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Indaial – 2021 Liturgia, MetodoLogia e aconseLhaMento Prof. Marcone Costa Cerqueira Prof. Maycon Silva Aguiar Prof. Sandro Silva Araujo 2a Edição teoLogia PastoraL: Elaboração: Prof. Marcone Costa Cerqueira Prof. Maycon Silva Aguiar Prof. Sandro Silva Araujo Copyright © UNIASSELVI 2021 Revisão, Diagramação e Produção: Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri UNIASSELVI – Indaial. Impresso por: C416t Cerqueira, Marcone Costa Teologia pastoral: liturgia, metodologia e aconselhamento. / Marcone Costa Cerqueira; Maycon Silva Aguiar; Sandro Silva Araujo. – Indaial: UNIASSELVI, 2021. 184 p.; il. ISBN 978-65-5663-838-6 ISBN Digital 978-65-5663-839-3 1. Práticas litúrgicas. - Brasil. I. Cerqueira, Marcone Costa. II. Aguiar, Maycon Silva. III. Araujo, Sandro Silva. IV. Centro Universitário Leonardo Da Vinci. CDD 250 Olá, acadêmico! Seja bem-vindo ao Livro Didático Teologia Pastoral: Liturgia, Metodologia e Aconselhamento, esta disciplina faz parte dos estudos sobre teologia, tendo seu foco na fundamentação teórica e prática do cuidado pastoral, no aconselhamento e nas práticas litúrgicas e apoio à comunidade da igreja. Buscaremos traçar um itinerário que nos permita estudar todos os pontos de destaque desta disciplina, a partir de uma perspectiva crítica, reflexiva e abrangente. A teologia pastoral engloba aspectos que incluem a discussão sobre temas contidos não só no campo teológico, mas também no campo psicológico, filosófico, bem como histórico e social. Dessa forma, será necessário que busquemos uma perspectiva abrangente, que possa nos permitir uma visão coesa das relações entre estes saberes e a bússola que guia a teologia cristã, a saber, a Bíblia Sagrada, a palavra de Deus. Em outros termos, o estudo da teologia pastoral, bem como qualquer outra área do campo teológico, deve levar em conta as contribuições das diversas ciências e áreas do conhecimento, mas precisa estar ancorado na inteligência da fé. Nesse sentido, nossa abordagem será direcionada pelos fundamentos teológicos presentes na doutrina cristã, a partir de uma aproximação com as contribuições teóricas e práticas das áreas já mencionadas. Para cumprirmos esta tarefa, será preciso traçar um itinerário que seja ao mesmo tempo objetivo, coeso, mas também, abrangente e interdisciplinar. Assim: Na Unidade 1, abordaremos a teologia pastoral a partir de seus aspectos litúrgicos e metodológicos, centrando foco nos temas da fundamentação teológica, tanto histórica, quanto teórica e bíblica, bem como nos aspectos litúrgicos e de celebração. A questão da fé, da relação entre celebração litúrgica e prática pastoral, buscando abranger todos os pontos de convergência e relação desses temas. Nosso objetivo é reconhecer os princípios da reflexão teológica, bem como a questão pastoral a partir do amor e da fé. Em seguida, na Unidade 2, estudaremos os temas da psicologia pastoral, buscando uma relação de interdisciplinaridade com essa área do conhecimento, visando compreender as principais teorias de aconselhamento, cuidado e acolhimento dos fiéis. Nos voltaremos ainda para a questão da escuta pastoral, a partir do indivíduo e suas particularidades, tendo como suporte os princípios cristãos pautados na Palavra de Deus. Ainda nesta unidade, nos deteremos nos aspectos teóricos e práticos da direção espiritual, objetivando compreender os fenômenos da direção espiritual nos dias atuais. Por fim, na Unidade 3, aprenderemos sobre o aconselhamento juvenil, o cuidado com a família e o acolhimento pastoral de casais, além disso, nos debruçaremos sobre os temas das situações limites, seja por traumas, dramas ou situações peculiares da vida que levam ao desespero, à falta de fé e até mesmo ao adoecimento. Dessa forma, esta unidade será dedicada à família, ao acolhimento pastoral de seus membros e à importância da misericórdia na prática pastoral. Ao final desta disciplina, esperamos que você seja capaz de expressar suas próprias considerações sobre todos os temas estudados, aprimorando seus conhecimentos, colocando em prática suas reflexões e aplicando-as em sua atividade profissional. Bons estudos! Prof. Marcone Costa Cerqueira Prof. Maycon Silva Aguiar Prof. Sandro Silva Araujo APRESENTAÇÃO Olá, acadêmico! Para melhorar a qualidade dos materiais ofertados a você – e dinamizar, ainda mais, os seus estudos –, nós disponibilizamos uma diversidade de QR Codes completamente gratuitos e que nunca expiram. O QR Code é um código que permite que você acesse um conteúdo interativo relacionado ao tema que você está estudando. Para utilizar essa ferramenta, acesse as lojas de aplicativos e baixe um leitor de QR Code. Depois, é só aproveitar essa facilidade para aprimorar os seus estudos. GIO QR CODE Olá, eu sou a Gio! No livro didático, você encontrará blocos com informações adicionais – muitas vezes essenciais para o seu entendimento acadêmico como um todo. Eu ajudarei você a entender melhor o que são essas informações adicionais e por que você poderá se beneficiar ao fazer a leitura dessas informações durante o estudo do livro. Ela trará informações adicionais e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto estudado em questão. Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é o material-base da disciplina. A partir de 2021, além de nossos livros estarem com um novo visual – com um formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura –, prepare-se para uma jornada também digital, em que você pode acompanhar os recursos adicionais disponibilizados através dos QR Codes ao longo deste livro. O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com uma nova diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página – o que também contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo. Preocupados com o impacto de ações sobre o meio ambiente, apresentamos também este livro no formato digital. Portanto, acadêmico, agora você tem a possibilidade de estudar com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador. Preparamos também um novo layout. Diante disso, você verá frequentemente o novo visual adquirido. Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa continuar os seus estudos com um material atualizado e de qualidade. ENADE LEMBRETE Olá, acadêmico! Iniciamos agora mais uma disciplina e com ela um novo conhecimento. Com o objetivo de enriquecer seu conhecimento, construímos, além do livro que está em suas mãos, uma rica trilha de aprendizagem, por meio dela você terá contato com o vídeo da disciplina, o objeto de aprendizagem, materiais complementares, entre outros, todos pensados e construídos na intenção de auxiliar seu crescimento. Acesse o QR Code, que levará ao AVA, e veja as novidades que preparamos para seu estudo. Conte conosco, estaremos juntos nesta caminhada! Acadêmico, você sabe o que é o ENADE? O Enade é um dos meios avaliativos dos cursos superiores no sistema federal de educação superior. Todos os estudantes estão habilitados a participar do ENADE (ingressantes e concluintes das áreas e cursos a serem avaliados). Diante disso, preparamos um conteúdo simples e objetivo para complementar a sua compreensão acerca do ENADE. Confira, acessando o QR Code a seguir. Boa leitura! SUMÁRIO UNIDADE 1 — A TEOLOGIA PASTORAL: LITURGIA E METODOLOGIA ....................1 TÓPICO 1 — FUNDAMENTOS DA TEOLOGIA CRISTÃ ............................................. 3 1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 3 2 VAMOS CONHECER A TEOLOGIA? ...................................................................... 5 2.1 FÉ E RAZÃO NA DIMENSÃOTEOLÓGICA .........................................................................7 3 A TEOLOGIA NA HISTÓRIA ...................................................................................8 3.1 A TEOLOGIA CRISTÃ NOS “PAIS DA IGREJA” E NA IDADE MÉDIA ...........................10 4 TEOLOGIA E PRÁTICA DE VIDA ......................................................................... 13 RESUMO DO TÓPICO 1 .......................................................................................... 16 AUTOATIVIDADE ....................................................................................................17 TÓPICO 2 — OS CAMINHOS DA FÉ CRISTÃ .......................................................... 19 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 19 2 A LITURGIA COMO AÇÃO DA IGREJA ................................................................22 2.1 LITURGIA E COMUNIDADE ............................................................................................... 25 3 OS PRINCÍPIOS TEOLÓGICOS DA LITURGIA .................................................... 27 3.1 A TEOLOGIA DO CULTO ..................................................................................................... 29 4 O QUE CELEBRAMOS NA LITURGIA .................................................................. 31 RESUMO DO TÓPICO 2 ..........................................................................................34 AUTOATIVIDADE ...................................................................................................35 TÓPICO 3 — A PASTORAL COMO AÇÃO DE DEUS ................................................ 37 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 37 2 A PASTORAL DA PALAVRA ................................................................................39 2.1 AS SAGRADAS ESCRITURAS COMO FONTE DE TODA PALAVRA ...........................41 3 A PASTORAL DO SERVIÇO CRISTÃO .................................................................42 3.1 A PASTORAL COMO DIAKONIA .......................................................................................44 4 ALGUNS DESAFIOS DO MUNDO ATUAL ............................................................46 LEITURA COMPLEMENTAR ................................................................................. 48 RESUMO DO TÓPICO 3 ..........................................................................................49 AUTOATIVIDADE ...................................................................................................50 REFERÊNCIAS .......................................................................................................52 UNIDADE 2 — A TEOLOGIA PASTORAL: TEORIAS E ABORDAGENS DE ACONSELHAMENTO PASTORAL ...................................................................... 55 TÓPICO 1 — A PSICOLOGIA PASTORAL E AS TEORIAS DA PERSONALIDADE ... 57 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 57 2 ABORDAGENS DE ACONSELHAMENTO PASTORAL ........................................59 2.1 A IMPORTÂNCIA DO DIÁLOGO COM AS CIÊNCIAS HUMANAS ................................60 2.2 TEORIA PSICODINÂMICA E TEORIA DO COMPORTAMENTO ................................... 70 2.2.1 Aconselhamento pastoral e Teoria psicodinâmica (Psicanálise) .................. 70 2.2.2 Aconselhamento pastoral e teoria comportamental (behaviorismo) ..........74 2.3 TEORIA HUMANIS E TEORIA EXISTENCIAL: SEMELHANÇAS E DIFERENÇAS .... 78 2.3.1 teoria humanista ....................................................................................................... 78 2.3.2 Teoria existencialista ..............................................................................................80 RESUMO DO TÓPICO 1 ..........................................................................................82 AUTOATIVIDADE .................................................................................................. 84 TÓPICO 2 — ESCUTA PASTORAL ..........................................................................87 1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................87 2 A DIGNIDADE HUMANA .....................................................................................87 2.1 ATITUDES DO MINISTRO ...................................................................................................89 2.2 ALGUMAS TÉCNICAS POSSÍVEIS .................................................................................. 94 RESUMO DO TÓPICO 2 .......................................................................................... 97 AUTOATIVIDADE ...................................................................................................99 TÓPICO 3 — DIREÇÃO ESPIRITUAL .................................................................... 101 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................... 101 2 DIREÇÃO ESPIRITUAL NOS DIAS ATUAIS ...................................................... 101 3 DIREÇÃO ESPIRITUAL NOS DIAS ATUAIS ......................................................106 4 TIPOS DE DIREÇÃO ESPIRITUAL ....................................................................108 5 PRINCÍPIOS IMPORTANTES DE LOGOTERAPIA ............................................. 112 RESUMO DO TÓPICO 3 .........................................................................................115 AUTOATIVIDADE ................................................................................................. 116 REFERÊNCIAS ..................................................................................................... 118 UNIDADE 3 — A TEOLOGIA PASTORAL: CONTEXTOS E ESPECIFICIDADES DA PRÁTICA DE ACONSELHAMENTO ................................................................ 121 TÓPICO 1 — ACONSELHAMENTO E OS JOVENS ................................................ 123 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................... 123 2 A FORMAÇÃO HUMANA E AFETIVA.................................................................124 2.1 SEXUALIDADE ................................................................................................................. 126 2.2 AMIZADES ..........................................................................................................................127 2.3 QUESTIONAMENTO E AUTOAFIRMAÇÃO ...................................................................129 3 O PROCESSO DE AUTOAFIRMAÇÃO ...............................................................130 4 ADOLESCÊNCIA E ESPIRITUALIDADE: UM CAMINHO DE CONSTRUÇÃO ....133 RESUMO DO TÓPICO 1 ........................................................................................ 137 AUTOATIVIDADE .................................................................................................138 TÓPICO 2 — ACONSELHAMENTO NA VIDA FAMILIAR ....................................... 141 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................... 141 2 PREPARAÇÃO PARA O MATRIMÔNIO .............................................................142 3 ACOMPANHAMENTO PRIMEIROS ANOS DE CASADO....................................145 4 ACOMPANHAMENTO DAS CRISES ..................................................................148 5 À LUZ DAS PALAVRAS DE FRANCISCO: ACOMPANHAR, DISCERNIR, INTEGRAR .....................................................................................151 RESUMO DO TÓPICO 2 ........................................................................................ 155 AUTOATIVIDADE ................................................................................................. 156 TÓPICO 3 — AS SITUAÇÕES LIMITE ...................................................................159 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................... 159 2 DOENÇAS .........................................................................................................160 3 SUPERAÇÃO DE VÍCIOS .................................................................................. 163 4 O PROCESSO DA MORTE ................................................................................ 167 LEITURA COMPLEMENTAR .................................................................................171 RESUMO DO TÓPICO 3 ........................................................................................180 AUTOATIVIDADE ................................................................................................. 181 REFERÊNCIAS .....................................................................................................183 1 UNIDADE 1 - A TEOLOGIA PASTORAL: LITURGIA E METODOLOGIA OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de: • reconhecer os princípios da reflexão teológica; • relacionar a Teologia à Liturgia; • compreender os elementos centrais da liturgia cristã; • discutir e problematizar a pastoral a partir do conceito de amor cristão; Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer dela, você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado. TÓPICO 1 – FUNDAMENTOS DA TEOLOGIA CRISTÃ TÓPICO 2 – OS CAMINHOS DA FÉ CRISTÃ TÓPICO 3 – A PASTORAL COMO AÇÃO DE DEUS Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações. CHAMADA 2 CONFIRA A TRILHA DA UNIDADE 1! Acesse o QR Code abaixo: 3 FUNDAMENTOS DA TEOLOGIA CRISTÃ 1 INTRODUÇÃO TÓPICO 1 - UNIDADE 1 Acadêmico, no Tópico 1, abordaremos temas centrais da teologia cristã, importantes não apenas para a área da teologia pastoral, mas também para a compreensão de como a doutrina cristã contida nos Evangelhos, expressa-se através de princípios, teorias e práticas. Para esta tarefa, nos centraremos na discussão sobre os fundamentos da teologia cristã a partir de uma abordagem abrangente, crítica e reflexiva, apoiando-nos tanto em textos bíblicos quanto em influências teóricas vindas de outras áreas do conhecimento. Quando pensamos em fundamentos, indelevelmente nos vem à mente os princípios e conceitos que sustentam todo um edifício intelectual e prático, independentemente da área do conhecimento ou de sua finalidade objetiva. A partir dessa compreensão inicial, podemos ainda entender que tais fundamentos podem ser observados, de maneira teórica ou prática, discutidos e analisados, podendo ser expressos em afirmativas claras e bem contextualizadas. Tanto os movimentos de análise quanto de discussão e compreensão pressupõem uma metodologia que nos permite não apenas tocar a superfície dos princípios e conceitos abordados, mas aprofundá-los a partir da comparação, aproximação e confrontação com outros temas e pressupostos. Será exatamente esse nosso movimento, nesta unidade e neste tópico. Nos ocuparemos de analisar, discutir, compreender e aproximar os princípios e conceitos fundamentais da teologia cristã com todas as influências e contribuições advindas de outras áreas. FIGURA 1 – TEOLOGIA COMO ÁREA DE CONHECIMENTO FONTE: <https://www.shutterstock.com/pt/image-photo/old-irish-theology-books-library- specialising-1382092679>. Acesso em: 20 set. 2021. 4 A teologia cristã, principalmente quando tratamos de toda a gigantesca produção teórica construída no Ocidente, é caracterizada por ter suas doutrinas de fé expressas em intricados e sólidos pressupostos sistemáticos. Essa característica foi construída durante os vários séculos de influências, aproximações e confrontações entre a fé cristã e as diversas correntes intelectuais, tanto da filosofia, quanto de outras áreas do conhecimento. Não se pode, de forma lúcida, pensar que a teologia moderna é fruto apenas de uma construção isolada do cristianismo, não levando em conta todos os diálogos existentes neste longo período histórico. Desde as cartas paulinas, passando pelos primeiros escritos dos chamados Pais da Igreja, a Escolástica, os movimentos de Reformas empreendidos nos séculos XIV, XV e XVI, até as produções teológicas dos séculos XIX e XX, a doutrina cristã foi expressa em termos sistemáticos, cada vez mais apurados e refinados. De acordo com Grenz e Olson (2003, p. 7), “num sentido amplo, a teologia pode ser definida como a reflexão intelectual sobre o ato, conteúdo e implicações da fé cristã. A teologia descreve a fé dentro de um contexto histórico e cultural específico […]”. Por esse prisma, a teologia é uma forma de ‘inteligência da fé’, a forma como a razão humana busca compreender, mesmo que de maneira opaca, as revelações divinas expressas na história. Sendo assim, o objeto principal da teologia é a revelação de Deus, sua palavra sagrada, o testemunho do Evangelho sobre seu Filho Unigênito. Todavia, a maneira como tais revelações são apreendidas e compreendidas depende de uma capacidade de racionalização sobre elas. Pode-se argumentar que essa perspectiva parece diminuir o caráter transcendental da fé, ou seja, o princípio de que a fé é a firme certeza daquilo que não se vê, não se compreende racionalmente e não pode ser ‘moldado’ por princípios humanos. Entretanto, pode-se ainda afirmar que a fé é o fundamento transcendente da expressão imanente da revelação divina apreendida pela razão humana. Em outras palavras, sem a fé a razão é apenas um instrumento, sem objeto de análise, sem fundamentos de conhecimento e sem possibilidade de reconhecer no mundo e na própria história as marcas da ação e do amor de Deus. Ter em mente essas questões e definições possibilita-nos analisar a teologia a partir de um viés que não se limite a princípios teóricos engessados, mas que também não se perca em termos que não possam ser analisados, discutidos e expostos, tornando- se vaga e subjetiva. Nesses termos, para conhecer o que chamamos de ‘teologia’, é premente tomarmos como baliza os aspectos sistemáticos, advindos de influências teóricas diversas, e os aspectos de fé, amparados tão somente nas Sagradas Escrituras e na revelação divina. Começaremos então por analisar os aspectos sistemáticos, históricos e teóricos que influenciam a teologia cristã ocidental, para nos voltarmos, posteriormente, para os aspectos de fé. Vamos começar? 5 2 VAMOS CONHECER A TEOLOGIA? Ao tratarmos da teologia como uma área do conhecimento nos deparamos com duas questões, primeiro, compreender suas metodologias, sistematizações e formas de articulação de seus princípios em vista das várias áreas do conhecimento; segundo, seu objeto de estudo, seu campo de abrangência e a forma como se estruturam suas relações de debate internos e externos. Nesse quadro, podemos entender que há uma faceta estrutural, constitutiva de sua sistematização, e uma faceta de conteúdo, disposta a partir daquilo que se estabelece como problemas, temas e assuntos pertinentes ao estudo teológico. No primeiro âmbito, a discussão se dá por vias de uma relação entre conjuntos lógicos de sistematização, estruturação e argumentação, elementos próprios da maioria das construções intelectuais presentes na tradição ocidental. Já no segundo âmbito, a questão está posta na singularidade da mensagem cristã, seu ineditismo em relação às demais religiões, sua perspectiva de universalidade e sua maneira de abarcar diversos aspectos da vida cotidiana. FIGURA 2 – A TEOLOGIA COMO FÉ E RAZÃO FONTE: <https://www.shutterstock.com/pt/image-photo/close-people-reading-word-god- together-470690948>. Acesso em: 20 set. 2021. A noção de ‘teologia’ (θεολογία), do grego Theos (Deus) e Logos (podendo ser estudo), remete a uma busca da compreensão da constituição dos seres divinos, podendo ser não somente serespessoais, mas também seres inanimados, como os astros celestes. Essa concepção tem uma raiz grega, na qual está disposta uma compreensão ampla de Cosmos, ou seja, a composição de toda a realidade, visível e invisível. A influência de uma sistematização estrutural na teologia começa já na relação entre a tradição grega e a incipiente tradição cristã, uma relação que abarca ao mesmo tempo aglutinação e rompimento. Vejamos o que nos diz Estrada (2003, p. 67) sobre essa questão: 6 A tradição judeu-cristã é a que rompe com este marco, abrindo novos horizontes e possibilitando um giro antropológico. No entanto, o peso da ‘teologia natural’ tanto na sua versão platônica, como aristotélica, é determinante para a própria teologia judeu-cristã. A fusão de ambas as correntes é o que determina a ‘teologia natural’ em sua versão clássico-medieval, que serve de ponto de partida para os sistemas cristãos e que gera a síntese entre a concepção helenista e cristã da divindade, do cosmo e do homem. Tem-se aqui dois pontos importantes, primeiro, a aglutinação estrutural de um sistema lógico-teológico, a tradição grega, principalmente a partir de Platão e Aristóteles, a qual fornece instrumentais teóricos para se pensar a relação, no Cosmos, entre ‘Homem’ e ‘Divindade’. Essa sistematização não está presente nas religiões orientais, muito menos na tradição judaica, na qual não se pode nem pronunciar o nome de Deus. O outro ponto é o rompimento com a perspectiva puramente ontológica, ou seja, de busca da compreensão da constituição do ‘Ser’, como se a teologia fosse apenas o estudo das relações ontológicas e cosmológicas entre os seres naturais e não naturais. Entretanto, o que nos interessa aqui é perceber que a teologia cristã ocidental tem forte assento sistemático em bases gregas, principalmente filosóficas. O cristianismo emerge do judaísmo como consequência do próprio plano salvífico de Deus, a partir da primeira Aliança o Senhor promete à Abraão que sua descendência será bendita entre as nações, porém, o povo escolhido rompe essa aliança. Deus então anuncia, desde os profetas do Velho Testamento, o Pacto da Nova Aliança, que seria firmado entre ele e toda a humanidade. Essa Nova Aliança se concretiza na vinda de Jesus, seu Filho Unigênito, e tem sua legitimação no sacrifício vivo de Cristo na cruz. Sendo assim, o cristianismo surge como desdobramento de um processo histórico que começa com os judeus, mas que se expande para toda a humanidade. FIGURA 3 – PLANO DE SALVAÇÃO FONTE: <https://www.shutterstock.com/pt/image-photo/crown-thorns-emblem-christs- passion-red-1364562119>. Acesso em: 20 set. 2021. 7 Entretanto, as bases teológicas do judaísmo não comportavam a inteligência da fé necessária para se compreender os desígnios de Deus expressos a partir do Evangelho, assim, o conteúdo da fé cristã deve ser compreendido, expresso e vivido a partir de uma nova base de entendimento. Esse é o ponto que nos leva a perceber que o instrumental lógico-teológico, tomado da tradição grega, serve como ‘meio’, ‘instrumento’, para se expressar de maneira racional, pela inteligência, aquilo que é revelado por Deus através da fé. Segundo Latourelle (1981, p. 16), “o teólogo esforça-se, pela reflexão, por chegar a uma inteligência mais profunda dos mistérios aos quais já adere pela fé. O que para o simples fiel é objeto de assentimento, o teólogo aplica-se a compreendê-lo; o que o simples fiel afirma como verdadeiro, o teólogo encara-o como objeto de inteligibilidade”. Nesse sentido, a fé é a base que dá ao teólogo seu objeto de análise e estudo, os instrumentais lógicos são ferramentas, o conhecimento não vem da pura razão, mas antes, da razão que se guia pela fé e se volta para Deus. Como indicado, esse movimento é característico da tradição cristã e de todo o construto teológico nela existente. Trata-se do âmbito estrutural, o qual já indicamos anteriormente, que molda a maneira como a teologia sistematiza seu objeto de estudo e expressa suas questões, temas e discussões, enfim, sua metodologia. 2.1 FÉ E RAZÃO NA DIMENSÃO TEOLÓGICA De início é preciso compreender que fé e razão não são termos contraditórios, como muito se pensa, a fé não precisa anular a razão, nem o contrário é verdadeiro. Para encontrarmos o equilíbrio nesta discussão é preciso compreender que a forma de ‘conhecer’ de cada uma é distinta. A fé se lança para aquilo que transcende aos sentidos e percepções humanas, o que é incompreensível se for tomado apenas pelos limites da capacidade racional. Entretanto, por sua vez, a razão se fia por aquilo que pode ser estabelecido em parâmetros cognoscitivos, apreendido por estruturas lógicas e racionais, bem como expresso por princípios argumentativos e analíticos. Pode-se então estabelecer dois aspectos centrais, a fé é subjetiva, pois está na vivência do indivíduo com aquilo que suscita nele uma experiência com o transcendente, o divino, algo que foge ao campo do sensível. Já a razão é pautada pelo objetivo, uma vez que se dirige para a constituição de princípios, sistemas e experiências que podem ser demonstrados, argumentados e compreendidos por meio de análise. Mesmo que o objeto da razão seja algo não tangível, concreto, ela constrói maneiras de tornar tal objeto ‘cognoscível’ por todo aquele que apreender os termos que o define. Quando falamos de tempo, de espaço, grandezas numéricas etc., tudo isso pode ser compreendido por definições objetivas. O objeto da fé, sendo subjetivo, precisa ser transposto para termos objetivos para ser partilhado com um grupo de indivíduos. Dessa forma, não se busca na razão uma ‘comprovação’ da fé, mas antes, uma maneira de compreender e partilhar as formas como a divindade se revela. A fé ‘acredita’, reconhece, a razão ‘investiga’, conhece. Vejamos o que nos diz Boff (1978, p.19) sobre este ponto de relação entre fé e razão e o papel do teólogo: 8 O trabalho teológico consiste em produzir inteligência, compreensão. O teólogo tem de dar conta teoricamente da substância da fé, de seu objeto ou de sua visada. O teólogo como tal não responde senão aos postulados da ratio fidei e não às modas culturais do tempo (tradicionais ou progressistas), nem às posições ideopolíticas de uma situação (reacionárias ou revolucionárias). Por essa perspectiva, a teologia não é simples produção cultural, estagnada no tempo ou em determinada conjuntura político-social, a relação entre fé e razão é postulada pela sincronização de uma busca que se concretiza apenas na revelação divina. Na dimensão teológica, tanto a fé quanto a razão são tipos de ‘espelhos’, que refletem, de forma opaca e embaçada, como já apontamos, a verdade divina revelada na história. A questão é que na tradição ocidental, principalmente a partir da influência grega, houve uma tentativa de sobreposição da razão em vista da fé, sendo essa última entendida como insuficiente para se conhecer a ‘verdade’ da realidade. Como já indicamos, a forma de conhecer própria da razão é distinta da forma de conhecer da fé, claro que ao analisarmos os aspectos naturais, físicos, a razão nos dá ótimo instrumental de compreensão. Entretanto, sua limitação está exatamente na busca de algo que transcenda ao natural, ao físico, algo que esteja além da realidade apreendida pelos sentidos. Nesse campo, a fé se torna o guia para se experimentar, de maneira imanente, uma realidade que pode apenas ser nuançada, mas que escapa à sistematização da razão. Esse quadro geral parece dispor um paradoxo. Seria então perda de tempo querer expressar racionalmente compreensões que se estabelecem a partir da ‘substância da fé’? Bem, como discutimos, o ser humano transita em dois âmbitos, aquele objetivo, dos sentidos, do mundo natural, bem como aquele do subjetivo, do transcendente, das verdades experimentadas pela alma. Sendo assim, pensando na analogia dos espelhos, nos valendo apenas de uma forma de compreensão, teríamos somente uma visão distorcida, desfocada,que não permitiria o compartilhamento e a experiência conjunta das verdades da fé. Para buscarmos compreender melhor toda essa discussão, passaremos a estudar os aspectos da teologia na história, mesmo que de forma sucinta, mas tendo o cuidado de tocar os pontos mais centrais. Vamos lá? 3 A TEOLOGIA NA HISTÓRIA Tentar apresentar a teologia na história, em todos os seus aspectos, vieses, debates, distúrbios e reveses, é certamente uma tarefa que nos demandaria um livro didático inteiro. Sendo assim, nos propomos aqui a tratar de aspectos e pontos centrais, mais destacados, que nos permitam perceber momentos nos quais a teologia cristã ocidental foi se definindo e solidificando. Mesmo assim, é preciso ainda estabelecer algumas diretrizes que possam nos guiar nesta discussão, primeiro, compreender a constituição dos substratos de fé da teologia na história, principalmente as Sagradas Escrituras e a tradição; segundo, compreender como a relação entre fé e razão se estabelece no início da Igreja e do crescimento do cristianismo. Por fim, a maneira como a teologia cristã se torna hegemônica no Ocidente durante a Idade Média. Pode parecer um itinerário reduzido, mas mesmo esses poucos pontos já apresentam temas e questões infindáveis. 9 Para compreendermos o primeiro ponto, é preciso lembrarmos que o cristianismo surge como uma religião marginalizada, vista como uma seita judaica que crescia sob os escombros do império romano. A partir de sua disseminação pelas comunidades judaicas, primeiro, posteriormente pelas cidades gentias no entorno do Mediterrâneo, o cristianismo começa a ganhar contornos de uma religião mais organizada, aos menos no que se refere à proposição de suas doutrinas. Entretanto, sua base de textos sagrados são os livros da tradição judaica, sendo a Torá a principal referência. É importante pontuar que o que chamamos na teologia cristã de ‘Velho Testamento’ é a compilação de livros pertencentes à tradição judaica. O Pentateuco(Torá), os cinco primeiros livros, os Livros Históricos, os Poéticos, os Livros Proféticos, todos eles são textos que assumem uma importância e uma utilização distinta no cristianismo e no judaísmo. Todavia, o plano salvífico de Deus está desenhado desde o momento da queda, como indicamos anteriormente, a Primeira Aliança faz parte deste plano, sendo concretizado na Nova Aliança em Cristo. Sendo assim, os textos judaicos mostram todo o trajeto percorrido até a consumação desta Nova Aliança, apresentando a Vinda do Messias que haveria de vir restaurar a humanidade. O texto de Isaias 53, 1-7 nos diz o seguinte: 1 Quem creu em nossa mensagem e a quem foi revelado o braço do Senhor? 2 Ele cresceu diante dele como um broto tenro, e como uma raiz saída de uma terra seca. Ele não tinha qualquer beleza ou majestade que nos atraísse, nada em sua aparência para que o desejássemos. 3 Foi desprezado e rejeitado pelos homens, um homem de tristeza e familiarizado com o sofrimento. Como alguém de quem os homens escondem o rosto, foi desprezado, e nós não o tínhamos em estima. 4 Certamente ele tomou sobre si as nossas enfermidades e sobre si levou as nossas doenças, contudo nós o consideramos castigado por Deus, por ele atingido e afligido. 5 Mas ele foi transpassado por causa das nossas transgressões, foi esmagado por causa de nossas iniquidades; o castigo que nos trouxe paz estava sobre ele, e pelas suas feridas fomos curados. 6 Todos nós, tal qual ovelha, nos desviamos, cada um de nós se voltou para o seu próprio caminho; e o Senhor fez cair sobre ele a iniquidade de todos nós. 7 Ele foi oprimido e afligido, contudo, não abriu a sua boca; como um cordeiro foi levado para o matadouro, e como uma ovelha que diante de seus tosquiadores fica calada, ele não abriu a sua boca (ISAÍAS 53, 1-7). Nessa perspectiva, a própria base de fé do cristianismo não poderia ser compreendida em todo o seu significado se os textos do Velho Testamento fossem desprezados por serem pertencentes à tradição judaica. Jesus era judeu, seu ministério terreno se desenrola na Palestina, os próprios apóstolos, após a morte e ressurreição de Cristo, se voltam primeiro para as comunidades judaicas. A questão é que a doutrina presente no Evangelho, a verdade revelada em Cristo, deveria ocupar a centralidade do testemunho dos apóstolos e na crescente Igreja de Cristo na terra. Os primeiros textos do que chamamos atualmente de ‘Novo Testamento’ começam a serem escritos como testemunho sobre o ministério de Jesus e seu sacrifício remidor, bem como escritos epistolares, que visavam instruir, confortar e evangelizar as igrejas já estabelecidas. De acordo com Ohlweiler (1990, p. 195), “o estabelecimento definitivo dos textos canônicos só foi efetivado por volta da segunda metade do século IV no leste do Mediterrâneo e no fim do século V no Oeste. Os teólogos cristãos consideram que os quatro Evangelhos, dedicados à vida de Jesus e seus ‘milagres’, formam a parte essencial do Novo Testamento”. 10 Nesse sentido, a base da fé cristã estava assentada, nos primeiros séculos, na tradição, na oralidade e no testemunho dos apóstolos e seus sucessores. Sendo os textos canônicos do Novo Testamento compilados apenas no século IV, como nos indica Ohlweiler, podemos entender que a interpretação das doutrinas, a instrução dos fiéis, bem como, o próprio combate às heresias dependiam diretamente da capacidade dos teólogos em formular e transmitir princípios claros e compreensíveis. Com este movimento contínuo de construção das bases teológicas da doutrina cristã, foi-se estabelecendo e consolidando uma forte tradição interpretativa da fé, bem como uma robusta capacidade de articulação entre as verdades do Evangelho e as ferramentas argumentativas. As Sagradas Escrituras, a base de fé e prática dos fiéis cristãos, constitui-se então em um conjunto de textos que têm como finalidade primordial apresentar o plano de Deus para a humanidade, desde a criação até o sacrifício remidor de Cristo. Nesse sentido, tanto o Velho, quanto o Novo Testamento, dão testemunho deste plano e da inexorável vontade de Deus revelada na história. As Sagradas Escrituras tornam-se, então, a base da teologia cristã, a fonte imanente da fé que transcende diretamente de Deus. Apresentado esse ponto, abreviadamente, cabe-nos ainda apresentar o segundo, a relação entre fé e razão no início da Igreja e a maneira como a teologia vai se constituindo de forma delineada. No próximo subtópico analisaremos os aspectos centrais da ação dos Pais da Igreja no fortalecimento da teologia cristã e na defesa da fé. 3.1 A TEOLOGIA CRISTÃ NOS “PAIS DA IGREJA” E NA IDADE MÉDIA A designação de ‘Pais da Igreja’ remete-nos aos primeiros séculos de construção e consolidação de uma tradição cristã e de uma teologia marcadamente pautada nas Sagradas Escrituras e no testemunho dos apóstolos. Como exposto anteriormente, a constituição e compilação dos textos sagrados do Novo Testamento é um evento tardio, que ocorre praticamente cinco séculos depois de Cristo. Entretanto, nesse ínterim, vários textos foram produzidos, inúmeras doutrinas foram discutidas e a tradição cristã em suas bases e liturgia foi se sedimentando. O período compreendido como sendo este dos Pais da Igreja vai do século I até praticamente o século VII, passando por figuras como Clemente de Roma, Policarpo de Esmirna, Clemente e Orígenes, ambos de Alexandria e, talvez o mais conhecido, Santo Agostinho. Como nos indica Quasten (1967, p. 44), “se chamam ‘Padres Apostólicos’ os escritores cristãos do século I e do início do século II, dos quais o ensinamento é quase o eco direto das pregações dos apóstolos, seja por tê-los conhecido pessoalmente, seja por tê-los escutado de seus discípulos.” Esse período, dos primeiros Pais da Igreja, denominados de Padres Apostólicos, é extremamente importante por se constituir em um ponto de viragem, no qual a fé cristã vai passando de doutrina marginalizada a uma doutrina mais robustae mais compreensível. Os Pais da Igreja, tendo o trabalho de compilar, agrupar, organizar e sistematizar as doutrinas transmitidas pelos apóstolos, tinham também a função de defender tais doutrinas dos ataques dos pagãos e dos próprios judeus. 11 Doutrinas como as duas naturezas de Cristo, divina e humana, a imaculada concepção de Maria, a Trindade e a função do Espírito Santo, a verdade da morte e ressurreição de Cristo, bem como outros pontos centrais da fé cristã, deveriam ser discutidos, interpretados e defendidos pelos primeiros teólogos do cristianismo. Além disto, a evangelização, a instrução dos fiéis e a organização das igrejas também eram tarefas prementes que precisavam de atenção. Ainda como nos instrui Quasten (1967), o primeiro documento, o mais antigo não presente no cânon do Novo Testamento, que serviu para instrução dos fiéis e direcionamento das doutrinas, foi a Didaché, um conjunto de textos que se postulava como transmissão dos ensinamentos dos apóstolos. O documento apresentava pontos tais como: preceitos morais, organização das igrejas e das comunidades cristãs, funções litúrgicas, ensinamentos sobre a vida de Cristo e um sucinto regulamento eclesiástico. Esse documento foi importante para se estabelecer uma prática de ensino e de discussão dos pontos que ainda estavam incompreendidos na doutrina cristã. Esse movimento foi importante tanto para a propagação do próprio Evangelho, por se tornar mais compreensível e mais clara sua transmissão, quanto para a defesa da fé e dos preceitos cristãos. Ainda nesse período dos oito primeiros séculos do cristianismo, temos os chamados Concílios Ecumênicos, encontros entre os representantes da Igreja Ocidental e da Igreja Oriental, cuja finalidade era esclarecer pontos de divergência e promulgar dogmas aceitos pelas duas tradições. Os Concílios ocorrem em momentos bem específicos e até conturbados da Igreja, vejamos a cronologia deles: Concílio de Niceia em 325 d.C., Concílio de Constantinopla em 381 d.C., Concílio de Éfeso em 431 d.C., Concílio da Calcedônia em 451 d.C., Segundo Concílio de Constantinopla em 553 d.C., Terceiro Concílio de Constantinopla em 680 d.C., Segundo Concílio de Niceia em 787 d.C. Alguns desde Concílios tiveram importância mais destacada para a consolidação de doutrinas basilares no cristianismo. No primeiro Concílio de Niceia, em 325 d.C., ressalta-se três temas centrais, a saber, I – a composição de um credo que reunisse as principais doutrinas referentes à fé em Jesus Cristo como Messias e Salvador do mundo, II – a Igreja Católica(universal), enquanto igreja Una, III – a verdade do Espírito Santo e a vida eterna. Com o se vê, são temas basilares, mas que no contexto do período suscitavam bastantes discussões. Outro Concílio que se destaca é o de Éfeso em 431 d.C., no qual se abordou o tema da cristologia, postulando-se a doutrina da santidade de Jesus, sua unidade com o Pai e o Espírito Santo, assim como sua ressurreição do corpo e alma. Outro destaque foi a reafirmação da Virgem Maria como ‘Mãe de Deus’, não somente como mãe do ‘homem’ Jesus, o que refletia uma doutrina adocionista na qual Jesus não teria uma natureza divina igual à do Pai. Por sua vez, o segundo Concílio de Niceia, em 787 d.C., prenuncia o que seria um dos motivos do Grande Cisma de 1054 d.C., ao colocar em discussão o tema da veneração de imagens e a iconoclastia. 12 FIGURA 4 – O GRANDE CISMA COMO RUPTURA DA IGREJA FONTE: <https://www.shutterstock.com/pt/image-photo/broken-rope-failure-break-concept- this-1975774079>. Acesso em: 20 set. 2021. A formação de uma tradição teológica cristã só pode ser compreendida se for bem entendida essa fase de consolidação e discussão em torno dos temas doutrinários, os dogmas e as controvérsias, bem como o combate às diversas heresias. As discussões empreendidas pelos Pais da Igreja reverberarão na produção teológica medieval. Autores como Tomás de Aquino, Duns Scotus, Abelardo, Anselmo, dentre outros, retomarão e aprimorarão dos principais temas discutidos nesse período. Pela pena desses teólogos a fé cristã se tornará hegemônica na Europa e influenciará toda a cultura ocidental. Marrone (2008, p. 42), ao tratar da obra de Anselmo, nos diz o seguinte: A especulação medieval alcançou uma nova clareza e rigor nos escritos de Anselmo. O mais famoso desses escritos entre os filósofos, o Proslogion (Proslógio), expõe algo que pode ser lido como uma prova de Deus baseada na razão. Esse texto forneceu o alicerce histórico para o que mais tarde veio a ser conhecido como ‘argumento ontológico’. O Proslogion foi originalmente intitulado ‘A fé buscando o Entendimento’. Neste texto, em uma meditação completamente baseada na tradição monástica beneditina, reaparecem as feições do ideal agostiniano de uma jornada intelectual cristã em direção à sabedoria. Descrevendo-se como ‘alguém que se esforça para elevar sua mente à contemplação de Deus e procura entender aquilo em que crê’, Anselmo insistia não apenas em que o uso da razão não prejudicava a fé, mas que era de fato completamente apropriado a essa. Como bem observa Marrone, o ideal dos teólogos cristãos na Idade Média é utilizar a razão de forma clara, sistemática, objetiva, não opondo-a à fé, mas fazendo dela parceira na tarefa de melhor compreender a revelação divina. Anselmo escreve no século XII, um período de forte hegemonia da chamada ‘Escolástica’, movimento intelectual cristão que se dissemina por toda a Europa constituindo as primeiras universidades e dando um caráter ainda mais sistemático à teologia cristã. A teologia 13 cristã medieval começará a receber fortes críticas apenas no início da modernidade, principalmente de humanistas e filósofos, mas será no início do século XVIII, no auge do Iluminismo, que ela sofrerá seus mais duros golpes. Entretanto, interessa-nos aqui a compreensão de que a história da teologia no Ocidente é marcada pela constante busca de um refinamento e aprofundamento de seus temas, não fugindo ao confronto da razão, mas valendo-se de seu crivo para aprimorar sua inteligência da fé. A discussão teológica estabelece-se como um campo bem definido, com argumentos, princípios e metodologias bem delineados, todavia, é preciso que ela seja perceptível na vivência da fé cotidiana, principalmente aos fiéis. Vamos conversar um pouco sobre essa questão? 4 TEOLOGIA E PRÁTICA DE VIDA A discussão que promovemos até o momento nos leva a perceber a teologia como uma área do conhecimento que tem sua metodologia, seu objeto e suas bases argumentativas bem delineadas e robustas. Entretanto, precisamos ainda buscar uma percepção da teologia como algo que faz parte da vida cotidiana dos fiéis, muito além de ser um campo de investigação no qual a razão e a fé se coadunam no mesmo propósito. Esta proximidade entre a teologia e a prática da vida ocorre de várias formas, uma delas, podemos afirmar, é através da própria prática da teologia pastoral, do aconselhamento, dos estudos bíblicos com os fiéis, na compreensão da liturgia e até mesmo na confrontação com os desafios do mundo moderno. FIGURA 5 – TEOLOGIA NA VIDA COTIDIANA DA IGREJA FONTE: <https://www.shutterstock.com/pt/image-photo/close-christian-group-hold-opening-bib- le-1427047157>. Acesso em: 20 set. 2021. 14 Certamente que nem sempre essa relação entre teologia e prática de vida foi tão sensível e perceptível, se pensarmos em liturgias e práticas do passado, tanto na Igreja Católica quanto nas Igrejas Reformistas, podemos imaginar que havia uma lacuna maior entre a busca de uma compreensão mais profunda da fé, através da teologia, e uma vivência comunitária da fé pelos fiéis. A teologia, principalmente em seu viés sistemático, sempre pareceu algo distante e inócuo na vida cotidiana das comunidades cristãs, porém, esse quadro mudou bastante nas últimas décadas e tende a mudar ainda mais. Não seria exagero afirmar que mesmo os temas tratados na teologia, desde o início da IgrejaPrimitiva, nos serviriam hoje para compreendermos melhor as práticas necessárias para o cuidado e o convívio na comunidade cristã. De acordo com Clinebell (1987, p. 204): Os escritos da Igreja Primitiva contêm instruções específicas para curar os doentes […] É bom lembrar que as palavras health (saúde), heal (são), whole (inteiro) e holy (santo), são todas derivadas das mesmas raízes – ou de raízes estreitamente relacionadas – do inglês antigo. Um dos empolgantes desafios do futuro é recuperar as riquezas dessa herança[...] Nessa perspectiva indicada por Clinebell, mesmo uma ação tão delicada e centrada na vivência e nos anseios modernos das pessoas, pode ser desenvolvida em fina consonância com temas que estão presentes nos ensinos da Igreja Primitiva. Isso demonstra que a teologia é um canal, uma forma de interligar os temas da fé cristã com os temas atuais, desafiadores e urgentes da sociedade moderna. Além disso, podemos compreender que a teologia precisa se tornar uma fonte de compreensão da substância da fé para os fiéis que não têm uma formação especificamente teológica. Nesse contexto, fica clara a necessidade de que o teólogo seja também o magister, aquele que compartilha, mais do que transmite, um conhecimento que não é engessado, mas é dinâmico. Muito além de apenas fundamentar doutrinas, dogmas, preceitos e princípios morais de conduta, a construção teológica se torna um processo de reflexão e retorno para si mesma. Em outros termos, é a partir da ‘prática teológica’ que se pode aprofundar a ‘teoria teológica’. Se não houver essa perspectiva reflexiva, baseada na vivência da fé, o próprio estudo da teologia se perde em suas metodologias e sistematizações, perdendo a essência de seu objeto de estudo, a fé. Como já indicamos várias vezes, a teologia é a busca de uma inteligência da fé para se compreender a revelação e a ação divina na história humana e na própria vida dos indivíduos. Sendo assim, os ‘registros’ para se compreender tal revelação e ação divina estão dispostos de forma prática na vida daqueles que se lançam em um movimento de fé. A vontade de Deus se torna manifesta na fé e na busca de conhecimento e compreensão de sua palavra, como nos indica o apóstolo Paulo em sua carta aos romanos: “E não sede conformados com este mundo, mas sede transformados pela renovação do vosso entendimento, para que experimenteis qual seja a boa, agradável, e perfeita vontade de Deus”. (ROMANOS 12, 2). Essa renovação ocorre em todos os sentidos, não somente na compreensão espiritual da vontade de Deus, mas também em seus aspectos apreensíveis pelo entendimento humano. Nesse sentido, a transformação se dá em vista da relação do indivíduo que busca a vontade de Deus e o mundo que o 15 cerca, não se conformando a ele, é uma transformação e espiritual e prática, está no âmbito da subjetividade, mas também da objetividade. Certamente que a teologia pode contribuir para esta transformação, não se fechando em um círculo ‘teorizado’, próprio da discussão acadêmica, mas alcançando a prática da vida, a vivência e a realidade dos fiéis na comunidade cristã. Parece-nos que essa visão é concebível dentro de uma perspectiva que abarque a teologia não como uma ciência, uma área do conhecimento distante, que leva à especulações sobre coisas que estão fora da realidade cotidiana, mas como uma ciência que se completa e se fortalece na prática da vivência de seu objeto de estudo, a fé. 16 Neste tópico, você adquiriu certos aprendizados, como: • A noção de teologia surge primeiro entre os gregos, como busca da compreensão de uma relação entre os entes componentes do Cosmos, ou seja, a realidade que abarca toda a natureza, visível e invisível. A teologia cristã surge como relação entre a tradição cristã e a tradição grega, colocando como seu objeto de estudo a revelação de Deus. • A teologia cristã, enquanto área de conhecimento e ciência, tem sua metodologia, sua sistematização e seu objeto de estudo, tornando a busca de uma inteligência da fé, em outros termos, uma forma de compreender melhor a revelação e a vontade Divina. • A construção de uma tradição teológica no Ocidente começa nos primeiros séculos da Igreja, principalmente com os Pais da Igreja e os primeiros escritos teológicos de explicação e instrução sobre as doutrinas cristãs. • A teologia voltada para a prática da vida cristã é percebida em diversas ações dentro da comunidade de fiéis, não se tornando apenas uma área de conhecimento distante, mas uma fonte de conhecimento e de reflexão. RESUMO DO TÓPICO 1 17 1 Quando se trata de uma determinada área do conhecimento, composta tanto de sólida parte teórica quanto prática, pode-se estabelecer uma análise de seus fundamentos para melhor conhecê-la. Sobre esse aspecto dos fundamentos em uma área do conhecimento, assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) Os fundamentos próprios de qualquer área do conhecimento, como a teologia, são formados por princípios e conceitos que sustentam suas construções teóricas e práticas. b) ( ) Os fundamentos de qualquer área do conhecimento são estabelecidos pela validade dos pressupostos teóricos comprovados diante dos pressupostos práticos. c) ( ) Cada área do conhecimento tem seus princípios fundados nos conceitos oriundos tanto da filosofia quanto das ciências naturais, constituindo-se no edifício intelectual moderno. d) ( ) A própria noção de área do conhecimento já aponta para o fato de que existem fundamentos gerais, próprios de várias ciências pertencentes à mesma área, divididas em práticas e teóricas. 2 A teologia é tida como uma ciência constituída por fundamentos consolidados no decorrer de vários séculos, ramificadas em várias áreas, mas que mantém suas características e aspectos próprios enquanto área do conhecimento. Com base nas definições de teologia e seus aspectos constitutivos, analise as sentenças a seguir: I- A teologia tem uma metodologia própria, constituída por sistematizações e articulações de seus princípios que a caracterizam como ciência teórica e prática. II- Os objetos de estudo da teologia são estruturados dentro de uma concepção de abrangência, estabelecendo o seu substrato de análise e discussão. III- A teologia estabelece seu objeto de estudo a partir da especulação pura, em outros termos, a partir da construção de conceitos puramente abstratos. Assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) As sentenças I e III estão corretas. b) ( ) Somente a sentença II está correta. c) ( ) As sentenças I e II estão corretas. d) ( ) Somente a sentença III está correta. AUTOATIVIDADE 18 3 A teologia tem na fé um dos seus principais objetos de estudo, sendo essa uma característica que a torna uma área do conhecimento teórica, mas também preocupada com a prática, na medida das expressões sociais e culturais da fé. De acordo com os princípios e as normativas presentes na teologia sobre a questão da fé, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas: ( ) A fé se torna objetiva tão somente no momento em que está expressa em uma religião institucionalizada. ( ) A fé se lança para o transcendente, aquilo que se coloca além da simples apreensão dos sentidos e da capacidade puramente racional. ( ) A fé é tida como uma questão objetiva social, pois está construída a partir de um inconsciente coletivo cultural. Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA: a) ( ) V – F – F. b) ( ) F – V – F. c) ( ) F – V – V. d) ( ) F – F – V. 4 As Sagradas Escrituras são a única fonte de fé e prática dos fiéis cristãos, sendo tida como a Palavra de Deus Revelada à humanidade no decorrer da história. Todavia, sua composição é objeto de debate, tendo em vista sua relação com a tradição judaica e a cristã. Disserte sobre essa questão da composição das Sagradas Escrituras, tendo em vista a tradição judaica e a cristã. 5 A teologia, como área de conhecimento e ciência, é tida como algo que tende a se distanciar davida prática dos fiéis, bem como da comunidade eclesial como um todo. Esse quadro é ainda pior quando se volta para temas próprios de áreas como a teologia sistemática e áreas específicas, como o estudo do Velho Testamento etc. Entretanto, esta relação da teologia com a prática da vida, tende a se tornar mais clara atualmente. Nesse contexto, disserte sobre os princípios que fundamentam as relações da teologia moderna com a prática da vida. 19 OS CAMINHOS DA FÉ CRISTÃ 1 INTRODUÇÃO UNIDADE 1 TÓPICO 2 - Acadêmico, no Tópico 2, abordaremos os temas relacionados aos caminhos da fé cristã, como discutido no tópico anterior, a consolidação do cristianismo ocorre por meio da construção de uma tradição teológica robusta, mas também através de uma longa história de organização, renovação e defesa da fé. Neste quadro de evolução, a discussão sobre os contornos próprios da fé cristã é central, principalmente em vista da construção do reino de Deus na terra, pautado pela missão evangelizadora, pela devoção e a comunhão dos fiéis. Esses pontos são os norteadores de toda ação da Igreja de Cristo, a qual visa propagar a palavra de salvação do Evangelho e se preparar para a volta gloriosa de seu ‘noivo’. A evangelização, a devoção e adoração, bem como a comunhão dos fiéis, convergem em um momento de união do ‘corpo de Cristo’ em torno de sua palavra e de sua revelação. FIGURA 6 – A UNIÃO DOS FIÉIS NO CORPO DE CRISTO FONTE: <https://www.shutterstock.com/pt/image-photo/group-people-holding-hands-praying- worship-709782334>. Acesso em: 20 set. 2021. 20 A constituição de uma prática de culto está presente na tradição cristã desde os primórdios, o próprio Cristo estabelece o momento sublime da comunhão em torno de si, ao celebrar a chamada ‘Última Ceia’, indicando que o centro de toda adoração é a celebração da misericórdia de Deus. O sacrifício de Cristo na cruz é prova desta misericórdia, sua entrega voluntária para redimir toda a humanidade e livrar o ser humano da condenação do pecado. Sendo esse o núcleo de toda a mensagem do Evangelho, não poderia deixar de ser o centro de toda a adoração e culto prestado por sua Igreja, a comunidade de fiéis, unidos em torno de seu nome, celebram a vitória de Cristo na cruz e na sua ressurreição. Entretanto, o ato de adoração, de cultuar, envolve vários aspectos que fomentam a experiência do fiel com Deus, a imanência do culto é representação, canal, para a transcendência da ação divina no meio de seu povo. Em outros termos, apesar de o culto de adoração ser um tipo de ‘ritual’, uma prática centrada em preceitos, princípios e doutrinas, ele não se torna algo ‘engessado’, antes, deve ser uma expressão viva e dinâmica de fé que sustenta a Igreja de Cristo. Podemos observar as claras mudanças trazidas por Jesus em relação ao culto presente no judaísmo e a nova forma de adorar e de ‘acessar’ a vontade de Deus. FIGURA 7 – O CULTO JUDAICO TEM VÁRIOS ELEMENTOS RITUALÍSTICOS FONTE: <https://www.shutterstock.com/pt/image-photo/jewish-man-black-kippah-carrying- torah-1640772271>. Acesso em: 20 set. 2021. 21 As inúmeras regras e leis contidas no judaísmo, bem como toda a carga ritualística que caracterizava sua prática, estava distante da nova forma de se chegar até Deus. O judaísmo da época de Jesus, principalmente em sua versão apresentada pelos Zelotes, era extremamente ortodoxo, nacionalista, em vista da promessa do Messias libertador do povo judeu, e totalmente ancorado nas leis mosaicas. As diversas acusações feitas pelos líderes da sinagoga contra Jesus eram baseadas exatamente na forma como ele pregava a palavra, se comportava em relação às leis e costumes, e na sua conduta para com os ‘impuros’, tais como prostitutas, leprosos, cobradores de impostos etc. Não nos esqueçamos de que o judaísmo é uma religião nacional, ou seja, é vinculada a um povo, sua história, sua cultura e, principalmente, serve como esteio e norteador para a organização política, social e moral. Paskán (1973, p. 120), ao tratar da formação do povo judeu descrita no Gênesis, nos informa o seguinte: Três figuras, três monumentos, nos são narrados com maestria. Os três são símbolos da substância judia e de sua psicologia nacional. […] Com motivo, nos relata o Gênesis biografias em lugar de referir- se a eventos históricos e não há dúvida que a história dos Patriarcas é a história de uma tribo grande e vigorosa, que levava a cabo guerras, desenvolvia uma política nacional e atravessou profundos processos socioeconômicos. Essa perspectiva nos remete à celebre expressão: ‘O Deus de Abraão, Isaque e Jacó’. Sendo eles as três figuras patriarcais, o judaísmo surge com o chamado de Abraão por Deus, o ‘Deus dos Judeus’ é o Deus da nação de Israel. Nesse sentido, todo o culto é uma celebração desta pertença do povo ao Deus único e verdadeiro. Entretanto, a mensagem do Evangelho é uma palavra de salvação para toda a humanidade, está marcado pelo sangue de Cristo que estabelece a Nova Aliança. A adoração não será apenas no templo em Jerusalém, como nos indica Paulo em 1 Coríntios 6,19, o corpo é ‘o templo do Espírito Santo’, no qual se faz a verdadeira adoração. As leis são ‘letras mortas’, apenas o Espírito dá ‘vida em abundância’, nesse sentido, a forma de cultuar muda drasticamente, deixando de ser algo centralmente ritualístico, ‘monolítico’, para se tornar uma adoração verdadeira, centrada na presença do Espírito Santo e na mediação única e irrevogável do nome de Cristo. 22 FIGURA 8 – A VERDADEIRA ADORAÇÃO VEM PELO ESPÍRITO SANTO FONTE: <https://www.shutterstock.com/pt/image-vector/illustration-pentecost-sunday-holy-spirit- biblical-1981553219>. Acesso em: 20 set. 2021. Essa perspectiva, mesmo que sucinta, nos direciona a compreendermos que na Nova Aliança de Deus com a humanidade o culto de adoração é distinto não só do judaísmo tradicional, mas de todas as religiões pagãs, pois se trata de uma relação direta de fé e entrega, legitimada pela autoridade de Cristo e iluminada pela ação do Santo Espírito. É necessário, então, compreendermos como essa característica ímpar do cristianismo se traduz na forma prática do culto e na comunhão dos ‘santos’ remidos pelo sangue de Cristo. Assim, nos próximos tópicos trataremos sobre as questões da liturgia e da ação da Igreja. Vamos continuar? 2 A LITURGIA COMO AÇÃO DA IGREJA Alguns termos levantam questões e discussões que fogem ao próprio âmbito de suas utilizações, esse parece ser os casos de ‘liturgia’ e ‘Igreja’. Dentro da história da teologia cristã, seja no Ocidente ou no Oriente, as discussões sobre as formas de culto, a proposta de liturgias, em geral levantaram controvérsias sobre questões doutrinárias diversas. Como já apontamos em outros momentos, os Concílios se ocuparam de várias dessas controvérsias, algumas ligadas ao cerne da mensagem cristã, tal como a natureza de Cristo, sua ressurreição corporal ou apenas espiritual, sua igualdade substancial com o Pai etc. Entretanto, muitas controvérsias diziam respeito à maneira como o culto deveria ser desenvolvido, a figura do sacerdote, questões como a celebração da Ceia, ou Eucaristia, consubstanciação, transubstanciação ou apenas memorial presente no simbolismo de ‘carne’ e ‘sangue’ de Cristo. 23 FIGURA 9 – A PÃO E O VINHO COMO CORPO DE CRISTO FONTE: <https://www.shutterstock.com/pt/image-illustration/photograph-artistic-painting-jesus-christ- his-1928839466>. Acesso em: 20 set. 2021. Entretanto, para nos dedicarmos a apreciar pormenorizadamente essas questões, demandaríamos muito mais tempo e espaço do que temos aqui, seria preciso abordar os princípios e doutrinas da Igreja Católica, da Igreja Ortodoxa, das Igrejas Reformistas, principalmente as históricas, as Igrejas Pentecostais, abrindo assim um leque amplo. Parece-nos mais pertinente analisarmos a noção de ‘liturgia’ e de ‘Igreja’ em uma perspectiva mais focada em seus pressupostos, definições e aspectos teológicos. Nessa abordagem, pareceainda profícuo tratarmos brevemente da noção de ‘Igreja’, para então discorrermos sobre a questão da ‘liturgia’. Podemos afirmar que a Igreja de Cristo na terra começa desde o momento em que ele dá início à arregimentação de seus primeiros discípulos, são eles os primeiros ‘obreiros’ da Igreja que tem sua pedra angular no próprio Jesus. Na carta aos Colossenses 1, 18 lemos o seguinte: “Ele é a cabeça do corpo, que é a igreja; é o princípio e o primogênito dentre os mortos, para que em tudo tenha a supremacia.” Paulo está obviamente falando de Jesus, ele é o fundador, o mediador e o ‘noivo’ de sua Igreja, sua autoridade foi legitimada por sua vitória sobre a morte no cumprimento da vontade de Deus. Este ‘corpo’ deve crescer saudável e unido, guiado por sua ‘cabeça’ até o fim que lhe é devido, todavia, a tarefa de tal crescimento foi incumbida aos próprios discípulos arregimentados no início do ministério de Cristo. A missão querigmática é o combustível que faz crescer a Igreja de Cristo e faz conhecido seu Evangelho em toda a terra. O relato de Mateus sobre a comissão dada por Jesus, de ir pregar o Evangelho a todas as nações, já nos indica quatro pilares de sua Igreja. Vejamos: 18 E, chegando-se Jesus, falou-lhes, dizendo: Me é dado todo o poder no céu e na terra. 19 Portanto ide, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo; 20 Ensinando-os a guardar todas as coisas que eu vos tenho mandado; e eis que eu estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos. Amém. (MATEUS 28, 18-20). 24 O primeiro pilar é a autoridade da Igreja centrada apenas em Jesus Cristo, único mediador entre Deus e o ser humano, nenhuma outra autoridade é necessária, uma vez que o sangue de Cristo é o selo da Nova Aliança. O segundo pilar está exatamente na missão querigmática, a anunciação do Evangelho a todas as nações, sendo essa a missão primera da Igreja. O terceiro pilar é o batismo trinitário, ou seja, a aceitação do Evangelho e o compromisso firmado entre o pecador redimido e o Senhor. O batismo é uma confirmação de fé, ele não tira os pecados, mas é um sinal de que o pecador aceita ser lavado pelo sangue de Cristo e receber sua salvação. Como consequência dessa confirmação de fé temos o quarto pilar, a observação dos mandamentos de Cristo, todas as coisas que ele ensinou, aguardando sua volta. Isso inclui a comunhão com os irmãos, o estudo da Escritura Sagrada em conjunto na comunidade, o cuidado, o zelo pelo outro, o apoio mútuo na fé. FIGURA 10 – A IGREJA DE CRISTO SÃO OS ‘SANTOS’ EM COMUNHÃO À SUA ESPERA FONTE: <https://www.shutterstock.com/pt/image-photo/church-concept-worship-praise-1482816893>. Acesso em: 20 set. 2021. Quando olhamos por esse viés, percebemos que a verdadeira Igreja de Cristo não se resume à instituições, rituais, normas engessadas, disputas doutrinárias ou de poder. Esta Igreja é composta por todos os que são batizados em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, que guardam e praticam os ensinamentos do Senhor e pregam e testificam com suas próprias vidas a mensagem do Evangelho. Strong (2003, p. 635) corrobora com essa perspectiva da seguinte maneira: 25 A igreja de Cristo, no seu sentido mais amplo é o conjunto de pessoas regeneradas em todos os tempos e épocas, no céu e na terra (Mt 16.18; Ef 1.22,23; 3.10; 5.24,25; Cl. 1.18; Hb 12.23). Nesse sentido, a igreja é idêntica ao reino espiritual de Deus; ambos significam a humanidade na qual Deus, em Cristo, exerce seu verdadeiro domínio espiritual (João 3, 3-5). O ‘Corpo’ de Cristo é composto pela multidão de todos os salvos desde o início dos tempos, que foram comprados pelo pagamento de seu sangue na cruz, todavia, sua parte visível na terra é aquela que tem a função de propagar sua palavra, cuidar dos pobres, fazer o bem. Quando analisamos a origem do termo ‘Igreja’, percebemos que se trata de um ajuntamento de pessoas convocadas, reunidas em torno do nome de Cristo. Segundo nos informa Baily (2000, p. 268), o termo grego ‘ekklesia’(igreja) é a “assembleia por convocação, assembleia de um povo”. Esta assembleia por convocação, este ajuntamento de pessoas redimidas pelo sangue de Cristo, se reúne com o propósito vivo de adorar seu nome, praticar sua verdade e receber a instrução do Espírito Santo. Este ajuntamento se dá em qualquer lugar que estiverem pessoas com o intuito sincero de cultuar a Deus, como o próprio Jesus afirmou: “… onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, aí estou eu no meio deles” (MATEUS 18, 20). Essa afirmação nos mostra que não é preciso estar em um templo, não é preciso ter a mediação de um sacerdote, nem mesmo objetos tidos como sagrados, basta apenas sinceridade e vontade de cultuar o nome de Cristo. Bem, mas podemos indagar, para que a liturgia então? Para que a organização de um culto com todos os seus elementos? Certamente que são questões importantes e que demandam uma resposta em várias frentes, pois abarcam uma série de princípios. No próximo subtópico nos voltaremos para o termo ‘liturgia’, para compreendermos um pouco mais sobre essas questões. Vamos lá? 2.1 LITURGIA E COMUNIDADE Será difícil pensar a liturgia se não tivermos em mente a noção de Igreja como ajuntamento, assembleia de pessoas, como comunidade de indivíduos salvos que se reúnem em torno da adoração ao nome de Cristo. Mais ainda, como uma comunidade de pessoas que se relacionam entre si e com o mundo ao qual devem levar a palavra do Evangelho e testemunhar a santidade de Cristo. Nesse sentido, ao pensarmos sobre liturgia, precisamos deixar de lado a noção tacanha de algo que se desenvolve apenas dentro de um templo, ou através de ritos, normas e práticas inflexíveis. É preciso pensar a liturgia como um serviço que se desenvolve ‘na e com a’ comunidade da Igreja. Além disso, é um serviço que tem em Cristo seu exemplo máximo, na ajuda aos mais necessitados, no cuidado com o próximo, no aconselhamento, no amor, na compreensão e escuta, enfim, na entrega constante e na humildade. 26 FIGURA 11 – O EXEMPLO MAIOR É CRISTO FONTE: <https://www.shutterstock.com/pt/image-photo/woman-extends-her-hand-cross- prayer-1433848985>. Acesso em: 20 set. 2021. Por esse viés, podemos entender que a liturgia não se restringe ao culto propriamente dito, apesar de esse ser seu uso mais corriqueiro e usual. No desenvolvimento histórico e teológico tal visão atrelada ao culto foi se consolidando, talvez até em prejuízo à noção básica de liturgia como serviço, como temos apontado. De acordo com Maia (1986, p.123): LITURGIA - (gr. Ieitón - do povo + érgon - ato em favor da comunidade) - conjunto de formas externas do culto do povo cristão, i. é., maneira exterior, pública, social e oficial de a Igreja prestar culto a Deus; se o objeto primário da Liturgia é Deus, o primeiro sujeito é Cristo, pois foi o liturgo que se ofereceu no Calvário [...] Segundo essa definição, a liturgia é o serviço prestado na Igreja e com a Igreja, externando ao público, ou seja, anunciando ao mundo, a centralidade da misericórdia de Deus expressa em seu filho Unigênito que deu a si mesmo em favor de toda a humanidade. Cristo foi o primeiro a se colocar humildemente ao serviço do Pai, cumprindo sua vontade e estabelecendo seu reino, por isso ele é o exemplo máximo do ‘liturgo’, aquele que serve a Deus e à Igreja. Como já discorremos anteriormente, Igreja é ‘comunidade’, ‘assembleia’, ‘ajuntamento’ de pessoas remidas pelo sangue de Cristo. Por isso, indicamos que é preciso alargar aquela visão estreita de que liturgia e Igreja são sinônimos de instituições e normas inflexíveis. Como bem coloca Krammer (2011, p. 17), liturgia “significa serviço para o povo, obra do povo, ministério […]’ 27 A liturgia reforça a ligação entre o ‘corpo’ e a ‘cabeça’ em um momento de culto, mas também em momentos de serviço, de união e de pregação do Evangelho. Em outros termos, a liturgia expressa como culto, seja no templo ou em outrolugar qualquer, é uma expressão do serviço da Igreja que não cessa nunca. Parece nociva a ideia de que o culto se dá apenas no ‘templo da igreja’, acabando sua prática acaba seu sentido de continuidade, como temos apontado, a liturgia é entendida como serviço, o qual não cessa com o culto. Essa perspectiva nos abre várias possibilidades de compreendermos a importância das ações pastorais, dos grupos de estudo e oração entre os fiéis, do serviço na Igreja e na comunidade em seu entorno. Parece-nos que tal perspectiva também nos ajuda a responder a uma daquelas perguntas que fizemos no final do tópico anterior, para que liturgia? Em sentido amplo, podemos compreender que liturgia é, antes de mais nada, serviço, primeiro à Deus e depois à Igreja e à comunidade, ampliando-se do culto à vivência da fé em todas as suas dimensões. Avançaremos mais nesta discussão, buscando compreender de forma geral os princípios teológicos centrais que embasam a liturgia e sua importância na vida da Igreja de Cristo. Está preparado para continuarmos? 3 OS PRINCÍPIOS TEOLÓGICOS DA LITURGIA Para buscarmos os princípios teológicos da liturgia, parece-nos mais acertado buscar nas Sagradas Escrituras os fundamentos, as bases de tais princípios, para depois analisarmos os aspectos mais gerais. Nesse sentido, nos debruçaremos sobre alguns pontos que se colocam como indeléveis para se compreender o ‘serviço cristão’ como fundamento da liturgia e o momento do culto como comunhão em vista desse mesmo serviço. Discutimos no tópico anterior os pressupostos da liturgia como serviço, como ministério, ação da Igreja, tanto dentro de sua comunidade quanto no entorno dela e em toda a sociedade. Esta noção básica se desenrola em diversos tipos de ações que se dirigem tanto para o acolhimento e comunhão da comunidade da Igreja, como na evangelização, cuidado e acolhimento da comunidade externa a ela. Essa liturgia do serviço cristão é anterior e mais ampla que a própria liturgia enquanto serviço de culto, enquanto momento de ‘adoração em comunidade’, pois esta é a melhor definição para o ajuntamento da Igreja. Os remidos pelo sangue de Cristo se ajuntam, se reúnem, para adorar, aprender e compartilhar daquilo que experimentam pela fé na ação do Espírito Santo. Começaremos, então, por abordar a liturgia como ‘serviço cristão’, para depois analisarmos os aspectos da liturgia no culto. Para iniciarmos este itinerário, veremos a instrutiva e ampla descrição do significado de ‘liturgia’ dada por Barclay (1994, p. 125): 28 Leitourgia, de onde provém nossa palavra ‘liturgia’ em português, juntamente com suas palavras afins, forma um grupo de palavras de interesse insuperável. […] Mais tarde, leitourgein veio a descrever qualquer tipo de serviço. […] No NT as palavras têm três usos principais. (i) São usadas para o serviço que um homem presta para outro. Desse modo, Paulo, quando resolve levantar a coleta para os santos pobres de Jerusalém, usa leitourgein e leitourgia (Rm 15.27; 2 Co 9.12). Usa-as a respeito do serviço que os Filipenses e Epafrodito lhe prestaram (Fp 2.17). Servir aos outros é uma ‘liturgia’ que Deus impõe ao cidadão do Reino. (ii) São usadas para um serviço especificamente religioso (Lc 1.23; At 13.2). São usadas até para a obra sumo-sacerdotal do próprio Jesus (Hb 8.6; 8.2). Nossa obra na Igreja é uma liturgia que Deus nos impõe também. (iii) Há dois usos de especial interesse em Paulo. (a) O magistrado, a pessoa que detém o poder, é chamado de leitourgos por Paulo (Rm 13.6). O serviço público do homem deve ser prestado a Deus. (b) Paulo a emprega a respeito de si mesmo quando se chama o leitourgos de Jesus Cristo aos gentios (Rm 15.16.). Assim como Atenas, nos dias antigos, enviava seus leitourgoi para representar o estado, assim também Deus envia Paulo aos gentios. Por essas claras referências, podemos manter nossa perspectiva de que a liturgia é inicialmente a prática do ‘serviço cristão’, a ação do indivíduo ou da comunidade da Igreja, em prol do reino de Deus, em prol dos irmãos e também em prol da comunidade externa. A relação entre o serviço e a adoração é muito estreita no texto do Novo Testamento, principalmente porque não havia ainda uma teologia da liturgia do culto, em outros termos, o que havia era uma reunião de pessoas que ouviam a pregação dos apóstolos, eram batizadas, faziam questionamentos, davam testemunhos. Como nos diz Atos 2, 44: “E todos os que criam estavam juntos, e tinham tudo em comum.” Enfim, era algo bastante espontâneo e totalmente independente de processos. ritualísticos circunspectos, normas e textos obrigatórios, nas igrejas recém-estabelecidas fora da Palestina lia-se as cartas dos apóstolos e se ouvia a pregação dos missionários. FIGURA 12 – A IGREJA PRIMITIVA SE REUNIA AGUARDANDO A VOLTA DE CRISTO FONTE: <https://www.shutterstock.com/pt/image-illustration/watercolor-hand-drawn-illustration-praying- people-1920875315>. Acesso em: 20 set. 2021. Esse contexto demonstra que o cristianismo surge como uma religião sem um ‘formato religioso’, diferentemente do judaísmo, o qual apresentava forte carga ritualística. O que isso significa? Bem, podemos entender que a comunidade da incipiente Igreja de Cristo vivia um momento de adaptação, saindo do seio do judaísmo e estabelecendo seus próprios preceitos em torno da doutrina de Cristo. Um bom exemplo desse período é o controverso ‘Incidente de Antioquia’, no qual se discute se os novos 29 cristãos convertidos, não judeus, precisariam passar pela circuncisão e seguirem as leis mosaicas. Em Gálatas 2, 11, Paulo relata o ocorrido e aponta que Pedro e Tiago, o Justo, instigados pela comunidade cristã em Jerusalém, tinham dúvidas sobre esse ponto. Para dirimir essa questão foi preciso uma reunião, o chamado ‘Concílio de Jerusalém’, no qual se decidiu que os cristãos gentios não precisariam passar pela circuncisão nem seguirem a lei. Esse foi um passo importante para se compreender a nova vida cristã como uma nova forma de adoração e serviço a Deus, não mais atrelada ao ritualismo judaico, muito menos presa a um distanciamento entre Deus e o ser humano. A base desta nova vida em comunidade cristã, como temos apontado, é o serviço a Deus e à própria comunidade. O maior exemplo desta vida de serviço é o próprio Jesus, como já apontamos, seu ministério é totalmente dedicado a ajudar, acolher, servir, ensinar, curar e pregar o Evangelho. Mateus nos relata o sermão de Jesus no qual ele repreende os Fariseus e Escribas, denunciando a hipocrisia deles e anunciando sua mensagem de humildade, leiamos: 8 Vós, porém, não queirais ser chamados Rabi, porque um só é o vosso Mestre, a saber, o Cristo, e todos vós sois irmãos. 9 E a ninguém na terra chameis vosso pai, porque um só é o vosso Pai, o qual está nos céus. 10 Nem vos chameis mestres, porque um só é o vosso Mestre, que é o Cristo. 11 O maior dentre vós será vosso servo. 12 E o que a si mesmo se exaltar será humilhado; e o que a si mesmo se humilhar será exaltado (MATEUS 23, 8 – 12). Não há dúvidas de que essa mensagem é extremamente direta em relação à crítica de Jesus a uma ‘religiosidade’ vazia dos sacerdotes e líderes do judaísmo de sua época. Contudo, além dessa crítica contundente, o que temos aqui é a clara indicação de que o reino de Deus é composto por ‘servos’, pessoas redimidas que buscam a glória de Deus, não a de si mesmas, não visam reconhecimento terreno, mas o galardão futuro. Cabe a nós, no tempo presente, analisarmos como tais palavras são postas em prática pela comunidade dos ‘santos’. Quando nos voltamos para a questão da ação pastoral, parece-nos que tal caráter de serviço é ainda mais claro, mas direcionado para os leitourgoi de Cristo. Parece-nos acertado afirmarmos que o serviço cristão, enquanto liturgia, precede o próprio culto no templo, sendo esse serviço a ‘adoração verdadeira’, na qual os membros, a mente, o coração, enfim, o corpo todo, torna-se instrumento da ação do Santo
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