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LETRAS LIBRAS|1 LÍNGUA PORTUGUESA E LIBRAS teorias e práticas 6 LETRAS LIBRAS|2 UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA Reitor RÔMULO SOARES POLARI Vice-Reitora MARIA YARA CAMPOS MATOS Pró-Reitor de Graduação VALDIR BARBOSA BEZERRA Coordenadora do UFPBVIRTUAL RENATA PATRICIA LIMA JERONYMO Diretor do CCHLA ARIOSVALDO DA SILVA DINIZ Chefe do Departamento de Letras Clássicas Vernáculas MÔNICA MANO TRINDADE Diretor da Editora Universitária JOSÉ LUIZ DA SILVA CURSO DE LICENCIATURA EM LETRAS LIBRAS VIRTUAL Coordenadora EVANGELINA MARIA BRITO DE FARIA Vice-Coordenadora MARIA CRISTINA DE ASSIS L755 UFPB/BC Língua portuguesa e LIBRAS: teorias e práticas 5 / Evangelina Maria Brito de Faria, Maria Cristina de Assis (organizadoras). - João Pessoa: Editora da UFPB, 2012. 305 p.: Il. ISBN: 978-85-7745-977-3 1. Língua portuguesa – teoria e prática. 2. Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) – teoria e prática. 3. LIBRAS – didática. I. Faria, Evangelina Maria Brito de. II. Assis, Maria Cristina de. 2. CDU : 806.90 Os artigos e suas revisões são de responsabilidade dos autores. Direitos desta edição reservados à: EDITORA UNIVERSITÁRIA/UFPB Caixa Postal 5081 – Cidade Universitária – João Pessoa – Paraíba – Brasil CEP: 58.051 – 970 - www.editora.ufpb.br Impresso no Brasil Printed in Brazil Foi feito depósito legal LETRAS LIBRAS|3 LÍNGUA PORTUGUESA E LIBRAS teorias e práticas 6 Evangelina Maria Brito de Faria Maria Cristina de Assis Organizadoras Editora da UFPB João Pessoa 2012 LETRAS LIBRAS|4 © Copyright by CURSO DE LICENCIATURA EM LETRAS LIBRAS VIRTUAL, 2012 CURSO DE LICENCIATURA EM LETRAS LIBRAS VIRTUAL Coordenadora EVANGELINA MARIA BRITO DE FARIA Vice-coordenadora MARIA CRISTINA DE ASSIS Projeto gráfico e editoração eletrônica DAVID FERNANDES MÔNICA CÂMARA LETRAS LIBRAS|5 APRESENTAÇÃO ............................................................................................................................................... 07 AQUISIÇÃO DA LINGUAGEM ........................................................................................................................... 09 LITERATURA POPULAR ..................................................................................................................................... 47 LIBRAS V ........................................................................................................................................................... 97 ESTÁGIO SUPERVISIONADO II ....................................................................................................................... 129 ESCRITA DE SINAIS III ..................................................................................................................................... 181 LEITURA E PRODUÇÃO DE TEXTO II ............................................................................................................... 227 SUMÁRIO LETRAS LIBRAS|6 LETRAS LIBRAS|7 Evangelina Faria e Maria Cristina de Assis Caro (a) aluno(a) Neste sexto semestre do Curso de Letras/LIBRAS Virtual, serão ministradas as disciplinas: Aquisição de linguagem, Literatura Popular, Libras IV, Estágio Supervisionado II, Escrita de Sinais III e Leitura e Produção de Texto II. Em Aquisição de linguagem, você estudar um fenômeno muito próximo de todos nós: aquisição de linguagem. Todos nós aprendemos a falar ou a sinalizar desde muito cedo. Como adquirimos essa capacidade? Onde se situa essa capacidade? Para responder esses e outros questionamentos, o curso iniciará a temática pela história desse campo, mostrando as teorias que dão suporte às discussões presentes na aquisição. O curso está dividido em cinco tópicos: 1) Campo e natureza da aquisição de linguagem; 2) Teorias da aquisição; 3) Aquisição da fala: uma síntese do percurso; 4) Aquisição de escrita: um pouco de história e 5) Aquisição de segunda língua. Em Literatura Popular, você vai conhecer a contribuição dessa disciplina para a consolidação de um novo paradigma no campo literário. Você verá a Literatura Popular em seus diálogos harmoniosos com o cânone, em seus gêneros mais vívidos, em suas facetas mais corriqueiras, em suas metamorfoses e em suas múltiplas funções sociais. Os Estudos em Literatura Popular, no âmbito dos Cursos de Letras, constituem marcas de uma grande conquista acadêmica, pedagógica e, sobretudo, social. Há alguns anos, o texto clássico e o erudito reinavam, imponentes, nos ambientes de aprendizagem. Hoje, os Currículos cedem, ainda que de forma tímida, espaço para a arte sem erudição, elaborada e transformada por uma gente (in)comum, capaz de imaginar as mais belas histórias e delinear os mais belos versos. A obra popular liberta-se de muitos preconceitos e chega, com vigor, às Universidades. APRESENTAÇÃO LETRAS LIBRAS|8 Em Libras V, você vai aprofundar o conhecimento de Semântica e Pragmática. No semestre passado você estudou a Semântica e Pragmática de uma forma mais geral, neste semestre estaremos juntos tecendo alguns comentários sobre a Semântica e Pragmática da Língua Brasileira de Sinais, tomando por base a afirmação de que a semântica é o estudo do significado linguístico e, não obstante a pragmática também o seja, deve-se lembrar que esta trata especialmente do uso linguístico no contexto diário. A disciplina está dividida em três unidades. Na Unidade I, será discutido o objeto de estudo da Semântica e da Pragmática; na Unidade II, será abordada a estrutura semântica da Língua Brasileira de Sinais; e, na Unidade III, serão discutidas as relações entre a linguagem e a pragmática, ou seja, as relações da linguagem no uso. Em Estágio Supervisionado II, você terá uma continuidade das avaliações e observações do processo de ensino-aprendizagem da Língua Brasileira de Sinais, permanecendo com os estudos da relação entre teoria e prática, nesse momento com ênfase voltada para o Ensino Médio. A disciplina vai priorizar o caráter cultural e sociológico, em busca do contexto em que a língua está inserida, através da ênfase nas atividades discursivas e no trabalho com os gêneros textuais e as sequências didáticas Em Escrita de Sinais III, você vai aprofundar a caminhada. Será uma revisão com textos maiores e em diversos gêneros. Esperemos que, nesse terceiro semestre, os obstáculos sejam superados e você se torne proficiente nessa escrita. Finalmente em Leitura e Produção Textual II, a meta é inserir você, aluno do Letras Libras, no contexto de identificação e produção dos diversos gêneros textuais. Para o aluno ouvinte, a disciplina deve ajudar a refletir sobre o seu fazer pedagógico, suas ações na futura sala de aula com outros alunos surdos e ouvintes. Para o aluno surdo, o objetivo é auxiliar na produção de textos com melhor fluência em L2, ou seja, em Língua Portuguesa. Sabendo das dificuldades de todos com a escrita do português e, principalmente da escrita do surdo, o curso iniciará pelos textos mais simples para os mais elaborados, na tentativa de melhorar a produção textual de todos, sejam usuários de L1 ou de L2. Bom estudo! As organizadoras LETRAS LIBRAS|9 AQUISIÇÃO DA LINGUAGEM LETRAS LIBRAS|10 LETRAS LIBRAS|11 AQUISIÇÃO DA LINGUAGEM Evangelina Maria Brito de Faria Todas as maiores realizações da mente vão muito além do poder de um indivíduo só. PierceCaros alunos, Nessa disciplina, vamos estudar um fenômeno muito próximo de todos nós: aquisição de linguagem. Todos nós aprendemos a falar ou a sinalizar desde muito cedo. Como adquirimos essa capacidade? Onde se situa essa capacidade? A linguagem é uma dotação genética? Possui bases biológicas? A linguagem, assim como outros elementos culturais, é uma instituição humana que foi se desenvolvendo historicamente a partir de relações e atividades sociocomunicativas? Como se vê, são muitos questionamentos sobre os quais precisamos discutir. Não teremos respostas para tudo, nem essa é nossa intenção. Essa disciplina quer apenas colocar no centro questões pertinentes que gravitam em torno da aquisição. Para iniciar, vamos ver os interesses dessa área de estudo. Em termos gerais, o campo da aquisição procura compreender: 1- aquisição da língua materna, tanto normal quanto com desvios, recobrindo os componentes tradicionais: fonologia, morfologia, sintaxe, semântica, pragmática, discursivo; 2- aquisição da escrita, letramento, processos de alfabetização, relação entre fala e escrita, relação entre sujeito e a escrita; 3- aquisição de 2 ª língua. LETRAS LIBRAS|12 De um modo geral, situaremos, em nosso curso, a aquisição nessas práticas elencadas. Iniciaremos pela história desse campo, mostrando as teorias que dão suporte às discussões presentes na aquisição. O curso está dividido em cinco tópicos: 1) Campo e natureza da aquisição de linguagem; 2) Teorias da aquisição; 3) Aquisição da fala: uma síntese do percurso; 4) Aquisição de escrita: um pouco de história e 5) Aquisição de segunda língua. Esperamos construir um diálogo proveitoso em torno do tema aquisição. 1. Campo e natureza da aquisição de linguagem. A aquisição da linguagem sempre despertou o interesse de leigos e estudiosos desde sempre. Isso se deve por dois motivos: primeiro, porque o estudo da aquisição pode esclarecer muito sobre o desenvolvimento da criança; segundo, porque a linguagem produz um efeito nas relações da criança com o mundo e consigo mesma. A aquisição está inserida na área da psicolinguística que teve origem na junção de dois campos de estudos: psicologia e linguística. Para iniciar nosso percurso, podemos nos perguntar: Como surgiu a preocupação com a aquisição no campo da Linguística e no da Psicologia? Comecemos pela Linguística. Vocês viram, em semestres anteriores, que o Estruturalismo apresenta-se como uma corrente teórica da linguística baseada nos princípios do Curso de Linguística Geral (1916) de Ferdinand de Saussure, que se desenvolveu na Europa e nos Estados Unidos da América, a partir dos anos 30 do século XX. Essa corrente tem como pressupostos noções de estrutura /sistema e autonomia de língua. Em relação à aquisição, vamos estudar, na Europa, Saussure e, posteriormente, numa vertente funcional desse estruturalismo, Jakobson e Martinet e, na América, Sapir, Bloomfield e Chomsky. Nessa perspectiva, a língua, enquanto forma, é estudada em suas propriedades estruturais autônomas. É vista como um código e sua análise desenvolve-se na imanência do objeto. imanente- Que existe sempre em um dado objeto e inseparável dele: (Aurélio). Isso significa que a língua basta a si mesma. LETRAS LIBRAS|13 Encontramos em Saussure o seguinte trecho, “ …Por outro lado, o indivíduo tem necessidade de uma aprendizagem para conhecer-lhe o funcionamento; somente pouco a pouco a criança a assimila. (2002,p.33). Em outra passagem afirma: “ ... é ouvindo os outros que aprendemos a língua materna; ela se deposita em nosso cérebro somente após inúmeras experiências”. (2002, p.27). Isso nos faz ver uma concepção de que língua é aprendida e assimilada pela criança junto a comunidade. Silva (2009) mostra que essas ideias de Saussure influenciaram Jakobson nas explicações sobre o processo da aquisição da linguagem. Ele fundou o Círculo de Praga em 1920 e aplicou os princípios de Saussure ao estudo dos sons. Em seus estudos, viu que, na maioria das línguas estudadas, as crianças apresentavam uma linguagem com características diferentes da dos adultos. Em síntese, percebeu: Silva (2009) mostra ainda que Jakobson ressaltou que: a criança passa do monólogo espontâneo do balbucio para uma aparente conversação, em que aprende a reconhecer os fenômenos fônicos que ouve e emite; os pronomes pessoais são aquisições mais tardias e as primeiras perdas na afasiae e, em relação às funções, aprende primeiro a fática. a existência de uma sucessão cronológica da aquisição (sistema consonantal e vocálico) balbucio com articulações não encontardas em uma única língua o desaparecimento de valores distintivos que não pertencem à comunidade. oposições raras como últimas aquisições e as primeiras são as oposições consoante/ vogal, seguidas das reduplicações de sílabas. Em sua teoria sobre as funções, Jakobson retoma o esquema do Psicólogo alemão Bühler: função representativa ( do mundo), apelativa (do locutor) e expressiva (do destinatário), nomeando-as respectivamente como referencial, emotiva e conativa e acresce mais três: a metalinguística (do código), a poética (da mensagem) e a fática ( do contato). LETRAS LIBRAS|14 Outro seguidor de Saussure é Martinet, que dirige sua atenção para as possibilidades que a língua oferece. Segundo Silva (2009), Martinet observa que a aquisição da língua pela criança apresenta analogias com os estados sucessivos de evolução das línguas. Nesse aspecto, o estudo da fala infantil revela traços visíveis dos aspectos sincrônicos e diacrônicos da língua. Na história de uma língua, observa-se um sistema dado em funcionamento encaminhando-se para um outro sistema suposto, em que se reconstitui o sistema passado a partir do sistema atual conhecido. A diferença é que, na língua da criança, não se passa de um sistema a outro, mas de um não-sistema para resultar na constituição do sistema adulto. Uma outra diferença é o fato de as modificações sucessivas na fala das crianças terem como objetivo a aproximação da fala do adulto. Em Silva (2009), a língua para Martinet é um sistema de comunicação expresso fonicamente por meio de signo. Para ele, a criança percorre etapas para utilizar a língua: pré- linguística (fase em que a criança não diferencia a fala da mímica e do gesto); e linguística pela dupla articulação. No início, na linguagem infantil não existe uma hierarquia de unidades linguísticas, pois todas se equivalem (enunciado = palavra = morfema = fonema). Posteriormente, descobre a segunda articulação e passa a perceber os significantes. De posse dos significantes, assimila a primeira articulação. Assim, para Martinet, a aquisição dá-se numa sequência: etapa pré-linguística, aquisição da segunda articulação, aquisição da primeira articulação e aquisição do léxico. Ressalta ainda o papel da ambiente na aquisição. Aqui se faz necessário relembrar a dupla articulação estudada em morfologia. 1 articulação • O primeiro plano é constituído por unidades dotadas de sentido e a menor dessas unidades chama-se morfema. Nessa primeira articulação da linguagem as unidades são compostas de matéria fônica e sentido, ou seja: significado e significante. 2 articulação • No segundo plano, pode-se dividir os morfemas em unidades ainda menores e, nessa etapa, as unidades ficam desprovidas de sentido passando a serem chamadas de fonemas. Essa é a segunda articulação da língua, nesse plano da linguagem, as unidades possuem apenas valor distintivo, já que com a mudança de fonemas podemos formar palavras diferentes. LETRAS LIBRAS|15 A dupla articulação é um fator de economia linguística, pois com poucas dezenas de fonemas, formam-se diversas unidades de primeira articulação. Se o ser humano produzisse um som diferente para cada expressão, teriauma enorme sobrecarga de memória, fora que o aparelho fonador não teria capacidade de emissão de tantos sons diferentes nem o ouvido conseguiria captar tamanha carga de produção fônica. Passemos agora para os representantes da Linguística na América Os estudos lingüísticos na América do Norte se desenvolveram ligada à Antropologia, preocupados com a descrição das línguas indígenas não registradas. Bloomfield, seguindo as idéias de Sapir, torna-se um dos lingüistas mais importantes da primeira metade do século XX. Sapir e Bloomfield defendem a fala como uma função adquirida e o processo de aprendizagem é explicado em termos de hábitos discursivos, conforme as noções de estímulo e resposta. Sapir, na obra Linguagem (apud Silva 2009, p.51), afirma: Andar é, portanto, uma atividade geral, que só varia num limite muito preciso à medida que passamos de um indivíduo ao outro. É uma variação involuntária e sem significação. Falar é uma atividade humana que varia, sem limites previstos, à medida que passamos de um grupo social a outro, porque é uma herança puramente histórica do grupo, produto de um uso social prolongado. [...] falar é uma função não instintiva, uma função adquirida cultural. Para Sapir, o falar incorpora as tradições de uma sociedade. Não se fala do mesmo jeito, isso está profundamente ligado ao país, à região onde se nasce. Nessa perspectiva estruturalista, a aquisição está ligada à apreensão de uma estrutura apresentada pelos membros de sua comunidade linguística. Nesse ponto de vista, a criança adquire sua língua praticando-a, experienciando-a. Vejam que até aqui os estudos apontam para uma aquisição junto à comunidade. Com Chomsky, em 1950, os estudos linguísticos dão uma guinada e passam a ver a aquisição da linguagem como uma peça de constituição biológica do nosso cérebro. Com Chomsky, a aquisição, antes apenas tematizada nos trabalhos estruturalistas, agora está no centro da reflexão linguística, porque faz parte do programa da investigação da gramática gerativa. Tal fato parece contribuir para a autonomia do campo aquisição da linguagem. (Discutiremos essa teoria posteriormente) LETRAS LIBRAS|16 Passemos agora o olhar para a Psicologia. Nesse âmbito, vamos dividi-lo em psicolinguística e Psicologia do desenvolvimento. Segundo Silva (2009), na Psicolinguística, dois momentos marcam, nos anos 50, a relação com a linguística. Um primeiro com Osgood e Sebeok, com ênfase no estruturalismo e o segundo com Chomsky com ênfase no inatismo. Nesse primeiro momento em 1954, temos a junção da linguística (estruturalismo) com a psicologia, que se faz representar pelas teorias psicológicas do aprendizado e a teoria da informação. Nessa perspectiva, o objetivo era o estudo dos processos de codificação e decodificação, considerando as características dos sujeitos que trocam mensagens. Nessa fase, a linguagem é vista através de uma teoria da aprendizagem, sem focar o interesse na aquisição, que é considerada como aprendizagem de hábitos. Sustenta essa visão a corrente empirista. No segundo, em 1957, a perspectiva gerativa apresentada por Chomsky ganhou destaque rapidamente. Essa nova visão de língua suscitou uma transformação na Psicolinguística fazendo com que adeptos do primeiro momento aceitassem as teorias chomskyanas. Aqui, o objetivo era a construção de um modelo de competência (conhecimento gramatical implícito do falante), para depois estudar o modelo de performance (comportamento verbal explícito). De posse desse modelo, os psicólogos deveriam, segundo Silva (2009), estudar o modo como essa competência Só para recordar: •Saussure: a língua é um produto social da faculdade da linguagem e um conjunto de convenções necessárias adotadas pelo corpo social para permitir o exercício dessa faculdade nos indivíduos. •Chomsky: a linguagem não é um artefato cultural que aprendemos […]é uma peça de constituição biológica do nosso cérebro. Filos. Doutrina ou atitude que admite, quanto à origem do conhecimento, que este provenha unicamente da experiência, seja negando a existência de princípios puramente racionais, seja negando que tais princípios, existentes embora, possam, independentemente da experiência, levar ao conhecimento da verdade. [Opõe-se a racionalismo] Aurélio LETRAS LIBRAS|17 funcionava sob a influência da memória, da percepção, etc. Por a linguagem ser considerada parte de um componente biológico, essa perspectiva revolucionou o campo da psicolinguística. Sustenta essa visão a corrente racionalista. Junto a essas vertentes, há a psicologia do desenvolvimento e nela destacam-se dois pesquisadores Piaget e Vygotsky, que passam a tratar o sujeito da aquisição em suas dimensões cognitivas e sociais. Com Piaget, a criança necessita de um sistema de ações interiorizadas, com isso, um dos pré-requisitos para a aquisição da linguagem é a representação simbólica. O mecanismo responsável pela aquisição da linguagem é responsável também por outras capacidades cognitivas. A aquisição da linguagem depende do desenvolvimento da inteligência da criança. Para Piaget, a criança constrói o conhecimento com base na experiência com o mundo físico, isto é, a fonte do conhecimento está na ação sobre o ambiente . O percurso se dá da fala egocêntrica para fala social, isto é, do individual para o social. Com ele, tem-se o sujeito cognitivo. Piaget propõe que o desenvolvimento cognitivo passa por períodos: sensório-motor (zero a dezoito meses), pré-operatório (dois a sete anos), operações concretas (sete a doze anos) e operações formais. Os estágios são universais e, em cada um, a criança desenvolve a capacidade necessária para o estágio seguinte, provocando mudanças no desenvolvimento. No período sensório-motor, estão os exercícios reflexos, os primeiros hábitos, a coordenação entre visão e a busca de objetos desaparecidos. O período pré-operatório é marcado pela função simbólica e pelas organizações representativas. Uma crítica que se faz a Piaget é que ele subestimou o papel social e das outras pessoas no desenvolvimento da criança. Com Vygotsky, ganha destaque a importância do outro para a apropriação da linguagem, nesse sentido a mediação homem ambiente ocorre pelo uso de sistemas de signos, que são construídos no curso da história e nos contextos culturais. Aqui o grande papel é o da interação. Filos. Doutrina que admite, quanto à origem do conhecimento, que este, em última instância, é determinado por princípios racionais, inatos ou a priori, ainda que se possa condicionar a validade do uso desses princípios à disponibilidade de dados empíricos. [Opõe-se, nesta acepç., a empirismo] Aurélio LETRAS LIBRAS|18 Para Vygotsky, segundo Scarpa (2011), aquisição é processo pelo qual a criança se firma como sujeito da linguagem (não passivo) e pelo qual constrói seu conhecimento de mundo pelo outro. Vygotsky explica o desenvolvimento da linguagem (e do pensamento) como tendo origem social, externa, nas trocas comunicativas entre crianças e adulto. Tais estruturas construídas socialmente sofreriam (2 anos ) um movimento de interiorização e de representação mental do que antes era social e externalizado. Também propõe quatro estágios de desenvolvimento das operações mentais (aí incluídas as operações responsáveis pelo desenvolvimento da fala): 1-natural ou primitivo - que corresponde à fala pré-intelectual e ao pensamento pré-verbal; 2- psicologia ingênua -a criança experimenta as propriedades físicas tanto de seu corpo quanto dos objetos e aplica esta experiência ao uso de instrumentos – inteligência prática; 3- signos exteriores -as operações externas são usadas para auxiliar as operações internas, neste estágio ocorre a fala egocêntrica; 4- o crescimento interior- em que as operações externasse interiorizam. O objetivo é compreender a relação entre pensamento e linguagem como processo dinâmico no sujeito. Com Vygotsky tem-se o sujeito sócio-histórico. Após esse percurso, segundo Silva (2009), podemos sintetizar a trajetória dessas disciplinas em relação à aquisição de linguagem da seguinte maneira: Agora que vimos o percurso, vamos aprofundar o conhecimento de algumas teorias da aquisição. •Fazer teórico ligado à busca de explicação das regularidades e das sistematicidades da língua na fala a criança Linguística •Fazer teórico ligado à busca de articulação de saberes da Psicologia e da Linguística, com o propósito de explicar a relação da criança com a língua Psicolinguística •Fazer teórico ligado à busca de explicação da aquisição do conhecimento (língua objeto de conhecimento) pelo sujeito (cognitivo ou histórico-social), através de sua atividade com o meio e com o outro Psicologia do desenvolvimento LETRAS LIBRAS|19 2.Teorias da aquisição Como vimos, são várias as teorias que procuram explicar a aquisição. Por uma questão de praticidade, vamos discutir as duas que mais se destacam nos Cursos de Letras: Inatismo e Sociointeracionismo. 2.1 Inatista Noam Chomsky A capacidade das crianças de formar frases faladas ou gestuais desde muito cedo é extraordinária. Em todas as partes do mundo, apesar das diferenças das línguas, as crianças aprendem a falar e apresentam as mesmas fases. Outro aspecto interessante é a facilidade para aprender uma língua enquanto criança, no entanto poucos ou nenhum serão os sistemas complexos de conhecimentos que são adquiridos mais facilmente aos três anos do que aos vinte. Esses são alguns indícios que levaram ao desenvolvimento da hipótese inatista. Chomsky (1957), diante dessas evidências e de outras, assume uma postura inatista, isto é, para ele a linguagem é uma dotação genética e não um conjunto de comportamentos verbais e é adquirida como resultado do desencadear de um dispositivo inato, inscrito na mente. A linguagem tem bases biológicas, é uma peça de constituição biológica do cérebro, por isso cognitivistas descreveram como faculdade psicológica, órgão mental, sistema neural ou módulo computacional. Segundo essa concepção, o ser humano já nasce dotado de uma variedade de conhecimentos linguísticos. Ganha destaque nessa perspectiva a importância do organismo, a dotação genética. A faculdade de linguagem é vista como um órgão. Essa corrente investiga as LETRAS LIBRAS|20 propriedades desse órgão como representações mentais, vê um estado mental inicial, um dispositivo de aquisição de língua, que toma a experiência como dado de entrada - input linguístico - e constrói um estado mental estável, isto é, uma língua particular, como dado de saída - output linguístico. ( Chomsky, 1998). Essa teoria coloca a linguagem num domínio cognitivo e biológico e defende a existência de um substrato neuro-anatômico, no cérebro, para o sistema da linguagem. Desse ponto de vista, todos os indivíduos nascem com predisposição para a aquisição da fala. Nesse caso, o que se deduz é a existência de uma estrutura linguística latente responsável pelos traços gerais da gramática universal (universais lingüísticos). De acordo com a hipótese internalista, a habilidade de usar uma língua é uma competência determinada geneticamente; com essa competência, o falante produz enunciados, que são o desempenho desse falante. Os estudos internalistas da linguagem inserem-se no âmbito da psicologia cognitiva e da ciência da cognição. A exposição a um ambiente linguístico é necessária para ativar a estrutura latente e para que a pessoa possa sintetizar e recriar os mecanismos lingüísticos. Segundo a sua teoria de Princípios e Parâmetros, a gramática universal é formada por princípios, leis invariantes, que se aplicam da mesma forma em todas as línguas, e parâmetros, leis cujos valores variam entre as línguas e dão origem tanto à diferença entre as línguas quanto à mudança numa mesma língua. Para os estudiosos dessa linha, existem as categorias lexicais, que são os verbos, substantivos, adjetivos, e existem as categorias funcionais, que são os pronomes, conjunções, preposições, advérbios, além das categorias gramaticais de gênero, caos, pessoa, número etc. Chomsky com suas idéias faz uma renovação na ciência cognitiva e na ciência da linguagem. Segundo Pinker (2002), a universalidade da língua e sua aquisição é a primeira razão para suspeitar que a linguagem não é apenas uma invenção cultural, mas o produto de um instinto humano específico. ( Veremos as fases no próximo capítulo) Corroborando com essa posição, estudiosos do Projeto Genoma Humano da Universidade de Oxford (KENEDY, E. 2008) revelaram que o FOXP2 é um dos 70 genes diferentes que compõem o cromossomo 7, responsável por controlar a capacidade linguística humana. Esse gene possui 2.500 unidades de DNA e, após pesquisas, descobriram que só uma unidade desse gene apresentou problemas na genética da família K.E., que tem dificuldade em conjugação verbal, em referenciação dos pronomes e em orações subordinadas. Em seus estudos, os estudiosos LETRAS LIBRAS|21 encontraram outro jovem inglês que apresentava o mesmo problema de linguagem da família K E. Os exames comprovaram a mesma deficiência em um dos genes do FOXP2. Com esses dados, o geneticista anunciou o que pode ser a descoberta do primeiro gene responsável pela genética da linguagem. Com essa informações, Passemos para a outra teoria 2.2 Sociointeracionista: Tomasello Tomasello, em seu livro Origens Culturais da aquisição do conhecimento humano (2003), defende que a linguagem, assim como outros elementos culturais, é uma instituição humana que foi se desenvolvendo historicamente a partir de relações e atividades sociocomunicativas. O autor usa muitos recursos em defesa de sua ideia, uma delas é a comparação com o conceito do dinheiro. Para o autor, o dinheiro é uma instituição social simbolicamente incorporada que surgiu historicamente de atividades econômicas, do mesmo modo a linguagem é uma instituição social simbolicamente incorporada que surgiu historicamente de atividades sociocomunicativas preexistentes. As mudanças que ocorreram no homo sapiens foram consequências da transmissão social ou cultural, que funciona em escalas de tempo de magnitudes bem mais rápidas do que as da Gene- Unidade hereditária ou genética, situada no cromossomo, e que determina as características de um indivíduo. (Aurélio) LETRAS LIBRAS|22 evolução e essa ideia tem como base evidências irrefutáveis de que os seres humanos têm modos de transmissão cultural únicos da espécie. O autor defende a hipótese de que a cognição humana tem as qualidades únicas da espécie por que: • Filogeneticamente: os seres humanos modernos desenvolveram a capacidade de “identificar-se” com co-específicos, o que levou a uma compreensão deles como seres intencionais e mentais, iguais a eles mesmos. • Historicamente: isso permitiu novas formas de aprendizagem cultural e sociogênese, que levou a artefatos culturais e tradições comportamentais que acumularam modificações ao longo do tempo histórico. Das origens da cultura humana, Tomasello direciona o olhar para a linguagem e discute aspectos ontogenéticos, que são: Atividades comunicativas não linguísticas e Atividades de atenção conjunta. A aquisição de língua requer um trabalho de atenção conjunta, isto é, que a criança seja capaz de compreender os diferentes papeis que falante e ouvinte estão desempenhando. Dentre as várias consequências da aquisição de uma língua, a mais importante é a conquista de uma forma radicalmente nova de representação cognitiva que transforma a maneira como a criança vê o mundo. Para o autor, as representaçõessimbólicas, que são adquiridas, são de duas categorias: intersubjetivas em que um símbolo é socialmente compartilhado com outras pessoas; por exemplo, você diz “bola” e a pessoa sabe a que objeto você está se referindo. perspectivas em que cada símbolo apreende uma maneira particular de ver algum fenômeno (categorização), modos alternativos de ver as coisas e de falar sobre elas. Filogenia- história evolucionária das espécies; filogênese. (Aurélio) Ontogenia- Biol. Desenvolvimento do indivíduo desde a fecundação até a maturidade para a reprodução; ontogênese. [Aurélio] LETRAS LIBRAS|23 Por exemplo, em diferentes situações de comunicação, um mesmo objeto pode ser interpretado como um cachorro, um animal, um bichinho de estimação, ou uma praga; um mesmo acontecimento pode ser interpretado como correr, mover-se, fugir, ou de sobrevivência ; um mesmo lugar pode ser interpretado como o litoral, a costa, a praia ou a areia, tudo dependendo dos objetivos comunicativos do falante. À medida que a criança domina os símbolos linguísticos de sua cultura, ela adquire a capacidade de adotar múltiplas perspectivas de uma mesma situação. O ponto central é que os símbolos linguísticos acionam muitas maneiras de interpretar o mundo que se acumularam numa cultura ao longo do tempo histórico. A aquisição da linguagem para Tomasello tem por suporte duas bases: a sociocognitiva e a sociointerativa. Antes de falar sobre cada uma delas é importante perceber que ambas se dão no social. Iniciemos pela sociocognitiva. A criança nasce propensa à adaptação para a cultura e esse aspecto é percebido entre os 9 e 12 meses, quando dá sinais de compreender o outro. Duas ideias decorrentes da adaptação: essa habilidade emerge na interação e a leva a perceber a intenção comunicativa. Porém, para que isso ocorra, entra em jogo um elemento importantíssimo da teoria de Tomasello: as cenas de atenção conjunta, pois a compreensão só pode ocorrer numa atenção conjunta. Suas premissas são: Cenas de atenção conjunta como fundamentação sociocognitiva da aquisição da linguagem; A compreensão das intenções comunicativas como principal processo sociocognitivo; Imitação como inversão de papeis como principal processo de aprendizagem cultural. Tomasello toma como ponto de partida o fato de que muitos teóricos descrevem os atos de referenciação linguística com apenas dois itens: o símbolo e seu referente no mundo perceptual. O que também já havia sido questionado por outros autores como o próprio Wittgenstein (1953) e Quine (1960). Relata Tomasello: “é empiricamente inadequada em vários sentidos, talvez, sobretudo em sua incapacidade de dar conta da aquisição e do uso de símbolo linguísticos cujas conexões com o mundo perceptual sejam, no mínimo, tênues, ou seja, a maioria dos símbolos linguísticos que não são nomes próprio ou substantivos básico (por exemplos, verbos, preposições, artigos, conjunções...)”. (Tomasello, 2003, 135) LETRAS LIBRAS|24 A partir desse ponto de vista, defende a referência linguística como um ato social no qual uma pessoa tenta fazer com que outra dirija sua atençã para algo do mundo. É uma referência no contexto (Bruner,1983, Clarc, 1996, Tomasello, 1988, 1992). E introduz como elemento de referência Cenas de atenção conjunta, que são interações sociais nas quais a crianças e o adulto prestam conjuntamente atenção a uma terceira coisa. Ainda nas Cenas de atenção conjunta, destaca dois aspectos: a) A cena de atenção conjunta fornece o contexto intersubjetivo em que se dá o processo de simbolização b) Para que funcione como um formato para a aquisição de linguagem, é preciso que a criança entenda que os participantes da cena desempenham papeis que são intercambiáveis (Bruner, 1983). Dentro do processo de compreensão está a percepção: Dos sons- os sons tornam-se linguagem para crianças ouvintes quando elas entendem que o adulto está fazendo aquele som com a intenção de que prestem atenção; para crianças surdas são os gestos; Da imitação com inversão de papeis e intersubjetividade; Do uso do símbolo dirigido ao adulto da mesma maneira. O resultado é o uso do símbolo linguístico, um mecanismo comunicativo entendido intersubjetivamente por ambos interlocutores. O que torna os símbolos linguísticos realmente únicos do ponto de vista cognitivo é o fato de que cada símbolo incorpora uma perspectiva particular sobre alguma entidade ou evento: esse objeto é simultaneamente uma rosa, uma flor, um presente. A natureza perspectiva dos símbolos linguísticos multiplica ao infinito a especificidade com que podem ser usados para manipular a atenção dos outros. Passemos agora para a base sociointerativa da aquisição da linguagem A interação é essencial, pois precisamos compreender como essas aptidões linguísticas são usadas na prática para aprender símbolos linguísticos. Para adquirir a linguagem, a criança tem de viver num mundo que tenha atividades sociais estruturadas que ela possa entender. Se uma LETRAS LIBRAS|25 criança nascesse num mundo em que o mesmo evento nunca ocorresse de forma repetida, e os adultos nunca usassem a linguagem no mesmo contexto, seria difícil adquirir uma língua. Assim, crianças que passam mais tempo em atividades de atenção conjunta adquirem um vocabulário mais amplo. Crianças aprendem novas palavras numa grande variedade de situações sociointerativas complexas, aprendem palavras não só quando o adulto nomeia objetos, mas também no fluxo da interação social. Por volta de 18 a 24 meses, a criança está apta para entender as intenções comunicativas do adulto numa ampla variedade de situações comunicativas relativamente novas (os jogos). (P-162) Para Tomasello, quando a criança aprende os símbolos, aprende como seus antecessores na cultura acharam útil manipular a atenção conjunta dos outros em seu tempo. A criança incorpora diferentes pontos de vistas sobre determinada situação. Ex: Aquela árvore, ela, o carvalho, aquele carvalho centenário, a árvore do balanço, aquele negócio do jardim, o estorvo, o enfeite. A criança aprende a usar objetos como símbolos (caixa por um trem) da mesma maneira como aprendem a usar símbolos linguísticos. Os modos de representação cognitiva que as crianças desenvolvem ao aprender uma língua são únicos no reino animal e decorrem de atividades de atenção conjunta. Por fim, a evolução cultural cumulativa é a explicação para muitos das mais importantes realizações cognitivas dos seres humanos. Tomasello, em seus estudos, nos faz refletir sobre a construção linguística e a cognição de evento. Para ele estas questões estão ligadas à ontogênese individual, pois de alguma forma na mais tenra idade o ser humano utiliza suas habilidades de aprendizagem cognitivas, sociocognitivas e culturais, que é universal em qualquer grupo humano, para compreender e adquirir as construções linguísticas que suas culturas particulares forjaram ao longo do tempo através de processos e meios de sociogêneses (TOMASELLO, 1995, 1999). Para adquirir a linguagem, a criança tem de viver num mundo que tenha atividades sociais estruturadas que ela possa entender. Se uma criança nascesse em um mundo em que o mesmo evento nunca ocorresse de forma repetida e os adultos nunca usassem a linguagem no mesmo contexto, seria difícil adquirir uma língua. Por exemplo, quando alguém da família sai de casa LETRAS LIBRAS|26 todos os dias, costumamos fazer a criança acenar e dizer tchau, até logo para ela. Isso ajuda na incorporação linguistica. Em seu livro Psicologia Cognitiva, Sternberg (2008) fez considerações embasadas na atualidade de pesquisas sobre as questões da aquisição. Faz ver que, anteriormente, os debates sobre a aquisição da linguagem focavam a dualidade inato ou adquirido. Atualmente, a discussãoda aquisição da linguagem admite que adquirir linguagem abraça tanto características inatas como elementos importantíssimos do fornecidos pelo ambiente. Por exemplo, o ambiente social, no qual os bebês estão inseridos, proporciona não só informações para a aquisição da linguagem como concorre para a compreensão do processo de referenciação na língua (Carpenter, Nagell e Tomasello, 1998). Dessa forma, a abordagem ao estudo da aquisição da linguagem gira agora em torno de descobrir quais capacidades são dadas de forma inata e quais são ajustadas pelo ambiente da criança. 2. Aquisição da fala: uma síntese do percurso Há mais coisas ocorrendo na mente das crianças do que o que sai por suas bocas Pinker Esse é um processo que todos nós de alguma forma presenciamos, porém não damos a importância devida. Segundo Locke (1997), o bebê cruza um longo e importante percurso até chegar à língua falada e esse processo evolutivo envolve o desenvolvimento de capacidades cognitivas, linguísticas, motoras, neurológicas, emocionais e sociais que são esclarecidas pela psicologia e pela linguística em suas mais diversas ramificações. O bebê nasce incompleto do ponto de vista biológico e os seus sistemas, como o de produção de fala, vão se aparelhando, passando por estágios de maturação até chegar às palavras. Sabe-se que, ao nascer, o aparelho fonador do bebê não está pronto para produzir todos os sons, somente em torno dos três meses, quando a faringe e a laringe se encaixam na cavidade nasal, é possível a produção de alguns sons vocálicos e, nesse processo, entra um elemento fundamental: a interação. LETRAS LIBRAS|27 Para uma melhor compreensão do processo da produção da fala, explicitaremos os fatores que interferem no desenvolvimento da linguagem na criança: fatores inatos, os envolvidos em maturação e os ambientais. Segundo Scliar-Cabral (2003), os fatores inatos são os biopsiquicamente determinados pela espécie, em especial, a estrutura e funcionamento do sistema nervoso central, o qual, através de suas redes, coloca-se como instrumento principal e específico de sobrevivência. Nos seres humanos, mesmo nos canhotos, o hemisfério nos quais as redes se especializam para a linguagem verbal é o esquerdo. Estudos comprovam que as línguas de sinais são processadas no hemisfério esquerdo. Esses estudos demonstram que a linguagem humana independe da modalidade das línguas (QUADROS, 2004:36). Deficientes auditivos que se expressam por sinais com lesão no hemisfério esquerdo padecem de formas de afasia idênticas às da afasia de ouvintes com lesões semelhantes. (PINKER 2002:385). O canal privilegiado para emitir a linguagem verbal é o aparelho fonador: pulmões, laringe, faringe, cavidade bucal e fossas nasais. A criança normal nasce programada para operar com signos verbais, no devido tempo, em virtude de como o sistema nervoso central está estruturado e funciona. A essência da linguagem verbal é a compreensão e a produção de textos. Quando uma criança nasce surda, se não houver comprometimento nos centros do sistema nervoso central envolvidos no processamento da linguagem verbal, e se a criança estiver inserida em sistemas que utilizem outros canais, como o visual-manual, a linguagem verbal se desenvolve normalmente. Os circuitos que ligam os diversos centros do sistema nervoso central não nascem prontos: os prolongamentos dos neurônios precisam ser recobertos por uma camada rica em proteínas, processo conhecido por mielinização, para que se estabeleçam as ligações de modo adequado e no momento certo. E aqui já entramos nos fatores que precisam de maturação. Para Scliar-Cabral (2003), a criança para produzir os primeiros enunciados, é necessário que ela compara o que diz com o que quer dizer, isto é, que se auto-regule, que receba em seu cérebro informações do aparelho fonador, bem como imagens acústicas dos sons que emitiu. Esses processos interligados exercem papel determinante no desenvolvimento da linguagem verbal. A maturação dos processos envolvidos no processamento da linguagem verbal depende da ativação e funcionamento dos mesmos, para a chamada especialização das funções. Continua Scliar-Cabral: LETRAS LIBRAS|28 Uma vez que os programas inatos para o desenvolvimento da linguagem oral e sua maturação precisam ser ativados pela interação verbal, sobressai a importância dos fatores ambientais, desde aqueles que cercam a gestante, os primeiros meses de vida do infante, até o processo de socialização. A autora chama atenção para os aspectos culturais, socioeconômicos e afetivos que influenciarão na variedade sociolinguística do falante e sobre seu idioleto. Afirma também que a escola contribui com o fator ambiental para o desenvolvimento da linguagem verbal, mas o desconhecimento das bases teóricas e a má orientação podem atuar como fatores inibidores para a comunicação linguística. Vários autores citam fases do desenvolvimento da linguagem, as mais conhecidas são: Balbucio de Sílabas, fase de uma Palavra e fase Telegráfico (Sequência de Duas Palavras), e a Grande Explosão. Entre o final do segundo ano e meados do terceiro, a linguagem das crianças transforma-se numa conversa gramatical fluente, desenvolvendo-se de maneira tão rápida que desconcerta pesquisadores. Pinker (2002) afirma que entre cinco e sete meses os bebês brincam muito mais com os sons do que utilizam para expressar suas intenções ou emoções. Entre sete e oito meses eles começam o balbucio de sílabas ba-ba-ba, di-di-di, variando para nê-ni, da-di, me-ne em torno do primeiro ano. É interessante dizer que estes sons são os mesmos em qualquer língua. Para este autor, essa fase do balbucio é fundamental para o desenvolvimento da fala posterior, pois a escuta do próprio balbucio favorece à criança a aprendizagem e o controle dos seus músculos fonéticos e dos diferentes sons que são capazes de produzir na tentativa de reproduzir a fala dos pais ou dos adultos com os quais convivem. O balbucio é seguido da pronúncia de palavras e, de acordo com a descrição feita por Pinker (op. cit), as primeiras palavras emitidas pelos bebês são isoladas e, num percentual de 50 %, se destinam à identificação de objetos: comida, partes do corpo, brinquedos, animais, veículos, roupas, apetrechos domésticos e pessoas; outras palavras se destinam às ações: abriu, achou, acabou, sujo... além do grupo de palavras resultantes da interação social: sim, não, quero, tchau, oi... Segundo Bates e Goodman (1997), a trajetória do desenvolvimento da linguagem parece ser, com algumas especificidades, universal e contínua. LETRAS LIBRAS|29 Balbucio- primeiro com as vogais (cerca de 3 a 4 meses) combinações de vogais e consoantes de complexidade crescente (entre 6 e 12 meses). As primeiras palavras (entre 10 e 12 meses) combinações de palavras (entre 16 e 20 meses) 3 ou 3 anos e meio, domínio das estruturas sintáticas e morfológicas de suas línguas maternas. É importante destacar que essa fase de uma palavra não tem um período determinado, pode durar de dois meses a um ano e, à medida que a linguagem se desenvolve, o vocabulário vai se enriquecendo, no mínimo, uma palavra nova a cada duas horas. E a sintaxe tem início, mesmo que ainda de forma limitada. Assim, por volta de um ano e meio, a criança já consegue dizer: Mamãe dá, quer água, comer não, cama não, tchau nené e outras tantas combinações de palavras. Para Locke (1997) duas condições evolutivas favorecem a aprendizagem da linguagem pela criança: desamparo e ligação à mãe. A primeira diz respeito à condição prematura (incompletude maturacional) em que o bebê nasce, permanecendo indefeso por um longo período; e a segunda é uma consequência da primeira, pois à medida que o bebê demonstra-se desamparado cria, automaticamente, um elo, um canal de ligação com a mãe, cujo intercâmbiopromoverá a aprendizagem da língua falada. Nessa interação, estão envolvidos muitos portadores de informações como a expressão facial, a frequência e a entonação vocal entre outros elementos que se mostram como estimuladores do desempenho comunicativo do bebê. Considerando que o processo de aquisição das línguas de sinais é similar ao das línguas oralizadas, Quadros ( 1997) especifica as seguintes fases: Estágio pré-linguístico: faz parte dessa fase o balbucio, que é um fenômeno que ocorre em todos os bebês, independente da língua. Essa capacidade, segundo Petitto e Maranato (1991), faz-se presente também através de sinais. Elas observaram produções manuais de bebês surdos para verificar a existência ou não de alguma organização sistemática. Perceberam duas formas de balbucio manual: o balbucio silábico e a gesticulação. O silábico apresenta combinações que fazem parte do sistema fonético das línguas de sinais. A gesticulação, diferentemente, não possui organização interna. As semelhanças encontradas sugerem haver, no ser humano, uma capacidade linguística que sustenta a aquisição da linguagem independentemente da modalidade da língua: oral ou espaço visual. LETRAS LIBRAS|30 Estágio de uma palavra ou de um sinal: inicia por volta de 12 meses na criança surda e se estende até os dois anos. Pepitto (1987) afirma que, nesse período, parece ocorrer uma transformação básica em que a criança muda o conceito de apontação inicialmente gestual (pré-linguístico) para percebê-lo como elemento do sistema gramatical da língua de sinais. Estágio das primeiras combinações: elas ocorrem por volta de dois anos de idade. Nessa fase, a autora mostra que as crianças já usam o sistema pronominal, mas de forma inconsistente. Revela também que a compreensão da apontação dos pronomes não é clara para a criança dentro do sistema linguístico das línguas de sinais. Também as semelhanças na aquisição do sistema pronominal entre crianças ouvintes e surdas sugerem um processo universal de aquisição de pronomes , mesmo entre línguas de modalidades diferentes. Estágio das múltiplas combinações: por volta dos três anos a criança surda entra na fase da grande explosão. Nessa fase ocorre a distinção derivacional, por exemplo, a diferenciação entre cadeira e sentar. O domínio completo dos recursos morfológicos da língua é adquirido aos cinco anos. Para Quadros ( 1995), estudos mostram que o processo de aquisição ocorre de forma análoga com surdos e ouvintes, o que ajuda a defender a existência de universais linguísticos. Passemos agora para a aquisição de escrita 4. Aquisição de escrita: um pouco de história Abordaremos, nesse primeiro momento, a aquisição em L 1. A evolução dos estudos da linguagem revela que algumas mudanças de paradigma ocorreram, oferecendo um olhar mais amplo sobre o fenômeno da linguagem. Opondo-se ao formalismo na Linguística, temos a emergência de vários ramos que se dispõem a contemplar as funções que a língua assume nos mais variados contextos, passando de estrutura abstrata para ação empreendida entre humanos sócio-historicamente situados. Para compreendermos melhor a mudança em relação à aquisição de escrita, relembremos que era natural pensar o ensino da escrita na primeira fase escolar dividido em dois momentos: o primeiro, o conhecimento das letras, a famosa alfabetização, estágio que prepararia o aluno para a possibilidade de escrever; o segundo, o conhecimento da própria língua, com exercícios de fixação como a redação e os treinos ortográficos. Hoje, com a mudança de paradigma, os estudos mostram que a capacidade de produzir textos não depende apenas da capacidade de saber grafá-los. A relação entre a aquisição das capacidades de redigir e grafar e o início do ensino de língua, antes vistos como processos LETRAS LIBRAS|31 sequenciais, dá-se agora em tempo simultâneo, sincronizado. Um diz respeito à aprendizagem de um conhecimento da escrita alfabética; o outro, da língua que se usa para escrever. Essa última aprendizagem está ligada a um trabalho sistemático de letramento, isto é, de histórias, relatos e notícias lidas e de muita prática de escrita. A aquisição da escrita alfabética é necessária, mas não suficiente para a produção textual. Vejamos um pouco do percurso dessa mudança ocorrida, através das concepções de escrita. Nesse caminho, verificamos a predominância de três perspectivas em torno dessa modalidade: A primeira concepção, de influência estruturalista, é a que tem o foco na carência ou na incompetência, onde se assume que a língua é um sistema que funciona com padrões fixos imutáveis. A essa concepção de língua, em geral, está associada uma concepção de aprendizagem de escrita que se baseia na repetição, no treino, na memorização (sem outra função a não ser treinar, copiar, memorizar e reproduzir a escrita), com práticas centradas apenas na codificação de sons em letras. Há apenas um processo perceptual e associativo de decodificação de grafemas em fonemas, para se compreender o significado do texto. Predomina uma preocupação com o domínio da técnica deixando para segundo plano o conteúdo. Desse ponto de vista, as crianças são consideradas passivas no seu aprendizado, e suas primeiras tentativas de leitura e escrita são desprezadas e reprimidas, pelo medo de as crianças aprenderem errado. Como ainda não sabem escrever, devem esperar pelo momento do domínio do alfabeto. Nesse caso, a leitura e a escrita das crianças são sempre avaliadas em relação a um suposto modelo “correto”, “adulto”, “ final de escrita”. Essa concepção de escrita tem como referência pesquisas da Psicologia Associacionista, que apontam para um enfoque grafo-fônico de alfabetização, baseadas na visão de aprendizagem como processo mecânico, fruto de um condicionamento progressivo, através do qual são internalizadas as associações entre estímulos visuais e respostas sonoras, isto é, a alfabetização depende da capacidade de coligar o processo perceptual (visão) e de conhecimento das letras, da percepção auditiva dos sons da fala. Nesse contexto, Bloomfield (apud PERFEITO, 2005) surge como um defensor da concepção behaviorista da aprendizagem, uma variante do associacionismo, defendendo a ideia de que a alfabetização acontece pela decomposição de elementos linguísticos maiores, em detrimento do significado, que será apreendido posteriormente, depois de adquirir a habilidade de decodificar graficamente a escrita. Para ele, a aquisição da escrita está centrada na memorização das unidades menores, tendo em mente a relação biunívoca ou não, entre letra e LETRAS LIBRAS|32 fonema, encaminhando-se para as unidades mais complexas. Essa visão deu um caráter científico ao antigo método de alfabetização. Segundo Perfeito (2005, p.80): De acordo com a concepção mecanicista, também são exigidas do aluno, para que ele possa iniciar o processo de aquisição de língua escrita, condições básicas de prontidão, tais como: as noções de lateralidade, de espaço, de discriminação perceptivo-visual e de idade. Além disso, aparece, nesse modelo, a ênfase no ensino de gramática normativa em detrimento dos componentes semânticos e pragmáticos, na construção e significações da leitura e da escrita. Como se vê, observa-se uma preocupação estritamente formal. A limitação principal da abordagem associativa está no fato de repetir ações sem compreender o que se está fazendo (POZO, 2002, p. 124). Isto, como já fora dito, ainda acontece em algumas práticas de sala de aula. Após a exposição de determinados conteúdos, pede-se ao aluno que faça os exercícios, acreditando que, automaticamente, ele é capaz de fazê-los. Porém, passado algum tempo, especialmente na época de provas, o aluno não é capaz de resolver as questões propostas. E nos questionamos: Por quê? Carmo (2002, p. 219) explica que “realizar exercíciosrepetida e mecanicamente não garante o entendimento das regras e da lógica da resolução”. Ainda, segundo Carmo, o que chamamos de esquecimento é a perda de força de uma ação com a passagem do tempo em função desta ação não ter sido interiorizada. A solução mediadora seria, a nosso ver, trabalhar a aprendizagem de maneira que abrangesse as diversas formas dos sistemas de aprendizagem de maneira eclética. Então, concordamos com Carmo (2002, p.48) quando diz que (...) a prática não se esgota na repetição da atividade. Envolve apreensão dos princípios que norteiam a atividade, bem como o entendimento do porquê e das finalidades da atividade. Praticar, portanto não é sinônimo de conhecer. A prática pela prática não modifica o homem, mas a prática refletida é reinventada e modificada pelos homens e estes, por sua vez, são modificados pelas as suas ações. A segunda concepção, com princípios cognitivistas, considera a escrita como um objeto de conhecimento, que analisa o “conflito cognitivo” no processo de aprendizagem e vê o erro como fundamentalmente construtivo no processo. Leva em conta as tentativas e as hipóteses infantis LETRAS LIBRAS|33 relativas à escrita como representação da fala (relação dimensão sonora/extensão gráfica), analisando a escrita inicial em termos de níveis de desenvolvimento. Concorreu para o surgimento dessa concepção a teoria inatista de Chomsky sobre a natureza do processo de aquisição de linguagem. A partir de Chomsky, num primeiro momento, Goodman (1997) aborda a leitura como um processo natural e a capacidade de predição, confirmação, rejeição e refinamento do leitor, baseando-se no seu conhecimento da estrutura linguística, seu estilo cognitivo e suas experiências com a escrita. Ele expande sua teoria propondo a alfabetização por meio de textos, com o objetivo de que na escola as crianças possam aproveitar seu conhecimento linguístico anterior e sua visão de mundo na construção dos significados. Aqui se faz necessária a valorização da experiência linguístico-cultural do aluno, chamando a atenção para a organização pragmática da escrita. Outros nomes que contribuíram para essa concepção foram Piaget e Vygotsky. O primeiro focalizando sempre mais o campo cognitivo e o segundo destacando o social. Nos anos 80, os resultados das pesquisas de Ferreiro, com base em Piaget e Vygotsky, fizeram emergir as hipóteses infantis sobre a escrita de forma mais clara. A psicogênese supõe um sujeito que constroi seu saber e a escrita como um sistema de representação de linguagem. O papel das crianças na aquisição é ir superando a formulação de hipóteses para alcançar a compreensão de representação escrita. Uma crítica que se faz aos aplicadores dessa concepção é que, ao invés de se tomar o estudo de Ferreiro e Teberosky como contribuição para o entendimento dos processos de aquisição da escrita, muitas vezes tem-se reduzido o ensino da escrita à questão da correspondência gráfico- sonora, categorizando crianças e turmas de crianças em termos de níveis de hipóteses, quando o processo de leitura e escrita abrange outros aspectos e outras dimensões. O conflito cognitivo apontado por Ferreiro não pode ser ignorado. Mas o que também deve ser levado em consideração é que, entremeados nessa questão, estão os aspectos das funções e configurações da escrita, da dimensão simbólica e do processo de conceituação e elaboração das experiências, da metalinguagem, além do conflito social mencionado. Para Abaurre (1997), o problema dessa concepção é a apresentação de um sujeito universal. Idealizado, que tem semelhança com o sujeito preconizado pela teoria gerativa. Concordando com ela, Mayrink-Sabinson (1997, p. 85): LETRAS LIBRAS|34 afirma que a psicogênese não concebe o contexto com o qual os indivíduos agem continuamente, que, embora submetido como associado à maturação orgânica, não é visto como elemento constitutivo no processo de aquisição da escrita e o seu papel mediador não é teoricamente explicitado. Abaurre (1997), adotando pontos de vista de Franchi e Bakhtin, vê o processo de aquisição da linguagem oral e escrita como parte do mesmo processo geral de constituição da relação sujeito e linguagem. E dentro dessa visão de constituição é que a citamos: ...a contemplação da forma escrita faz com que o sujeito passe a refletir sobre a própria linguagem, chegando, muitas vezes, a manipulá-la conscientemente, de uma maneira diferente da maneira pela qual manipula a própria fala. A escrita é, assim, um espaço a mais, importantíssimo, de manifestação da singularidade dos sujeitos. (ABAURRE, 1997, p.23) As análises sob a ótica cognitiva levam linguistas a pensarem numa concepção que integre o cognitivo com as funções discursivas. Assim, a terceira, que abarca os processos cognitivos, é a sociointeracionista e inclui o aspecto social das funções, das condições e do funcionamento da escrita (para que, para quem, onde, por quê). O que aparece como relevante nesse terceiro ponto mencionado é a consideração da atividade mental da criança no processo de aquisição não apenas como atividade cognitiva, no sentido de estruturação piagetiana, mas como atividade discursiva, que implica a elaboração conceitual da palavra. Assim ganha força a função interativa, instauradora e constituidora do conhecimento na/pela escrita (Smolka 2003,p.62). Nesse sentido, a aquisição é um processo discursivo: a criança aprende a ouvir, a entender o outro pela leitura; aprende a falar, a dizer o que quer pela escrita. Em pensamento e linguagem, Vygotsky (1998) diz que, por trás de palavras, existe uma sintaxe dos sentidos das palavras. Essa sintaxe, gramática, tem origem nas formas sociais de interação verbal, mas é permeada por uma realidade psicológica individual. O processo inicial da leitura, que passa pela escrita, e o trabalho inicial da escrita, que passa pela fala, revelam fragmentos e momentos do discurso interior, da dialogia interna das crianças, nessa forma de interação verbal. Mas esse aprender significa fazer, usar, praticar, conhecer. Enquanto escreve, a criança aprende a escrever e aprende sobre a escrita. E a escrita é vista como um sistema com propriedades que o aluno precisa compreender. Pedagogicamente, as perguntas que se colocam LETRAS LIBRAS|35 são: as crianças falam o que pensam na escola? Podem escrever livremente? Podem escrever como falam? Quando? É preciso que aprendam os aspectos notacionais da escrita (o princípio alfabético e as restrições ortográficas) no interior de um processo de aprendizagem dos usos da linguagem escrita. É disso que se está falando quando se diz que é preciso aprender a escrever, escrevendo. Vejamos, Para aprender a escrever, é necessário ter acesso à diversidade de textos escritos, testemunhar a utilização que se faz da escrita em diferentes circunstâncias, defrontar-se com as reais questões que a escrita coloca a quem se propõe produzi-la, arriscar-se a fazer como consegue e receber ajuda de quem já sabe escrever. Sendo assim, o tratamento que se dá à escrita na escola não pode inibir os alunos ou afastá-los do que se pretende; ao contrário, é preciso aproximá-los, principalmente quando são iniciados “oficialmente” no mundo da escrita através da alfabetização. Afinal, esse é o início de um caminho que deverão trilhar para se transformarem em cidadãos da cultura escrita. (PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS – Volume 2 – Língua Portuguesa. Brasília: MEC / SEF, 1997, p. 65 a 77). O documento coloca em relevo a diversidade de textos, a compreensão da escrita em circunstâncias concretas. Em outras palavras, um mergulho no Letramento. Se no início do século XX era necessário apenas aprender a assinar o nome para ser considerado alfabetizado, com essas concepções de escrita, isso já não pode ser mais suficiente. É necessário um envolvimentomaior com a leitura e com a escrita, pois, para SOARES (1998, p.72), Letramento não é pura e simplesmente um conjunto de habilidades individuais; é o conjunto de práticas sociais ligadas à leitura e à escrita em que os indivíduos se envolvem em seu contexto social. Desse modo, o Letramento apresenta-se como um exercício efetivo e competente da escrita e implica habilidades, como a de ler e escrever para obter informação, para interagir, ampliar conhecimento, interpretar e produzir diferentes tipos de texto, de inserir-se completamente no mundo da escrita. Para Soares (1998), essa forma de letramento corrobora para a autoestima, para a construção de identidades fortes, para a estruturação de agentes sociais em suas culturas. Faria (2011) mostra que essa visão traz implicações pedagógicas para o ensino da escrita. Com a mudança de paradigma, observar a linguagem em sua modalidade escrita continua sendo uma das prioridades dos estudos lingüísticos da atualidade. No entanto, o foco do interesse LETRAS LIBRAS|36 deslocou-se do produto para o processo. Como a criança concebe a escrita? Como se dá a interação da criança com o objeto escrita? Ganha destaque o contexto de produção que é constituído pelas representações sobre o local e o momento da escrita, sobre emissor e o receptor considerados do ponto de vista físico e de seu papel social, sobre a instituição social onde se dá a interação e sobre os objetivos ou efeitos que o produtor quer atingir em relação ao destinatário. E tudo isso precisa ser explicitado para a criança desde os primeiros contados com a escrita. Agora que discutimos as concepções, vamos direcionar o olhar para o processo propriamente da aquisição da escrita. 4.1 A entrada da criança na escrita Para compreendermos melhor esse desenvolvimento da escrita no ser humano, Vygotsky (1998) aconselha uma observação dos movimentos ocorridos antes e durante a aquisição da escrita, buscando, dessa forma, entender essa entrada realizada pela criança num mundo antes desconhecido. Segundo Vygotsky (1998), a dificuldade da aprendizagem da escrita reside no fato de que ela se caracteriza como uma linguagem mais mecânica do que a fala, dependendo, portanto, de um treinamento artificial por parte do aprendiz. Ainda para o autor, a escrita é concebida como um simbolismo de segunda ordem, pois representa primeiramente os sons da linguagem oral, passando a designar relações e entidades reais posteriormente, tornando-se um simbolismo de primeira ordem. Em seu artigo “A pré-história da escrita”, Vygotsky (1998) explicita que não se ensina a escrita, quando se desenham letras ou se constroem palavras de forma mecânica. Isso reflete apenas um treinamento artificial de fora para dentro. O autor nomeia de fala morta, pois a linguagem viva fica em segundo plano. Partindo da concepção da linguagem escrita como “ um sistema particular de símbolos e signos cuja dominação prenuncia um ponto crítico em todo o desenvolvimento cultural da criança”(VYGOTSKY 1998, p.89), Vygotsky afirma que essa aquisição começa com o aparecimento do gesto como signo visual para a criança. Para o autor (1998), o gesto é o signo visual inicial que contém a futura escrita da criança. Gestos são escritas no ar. Dando continuidade à sua explanação, mostra que os gestos estão LETRAS LIBRAS|37 ligados ao signo escrito por dois caminhos: através dos Rabiscos, em que se imagina uma bola, um carro, uma boneca etc; e Jogos, que são gestos representativos, por exemplo, usar o cabo da vassoura como cavalo. Tanto o rabisco como o jogo de representar significam um simbolismo de 2ª ordem, que contribui para o desenvolvimento da escrita, também um simbolismo de 2ª ordem. Para Vygotsky (1998), ao desenhar conceitos complexos ou abstratos, as crianças comportam-se da mesma maneira. Elas não desenham, elas indicam e o lápis meramente fixa o gesto indicativo. Por essa visão, o desenho é um simbolismo de 1ª ordem, que ganha uma nova significação, não são mais traços, círculos, mas amigos que brincam, com uma nova função, já num simbolismo de 2ª ordem. E acrescenta: “*...+ a representação simbólica no brinquedo é, essencialmente, uma forma particular de linguagem num estágio precoce, atividade essa que leva, diretamente, à linguagem escrita.” (VYGOTSKY 1998, p.103) O que nos chama atenção é a questão da construção do simbolismo. Por isso, a importância do desenho e do rabisco para a aquisição da escrita. Desenhar e brincar devem ser estágios preparatórios para o desenvolvimento da linguagem escrita das crianças. Há outras formas de introduzir a criança na escrita sem passagens bruscas como, por exemplo, ler para a criança. A leitura já introduz a criança no mundo da escrita. Outra é ter como base a oralidade para ensinar a linguagem que se usa para escrever. Ditar um texto para o professor, para outra criança ou para ser gravado em fita cassete é uma forma de viabilizar a produção de textos antes de as crianças saberem grafá-los. Como exemplo, transcrevemos um texto narrado para a professora por alunos da alfabetização, de uma escola pública do município de João Pessoa1. A professora, após ler uma história, solicitou a narração coletiva e registrou num 1 Esse texto foi coletado em abril de 2009 LETRAS LIBRAS|38 papel madeira, no centro da sala, enquanto os alunos narravam. Após várias negociações, o texto ficou assim: Ainda que não saibam identificar o som correspondente à grafia da letra, as crianças realizaram um trabalho de produção textual. Primeiramente, falar da propriedade do título que garante a adequação do texto como um todo. Naturalmente foi negociado com a turma de 26 alunos, mas foram eles que escolheram dentre outros sugeridos. Do ponto de vista do gênero, há um personagem, num determinado espaço (em frente ao prédio, casa), que realiza uma ação: encontrar um cachorrinho. E no final, o desfecho das ações com a explicitação dos sentimentos que acompanham essa ação. Sem sombra de dúvida, essas crianças já empregam estratégias proficientes de um produtor de textos. É em atividades desse tipo que elas começam a participar de um processo de produção de texto escrito, construindo conhecimento sobre essa modalidade, antes mesmo que saibam escrever autonomamente. Hoje, uma das situações didáticas previstas pelos principais programas oficiais de alfabetização inicial é solicitar que os alunos produzam textos oralmente para se verem com capacidade de escrever muito antes de estarem alfabetizados. Nas atividades de escrita, acredita-se que as crianças se apropriam dos conteúdos, transformando-os em conhecimento próprio em situações de uso. O cachorro pequeno Carlos encontrou um cachorrinho na praça em frente ao prédio dele. Ficou feliz, levou pra casa deu comida e arranjou um caixa para ele dormir. Quando o irmão chegou, foi mostrar o cachorrinho e pediu para ele escolher um nome. Estavam brincando com ele, quando aparece uma senhora dizendo que o cachorro é da filha dela. Carlos não queria entregar, mas a mãe disse que ia conseguir um para ele. Carlos entregou o cachorrinho muito triste e está esperando um para ele. LETRAS LIBRAS|39 As crianças que não sabem escrever de forma convencional, ao receberem um convite para fazê-lo, estão diante de uma verdadeira situação- problema, na qual se pode observar o desenvolvimento do seu processo de aprendizagem. Tal prática deve favorecer a construção de escritas de acordo com as idéias construídas pelas crianças e promover a busca de informações específicas de que necessitem, tanto nos textos disponíveis como recorrendo a informantes (outras crianças e o professor). O fato de as escritas não-convencionais serem aceitas não significa ausência de intervençãopedagógica. (REFERENCIAL CURRICULAR NACIONAL PARA A EDUCAÇÃO INFANTIL - Volume 3 / Conhecimento do Mundo. Brasília: MEC/ SEF, 1998:p. 145 a 150) Como se vê, nos textos oficiais, ganham relevo propostas de aprendizagem do alfabeto e do uso da escrita simultaneamente. Já é consenso que a elaboração de um texto vai muito além do registro gráfico. Durante o ditado para o professor, os alunos conduzem a produção do texto tanto no que diz respeito ao conteúdo como na forma, por meio de pausas, ritmos, etc. Essa prática deve fazer parte da rotina da alfabetização inicial, contemplando diferentes gêneros. Escutar textos, ditar textos, rabiscar, desenhar, representar são passos que preparam para a aquisição de escrita. E quando tentam desenhar as letras? O que acontece? 4.2 A Psicogênese da escrita As idéias de Piaget e de Vygotsky produziram inúmeros frutos. Um deles foi o desenvolvimento de pesquisas realizadas por Ferreiro e Teberosky (1999). As autoras observaram que o aprendiz, no processo de apropriação da escrita, formula respostas para duas questões básicas: 1- A escrita representa o significado das palavras ou o significante? 2- A escrita cria representações através de qualquer símbolos ou convencionados? De posse dessas respostas, a entrada da criança na escrita vai ficando mais clara. É necessário que o professor ajude na construção dessas respostas. No que diz respeito ao desenvolvimento da escrita, Ferreiro e Teberosky (1999) apontam que, no processo de aquisição da escrita, a criança percorre três etapas: LETRAS LIBRAS|40 a) Nível pré-silábico, em que a criança não tem clara a diferença entre desenho e escrita. Escreve com números, letras e rabiscos. Principal desafio reside na ação de ajudar os alunos a perceber que a escrita representa os sons da fala. È necessário um esforço para desenvolver as habilidades fonológicas dos aprendizes. São exemplos: Palavras ditadas Palavras escritas pela criança cachorro UNIOF golfinho HRSPPDIO tartaruga AOBPN Nessa etapa, ela já é capaz de compreender que a escrita tem uma direção, que sequências de letras são usadas para escrever, que coisas diferentes devem ter escritas diferentes e que é preciso um número mínimo de grafias para que algo esteja escrito (neste caso quatro letras). A exploração oral e, sobretudo, escrita de poemas, trava-línguas, parlendas e outros textos que possibilitam a exploração de sons iniciais (aliteração) e finais (rimas) são importantes nessa etapa. b) Nível Silábico apresenta-se subdividido em quantitativo e qualitativo. Neste nível, a criança compreende a relação entre a escrita e o “som”. No silábico quantitativo, ao tentar efetuar essa relação, a criança tende a usar um símbolo gráfico para cada “som”, porém de forma aleatória em que, por exemplo, repete vogais ou consoantes várias vezes com o objetivo de representar as sílabas. No qualitativo, já consegue selecionar alguma letra da sílaba. Já há correspondência entre som e letra com base em parâmetros de ordem fonética e/ ou ortográfica. São exemplos: Palavras ditadas Palavras escritas pela criança bolo B O chocolate X CET Panela A E L LETRAS LIBRAS|41 Nessa etapa, já é capaz de perceber que cada grafia representa uma emissão sonora, e chega a entender o valor sonoro contido em determinada sílaba, como podemos observar nas escritas de bolo e panela. Principal desafio é fazer a criança compreender que a sílaba não é a menor unidade de uma palavra e que ela é constituída por unidades menores (fonemas) e que as palavras possuem números diferentes de sílabas e que as sílabas possuem números diferentes de letras. c) Nível alfabético: nesse nível a criança consegue perceber a existência de unidades menores do que a sílaba. A criança verifica que determinado som nem sempre corresponde à letra, culminando em dúvidas sobre a ortografia. Exige-se nessa etapa um trabalho de reflexão e não de memorização, levar os alunos a perceber que a escrita representa a fala, mas não é uma transcrição direta. São exemplos: Palavras ditadas Palavras escritas pela criança pasta PATA livro LIVO giz XIJI Apropriação do alfabeto implica a reconstrução pelo aprendiz de uma série de propriedades do sistema notacional e entendermos que o principiante não dispõe, em sua mente, de início, de unidades como “palavra” ou “fonema” para analisar os enunciados orais que pronuncia. O contato com a escrita é que vai viabilizar esse tipo de reflexão. E para isto, é importante um trabalho para desenvolver habilidades de reflexão fonológica. Morais e Leite ( 2005, p. 46) destacam: Perceber que trem é uma palavra pequena e moranguinho é uma palavra grande, que papai e pateta começam parecido, é exercer um funcionamento que chamamos metalinguístico, isto é, é exercitar uma capacidade humana de reflexão consciente sobre a linguagem. Uma coisa é usar palavras para se comunicar, outra é tomá-las como objeto de reflexão, observando suas características. Quando refletimos sobre a dimensão sonora da palavra, estamos colocando em prática as habilidades de reflexão fonológica ou consciência fonológica. LETRAS LIBRAS|42 Segundo Morais (2005), consciência fonológica é uma habilidade metalinguística que se refere à representação consciente das propriedades fonológicas e das unidades constituintes da fala, incluindo a capacidade de refletir sobre os sons da fala e sua organização na formação das palavras. É ela que possibilita a identificação de rimas, de palavras que começam e terminam com os mesmos sons e de fonemas que podem ser manipulados para a criação de novas palavras. Lembre-se de que estamos falando de crianças ouvintes Com base nessas investigações, pode-se ver com clareza que atividades realizadas no nível da palavra (decomposição de palavras em sílabas e letras, comparação de palavras quanto à presença de sílabas e letras iguais ) voltadas para a habilidade fonológica são fundamentais para a construção das respostas às perguntas colocadas para a criança. Destaca o autor que os aprendizes precisam chegar a compreender que se escreve com letras e que essas letras não podem ser inventadas a cada momento, pois pertencem a um repertório finito; perceber que as letras possuem formatos fixos e que uma mesma letra apresenta-se com formatos diferentes A, a, A, a ; assimilar as possíveis combinações de letras e, ainda, que as letras têm valores sonoros fixos, mas várias letras têm mais de um valor sonoro, e que alguns sons são representados por letras diferentes. È um aprendizado complexo. Textos como poemas, parlendas, cantigas que possuem rimas e podem ser exploradas e devem ser aproveitadas na escrita. Ao lado dessa perspectiva, precisamos também oferecer sistematicamente as condições de funcionamento da escrita, isto é, o para que, para quem, onde, por que se escreve. Com isso, vemos que o processo de aquisição da escrita engloba fatores bem mais complexos do que uma simples codificação/ decodificação de signos e que começa anteriormente a sua inserção no meio escolar. Alfabetizar letrando e para isso precisa inserir os alunos no mundo da escrita, permitindo que, desde cedo, vivenciem práticas de leitura e produção textuais. Vimos que a aquisição da escrita fez um percurso de um ensino da decodificação de palavras para o funcionamento da escrita nos textos. E na aquisição de escrita em L2? 5 - Língua portuguesa como L2 Considera-se aquisição de segunda língua qualquer língua aprendida após a primeira língua. Sabemos que, na aquisição de L1 e L2, fatores como personalidade, socialização, motivação LETRAS LIBRAS|43 e outros aspectos afetivos interferem na aprendizagem. Essa concepção encontra respaldo em vários autores, como se percebe na citação de Assis-Peterson (1998: 30): “De acordo com os vários estudiosos
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