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S2P1-COMPLICAÇÕES AGUDAS DO DIABETES MELITO CRISES HIPERGLICÊMICAS As chamadas “crises hiperglicêmicas” englobam a cetoacidose diabética (CAD) e o estado hiperglicêmico hiperosmolar (EHH), os quais representam as duas complicações agudas mais graves do diabetes melito (DM). CAD e EHH continuam sendo importantes causas de morbimortalidade entre pacientes diabéticos, apesar da existência de critérios de diagnóstico e protocolos de tratamento bem desenvolvidos. Alguns sinônimos para o EHH são “estado hiperglicêmico hiperosmolar não cetótico”, “coma hiperglicêmico hiperosmolar não cetótico” e “coma hiperosmolar”. Entretanto, a denominação “estado hiperglicêmico hiperosmolar” tem sido preferida, considerando que: (1) pequenos graus de cetose podem ocorrer no EHH; e (2) coma somente ocorre em cerca de 30 a 50% dos pacientes, enquanto nos demais há graus variados do nível de consciência (sonolência, obnubilação e torpor). O EHH é consequente a um déficit relativo de insulina que, em último caso, pode levar a hiperglicemia significativa, desidratação e hiperosmolalidade. Por outro lado, na CAD, a deficiência de insulina é mais intensa, ocorrendo, ainda, a produção de corpos cetônicos e acidose metabólica. Tradicionalmente, o EHH e a CAD têm sido descritos como entidades distintas. No entanto, estimativas sugerem que cerca de 20 a 30% dos pacientes que se apresentam com EHH têm acidose metabólica resultante de uma CAD concomitante. Embora a CAD ocorra prioritariamente no DM tipo 1 (DM1), ela tem sido vista com frequência crescente no DM tipo 2 (DM2). A CAD pode ser a manifestação inicial do DM1 em 15 a 20% dos adultos e em 30 a 40% das crianças e dos adolescentes afetados pela doença. Trata-se da principal causa de mortalidade em crianças, adolescentes e adultos jovens com DM1 (cerca de 50% dos óbitos). A CAD costuma ser considerada como pouco frequente no DM2, geralmente surgindo em situações de estresse intenso, tais como infecções graves, infarto agudo do miocárdio (IAM), acidente vascular cerebral (AVC) etc. Contudo, dados recentes mostram que, em alguns países, pelo menos 30% dos casos ocorrem em indivíduos com DM2. Além disso, CAD é tipicamente a apresentação inicial do DM2 com tendência à cetose. O EHH é muito raro no DM1, com nítido predomínio no DM2, do qual pode ser a manifestação inicial em até 17% dos casos. Ainda que predomine em idosos, o EHH pode ser observado em qualquer grupo etário. De fato, estudos revelam que cerca de 20% dos casos de EHH ocorrem em indivíduos com idade < 30 anos. O EHH tem também sido descrito em crianças e adolescentes com DM2 e DM1. EPIDEMIOLOGIA A taxa de incidência anual de CAD estimada a partir de estudos populacionais americanos varia de 4,6 a 8 episódios por 1.000 admissões de pacientes com diabetes. A taxa de internações por EHH é significativa, representando menos de 1% de todas as admissões relacionadas ao diabetes. Em diversos relatos, a mortalidade na CAD tem variado entre 1,2 e 9% (em geral < 5%). Quanto ao EHH, a taxa de mortalidade permanece significativamente maior (até 20%), provavelmente por acometer pessoas mais idosas com comorbidades (em especial, cardiovasculares). Em crianças, essa mortalidade pode chegar a 60%. FATORES PRECIPITANTES Em muitos casos, não se consegue identificar um fator precipitante para CAD e EHH. Os dois principais fatores precipitantes da CAD são tratamento inadequado (p. ex., omissão do uso da insulina ou de outras medicações antidiabéticas) e infecções. Os processos infecciosos mais frequentes são pneumonia e infecções do trato urinário. Outros fatores precipitantes são IAM, AVC, cirurgias e pancreatite aguda, bem como o uso de medicamentos, álcool em excesso, drogas ilícitas, procedimentos invasivos e atividade física extenuante (p. ex., correr uma maratona). Em pacientes jovens, sobretudo adolescentes do sexo feminino, problemas psicológicos associados a transtornos alimentares podem ser um fator contribuinte em cerca de 20% dos casos de CAD recorrente. Problemas mecânicos com dispositivos de infusão subcutânea contínua de insulina (CSII) podem precipitar a CAD. Entretanto, com a melhora da tecnologia e melhor educação dos pacientes, tal situação tem sido descrita menos frequentemente. Por interferirem na ação e/ou na secreção de insulina, diversos fármacos (p. ex., tiazídicos, glicocorticoides, fenitoína, agentes simpaticomiméticos, pentamidina etc.) podem desencadear CAD ou EHH. Hiperglicemia e quadros de CAD e EHH têm sido igualmente relatados em pacientes submetidos ao uso de L-asparaginase para o tratamento da leucemia linfoblástica aguda. Nos últimos anos, tem havido um crescente número de relatos de casos de CAD e EHH (alguns fatais) secundários ao uso de antipsicóticos atípicos, como aripiprazol, clozapina, olanzapina, quetiapina e risperidona. Supõe-se que esses fármacos atuem induzindo resistência à insulina, como também por ação direta na função da célula beta. Mais recentemente, tem havido relatos de CAD euglicêmica em pacientes com DM1 ou DM2 (mais raramente) tratados com inibidores do cotransportador de sódio e glicose 2 (SGLT-2). Aumento da secreção de glucagon pelas células alfa pancreáticas e omissão ou redução inadvertida na dose de insulina são mecanismos aventados. Finalmente, há raros casos de CAD desencadeados pela imunoterapia com inibidores do checkpoint imune. Fatores precipitantes da cetoacidose diabética (CAD) e do estado hiperglicêmico hiperosmolar (EHH). Tratamento inadequado Interrupção da administração da insulina ou de hipoglicemiantes orais, omissão da aplicação da insulina, mau funcionamento da bomba de infusão de insulina Doenças agudas Infecções (pulmonar, trato urinário, influenza), infarto agudo do miocárdio, acidente vascular cerebral, hemorragia gastrintestinal, queimaduras, pancreatite Distúrbios endócrinos Hipertireoidismo, feocromocitoma, síndrome de Cushing, acromegalia e diabetes gestacional Fármacos Glicocorticoides, agonistas adrenérgicos, fenitoína, betabloqueadores, clortalidona, diazóxido, pentamidina, inibidores de protease, antipsicóticos atípicos (aripiprazol, clozapina, olanzapina, quetiapina e risperidona), inibidores do SGLT-2 (dapagliflozina, canagliflozina e empagliflozina) etc. Substâncias Álcool (consumo excessivo), ecstasy, cocaína, maconha, cetamina etc. Desidratação Oferta inadequada de água, uremia, diálise, diarreia, sauna etc. Outros Ingestão excessiva de refrigerantes ou líquidos contendo açúcar A CAD pode também ocorrer em casos de DM secundário a distúrbios endócrinos (acromegalia, síndrome de Cushing, feocromocitoma, hipertireoidismo etc.), pancreatite aguda e consumo excessivo de álcool. CAD é uma rara complicação do diabetes gestacional. O EHH pode também ser precipitado por infecções, medicações, não adesão à tratamento, DM não diagnosticado, uso abusivo de substâncias e doenças coexistentes. Infecções são a principal causa (57% dos casos), particularmente pneumonia, seguida de infecção do trato urinário e sepse. A baixa adesão à medicação para o DM causa 21% dos casos de EHH. Outras causas de EHH incluem IAM, AVC, embolia pulmonar, cirurgias e trombose da artéria mesentérica, entre outras. Como já comentado, EHH e, sobretudo, CAD são frequentemente encontrados em pacientes sem diagnóstico prévio de diabetes. Dados recentes de países europeus mostram que até 38% das crianças e adolescentes tiveram a CAD como manifestação inicial do DM1. Em estudo multicêntrico brasileiro, esse percentual foi de 42%.42 Crianças com idade < 2 anos apresentam maior risco de desenvolver CAD; nesse grupo, a incidência chegou a 71% em um estudo recente. PATOGÊNESE A patogênese da CAD e do EHH, apesar de intensamente estudada, ainda apresenta muitos aspectosque não foram elucidados. Os defeitos subjacentes na CAD e no EHH são: (1) deficiência absoluta ou relativa de insulina na CAD ou ação ineficaz da insulina no EHH; (2) níveis elevados de hormônios contrarreguladores (glucagon, catecolaminas, cortisol e hormônio de crescimento [GH]), o que resulta em aumento da produção hepática de glicose e diminuição da utilização de glicose nos tecidos periféricos; (3) desidratação e anormalidades eletrolíticas, principalmente em virtude da diurese osmótica causada por glicosúria. ■ Cetoacidose diabética A CAD se caracteriza por hiperglicêmica associada à produção excessiva de corpos cetônicos, os quais incluem acetoacetato (AA), β-hidroxibutirato (BHB) e acetona. O AA é o corpo cetônico central e dele derivam os demais. O BHB é formado a partir da redução do AA nas mitocôndrias. A acetona, por sua vez, é gerada pela descarboxilação espontânea do AA. Seu interesse clínico deriva principalmente do fato de causar hálito com odor frutado (hálito cetônico), pelo qual a cetose pode ser identificada. A tríade bioquímica característica da CAD é hiperglicemia, cetonemia e acidose metabólica com hiato aniônico (anion gap) alto. HIPERGLICEMIA A hiperglicemia na CAD é o resultado de três eventos: (1) aumento da gliconeogênese; (2) glicogenólise aumentada; e (3) menor utilização da glicose por fígado, músculos e adipócitos. Insulinopenia e elevação dos níveis de cortisol também levam a diminuição da síntese de proteínas e proteólise elevada com aumento da produção de aminoácidos (alanina e glutamina), os quais, juntamente com os ácidos graxos livres (AGL) liberados dos adipócitos, servem de substrato para a gliconeogênese. O aumento dos níveis de glucagon, catecolaminas e cortisol, associado à insulinopenia, estimula as enzimas gliconeogênicas, especialmente a fosfoenolpiruvato carboxiquinase (PEPCK). A redução da taxa de filtração glomerular pela desidratação contribui para agravar a hiperglicemia. A combinação de insulinopenia e excesso de catecolaminas propicia aumento do catabolismo do tecido adiposo (lipólise) com produção excessiva de AGL e glicerol, os quais, no fígado, serão oxidados em corpos cetônicos, um processo predominantemente estimulado pelo glucagon. Concentrações aumentadas de glucagon reduzem os níveis hepáticos de malonil coenzima A, a primeira enzima limitadora da síntese de novo de ácidos graxos. Níveis reduzidos de malonil-CoA estimulam cetogênese via carnitina palmitoiltransferase 1 (CPT1-L), isoforma hepática, que promove oxidação de AGL a corpos cetônicos. Assim, a produção de corpos cetônicos é acelerada como resultado do aumento da atividade da acil-CoA graxa e da CPT1-L. Além disso, na CAD, estão diminuídos o metabolismo e a depuração dos corpos cetônicos. Estes últimos são ácidos fortes, e sua produção excessiva causa hipercetonemia e acidose metabólica. O aumento da pressão parcial de dióxido de carbono (PaCO2) estimula os centros respiratórios, provocando uma respiração rápida e profunda – respiração de Kussmaul. Tanto a hiperglicemia quanto os altos níveis de corpos cetônicos causam diurese osmótica, o que leva à hipovolemia e à diminuição da taxa de filtração glomerular, a qual agrava ainda mais a hiperglicemia. ACIDOSE METABÓLICA A CAD tipicamente se caracteriza por acidose metabólica com anion gap elevado, a qual resulta do acúmulo de corpos cetônicos. ESTADO HIPERGLICÊMICO HIPEROSMOLAR Sabe-se menos sobre a patogênese do EHH do que sobre a da CAD. Aparentemente, os níveis circulantes de insulina são suficientes para prevenir a lipólise e, consequentemente, a cetogênese, mas inadequados para propiciar a utilização de glicose. A quantidade de insulina necessária para suprimir a lipólise é um décimo menor do que a requerida para estimular a utilização periférica de glicose. Os pacientes com EHH são também deficientes em insulina. Contudo, eles apresentam concentrações mais elevadas de insulina (demonstrado pelos níveis basais e estimulados do peptídeo C) do que pacientes com CAD. Além disso, nos pacientes com EHH, são menores as concentrações séricas dos AGL e dos hormônios contrarregulatórios (cortisol, GH e glucagon). O início mais lento do EHH (vários dias), em comparação ao da CAD (< 1 a 2 dias) resulta em manifestações mais graves de hiperglicemia, desidratação e hiperosmolalidade plasmática, as quais se correlacionam com níveis de consciência alterados. DIAGNÓSTICO ■ Aspectos clínicos A CAD evolui rapidamente dentro de poucas horas ou poucos dias após o(s) evento(s) precipitante(s). A maioria dos pacientes relata aumento progressivo e relativamente rápido dos sinais de descompensação do DM (principalmente poliúria e polidipsia) nas últimas 24 horas. Dor abdominal, náuseas e vômitos estão presentes em 40 a 75% dos casos. Ao exame físico, são comuns sinais de desidratação, tais como mucosa bucal seca, olhos fundos, turgor da pele diminuído, taquicardia, hipotensão e, nos casos mais graves, choque. Respiração de Kussmaul (em casos de acidose metabólica grave), hálito cetônico (semelhante ao aroma do removedor de esmaltes) e dor à palpação abdominal são achados adicionais. Hematêmese pode ocorrer em até 25% dos pacientes, em virtude de gastrite. A dor abdominal na CAD pode simular abdome agudo em 50 a 75% dos casos. Não há correlação da dor com a intensidade da hiperglicemia ou da desidratação, mas, sim, com a gravidade da acidose metabólica (pouco frequente com bicarbonato sérico > 15 mmol/ℓ). A despeito da presença de infecção, os pacientes com CAD podem se mostrar eutérmicos ou até mesmo com leve hipotermia. Esse achado resultaria da vasodilatação periférica que acompanha a acidose metabólica. Na CAD, o nível de consciência varia de estado de alerta pleno a coma profundo. Ainda é controversa a causa do estado comatoso, com alguns estudos indicando como o fator primordial a hiperosmolalidade plasmática e outros, a acidose metabólica. Diferentemente do que ocorre na CAD, o EHH tem desenvolvimento insidioso e se manifesta dias a semanas após o(s) eventos(s) precipitantes. Neste período, são frequentes manifestações de descompensação do DM e distúrbios do sensório. Taquipneia apenas se faz presente diante de concomitante CAD ou acidose láctica. A desidratação geralmente é mais intensa no EHH, devido ao maior déficit de líquidos. ■ ASPECTOS LABORATORIAIS Os critérios de diagnóstico para a CAD e o EHH propostos pela American Diabetes Association (ADA) em 2009. De acordo com eles, a CAD se caracteriza por glicemia > 250 mg/dℓ, cetonemia e acidose metabólica (pH < 7,3 e bicarbonato < 18 mEq/ℓ). Contudo, até 7% das pessoas com CAD se apresentam com glicemia < 250/dℓ, caracterizando a chamada cetoacidose diabética euglicêmica (eu-CAD). Após o uso crescente dos inibidores do SGLT-2 para o tratamento do DM2, a quantidade de casos de eu- CAD tem aumentado consideravelmente. Outras condições associadas à eu-CAD incluem gravidez, ingestão calórica diminuída, consumo excessivo de álcool, uso de insulina antes da internação, uso abusivo de cocaína, pancreatite, sepse e doença hepática grave. Em cerca de um terço dos casos induzidos pela sotagliflozina, os níveis de glicemia ao diagnóstico estavam < 250 ng/mℓ. Por isso, recentemente, foi proposto por diversas sociedades médicas (American Association of Clinical Endocrinologists [AACE]/American College of Endocrinology [ACE], ADA, Endocrine Society e Pediatric Endocrine Society, entre outras), em um documento conjunto de consenso, uma nova definição de CAD que não inclui o valor da glicemia mas, sim, concentrações de cetonas na urina ou no soro acima do limite superior da normalidade, associadas a níveis de bicarbonato < 15 mmol/ℓ ou um pH < 7,3. A osmolalidadeplasmática (POsm) efetiva na CAD é variável, mas geralmente < 320 mOsm/kg. A gravidade da CAD é classificada como leve, moderada ou grave, com base na intensidade da acidose metabólica (pH do sangue, bicarbonato e cetonas) e alteração do status mental. Os critérios de diagnóstico para EHH tipicamente incluem glicemia acima de 600 mg/dℓ, pH sanguíneo > 7,3, bicarbonato > 18 mEq/ℓ e POsm efetiva > 320 mOsm/kg, na ausência de apreciável cetonemia. No entanto, cetonemia leve pode estar presente, e sobreposição significativa entre CAD e EHH é observada em mais de um terço dos pacientes. Ademais, estima-se que acidose metabólica possa ser encontrada em 20 a 30% dos pacientes com EHH devido à coexistência de CAD ou acidose láctica. Novos critérios diagnósticos para cetoacidose diabética e hipoglicemia propostos por documento de consenso de diversas sociedades médicas em 2017. Cetoacidose diabética • Concentrações de cetonas na urina ou no soro acima do limite superior da normalidade + níveis de bicarbonato < 15 mmol/ℓ ou pH < 7,3 Hipoglicemia • Nível 1: glicemia < 70 mg/dℓ (3,9 mmol/ℓ) e ≥ 54 mg/dℓ (3,0 mmol/ℓ) • Nível 2: glicemia < 54 mg/dℓ • Nível 3: alteração do status mental ou físico que exige a assistência de outra pessoa para recuperação DOSAGEM DOS CORPOS CETÔNICOS A maioria dos testes laboratoriais para corpos cetônicos usa a reação dos mesmos com o nitroprussiato (p. ex., Ketostix®), que fornece uma estimativa semiquantitativa dos níveis de acetoacetato (AA) e acetona na urina; porém, ele não reconhece o beta-hidroxibutirato (BHB), principal produto metabólico na CAD (75% do total de cetonas formadas). Uma vez que BHB é convertido em AA durante o tratamento, a pesquisa urinária de corpos cetônicos pode apresentar valores elevados, erroneamente sugerindo que a cetonemia esteja se agravando. Além disso, fármacos que têm grupos sulfidrila (sobretudo captopril) podem interagir com o reagente na reação do nitroprussiato, conferindo um resultado falso-positivo. Por isso, o acompanhamento com medição de cetonas urinárias durante o tratamento pelo método nitroprussiato não é recomendado. Glicosímetros mais recentes (p. ex., FreeStyle Optium Neo®) têm também a capacidade de medir o BHB no sangue capilar com boa acurácia. Níveis de BHB no sangue < 0,6 mmol/ℓ são considerados normais, enquanto valores > 1 mmol/ℓ representam cetonemia e níveis > 3 mmol/ℓ indicam CAD.60 Assim, sempre que possível, é recomendada a dosagem no BHB no sangue para diagnóstico e tratamento de CAD. Armadilhas no diagnóstico da cetoacidose diabética (CAD) e do estado hiperglicêmico hiperosmolar (EHH). •Na CAD, leucocitose com desvio à esquerda, na ausência de infecção. Leucócitos > 25.000/mm3 indicam processo infeccioso associado •Se o laboratório ainda usar métodos colorimétricos, a interferência dos corpos cetônicos pode elevar falsamente os níveis de creatinina •Pacientes na fase inicial de CAD ou de EHH, se apresentarem hipercalemia acentuada, podem ter elevação do segmento ST-T, sugerindo infarto agudo do miocárdio •Métodos que usam o nitroprussiato para a dosagem da cetonemia ou da cetonúria não mensuram o beta- hidroxibutirato (BHB). Como o BHB é convertido a acetoacetato (AA) durante o tratamento, os testes podem sugerir erroneamente a piora do quadro de acidose. Por isso, o mais recomendado é dosar o BHB no sangue ou na urina ao diagnóstico e no seguimento do tratamento •Os métodos do nitroprussiato usados tanto para cetonemia quanto para cetonúria podem apresentar resultados falso-positivos se o paciente usar algum medicamento que contenha grupo sulfidrila, como, por exemplo, o captopril •Elevação de amilase e lipase ocorre na ausência de pancreatite; aumento transitório de alanina aminotransferases também é frequente. ANORMALIDADES HEMATOLÓGICAS E BIOQUÍMICAS Hemograma Na CAD, costuma-se encontrar leucocitose com desvio à esquerda, mesmo quando não há infecção. Habitualmente, a contagem de leucócitos varia de 10.000 a 15.000/mm3. Esse achado parece ser causado por aumento dos níveis circulantes de catecolaminas, cortisol e citocinas pró-inflamatórias, como, por exemplo, o fator de necrose tumoral alfa (TNF-α). Contudo, valores > 25.000 leucócitos/mm3 sugerem infecção associada possivelmente desencadeando o quadro. Na série vermelha, normalmente se espera aumento do hematócrito em decorrência de desidratação. Ionograma Potássio Pacientes com CAD e EHH têm déficit no potássio corporal total em torno de 3 a 5 mmol/kg. Apesar desse déficit, o nível do potássio sérico medido na admissão hospitalar está frequentemente dentro da faixa normal ou até mesmo elevado. Isso se deve à saída do íon intracelular para o compartimento extracelular, determinada por deficiência de insulina, hipertonicidade e acidose. Sódio Os níveis de sódio geralmente estão normais ou baixos. Níveis altos sugerem grau maior de desidratação. Uma glicemia muito elevada pode falsear o resultado da natremia para baixo. Pseudonormoglicemia e pseudo-hiponatremia podem ser observadas em pacientes com CAD e quilomicronemia grave. Anion gap O anion gap ou hiato aniônico tipicamente está aumentado na CAD (> 12 nos casos moderados ou graves). Ele é calculado subtraindo-se da concentração de sódio a soma entre cloro e bicarbonato. Ureia e creatinina Tanto a ureia quanto a creatinina podem estar elevadas devido à desidratação. Falsa elevação da creatinina, se dosada por métodos colorimétricos, pode ser observada em função da interferência dos corpos cetônicos. Osmolalidade plasmática Na CAD, o valor a POsm é variável, enquanto no EHH ela sempre excede 320 mOsm/kg (VR = 290 ± 5). Deve-se dar preferência à medida da POsm efetiva que, diferentemente da POsm total, não inclui a ureia na sua fórmula. Enzimas pancreáticas e hepáticas Hiperamilasemia, a qual se correlaciona com o pH e a POsm, e elevação da lipase (correlacionada apenas com a POsm) são observadas em 16 a 25% dos pacientes com CAD. A origem da amilase nesses casos é geralmente de tecido não pancreático, tal como as parótidas. Elevação discreta de aminotransferases (transaminases) também é comum na CAD. DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL Em algumas condições, é possível observar alterações metabólicas semelhantes às de CAD e EHH. Pacientes em períodos de jejum prolongado ou em dietas sem carboidratos apresentam cetose, embora raramente com hipoglicemia. No caso de cetoacidose alcoólica (CAA), os níveis de corpos cetônicos são muito altos. No entanto, o aumento se faz à custa do BHB, que apresenta uma relação 7:1 com o AA, diferentemente da relação média de 3:1 na CAD. Contudo, relação tão alta quanto 10:1 pode ser vista na CAD. A CAD deve também ser distinguida de outras causas de acidose com aumento importante do anion gap, incluindo acidose láctica, insuficiência renal crônica avançada e ingestão de medicamentos como salicilatos, metanol, etilenoglicol e álcool isopropílico. TRATAMENTO Os objetivos principais no tratamento de CAD e EHH são: ■Restauração do volume circulatório e perfusão tecidual ■Redução gradual da glicemia e da POsm ■Correção do desequilíbrio de eletrólitos e, na CAD, redução da cetose ■Identificação e pronto tratamento do fator desencadeante, quando possível. Para alcançar tais objetivos, diferentes protocolos têm sido propostos. No caso de CAD leve, o tratamento pode ser feito na unidade intermediária. Nos casos de CAD moderada e grave, bem como nos de EHH, é recomendado o tratamento em unidade de terapia intensiva. As metas metabólicas do tratamento da CAD são: ■Reduzir a cetonemia na taxa de 0,5 mmol/ℓ/h ■Aumentar o bicarbonato sérico em 3,0 mmol/ℓ/h ■Diminuir a glicemia em 50 a 75 mg/dℓ/h ■Manter o potássio sérico entre 4,0 e 5,0 mmol/ℓ. COMPLICAÇÕES DA CETOACIDOSE DIABÉTICAE DE SEU TRATAMENTO ■ Hipoglicemia e hipocalemia Hipoglicemia (frequência de 5 a 25%) e hipocalemia são as duas complicações mais frequentes do tratamento da CAD e do EHH. Monitoramento frequente a cada 1 a 2 horas é obrigatório para reconhecer a hipoglicemia, uma vez que muitos pacientes que desenvolvem hipoglicemia durante o tratamento não apresentam as manifestações adrenérgicas típicas, como sudorese, nervosismo, fadiga, fome e taquicardia. ■ Edema cerebral A complicação mais temida do tratamento da CAD é o edema cerebral, que está associado a uma taxa de mortalidade de 20 a 40% e responde por 57 a 87% de todas as mortes por CAD em crianças. Ele ocorre em 0,3 a 1,0% dos episódios de CAD em crianças, mas é extremamente raro em adultos. Os sintomas e sinais de edema cerebral são variáveis e incluem cefaleia, deterioração gradual do nível de consciência, convulsões, incontinência esfincteriana, alterações pupilares, papiledema, bradicardia, elevação da pressão arterial e parada respiratória. As medidas preventivas do edema cerebral incluem: ■Evitar a hidratação excessiva e a redução rápida da POsm ■Diminuir gradualmente a glicemia ■Manter a glicemia entre 200 e 250 mg/dℓ até que a POsm seja normalizada e o status mental, melhorado. ■ Síndrome da angústia respiratória do adulto Essa complicação normalmente acontece durante terapia com líquidos, insulina e substituição de eletrólitos, caracterizando-se por dispneia súbita, infiltrado pulmonar difuso à radiografia torácica e hipoxemia. Tem alta mortalidade, devendo ser tratada com ventilação mecânica. Pode ser precipitada, a exemplo do edema cerebral, pela administração excessiva de cristaloides. ■ Acidose hiperclorêmica Essa complicação pode ser reconhecida por um baixo nível de bicarbonato, pH normal a baixo, anion gap normal e cloreto plasmático aumentado. A causa dessa condição é multifatorial, mas resulta sobretudo da administração excessiva de líquidos contendo cloro (NaCl e KCl). Em geral, a acidose hiperclorêmica não ocasiona dano ao paciente e tende a ser corrigida com medidas usadas no tratamento da CAD. Pode ser minimizada pelo uso de SF hipotônicas e quantidades menores de cloreto durante o tratamento. ■ Trombose vascular Risco aumentado para fenômenos trombóticos venosos e arteriais é uma característica da CAD, sendo consequência da desidratação e aumento da viscosidade e coagulabilidade sanguíneas. Heparina profilática (5.000 unidades SC a cada 8 horas) deve ser considerada para pacientes em coma, com idade acima de 50 anos ou fatores de risco para trombose. ■ Mucormicose Trata-se de uma rara infecção fúngica que ocasionalmente pode ser vista em pacientes com CAD. Clinicamente, caracteriza-se por dor facial, descarga nasal sanguinolenta, edema de órbita e visão turva. PREVENÇÃO A maneira mais eficiente de se prevenir a CAD e o EHH é identificar os fatores predisponentes e precipitantes e, rapidamente, combatê-los, principalmente as infecções. Na prevenção da CAD e do EHH, é fundamental que os pacientes e familiares recebam: ■Orientação sobre a importância de não interromper o tratamento, nem omitir aplicações da insulina ■Acesso a fitas reagentes e glicosímetros para automonitoramento domiciliar da glicemia ■Adequadas instruções sobre o reconhecimento dos sintomas da descompensação do diabetes ■Orientação para contatar seu médico ou o serviço de saúde diante do surgimento desses sintomas ou de evidências de infecções ■Estímulo para as vacinações contra doenças infecciosas respiratórias. No caso de omissões da aplicação, é fundamental descobrir a causa. Muitos adolescentes com transtornos alimentares o fazem com objetivo de perder peso.5 Em outros a omissão se deve à revolta ou à negação que ainda não foram vencidas. Nesses casos, o apoio psicológico é fundamental. Eventualmente, tem sido necessário que os pais voltem a aplicar a insulina nos seus filhos com diabetes. HIPOGLICEMIA Hipoglicemia ou níveis baixos de glicose no sangue é a complicação mais frequente do tratamento do DM e pode ser fatal, respondendo por 6 a 10% das mortes entre os indivíduos com DM1. Apesar dos avanços significativos, a terapia insulínica no diabetes permanece imperfeita, muitas vezes resultando em excesso relativo de insulina e, consequentemente, em hipoglicemia iatrogênica. Um risco aumentado em duas a três vezes para hipoglicemia grave ocorre em pacientes com DM1 ou DM2 submetidos a um controle glicêmico mais rígido. Ademais, a hipoglicemia prejudica os mecanismos de defesa contra um subsequente episódio hipoglicêmico. Assim, as hipoglicemias são a principal barreira para que os pacientes diabéticos se mantenham com glicemias e hemoglobina glicada (HbA1c) nos níveis considerados ideais. MECANISMOS ANTI-HIPOGLICEMIA A hipoglicemia desencadeia vários mecanismos contrarreguladores, sendo os principais: ■Supressão da secreção de insulina pelas células beta ■Estímulo da liberação de glucagon pelas células alfa, de epinefrina pela medula adrenal, bem como de cortisol pelo córtex adrenal e do GH pela adeno-hipófise ■Liberação de norepinefrina pelos neurônios simpáticos pós-ganglionares e acetilcolina pelos neurônios pós- ganglionares simpáticos e parassimpáticos, além de outros neuropeptídeos. A redução da secreção de insulina possibilita aumentar a produção hepática e renal de glicose, além de diminuir sua captação nos tecidos periféricos, especialmente os músculos esqueléticos. O glucagon tem papel fundamental nesse mecanismo, aumentando a glicogenólise hepática e favorecendo a gliconeogênese. A liberação de epinefrina resulta em maior produção hepática de glicose e diminuição da captação nos tecidos insulinossensíveis, além de ajudar na percepção dos sintomas hipoglicêmicos e contribuir para diminuição de secreção de insulina por mecanismo alfa-adrenérgico. Seu papel torna-se crítico quando a secreção de glucagon é insuficiente. Em diabéticos tipo 1, evidentemente, não ocorre diminuição da secreção de insulina em resposta à hipoglicemia, uma vez que sua concentração circulante, causadora de hipoglicemia, depende da absorção da insulina administrada. Em contrapartida, eles tendem a desenvolver insuficiência autonômica, expressa precocemente pela perda da resposta esperada de aumento na secreção de glucagon na vigência de hipoglicemia. Após 5 anos de doença, a resposta da epinefrina, principal arma de defesa contra a hipoglicemia, mostra- se frequentemente atenuada, sendo seu limiar para liberação mais baixo do que em indivíduos normais, especialmente após uma hipoglicemia prévia. Os mecanismos contrarreguladores em pessoas saudáveis são desencadeados de modo bastante reprodutível: ■Glicemia < 85 mg/dℓ, redução da secreção de insulina ■Glicemia < 70 mg/dℓ, aumento dos hormônios contrarreguladores ■Glicemia < 54 mg/dℓ, aparecimento dos sintomas autonômicos e neuroglicopênicos ■Glicemia < 50 mg/dℓ, agravamento dos sintomas neuroglicopênicos, com potencial surgimento de disfunção cognitiva, distúrbios de conduta e, nos casos mais graves (glicemia < 35 a 40 mg/dℓ), convulsão, coma e até mesmo morte. Entretanto, esses limiares são dinâmicos e dependentes, sobretudo do controle glicêmico prévio. Assim, diabéticos em mau controle glicêmico e HbA1c elevada percebem sintomas de hipoglicemia quando os níveis glicêmicos são mais altos do que em períodos de bom controle. O oposto é visto em portadores de DM tratados intensivamente que não reconhecem que estão em hipoglicemia até que os valores glicêmicos sejam extremamente baixos, sendo esse fenômeno precipitado ou agravado por episódios prévios de hipoglicemias. FATORES PREDISPONENTES Diversos fatores podem favorecer o aparecimento de hipoglicemia em diabéticos, mas, sem dúvida, o mais frequente é a omissão de refeições, seguida do uso dedoses excessivas de insulina ou hipoglicemiantes orais e da ingestão alcoólica excessiva. Atividade física pode também favorecer o surgimento de hipoglicemias, sobretudo em pacientes tratados com insulina. Entretanto, convém salientar que, muitas vezes, o fator causal da hipoglicemia pode não ser identificável. Diante do surgimento de hipoglicemias frequentes em um diabético tipo 1 que vinha apresentando um controle glicêmico satisfatório, deve-se investigar a possibilidade da coexistência de condições que impliquem menor necessidade diária de insulina, como, por exemplo, hipotireoidismo, doença de Addison, insuficiência renal ou síndrome de má absorção intestinal. Uma rara causa seria o desenvolvimento de um insulinoma. Fatores de risco para hipoglicemia em diabéticos. • Absorção variável ou retardada da insulina por via subcutânea • Contrarregulação defeituosa • Controle glicêmico rígido • Dose excessiva de insulina ou sulfonilureia • Exercícios prolongados ou extenuantes • Fármacos indutores de hipoglicemia • Fármacos que prejudiquem o reconhecimento da hipoglicemia • Hipotireoidismo • Ingestão excessiva de bebidas alcoólicas • Insuficiência renal ou adrenal • Insulinoma (raramente) • Omissão ou atraso de refeição • Síndrome de má absorção • Variável necessidade basal de insulina durante a noite Em pacientes tratados com insulina, hipoglicemias são frequentes durante a atividade física e podem ocorrer durante, logo após ou até mesmo mais tardiamente (no período de 6 a 20 horas ou mais). Essas hipoglicemias podem ser assintomáticas e resultam de maior consumo de glicose muscular, maior absorção de insulina nos locais de aplicação, melhora da sensibilidade insulínica, bem como defeitos na contrarregulação. Hipoglicemias graves são mais frequentes em crianças diabéticas pequenas, em virtude da dificuldade inerente à idade de identificar e combater a hipoglicemia precocemente. Além disso, muitas vezes, elas recusam a alimentação, a despeito de já terem feito uso da dose habitual de insulina. Deve-se ter cuidado especial com hipoglicemias em idosos diabéticos. A interação de muitas medicações, comumente usadas por idosos, associada algumas vezes à dificuldade de aceitação regular da dieta pode predispor mais facilmente às hipoglicemias. Convém também salientar que diabéticos idosos podem ter sintomas atípicos de hipoglicemia ou ser menos sintomáticos do que os mais jovens. Assim, tem-se recomendado um controle glicêmico menos rígido nesses pacientes, nos quais valores de HbA1c < 8% ou mesmo < 8,5% podem ser uma meta aceitável, sobretudo naqueles com déficit cognitivo, padrão alimentar errático (com omissão de refeições), risco cardiovascular aumentado ou doença sistêmica grave. Hipoglicemias graves podem favorecer a ocorrência de taquiarritmias e elevação da pressão arterial. A utilização de análogos de insulina de ação lenta (Glargina, Detemir ou Degludeca) ou ultrarrápida (Lispro, Aspart e Glulisina) tem diminuído bastante o risco de hipoglicemias na prática clínica. Isso se deve ao fato de que eles se associam menos frequentemente à hipoglicemia do que as insulinas NPH ou Regular. Com relação às sulfonilureias, hipoglicemia é mais comum com clorpropamida e glibenclamida, particularmente em pacientes idosos ou nos portadores de insuficiência renal. Essa complicação é menos usual com glimepirida e, sobretudo, com a gliclazida MR (GL-MR). O risco de hipoglicemia grave é significativamente menor com as glinidas (repaglinida e nateglinida) do que com as sulfonilureias, em virtude da ação hipoglicemiante menos potente e menos duradoura. Outras medicações usadas no tratamento do DM2, como metformina, inibidores da alfaglicosidase, glitazonas, inibidores da dipeptidil peptidase 4 (DPP-4), inibidores do SGLT-2 e análogos do peptídeo semelhante ao glucagon 1 (GLP-1), em geral, não provocam hipoglicemia quando usadas como monoterapia, mas podem aumentar o risco dessa complicação se associadas à insulina ou a secretagogos de insulina (particularmente, as sulfonilureias). DIAGNÓSTICO Os sinais e sintomas de hipoglicemia são inespecíficos; por isso, o diagnóstico deve, sempre que possível, ser confirmado por meio de dosagem da glicemia capilar ou plasmática. As manifestações da hipoglicemia podem ser divididas nas resultantes de neuroglicopenia, ou seja, insuficiente concentração de glicose para o funcionamento adequado do sistema nervoso central (SNC), e as consequentes à estimulação do sistema nervoso autônomo. SINAIS E SINTOMAS NEUROGLICOPÊNICOS São variáveis, exteriorizando-se, nos casos mais leves, por tonturas, cefaleia, parestesias, confusão mental e/ou distúrbios do comportamento. Nos casos mais graves, podem surgir convulsões, torpor e coma, o qual, raramente, pode ser fatal. Plena recuperação do SNC nem sempre ocorre se o tratamento for tardio. Uma rara complicação de comas hipoglicêmicos de repetição é a hidrocefalia. SINAIS E SINTOMAS DE HIPERATIVIDADE AUTONÔMICA Podem ser adrenérgicos (taquicardia, palpitações, sudorese, tremores etc.) e parassimpáticos (náuseas, vômitos ou, mais comumente, sensação de fome). São os sintomas adrenérgicos que normalmente alertam o paciente para a ocorrência de hipoglicemia. Com exceção da sudorese, a maioria dos sintomas simpáticos é mascarada pelos betabloqueadores, que, assim, devem ser usados com muita cautela em diabéticos tratados com insulina. COMPLICAÇÕES CARDIOVASCULARES Hipoglicemias graves podem resultar em isquemia miocárdica recorrente, prolongamento do intervalo QT e arritmias ventriculares. Além disso, a hipoglicemia inibe processos metabólicos miocárdicos e induz apoptose nos cardiomiócitos. Elevação da pressão arterial é uma complicação adicional da hipoglicemia. HIPOGLICEMIA NOTURNA Hipoglicemia durante o sono é um dos principais temores dos pacientes submetidos à insulinoterapia. Pode ser assintomática ou se manifestar por pesadelos frequentes, sudorese noturna, cefaleia matinal ou, nos casos mais graves, coma. Sintomas e sinais de hipoglicemia. Autonômicos • Tremor, sudorese (pele fria e úmida), palpitações/taquicardia, sensação de fome, palidez, náuseas/vômitos Neuroglicopênicos • Hipoglicemia leve a moderada ∘ Tontura, fraqueza, distúrbios visuais, confusão mental, cefaleia, parestesias, distúrbios de comportamento • Hipoglicemia grave ∘ Convulsões, coma, dilatação pupilar, torpor, hemiplegia, postura de descorticação HIPOGLICEMIA SEM SINAIS DE ALARME A ocorrência de hipoglicemia sem sinais de alarme foi descrita há mais de 50 anos em pacientes com DM1 e também em portadores de insulinoma. Esses pacientes toleram concentrações glicêmicas extremamente baixas sem apresentar os sintomas de alarme que tornam possível o reconhecimento do episódio hipoglicêmico. Em uma forma mais perigosa, os pacientes desenvolvem neuroglicopenia grave sem nenhum sinal de alerta adrenérgico, fazendo com que fiquem sem condições de ingerir algum alimento ou pedir ajuda a terceiros, o que pode culminar em frequentes episódios de coma ou crises convulsivas. Esse fenômeno geralmente resulta de insuficiência autonômica, caracterizada por diminuição na resposta do sistema nervoso simpático e adrenomedular, o que ocasiona a redução dos sintomas neurogênicos que evidenciariam a neuroglicopenia. Pode acontecer em muitos pacientes tratados com insulina, sobretudo os diabéticos tipo 1. De fato, até 50% deles podem apresentar o problema, seja em função de uma deficiente liberação de hormônios contrarreguladores, seja por estarem submetidos a um controle muito rígido do diabetes. TRATAMENTO O melhor tratamento da hipoglicemia é sua prevenção. Os pacientes devem ser orientados a reconhecer os sinais hipoglicêmicos de alerta, assim comoevitar atitudes que possam predispor a hipoglicemia (omitir refeições, ingerir bebidas alcoólicas em excesso, praticar exercícios em jejum etc.). Ademais, a insulina não deve ser aplicada em um local que será muito trabalhado durante a atividade física (p. ex., nas coxas, em um paciente que for correr ou pedalar), devido ao aumento da absorção da insulina a partir do tecido celular subcutâneo. Os diabéticos, sobretudo os em uso de insulina, devem carregar consigo algum tipo de identificação (p. ex., cartão ou bracelete), com nome, diagnóstico, medicação utilizada, telefone de contato, além do nome e telefone do médico. O uso de tatuagens é uma opção que tem sido vista com frequência crescente. Essas condutas poderão ser de muita utilidade, por exemplo, se o paciente apresentar uma hipoglicemia grave e for levado torporoso ou em coma a um serviço de emergência por pessoas que desconheçam o diagnóstico e/ou o tratamento a que ele está sendo submetido. PACIENTES CONSCIENTES Pacientes com sintomas de hipoglicemia e capazes de engolir devem ingerir 15 g de carboidrato de absorção rápida (p. ex., uma colher das de sopa de açúcar ou 30 mℓ de soro glicosado a 50% diluído em água filtrada). A glicemia capilar deve ser avaliada após 15 minutos; se não houver reversão da hipoglicemia, recomenda-se repetir o processo. PACIENTES TORPOROSOS OU EM ESTADO DE COMA Nessa situação, está contraindicada a administração de alimentos VO, devido ao risco de aspiração traqueobrônquica. Havendo um acesso venoso disponível, deve-se administrar 3 ampolas (30 mℓ) de glicose a 50%, diluídas em 100 mℓ de SF 0,9% por via IV. Reavaliar a glicemia capilar em 5 minutos e, não havendo recuperação, o procedimento deve ser repetido. Após a correção imediata, é necessário oferecer alimentos, se possível. Na indisponibilidade de acesso venoso, oral, pode-se administrar glucacon por via SC ou intramuscular (IM) e instalar o acesso venoso periférico.113 Em casos de necessidade de glicose hipertônica IV, a quantidade de ampolas de glicose a 50% a ser administrada pode ser calculada usando a fórmula: (100 – glicemia) × 0,4.113 Por exemplo, se a glicemia estiver em 50 mg/dℓ, administram-se 2 ampolas. Em ambiente extra-hospitalar, um familiar ou amigo pode aplicar glucagon IM ou SC (1 mg para adultos e 0,5 mg para crianças), que, em geral, restaura a consciência ao paciente dentro de 15 minutos. Náuseas e, mais raramente, vômitos são os principais efeitos colaterais desse tratamento. Outra opção mais atraente, em virtude de maior facilidade e rapidez de aplicação, é o glucagon nasal (Baqsimi®), ainda não disponível no Brasil em 2020. Recuperação plena da consciência habitualmente ocorre dentro de 15 minutos. Uma vez consciente, o paciente deverá ingerir um alimento que contenha açúcar. Se o glucagon não estiver disponível, pequenas quantidades de mel, xarope ou glicose em gel podem ser esfregadas na mucosa bucal do paciente, mas o efeito hiperglicemiante é mínimo. HIPOGLICEMIA ASSINTOMÁTICA Pacientes com hipoglicemia assintomática por resposta autonômica defeituosa devem elevar os níveis de glicemia média a serem alcançados, reduzir a dose total diária de insulina, usar esquemas de múltiplas pequenas doses de insulina Regular (ou, de preferência, dos análogos Aspart, Lispro ou Glulisina), aumentar o número de pequenos lanches durante o dia e incrementar a frequência de automonitoramento da glicemia. Esforços devem ser feitos para evitar hipoglicemias durante semanas ou meses, visando à reversão da adaptação do SNC. A troca das insulinas Regular e NPH pelos análogos de insulina de ação ultrarrápida (Aspart, Lispro ou Glulisina) e de ação lenta (Detemir, Glargina ou Degludeca), respectivamente, é bastante útil, visto que eles se acompanham de menor risco de hipoglicemia. O uso de determinados fármacos (p. ex., fluoxetina) pode favorecer o surgimento de hipoglicemias assintomáticas, devendo ser interrompido caso o problema ocorra. Pacientes com hipoglicemias assintomáticas, detectadas pela aferição de glicemia capilar entre 2h e 3h da manhã, devem ser controlados com aumento da quantidade de alimentos ingeridos à hora de deitar e/ou com a redução da dose da insulina noturna. COMA DE CAUSA INDETERMINADA Qualquer diabético em coma, caso não se possa determinar de imediato o valor da glicemia, deverá ser medicado com duas ampolas de glicose a 50% IV (após a coleta de material para dosagem da glicemia). Se houver hipoglicemia, a rápida recuperação da consciência é a regra; se for coma hiperglicêmico, não haverá prejuízos maiores para o paciente. HIPOGLICEMIA GRAVE INDUZIDA POR FÁRMACOS Se o paciente apresentar hipoglicemia importante ou coma, devido ao uso de sulfonilureia de efeito hipoglicêmico prolongado (clorpropamida ou glibenclamida), ou altas doses de insulina de ação longa ou intermediária, deverá ser hospitalizado para tratamento com infusão contínua de glicose e cuidadoso monitoramento da glicemia. Em pacientes com insuficiência renal, a hipoglicemia pode ser prolongada, demandando internação hospitalar, reidratação e administração intravenosa de solução de glicose a 100%. HIPOGLICEMIA EM PACIENTE EM USO DE ACARBOSE Nos pacientes em uso de acarbose isolada ou combinada a uma sulfonilureia ou insulina, as hipoglicemias devem ser tratadas com comprimidos de glicose ou glucagon (IM, SC ou intranasal), uma vez que acarbose retarda a absorção de carboidratos. O uso de alimentos contendo açúcar (sacarose) pode não ser útil, uma vez que a absorção intestinal de glicose a partir dos polissacarídeos, oligossacarídeos e dissacarídeos está prejudicada, em virtude da inibição competitiva da alfaglicosidase pela acarbose. CONCLUSÃO Para a prevenção de episódios hipoglicêmicos, é de fundamental importância o automonitoramento para que ajustes terapêuticos possam ser feitos periodicamente, principalmente nos pacientes que fazem uso de sulfonilureias ou insulina. Por outro lado, o reconhecimento precoce dos sinais e sintomas é crucial para que se evitem a morbidade e as complicações psicológicas e psicossociais que a hipoglicemia pode acarretar. Orientação do paciente e de familiares próximos é imprescindível, pois a sua falta poderá interferir na harmonia do núcleo familiar. Entretanto, mesmo com os riscos que a hipoglicemia pode ocasionar, o tratamento intensivo do diabetes deve ser almejado para que se possam evitar as complicações da hiperglicemia a longo prazo.
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