são as cartas do jogo e enunciar as suas regras gerais – assim poderemos compreender como, a partir das mesmas cartas diferentes, jogadores jogam partidas diferentes. Por último, a concepçãosimbólica. Levando em consideração o caráter simbólico da vida humana, essa abordagem pontua a cultura como uma dimensão simbólica. Clifford Geertz apresenta a seguinte defi nição: “acreditando [...] que o homem é um animal amarrado a teias de signifi cados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua análise portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do signifi cado” (Geertz, 2018, p. 4). O comportamento humano deve ser visto como uma ação simbólica, ou seja, uma ação que signifi ca, e o seu signifi cado pode ser interpretado apenas dentro de uma cultura (como sistema entrelaçado de signos). Nesta perspectiva a antropologia não se esgota na explicação de elementos da cultura a partir da indicação de sua função para o todo – embora Geertz não negue o valor dessa forma de abordagem –, mas pela exploração dos signifi cados (densidade semântica dos símbolos). Exercício de Aplicação - 03 Sobre o valor do método antropológico para o sistema geral de nossa cultura e educação, de maior importância é seu poder de nos fazer compreender as raízes que deram origem à nossa civilização, de nos incutir o valor relativo de todas as formas de cultura e de assim servir como uma restrição a uma avaliação exagerada do nosso período, que tendemos a considerar como a meta fi nal da evolução humana. Adaptado de: Franz Boas, A formação da antropologia americana (antologia). Rio de Janeiro: Contraponto, Editora UFRJ, 2004, p. 57 Sobre o relativismo cultural de Franz Boas enquanto um método antropológico podemos afi rmar que: | Antropologia da Religião | FTSA24 I. Deve ser compreendido em sua contraposição ao evolucionismo cultural, que propunha um grandioso sistema de evolução, válido para toda a humanidade. II. Propõe que, em lugar de uma simples linha de evolução, aparece uma multiplicidade de linhas (convergente e divergentes) difíceis de serem unidades em um sistema. III. Aponta para a necessidade do antropólogo se resguardar contra o etnocentrismo, que é a tendência de colocar a visão de determinado grupo como a mais importante. Estão corretas as alternativas: a) Todas são corretas b) Todas são falsas Como o nosso trabalho aqui possui um cunho mais introdutório, podemos optar por uma defi nição de cultura mais ampla, considerando como o conjunto completo das produções do ser humano. Por um longo tempo a ideia de “todo” ou “totalidade” se mostrou um pressuposto básico para a antropologia. Segundo Eriksen e Nielsen (2007, p. 194), no processo de desenvolvimento da pesquisa “a ideia do todo social foi enfraquecida, uma vez que a ‘sociedade’ é relativizada e se dissolve em redes dispersas e sobrepostas”. Neste sentido já não é mais viável falar de um todo, pois não temos a possibilidade de apreendê-lo, sendo sempre uma pressuposição. Assim, talvez seja melhor então falarmos de um conjunto complexo, tendo a consciência de que a aproximação antropológica de um fenômeno se dá a partir destas redes dispersas e sobrepostas que se fazem presentes em uma sociedade. 1.2.2. O processo cultural da constituição de si Por vezes imaginamos que conhecer a si é um processo imediato, no qual, olhando para nós mesmos, vemos de forma transparente e direta quem somos, sem mediação alguma. Conforme pontua a tradição da hermenêutica fi losófi ca, há algo que precede qualquer exercício de autocompreensão. Segundo Paul Ricoeur (2002, p. 31), “não há autocompreensão que não seja mediada por signos, símbolos e textos; 25Antropologia da Religião | FTSA | a autocompreensão coincide em última instância com a interpretação aplicada a estes termos mediadores”. A fi m de exemplifi carmos, tomemos como exemplo dois monumentos da cultura ocidental: Paulo e Freud. Independentemente de suas diferenças, a obra desses dois pensadores constitui-se em textos através dos quais a nossa cultura ocidental se expressa e se compreende. Exercício de Fixação - 04 Porque o que faço não o aprovo; pois o que quero isso não faço, mas o que aborreço isso faço. E, se faço o que não quero, consinto com a lei, que é boa. De maneira que agora já não sou eu que faço isto, mas o pecado que habita em mim. Porque eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita bem algum; e com efeito o querer está em mim, mas não consigo realizar o bem. Porque não faço o bem que quero, mas o mal que não quero esse faço. Ora, se eu faço o que não quero, já o não faço eu, mas o pecado que habita em mim. (Romanos 7:15-20) De outro lado, no entanto, vemos esse Eu como uma pobre criatura submetida a uma tripla servidão, que sofre com as ameaças de três perigos: do mundo exterior, da libido do Id e do rigor do Super-Eu. Três espécies de angústia correspondem a tais perigos, pois angústia é expressão de recuo ante o perigo [...] O ser superior, que se tornou ideal do Eu, ameaçou uma vez com castração, e esse medo da castração é provavelmente o núcleo em volta do qual se armazena a posterior angústia da consciência, é ele que prossegue como angústia da consciência (Sigmund Freud, O Eu e o Id, Companhia das Letras, 2001, p. 70, 72) Após a leitura dos trechos acima, assinale a alternativa correta: a) Ambos os textos descrevem uma experiência humana semelhante, mas o fazem a partir de registros diferentes, um teológico e outro psicanalítico. b) Enquanto monumentos da cultura ocidental ambos os textos se colocam como mediadores da autocompreensão que um ocidental pode fazer de si. c) Embora os textos possam aparentar certa semelhança, são totalmente diferentes entre si e mutuamente excludentes. | Antropologia da Religião | FTSA26 O que vale para Paulo e Freud também vale para as obras produzidas por diferentes antropólogos. São instrumentos através dos quais nos lemos e constituímos uma compreensão cultural de nós mesmos. Por exemplo, a antropologia biológica e alguns outros estudos comparativos com outros animais buscam estabelecer a linha de corte entre o humano e o animal. Giorgio Agamben, em seu provocante livro O aberto: o homem e o animal, mostra como é sensível essa questão no pensamento ocidental, que sempre pensou o ser humano enquanto uma articulação entre dois elementos distintos – corpo e alma, animal e social etc. Frente a essa dinâmica o livro em questão pontua sobre uma possibilidade inversa de colocar a questão, ou seja, “pensar o homem como aquilo que resulta da desconexão desses dois elementos e investigar [..] o lado prático e político da separação [...] questionar-se sobre como – no homem – o homem é separado do não-homem e o animal do humano” (2017, p. 31). O ser humano, à medida que refl ete sobre si compreende esse si que se põe a refl etir. O registro desde movimento de refl exão se faz presente nas diferentes culturas. A diferença se dá na forma como esse processe acontece. O fazer científi co nos coloca essa tarefa a partir de seus métodos e demandas próprias, exigindo uma construção teórica e conceitual. Porém, esse pensar sobre si pode dar-se também através de outros conjuntos de símbolos que compõe as culturas, não como prática de uma atividade voltada claramente para esse propósito, mas, de forma indireta, através de seus símbolos, ritos, mitos e outros. Assim, independente de se tratar de um aborígene ou de um homem branco da ciência do início do século XX, ambos constituem uma imagem do humano através dos recursos de sua cultura. A linguagem é o instrumento através do qual o ser humano articula um conceito a respeito daquilo que ele é. Se defi nirmos a língua como um sistema 27Antropologia da Religião | FTSA | convencionado de símbolos com significados compartilhados por uma comunidade de falantes, convém então destacar o aspecto coletivo dos signifi cados, pois é através da prática linguística de uma comunidade que eles se constroem. Todavia, as palavras não possuem signifi cado fi xo e permanente, mas possuem um grande potencial de variação,possibilitando o nascimento de novos signifi cados. Assim, podemos dizer que a língua é ao mesmo tempo determinada por signifi cados compartilhados e aberta a novas possibilidades circunstanciais (Gomes, 2014, p. 37). Neste sentido, a articulação conceitual que o ser humano faz de si terá tanto determinação dos signifi cados compartilhados quanto potencialidade de novos sentidos. É a partir desse todo que o ser humano pensa. Não se trata apenas de uma atividade cerebral, mas também de uma dimensão simbólica na qual ele está imerso. O ser humano pensa, ou – sem mistificar a cultura – todo um complexo simbólico pensa-se nele. Todavia, assim como a língua, a cultura não limita, pois a criação de novos significados é sempre possível. Prova disso são os registros históricos que temos das mudanças pelas quais as sociedades e culturas humanas passaram, e continuam a passar, ao longo do tempo. Uma imagem do humano se constrói a partir das múltiplas expressões culturais dos modos humanos de ser e viver com o outro. Em seus primeiros passos enquanto ciência os antropólogos andavam as voltas com o primitivo, buscando compreender não somente uma sociedade ou cultura primitivas, mas uma própria maneira de pensar primitiva – de sinônimo de sociedade simples o conceito será revisto diante da complexidade a ser destacada nestas sociedades e culturas “primitivas”. Saiba mais Os etnólogos cederam por muito tempo ao que se denomina a “superstição do primitivo” ou ainda o “mito do primitivo”. O importante para eles era estudar prioritariamente as culturas mais “arcaicas”, pois eles partiam do postulado que estas culturas forneciam para a análise as formas elementares da vida social e cultural que se tornariam necessariamente mais complexas à | Antropologia da Religião | FTSA28 medida que a sociedade se desenvolvesse. Se, por defi nição, o que é simples é mais fácil de aprender do aquilo que é complexo, era preciso começar por aí o estudo das culturas. Por outro lado, as culturas primitivas eram percebidas como culturas pouco ou não modifi cadas pelo contato, supostamente muito limitado, com as outras culturas. A etnologia não somente cultivou a obsessão da busca do aspecto original de cada cultura, mas também a da procura do caráter absolutamente original de cada cultura. Nesta perspectiva, toda mestiçagem das culturas era vista como um fenômeno que alterava sua “pureza” original e que atrapalhava o trabalho do pesquisador, embaralhando as pistas. O pesquisador não deveria, então, privilegiar o estudo deste fenômeno, ao menos em um primeiro momento. CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru: EDUSC, 1999. Ao enfatizarmos o aspecto coletivo da cultura convém apontar para uma tensão de método presente nas ciências humanas, o dilema teórico entre estrutura e ação. São as ações humanas livres, ou sempre condicionadas? Será a cultura uma entidade à parte dos indivíduos ou há apenas o indivíduo com seus comportamentos regulares e a cultura não passa de uma mera abstração? O sociólogo Anthony Giddens (2005) defende que seja possível não exagerar as diferenças dessas abordagens, observando que, embora estruturas sociais/culturais existam anteriores aos indivíduos elas restringem as suas ações, mas não as determinam, pois o indivíduo também tem um papel na construção e reconstrução dessas estruturas. Ele nomeia essa dinâmica de estruturação: se, por um lado, os grupos possuem uma “estrutura” na medida em que as pessoas se comportam de modo regular, por outro lado, as “ações” individuais só são possíveis porque os indivíduos possuem um grande volume de conhecimento social/cultural estruturado. 29Antropologia da Religião | FTSA | 1.2.3. A religião e a cultura Uma das regras básicas da antropologia é não desvincular um aspecto (prática, costume, crença e outras) de um contexto mais amplo. Neste sentido chegamos a este último ponto onde colocamos a questão da relação entre religião e cultura. Considerando a cultura como um contexto maior para a análise das práticas de uma comunidade humana tem-se que a religião se mostra como uma das dimensões que compõe esse conjunto complexo de elementos denominado cultura. Dessas dimensões é possível dizer que são em parte autônomas e em parte coordenadas. Mas, como se dá essa articulação? Como é de se esperar de uma disciplina pertencente às ciências humanas, há diversas possibilidades de abordagem. Mas, para efeitos didáticos, pontuemos duas. Em primeiro lugar, o funcionalismo. Nas abordagens funcionalistas o objetivo do pesquisador é explicar a função de determinado elemento à luz do complexo social de determinada comunidade. Assim, explicar a religião seria indicar qual a sua função para determinada cultura. Dentre os teóricos desta perspectiva podemos citar o antropólogo polaco Bronisław Malinowski, com sua análise funcional biológica. Partindo da ideia de que nenhum aspecto cultural pode ser compreendido se desvencilhado dos outros aspectos que compõe a cultura, ele propõe que a cultura é um todo orgânico onde todo elemento cultural tem uma função. No entanto, a cultura é um todo funcional que está à serviço das necessidades humanas, e cada necessidade suscita um tipo de resposta cultural a fi m de ser satisfeita. Malinowski classifi ca as necessidades humanas entre básicas e derivadas. O ser humano soluciona essas necessidades básica mediante a construção de um novo ambiente, artifi cial e secundário. Esse novo ambiente traz consigo um novo nível de vida, onde aparecem novos imperativos que são impostos à conduta humana. A fi m de organizar a satisfação dessas necessidades os seres humanos criam instituições, ou seja, sistemas organizados de atividades. E, dentre estas instituições, a religião. A base das necessidades biológicas é a mesma para todas as | Antropologia da Religião | FTSA30 sociedades, mas, isso não signifi ca que as formas de satisfação dessas necessidades sejam idênticas em todas as culturas. Assim, pode ser que algumas manifestações exóticas à primeira vista sejam explicadas como elementos culturais universais e fundamentalmente humanos. Aprendemos a compreender a função da religião e seu valor no estudo dos credos e cultos selvagens apresentado acima. Mostramos lá que a fé religiosa estabelece, fi xa e aprimora todas as atitudes mentais valiosas, como a reverência pela tradição, a harmonia com o meio ambiente, a coragem e a confi ança na luta contra as difi culdades e na perspectiva da morte. Essa crença, incorporada e mantida pelo culto e pelo cerimonial, tem um imenso valor biológico e, portanto, revela ao homem primitivo a verdade no sentido mais amplo e pragmático da palavra (Malinowski, p. 69) Em segundo lugar, temos a abordagem simbólica. Acima pontuamos uma defi nição de Geertz a respeito da cultura em que a descreve como uma “teia de signifi cados que ele [ser humano] mesmo teceu”. Considerar a religião a partir desta perspectiva é encará-la como “um padrão de signifi cados transmitidos historicamente, incorporado em símbolos, um sistema de concepções herdadas expressas em formas simbólicas por meio das quais os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relação à vida” (20018, p. 66). Assim, para além das funções da religião – e ele não despreza as possibilidades dessa análise –, Geertz parte da noção de que “a religião ajusta as ações humanas a uma ordem cósmica imaginada e projeta imagens da ordem cósmica no plano da experiência humana” (p. 67) buscando explorar as suas implicações e contribuições para uma antropologia da religião. Enquanto um padrão cultural – um sistema ou complexo de símbolos –, a religião fornece informações programáticas para a instituição de processos sociais e psicológicos que modelam (isto é, são modelos) o comportamento público. Sobre a função de um modelo, Geertz propõe 31Antropologia da Religião | FTSA | uma distinção entre modelos da e paraa “realidade”. Enquanto um modelo da realidade a religião seria apenas a manipulação de estruturas simbólicas a fi m de que estas sejam colocadas em paralelo com sistemas não simbólicos (como acima, com as necessidades biológicas) – ou simbólicos, como a redução da religião a uma mera correspondência de estruturas sociais. Porém, um modelo para a realidade de outros sistemas não-simbólicos – ou mesmo simbólicos – são manipulados em termos das relações expressas na dimensão simbólica da religião. Assim, “os padrões culturais têm um aspecto duplo, intrínseco – eles dão signifi cado, isto é, uma forma conceptual objetiva, à realidade social e psicológica, modelando-se em conformidade a ela e ao mesmo tempo modelando-a a eles mesmos” (p. 69). As duas abordagens apontam para a especifi cidade da religião. Enquanto na perspectiva funcionalista biológica a religião implicava em uma nova esfera de necessidades, para a abordagem simbólica ela se mostra como um complexo de símbolos. E aqui poderíamos completar: em parte autônoma e em parte coordenada. Esta última ponderação aponta para o fato de que o ser humano se movimenta entre formas diferentes de ver o mundo. No que se refere aos propósitos da nossa discussão aqui podemos destacar duas dessas formas: o senso comum (o mundo cotidiano de objetos e de atos práticos) e a perspectiva religiosa. Como se dá o movimento entre essas distintas visões de mundo? Por um lado, podemos nos perder em uma suposta completa autonomia do campo religioso, que ganharia vida própria e se destacaria de todas as demais dimensões da vida humana. Por outro lado – uma outra forma de reducionismo –, podemos praticar um reducionismo materialista, que veria na religião uma mera projeção da realidade social que apenas seria reforçada no caminho de volta da perspectiva da religião para a perspectiva do senso comum. Geertz (2018, p. 89) chama atenção para a dinâmica dessa transição de visões de mundo: Tendo “pulado” ritualmente (a imagem talvez se já demasiado atlética para os fatos verdadeiros – talvez | Antropologia da Religião | FTSA32 “escorregado” seja melhor) para o arcabouço de signifi cados que as concepções religiosas defi nem e, quando termina o ritual. Voltado novamente para o mundo do senso comum, um homem se modifi ca – a menos que, como acontece algumas vezes, a experiência deixe de ter infl uência. À medida que o homem muda, muda também o mundo do senso comum, pois ele é visto agora como uma forma parcial de uma realidade mais ampla que o corrige e o completa. Entretanto, estas relações não se dão de forma padronizada, pois dependem da particularidade do impacto dos sistemas religiosos sobre os sistemas sociais – os distintos grupos humanos têm formas diferentes de se comportar em função daquilo que acreditam vivenciar em suas experiências religiosas, fator que impossibilita uma avaliação geral do valor da religião, seja em termos morais ou funcionais. Outro fator a destacar são as diferenças no grau de articulação religiosa, ou seja, enquanto em algumas sociedades podem atingir níveis extraordinários de elaboração de suas formulações simbólicas e articulações sistemáticas, em outras “não menos desenvolvidas socialmente, tais formulações podem permanecer primitivas no sentido verdadeiro, pouco mais do que amontoados de crenças passadas fragmentárias e imagens isoladas, de refl exos sagrados e pictografi as espirituais” (p. 91). Exercício de Aplicação - 05 A respeito da relação entre religião e cultura podemos afi rmar que: a) Por se tratar de uma dentre outras dimensões que compõe a cultura, a análise do fenômeno religioso limitar-se-á na indicação das funcionalidades possíveis que a religião pode desempenhar em um determinado grupo social, tais como normativa, tranquilizante, identitária, estimulante e outras. 33Antropologia da Religião | FTSA | b) Embora trate-se de uma dentre outras dimensões, deve-se sempre levar em consideração que não estamos diante de um “todo” fechado, pois cada dimensão é relativamente autônoma e determinada, ao mesmo tempo. Neste sentido, a religião pode, sim, estar determinada por outras dimensões, mas, em sua relativa autonomia também pode se colocar como propulsora de mudanças. Considerações fi nais Espero que você tenha chegado ao fi nal desta primeira unidade instigado com as possibilidades abertas para a compreensão do fenômeno religioso a partir da religião. Até este momento a nossa discussão foi mais geral e teórica. Porém, nas duas próximas unidades trataremos de alguns elementos da religião que nos permitirão lançar luz tanto sobre as crenças e práticas do outro quanto sobre as nossas próprias crenças e práticas. Como já pontuamos algumas vezes, o campo da antropologia é extremamente dinâmico e diverso. Diante desta vivacidade a nossa abordagem será sempre introdutória, buscando apontar alguns autores e, através de suas leituras, também indicarmos caminhos de refl exão que poderão desembocar em novas descobertas pessoais. Bibliografi a CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru: EDUSC, 1999. DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália. São Paulo: Martins Fontes, 1996. | Antropologia da Religião | FTSA34 ELLER, Jack David. Introducing Anthropology of Religion: Culture to the Ultimate. New York, Routledge, 2007. ERIKSEN, T. H. ; NIELSEN, F. S. História da antropologia. Petrópolis: Editora Vozes, 2007. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2018. ______. O futuro das religiões. Folha de São Paulo. São Paulo, 14 de maio de 2016. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/ fs1405200614.htm GOMES, Mércio Pereira. Antropologia: ciência do homem: fi losofi a da cultura. São Paulo: Contexto, 2014. SANTISTEBAN, Fernando S. Antropología: conceptos y nociones generales. Lima: Fondo de Cultura Económica, 1998. TEIXEIRA, Faustino. O diálogo inter-religioso na perspectiva do terceiro milênio. Horizonte, Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 19-38, 2º sem. 2003. Disponível em: http://periodicos.pucminas.br/index.php/horizonte/ article/view/596/623 THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis, Vozes, 2009. 35Antropologia da Religião | FTSA | UNIDADE II - Símbolos e práticas Introdução Vez ou outra nos deparamos com símbolos religiosos espalhados pela cidade, mas, o que signifi ca um símbolo e quais são as suas contribuições para a prática religiosa? Pensando nesta questão, nesta segunda Unidade nos voltaremos para alguns aspectos da dimensão simbólica e conjuntos de práticas religiosas. Nosso itinerário passará por três tópicos. Em primeiro lugar defi niremos melhor a dimensão simbólica da religião, pontuando como ela é essencial para a experiência humana e como, a partir desta perspectiva, os símbolos religiosos podem agir. Na sequência, abordaremos a questão dos mitos, perguntando-nos sobre a sua realidade e função. Por último, faremos algumas considerações a respeito dos rituais e seu lugar em meio as práticas humanas. 2.1. Símbolos 2.1.1. O que é um símbolo? Conhecer uma religião implica também adentrar um mundo repleto de símbolos. Embora em algumas mais e em outras menos, o fato é que os símbolos estão presentes nas mais distintas formas de religião. Essa diversidade também se estende ao papel e função desses símbolos, que podem variar de um mero artefato decorativo a um objeto através do qual imagina-se que alguma força ou ser se manifesta. Porém, a despeito de todas essas diferenças, vamos buscar um conceito de símbolo que permita nos aproximarmos desse universo tão rico, composto pelos sistemas simbólicos das diferentes religiões. Comecemos por uma defi nição genérica encontrada em um dicionário: | Antropologia da Religião | FTSA36 Símbolo 1 Qualquer coisa usada para representar ou substituir outra, estabelecendo uma correspondênciaou relação entre elas. 2 Aquilo que, em determinada cultura, apresenta valor evocatório ou místico. 3 Ser, objeto ou imagem ao qual se pode atribuir mais de um signifi cado. 4 Pessoa ou personagem que simboliza alguma coisa de modo exemplar. 6 Figura convencional especialmente elaborada para representar algo; emblema. 7 Palavra ou imagem que possa designar outra coisa ou outra qualidade por estabelecer com esses uma correspondência de semelhança; alegoria, metáfora. https:// michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues- brasileiro/simbolo A lista de defi nições que encontramos em um dicionário é um bom indicativo sobre a complexidade presente no universo simbólico, e nos permite colocar algumas questões. Em primeiro lugar, se partirmos da ideia de que os símbolos apenas “representam”, de início já nos deparamos com um grande desafi o, pois, alguns símbolos são coisas em si mesmas, em que tão importante quanto o seu signifi cado é o seu poder. Tomemos por exemplo o rito batismal para a igreja católica: “o baptismo propriamente dito, que signifi ca e realiza a morte para o pecado e a entrada na vida da Santíssima Trindade” (Catecismo). Pensando ainda na ideia de relação, a segunda questão que podemos colocar aqui é sobre o funcionamento dos símbolos: como se dá essa relação entre o símbolo e aquilo que ele representa? Como podem os símbolos ser signifi cativos? A respeito da natureza dessa relação pode- se dizer que é arbitrária e convencional, ou seja, não há uma conexão necessária entre um sentido e um símbolo em particular. Isso não signifi ca que a relação não possa se estabelecer através de uma analogia. Por exemplo, no caso do batismo, a ideia da imersão com o sepultamento, e da emersão com a ressurreição. Outro exemplo pode ser tirado dos ritos 37Antropologia da Religião | FTSA | de fertilidade, onde os objetos escolhidos tenham alguma relação com coisas consideradas relativas à dinâmica da reprodução, ou nutrição: falo, seios, sementes e outros. Entretanto, mesmo que haja certa analogia, ainda assim trata-se de uma relação arbitrária e convencional. A segunda parte da questão que colocamos contribui para uma melhor compreensão do caráter convencional da relação. Nos perguntávamos: como podem os símbolos signifi car? A coisa tida por um símbolo por si só nada signifi ca. A luz de seta de um carro só faz sentido quando apreendida a partir do mundo instrumental dos meios de transporte e regras de trânsito. Para alguém que não conhece esse conjunto de referência aquele símbolo não passa de uma luz piscando. Esse simples exemplo nos mostra que, para que haja signifi cado há a necessidade da existência de um contexto a partir do qual o sentido poderá ser constituído. Em sua pesquisa sobre a prática ritual do povo ndembu do noroeste da Zâmbia, Victor Turner defi ne o símbolo como “a menor unidade do ritual [...] a última unidade de estrutura específi ca em um contexto ritual” (1980, p. 21). Exercício de Aplicação - 06 Buda e a suástica... contextualização dos símbolos Seria o Buda um nazista? Como a associação entre a suástica e o nazismo é automática, a pergunta poderia ser a brincadeira de um desavisado. É comum encontrarmos representações de Buda ornamentado com uma suástica, em estátuas bem mais antigas que Hitlher e o nazismo. Entretanto, registros de suásticas podem ser constatados bem antes de Buda também. Alguns utensílios domésticos mesopotâmicos que traziam esse símbolo foram datados como provenientes de 7.000 a.C. Esse símbolo também foi utilizado pelos astecas na América Central e por índios navajos | Antropologia da Religião | FTSA38 na América do Norte. Ou seja, não foi um símbolo inventado pelos nazistas. Bem antes de qualquer apropriação nazista, a suástica já se fazia presente em diversas culturas, como uma representação de sorte – suástica, do sânscrito, svatika, boa conduta. Mas, como foi parar no nazismo? Alguns alemães esotéricos e místicos, na busca por fortalecer a tesa da ascendência ariana dos alemães, apontaram para um possível uso da suástica por seus “ancestrais” arianos e, até mesmo, como representação do ato de criação da raça ariana. Segundo Cordeiro, essas histórias podem ter feito a cabeça de Hitler, que adotou a suástica como símbolo do partido nazista e de seu governo, passando a “representar um dogma na Alemanha nazista, mais ou menos como a cruz no catolicismo” (Heinrich, apud Cordeiro). Leia mais em: https://super. abril.com.br/historia/como-a-suastica-virou-a-marca-do-nazismo/ Após essa longa descrição, à luz do que vimos conversando sobre os símbolos, indique a alternativa correta: a) Um símbolo tem um signifi cado em si, independentemente de qualquer outra referência que integre o seu contexto. b) O signifi cado de qualquer símbolo depende das referências contextuais que o constituem, não tendo um signifi cado exclusivamente em si. Como podemos ver, uma defi nição genérica não é suficiente para abarcar as especificidades do símbolo religioso, embora possa fornecer indicativos interessantes para sua compreensão. Quão signifi cativos são os símbolos para o ser humano? Eller (2007) chama à atenção para o fato de que algumas pesquisas no campo da psicologia e da fi losofi a muito contribuíram para uma melhor compreensão dos símbolos, e seu papel na dinâmica da vida humana. Em primeiro lugar – e não há como deixar 39Antropologia da Religião | FTSA | de fazer essa referência –, temos o pai da psicanálise, Freud. Ele revoluciona a forma de se pensar o humano ao demonstrar em seus escritos como a consciência é apenas a superfície do aparelho psíquico: “um indivíduo é então, para nós, um Id [um algo] psíquico, irreconhecido e inconsciente, em cuja superfície se acha o Eu” (2011, p. 30). Em sua obra A intepretação dos sonhos, Freud pontuou o papel dos símbolos em relação ao inconsciente, que não se expressa de forma direta. Assim, não apenas os sonhos e as neuroses são simbólicos, pois ele também “atribuiu as conquistas culturais ‘superiores’ – como arte, ritual e mito – a este mesmo processo simbólico, bem como a cultura ‘primitiva’ em geral” (Eller, 2007, 56). Ernst Cassirer, fi lósofo alemão, também dedicou-se à questão do símbolo, chegando a defi nir o humano como animal simbolizante. Entendido como chave para a compreensão da natureza do ser humano, em seu Ensaio sobre o homem, Cassirer pontua que este descobriu um novo método para adaptar-se ao seu ambiente, o sistema simbólico. Assim, comparado aos outros animais, pode-se dizer que o humano vive em uma nova dimensão da realidade, e não pode fugir dessa sua própria realização. Para além de um universo meramente natural o homem vive em um universo simbólico, do qual fazem parte a linguagem, o mito, a arte e a religião. Todas essas partes formam uma rede simbólica, o emaranhado da experiência humana. Envolto nesse universo simbólico o homem não confronta a realidade imediatamente, mas sempre através da mediação desta rede simbólica, que se refi na e fortalece. “Sua situação é a mesma tanto na esfera teórica como na prática. Mesmo nesta, o homem não vive em um mundo de fatos nus e crus, ou segundo suas necessidades e desejos imediatos. Vive antes em meio a emoções imaginárias, em esperanças e temores, ilusões e desilusões, em suas fantasias e sonhos” (Cassirer, 1994, p 49). Essa incursão pela psicologia e pela fi losofi a é importante pois salienta o papel do símbolo para a experiência humana, mostrando como o universo simbólico é muito mais signifi cativo para o ser humano do que uma defi nição genérica poderia sugerir: quem sabe, uma dimensão insignifi cante? Elas sugerem que, para além de um mero adendo, a | Antropologia da Religião | FTSA40 dimensão simbólica é essencial para aquilo que chamamos de forma de vida humana. Mas, ainda nos fi ca uma questão: não seriam falsos os símbolos da religião, concedendo uma visão distorcida do mundo? Eller (2007, p. 60) assinalaque nem todos os antropólogos são favoráveis a uma aproximação interpretativa da religião enquanto um sistema simbólico. Estes antropólogos, ao ouvirem certas considerações de seus informantes, concluem: “‘Isto é simbólico’. Por quê? Porque é falso”. Como exemplo ele cita Radcliffe-Brown (apud Eller, 2007, p. 60): “temos de dizer que do nosso ponto de vista os nativos estão errados, que os ritos não realizam aquilo que eles acreditam que eles façam [...] Na medida em que são práticos visando um propósito, são fúteis, baseados em crenças errôneas [...] Os ritos são facilmente percebidos como simbólicos, e podemos, portanto, investigar seu signifi cado”. Isso aponta para o fato de que, mesmo que um papel legítimo possa ser atribuído aos símbolos, a “validade” da dimensão simbólica não fi ca garantida. Porém, a antropologia interpretativa aponta para outra possibilidade de aproximação, ao “colocar à nossa disposição as respostas que outros deram [...] e assim incluí-las no registro de consultas sobre o que o homem falou” (Geertz, 2008, p. 21) e suas possibilidades de interpretação do mundo. 2.1.2. Símbolos: a síntese entre ethos e visão de mundo Em seu livro A interpretação das culturas, Geertz dedica dois ensaios à temática da abordagem interpretativa da religião. A partir desses dois ensaios apontaremos para algumas das especifi cidades, contribuições e limites dessa abordagem. Na Unidade 1 já assinalamos que para Geertz a cultura pode ser comparada a teias de signifi cados tecidas pelos humanos, nas quais ele se encontra amarrado. Diante dessas teias o antropólogo deve praticar uma ciência interpretativa – à procura de seus signifi cados –, analisando a religião enquanto um “padrão de signifi cados transmitido historicamente, incorporado em símbolos” (p. 66). Geertz especifi ca o conceito de símbolo, indicando com este termo não um sentido genérico, mas limitado a um sistema entrelaçado de signos interpretáveis. Esses símbolos podem ser uma cruz, um crescente 41Antropologia da Religião | FTSA | (islamismo), uma serpente de plumas (algumas culturas ameríndias) e outros. Em suas dramatizações rituais e relatos míticos, esses símbolos “parecem resumir [...] tudo que se conhece sobre a forma como o mundo é, a qualidade de vida que ele suporta, e a maneira como deve comportar-se quem está nele” (p. 93). Ou seja, eles são sintetizadores: possibilitam uma fusão entre os aspectos morais e estéticos (ethos) e os aspectos cognitivos e existenciais (visão de mundo) de um determinado povo. Traduzindo em termos mais simples, os símbolos trabalham para possibilitar (i) que as ações humanas se ajustem a uma ordem cósmica imaginada e (ii) que a ordem cósmica seja projetada no plano da experiência humana. Como um exemplo, Os Oglala acreditam que o círculo é sagrado porque o grande espírito fez com que tudo na natureza fosse redondo, exceto as pedras. A pedra é a ferramenta da destruição. O sol e o céu, a terra e a lua são redondos como um escudo, embora o céu seja fundo como uma tigela. Tudo que respira é redondo, como o caule de uma planta. Uma vez que o grande espírito fez tudo redondo, a humanidade devia olhar o círculo como sagrado, pois ele é o símbolo de todas as coisas na natureza, exceto a pedra. É também o símbolo do círculo que forma o limite do mundo e, portanto, dos quatro ventos que viajavam por lá. Consequentemente, ele é também o símbolo do ano. O dia, a noite e a lua percorrem o céu num círculo, portanto o círculo é um símbolo dessas divisões do tempo e, portanto, o símbolo de todo o tempo. É por essas razões que os Oglala fazem seus tipis [habitações] circulares, fazem seu círculo de campo circular e se sentam em círculo em todas as cerimónias. O círculo é também o símbolo do tipi e do abrigo. Se alguém faz um círculo como ornamento e ele não é dividido de forma alguma, deve-se compreendê-lo como o símbolo do mundo e do tempo (Paul Radin, Primitive Man as Philosopher, apud Geertz, 2008, p. 94). | Antropologia da Religião | FTSA42 O círculo, que para os Oglala possui um signifi cado estético, moral, ontológico e cosmológico, possui o poder produtivo de ordenar a experiência de forma abrangente. Ao ser aplicada à vida a ideia do círculo é capaz de apresentar novos signifi cados, ligando elementos diversos da vida desse povo que, de outra forma, seriam incompreensíveis. Os elementos da natureza, as práticas humanas, o ciclo da vida, aquilo que atinge o ser humano, o tempo que o envolve; enfi m, todo o conjunto complexo das experiências vividas são iluminadas a partir dessa ideia de um círculo sagrado. As próprias práticas rituais poderão se utilizar da ideia desse círculo, como quando, um cachimbo, símbolo de solidariedade social, movimenta-se de forma circular em uma cerimônia de paz. Precisemos um pouco mais o que signifi ca dizer que os símbolos sintetizam o ethos de um povo e sua visão de mundo. Como vimos na unidade anterior, os sistemas ou complexos de símbolos são padrões culturais que fornecem informações para a instrução de processos sociais e psicológicos que modelam o comportamento público. Enquanto modelos, ao mesmo tempo em que são estruturados pela realidade social e psicológica, eles afetam essa mesma realidade. Neste sentido eles contribuem para que “poderosas, penetrantes e duradouras disposições e motivações” (no nosso caso, religiosas) sejam estabelecidas através da formulação de ideias gerais de uma ordem de existência. Segundo Geertz, mesmo que pareça obscuro, superfi cial ou perverso, toda religião particular afi rma algo a respeito da natureza fundamental da realidade. Esse dizer algo sobre a realidade relaciona-se a dependência humana em relação aos símbolos como decisivos para a sua viabilidade enquanto criatura. Assim, diante da falta de interpretabilidade de situações limites que ameaçam o ser humano, a resposta religiosa consistirá na “formulação, por meio de símbolos, de uma imagem de tal ordem genuína do mundo, que dará conta e até celebrará as ambiguidades percebidas, os enigmas e paradoxos da experiência humana” (p. 79). Através deste simbolismo a esfera de existência do ser humano será relacionada a uma esfera mais ampla dentro da qual se concebe que ele repouse, uma esfera 43Antropologia da Religião | FTSA | que não o faz negar o inegável, mas negar que existam acontecimentos inexplicáveis. Frente a esta disposição de mundo, toda uma gama de motivações é estabelecida. O argumento aqui apresenta uma certa circularidade – ou, uma espiralidade –, pois, ao mesmo tempo em que a visão de mundo estabelece disposições e motivações, estas fortalecem aquela. Os sentimentos religiosos são diversos, pois, em épocas e lugares diferentes os símbolos induzem inclinações que vão da exultação à melancolia, da autoconfi ança a autopiedade, sem falar que alguns mitos e ritos tem certo poder erógeno. Por exemplo, diante do sofrimento “os símbolos religiosos oferecem uma garantia cósmica não apenas para sua capacidade de compreender o mundo, mas também para que, compreendendo-o, deem precisão a seu sentimento, uma defi nição às suas emoções que lhes permita suportá-lo, soturna ou alegremente, implacável ou cavalheirescamente” (p. 77). O rito exercerá um papel fundamental nesse processo de fusão, porém, o veremos mais adiante. Exercício de Reflexão - 07 Entretanto, os signifi cados só podem ser "armazenados" através de símbolos: uma cruz, um crescente ou uma serpente de plumas. Tais símbolos religiosos, dramatizados em rituais e relatados em mitos, parecem resumir, de alguma maneira, pelo menos para aqueles que vibram com eles, tudo que se conhece sobre a forma como é o mundo, a qualidade de vida emocional que ele suporta, e a maneira como deve comportar-se quem está nele. Clifford Geertz, 2008, p. 93 Acima vimos a aplicação dessa ideia em relação à ideia de círculo para o povo Oglaca, e agora, num momento refl exivo, vamos olhar para a cruz, um dos principais
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