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VERA LÚCIA SILVA Teorias da História II Vera Lúcia Silva Teorias da História II 1a Edição Sobral/2018 Sumário Palavra do Professor auto Sobre o autor Ambientação Trocando ideais com os autores Problematizando UNIDADE I: O MARXISMO COMO UMA ESCOLA HISTÓRICA REVOLUCIONÁRIA O Marxismo e o Materialismo Histórico Desdobramentos da tradição marxista UNIDADE II: UMA ESCOLA HISTÓRICA CONTEMPORÂNEA: A ESCOLA DOS ANNALES A Escola dos Annales A Primeira Geração dos Annales (Marc Bloch e Lucien Febvre) A Segunda Geração dos Annales (Fernand Braudel) A Terceira Geração dos Annales UNIDADE III: A HISTÓRIA SOCIAL E A HISTÓRIA VISTAM DE BAIXO A perspectiva da história social A História vista de baixo e sua contribuição para o estudo de sujeitos pouco contemplados pela historiografia tradicional UNIDADE IV: A NOVA HISTÓRIA CULTURAL E A MICRO HISTÓRIA ITALIANA Conceitos e abordagens da Nova História Cultural Micro História Italiana e contribuições de Carlo Ginzburg Explicando melhor com a pesquisa Leitura Obrigatória Pesquisando na Internet Saiba mais Vendo com os olhos de ver Revisando Autoavaliação Bibliografia Bibliografia Web Vídeos Palavra do professor autor Olá estudante! Seja bem-vindo à disciplina Teorias da História! Na disciplina Teoria da História II, o estudante, terá a oportunidade de conhecer como o marxismo e o movimento da Escola dos Annales contribuíram para as transformações na História e na historiografia, influenciando, inclusive, na formação de abordagens como da História Social, da História vista de baixo, da Micro-História e da Nova História Cultural. Com o intuito de facilitar a aprendizagem e contribuir para a formação do posicionamento crítico do estudante, os conteúdos trabalhados, neste módulo, são apresentados de forma clara e dinâmica. Tomam como suporte uma produção historiográfica pertinente sobre cada um deles, bem como algumas videoconferências e vídeoaulas. Assim, espero que o estudo dos capítulos, as sugestões de livros e vídeos contribuam para aprofundar seus conhecimentos sobre o processo de transformação da História e da historiografia no século XX e início do XXI; bem como para o seu processo de formação profissional, levando-o a se posicionar de maneira crítica diante da produção historiográfica existente, das pesquisas que você desenvolve e na sua própria escrita. A autora Sobre a autora Vera Lúcia Silva é mestre em História Social pela Universidade Federal de Uberlândia – UFU (2015), especialista em História do Ceará pela Universidade Estadual Vale do Acaraú – UVA (2013), graduada em História pela UVA (2011). Atualmente trabalha como revisora de livros na Editora Sertão Cult e é aluna do Curso de Doutorado da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Ambientação à disciplina Nesta disciplina, você vai estudar dois importantes movimentos que contribuíram de forma decisiva para o processo de constituição da História enquanto disciplina: o marxismo e o Annales. De forma diversa, eles possibilitaram a superação da historiografia tradicional, que defendia uma abordagem singular, centrada nos fatos, nas ideias e decisões dos sujeitos históricos, em batalhas e em estratégias diplomáticas. A mudança do foco político para o social e o econômico levou à ampliação do conceito de fonte, a diversidade das evidências e o uso de novos métodos para analisá-las e desenvolver a pesquisa histórica, bem como a ampliação e diversificação dos objetos, temas, sujeitos e abordagens. As fontes deixaram de serem apenas os documentos oficiais escritos. Agora, diários, cartas, documentos orais, a arquitetura de uma casa, os utensílios de torturas usados durante a escravidão, vestígios arqueológicos, entre inúmeros outros podem ser considerados fontes de pesquisa do historiador. Estas não constituem verdades absolutas sobre um determinado acontecimento e não são neutras como outrora se afirmava quanto à intencionalidade dos documentos. Passam a ser analisadas de forma crítica e problematizadora, pois são carregadas de intencionalidades e trazem versões diferentes do que aconteceu que, por vezes, são contraditórias. Essas mudanças impulsionadas pela tradição marxista e pelos Annales em torno dos objetos, sujeitos e das fontes influenciaram na formação da História Social e na História Vista de baixo (que estudaremos no terceiro capítulo), as quais direcionaram o olhar para o estudo de pessoas que não faziam parte do grupo dos que controlavam o poder político, econômico e/ou militar. A crítica à terceira geração dos Annales por Roger Chartier e Jacques Revel possibilitou a criação de outra perspectiva de produção do conhecimento histórico que partia não mais do viés social ou econômico, mas do cultural – a Nova História Cultural como verá no capítulo IV. Por sua vez, a crítica à tradição marxista levou Carlo Ginzburg a propor uma nova abordagem histórica, a Micro-História, que parte da análise do micro para chegar a uma compreensão mais ampla da história. Agora, convido você a avançar as próximas páginas e aprofundar o estudo sobre os temas apontados acima. Bons estudos!!! Vídeo de apresentação da disciplina: https://vimeo.com/288619956 https://vimeo.com/288619956 Trocando ideias com os autores Sugerimos que leia o livro O que é marxismo. Nesta obra, José Paulo Netto, faz uma discussão cuidadosa acerca das suposições da teoria social de Marx, colocando-os dentro do contexto em que a sociedade burguesa se firmava na Europa Ocidental. Problematiza o que se convencionou a chamar de “marxismo”. PAULO NETTO, José. O que é Marxismo? 9. ed. Brasiliense: Rio de Janeiro, 2006. 85 pag. Propomos a leitura da obra: A Nova História Cultural, de Lynn Hunt, para aprofundar seus estudos nessa área da história que vem ocupando espaços cada vez maiores dentro e fora dos meios acadêmicos. Neste livro, a autora faz uma apresentação dos domínios da recente História Cultural, por meio de uma série de ensaios escritos por pesquisadores do tema. HUNT, Lynn. A nova História Cultural. 2. ed. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2001. 317 pag. Guia de estudo: Após a leitura das obras faça um paralelo entre ambas, produzindo um texto que aborde as contribuições dos autores para uma sociedade transformadora. Compartilhe suas reflexões com seus colegas na sala virtual. Problematizando Ao desenvolvermos nossas pesquisas nos posicionamos a partir de determinadas teorias, selecionamos métodos e fontes. Que abordagem teórico- metodológica você adota ao desenvolver suas pesquisas na área de História? A História Social? A História vista de baixo? A micro-História? A nova História Cultura? Guia de estudo: Pesquise e responda em forma de texto dissertativo como se deu o processo de constituição de cada uma delas e como elas contribuíram para a renovação da produção historiográfica e a concretização da História enquanto disciplina. O marxismo como uma escola histórica revolucionária 1 CONHECIMENTOS Conhecer como se constituiu o pensamento original de Karl Marx e Friedrich Engels e como suas obras foram interpretadas de forma equivocada pelo marxismo vulgar. HABILIDADES Identificar a contribuição de Marx e Engels no desenvolvimento de uma concepção de história que toma o homemconcreto e suas experiências reais como base. ATITUDES Desenvolver um posicionamento crítico em relação ao que se convencionou a chamar de “marxismo” e seus desdobramentos. Marxismo e o Materialismo Histórico Iniciemos nossa discussão acerca do marxismo e o do materialismo histórico pensando sobre as seguintes questões: 1) O que é o marxismo e qual seus inspiradores? 2) O que propõe o materialismo histórico e em que ele contribuiu para formar a concepção de história que temos hoje? O sociólogo José Paulo Netto, um dos marxistas contemporâneos mais renomados do país, faz uma discussão instigante em torno do conceito que se convencionou a chamar de “marxismo” no livro O que é marxismo? Propondo a tese de que não existe “marxismo”, mas “marxismos” – interpretações diversas que tomaram por base o pensamento de Karl Marx e Friedrich Engels e que, em muitos casos, distorceram suas ideias originais –, ele vai trazendo em seu texto elementos para que o próprio leitor reflita e faça suas próprias considerações e não traz respostas para as questões postas. No final da obra, considera que o leitor, a partir das indicações contidas ao longo dela, conclua que “o marxismo" é uma série de interpretações e acréscimos variados da obra de Marx, condicionados, cada um deles, por injunções históricas, culturais, políticas etc.” (PAULO NETTO, 2016, p. 75) Essas injunções variam conforme os interesses de quem se apropriam dos temas e debates marxianos. Josef Stálin, por exemplo, assume a liderança da União Soviética logo após a morte de Vladmir Lênin, um dos líderes da Revolução Russa de 1917, e na Terceira Internacional reduz as teses marxianas em seu benefício, institucionalizando as ideias de Karl Marx (Marxismo) como oficial e único, o qual seria denominado de marxismo- leninismo. Marxiano: Termo usado para referir-se à obra original de Marx. Terceira Internacional: organização comunista que existiu de 1919-1943. Também conhecida como Internacional Comunista, foi criada com o objetivo maior de uniformizar e homogeneizar o pensamento comunista conforme as fórmulas do marxismo institucionalizado. Consciente de que a obra de Marx fundou um estilo original de pensar a sociedade burguesa e a sua dinâmica, que contém necessariamente a alternativa da revolução socialista, Paulo Netto, afirma que o termo “marxismo reduz a tradição marxista àquilo que um investigador ou uma instituição reconhece como tal e obstaculiza a sua compreensão como um espectro diferenciado de análises e propostas” (2006, p.77). Tentando evitar esse reducionismo, procuro, nas próximas linhas, fazer uma discussão sobre o materialismo histórico a partir do processo de construção do pensamento de Marx e de seu amigo e companheiro de lutas, Engels – conheça mais sobre eles no quadro abaixo. Antes, porém, é importante salientar que a interpretação que ouso fazer aqui procurou se diferenciar da análise stalinista que restringe a teoria marxiana a um conhecimento científico geral do ser (o materialismo dialético) que pode ser ampliada à sociedade (o materialismo histórico). Karl Heinrich Marx: (1818-1883)-Filósofo, economista e político socialista alemão, passou a maior parte da vida exilado em Londres. Doutorou-se em 1841 pela universidade de Berlim, com uma tese sobre Epicuro. Foi ligado à esquerda hegeliana. Em 1847, com 29 e 27 anos, respectivamente, redigiram o texto que transformou o mundo ao declarar a luta de classes como motor da história: o Manifesto do Partido Comunista. Marx desenvolveu uma ideia de comunismo ligada à sua concepção da história e a uma resoluta intervenção na luta política, solidária com o movimento operário. Friedrich Engels: (1820-1895) – Filósofo alemão, amigo e colaborador de Karl Marx, com quem escreveu obras fundamentais como A sagrada família e A ideologia alemã (1845-1846). Filho de um industrial rico tornou-se comunista na juventude e uma liderança revolucionária mundial. Dedicou-se ao problema da dialética da natureza e aos estudos sobre a classe trabalhadora na Inglaterra. Algumas obras: A situação da classe trabalhadora na Inglaterra (1845), a dialética da natureza (1883). Depois da morte de Marx, publicou A origem da família, do estado e da propriedade privada (1884)... Para chegar a uma nova concepção de materialismo, Marx e Engels fizeram demorada investigação, analisaram as teorias sociais existentes e romperam com o pensamento de vários teóricos. Dentre eles, do filósofo Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), do qual Marx teve contato com as obras na Universidade de Berlim, durante o período em que cursava direito. Instigado pelo materialismo idealista de Hegel, o jovem voltou-se para a área da filosofia, onde posteriormente concluiu um doutorado. Mas, Marx e Engels foram mais longe. Hegel concebia como discute Marx na Contribuição à crítica da Economia Política, “o real como o resultado do pensamento que se aspira em si, procede de si, move-se por si; enquanto o método que consiste em elevar-se do abstrato ao concreto não é senão a maneira de proceder do pensamento para se apropriar do concreto, para reproduzi-lo mentalmente como coisa concreta”. (2008, p. 259). Nesta perspectiva, as discussões desenvolvidas por eles partem da humanidade real, das suas condições de vida e das suas relações materiais de produção. No livro A ideologia alemã, eles deixam claro o método que estão propondo para a história. Não se parte do que os homens dizem, representam ou imaginam, nem tampouco do homem predicado, pensado, representado ou imaginado, para chegar, partindo daqui, ao homem de carne e osso; parte-se do homem que realmente atua e, partindo de seu processo de vida real, se expõe também o desenvolvimento dos reflexos ideológicos e dos ecos deste processo de vida [...] Tão logo se expõe este processo ativo de vida, a história real deixa de ser uma coleção de fatos mortos, ainda abstratos, como o é para os empiristas, ou uma ação imaginária de sujeitos imagináveis como o é para os idealistas (MARX; ENGELS, 1986, p.37). Analisando a história, as condições de vida da classe trabalhadora operária e militando na Liga dos Comunistas, eles seguem o suposto de que estão desenvolvendo um conhecimento que possibilita a transformação do real e que não é meramente contemplativo. O real aqui é entendido como um movimento contraditório, caracterizado por conflitos e interesses antagônicos. Assim, o objetivo da ciência da história como denomina a história, é desvendar esse movimento que é o alicerce para a compreensão do social, da economia, da política ou de qualquer área de estudo. Inversamente ao materialismo idealista de Hegel, o materialismo histórico parte da concepção materialista da realidade. Lança mão do método dialético para a análise dos mais variados fenômenos e para descobrir as leis que regem a sua evolução. Nessa abordagem, o homem é visto como um sujeito histórico que age em interação com a natureza e com o restante da humanidade, construindo e transformando constantemente a história. Veja a seguir esse processo como acontece: As leis da dialética Primeira Lei: a mudança dialética. A primeira lei da dialética começa por constatar que “nada fica onde está nada permanece o que é”. Quem diz dialética diz movimento, mudança. Por conseguinte, colocar-se do ponto de vista da dialética significa colocar-se no ponto de vista do movimento, da mudança. Quando quisermos estudar as coisas segundo a dialética, iremos estudá-las nos seus movimentos, na sua mudança. [...] Segunda Lei: a ação recíproca. O encadeamento dos processos. Ao contrário da metafísica, a dialética não considera as coisas na qualidade de objetos fixos, acabados, mas enquanto movimentos. Para ela, tudo está em condições de se transformar, de se desenvolver. Nestas transformações,o papel dos homens é o de acelerar as transformações, dar a elas um sentido, uma direção. Terceira Lei: a contradição. Vimos como a dialética considera as coisas como em perpétua mudança. Isto é possível porque tudo é o resultado de um encadeamento de processos. O desenvolvimento dos processos se dá num movimento “em espiral”, resultado de um autodinamismo. Mas quais são as leis do autodinamismo? A dialética ensina que todas as coisas não são eternas. Elas têm um começo, uma maturidade, uma velhice e terminam em um fim, que, por sua vez, gerará um novo começo. Por exemplo, observando as células do corpo humano, veremos que estas se renovam continuamente, desaparecendo e reaparecendo no corpo. Vivem e morrem continuamente no ser vivo, onde existe, portanto, vida e morte. Assim, as coisas não só se transformam umas nas outras, mas, ainda, uma coisa não é somente ela própria, mas outra que é sua contrária. [...] Fonte: PCB, Partido Comunista Brasileiro. Introdução ao materialismo histórico/dialético. P. 9-10. Disponível em: < http://www.pcb.org.br/portal/docs/materialismo.pdf>. Acesso em: 19 dez. 2016. Embora, Marx e Engels, reconhecem na filosofia de Hegel sua importância, uma vez que foi o primeiro a apresentar as formas gerais do movimento de modo amplo e consciente, a dialética hegeliana, como afirmou Marx no Prefácio da segunda edição de sua principal obra: O Capital, “está de cabeça para baixo”. “É necessário pô-la de cabeça para cima, a fim de descobrir a substância racional dentro do revestimento, místico” (1998, p.29). Desse modo, enquanto Hegel, entre outros de sua época, impetrava a crença num Espírito Absoluto (ideias), Marx acreditava que a produção material de uma época histórica é à base de toda a sociedade e, também, a criadora da subjetividade dessa época. Impetrava: Ajuizar; levar a juízo; demandar judicialmente: impetrou o divórcio. Hegel defende que esse Espírito Absoluto se externalizava na natureza e na cultura, o qual rege todo nosso conhecimento e a nossa razão. O seu movimento, que constitui a dialética, é quem transforma o universo. A transformação de tal espírito se percebe em suas obras e obtém uma maior ciência de si e do mundo, chegando a um estágio superior de entendimento. A história, nesse caso, é constituída não pela ação do homem sobre a natureza e pelas relações que estabelecem entre si, mas pela ação do Espírito Absoluto, que se manifesta por meio de suas obras (artes, ciência, técnicas) e de suas instituições (religião, filosofia, leis etc.). Essa manifestação pressupõe a contradição como condição para a existência e transformação da natureza e do homem. Marx e Engels superaram a concepção de dialética com base idealista do início do século XIX. Eles defendiam que são as transformações ocorridas no nível da realidade material que determinam as mudanças em nossas ideias e não o contrário, como propunha Hegel. Não se trata, de acordo com a proposição de Andre de Goes Cressoni, “de construir uma dialética que se fundamenta na unidade dialética do Espírito que se envolve em contradições, mas de uma dialética que se fundamenta na contradição da luta de classes”. (2012, p. 21) Discordando do idealismo de Hegel, Marx rever seus próprios princípios. Nesse processo de revisão de seu pensamento, as Teses de Ludwig Andreas Feuerbach (1804-1872), o principal expoente da filosofia neo-hegeliana daquela época, permitiram que ele efetuasse sua inversão particular da dialética de Hegel. Na percepção de Feuerbach, o ser é o sujeito, o pensamento é o predicado. Este surge daquele e não o contrário, como colocava a lógica filosófica de Hegel. Feuerbach defende que a filosofia de Hegel é uma filosofia religiosa, uma vez que não parte da objetividade das coisas para compreendê-las e repô- las ao cérebro. Assim, sua crítica à religião começa por afirmar que Deus é uma criação humana. Como é possível um ser imaterial criar um ser material ou vice-versa? E prossegue tentando compreender a natureza em seus elementos materiais para transformá-la em coisas que poderiam ampliar nossa humanidade – como a criação do trem que potencializou a capacidade de locomoção do homem e de mercadorias, por exemplo. No entanto, ele não avança mais do que isso, uma vez que não trabalha com o elemento da historicidade. Despreza o homem em suas relações sociais com os outros e com a natureza e ignora a capacidade dos homens de produzirem sua própria história. Como melhor esclarecem Marx e Engels: “Na medida em que Feuerbach é materialista, não aparece nele à história e, na medida em que toma a história em consideração, não é materialista. Materialismo e história aparecem completamente divorciados nele” (MARX; ENGELS, 1986, p. 40). Marx inclui em sua crítica a dimensão social e histórica que falta em Feuerbach. Para aquele, o ser social se distingue porque contém atividade prática sensível, ou seja, nós somos seres vivos atuantes (mas não aquele ser vivo na concepção hegeliana, que é o conceito, a ideia na história). Marx nunca parte da abstração, mas da atividade concreta objetiva. Enquanto Feuerbach via o mundo apreendido pela consciência passiva dos homens e das mulheres pelos sentidos. Marx, em 1844, começa a perceber que não é somente pelos sentidos que apreendemos o mundo. O apreendemos também pela paixão, pelo desejo, pelo querer, pela arte, por várias formas. Há uma multiplicidade de captura do mundo e do saber. Retomando o pensamento de Hegel, aquilo que ele reduz como o produto final do espírito, o saber absoluto da história, aparece em Marx como um dos elementos da vida, pois surge no mundo do trabalho. Este produz a nós próprios porque somos seres sociais autoproducentes no processo real de vida. Enquanto em Hegel o trabalho é visto apenas em seu aspecto positivo, Marx compreende essa lógica e avança, incluindo também o elemento negativo ao trabalho. Em sua percepção, ele é positivo porque é idealizado de riquezas genéricas humanas. Qualquer produção de qualquer trabalhador (intelectual, manual ou outra) é uma extensão de nós. São as nossas capacidades subjetivas estendidas para o mundo, exteriorizadas, que potencializam nossa ação no momento em que a repomos em nós. O trabalho é negativo quando se apresenta subordinado ao capital, no qual o homem é alheio a sua própria criação e é explorado. Sua expressão máxima se revela na perda dos objetos de trabalhos e no próprio ato da produção. Aqui o homem se sente fora de si, subtraído. Além de Hegel e Feuerbach, Marx faz também severas críticas a Pierre- Joseph Proudhon (1809-1865), devido à sua pequena percepção burguesa, analisa as relações sociais capitalistas como inabaláveis. Marx já expressava sua crítica à obra Filosofia da Miséria de Proudhon antes mesmo de publicar a Miséria da Filosofia, em 1847, em uma carta endereçada a P. V. Annenkow, em 28 de dezembro de 1846. Vejamos um trecho: [...] principalmente por falta de conhecimentos históricos, o Sr. Proudhon não percebeu que os homens, aos desenvolverem suas forças de produção, isto é, ao viverem, desenvolvem certas relações entre si, e que o modo de ser dessas relações muda necessariamente com a mudança e o crescimento dessas forças de produção. Ele não percebeu que as categorias econômicas são apenas abstrações dessas relações reais e que elas são verdades apenas enquanto perduram essas relações. Ele incorre, portanto, no erro dos economistas burgueses, que veem leis eternas nessas categorias econômicas, e não leis históricas, leis que só valem para um determinado desenvolvimento histórico, para uma determinada evolução das forças produtivas. Por conseguinte, ao invés de considerar as categorias político-econômicas como abstrações de relações sociais reais, históricas e transitórias, o Sr. Proudhon, graças a uma inversão mística, vê nas relações reaistão somente encarnações dessas abstrações. (MARX apud FERNANDES, 1984, p. 436.) Desse modo, na perspectiva materialista histórica, a história humana não possui caráter determinista ou está presa a algo como o destino, por exemplo. Para Marx e Engels, a história é um campo aberto para o fazer humano, é um fazer-se dialético constante. É importante salientar que esse fazer é histórico e não ocorre de um modo aleatório, à revelia humana. Em outras palavras, a história é constituída com base em como o modo de produção da vida está organizado. Como Marx discute no capítulo introdutório ao O 18 Brumário, “Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem arbitrariamente, nas condições escolhidas por eles, mas nas condições dadas diretamente e herdadas do passado.” (apud FERNANDES, 1984, p. 48.) De acordo com Alex de Novais Dancini e José Joaquim Pereira Melo, este é o aspecto básico e central para entender o materialismo histórico, pois é a partir da maneira como o homem satisfaz a sua primeira necessidade, ou seja, manter-se vivo que Marx e Engels procuram entender as demais relações existentes na sociedade (2011, p.10). Mas isso não significa a primazia do econômico em relação às outras dimensões da vida – a política, a social, a cultural etc. –, como propagaram interpretações distorcidas dos textos destes autores. A teoria marxista toma a sociedade como um todo: não como um conjunto de partes que se integram funcionalmente, mas como um aparelho dinâmico e contraditório de relações articuladas que se implicam e se explicam estruturalmente. Assim, em O Capital – volume I (publicado em 1867 e numa versão modificada pelo próprio Marx em 1872); volumes II (1885) e III (1894), publicados por Engels –, Marx e Engels fazem uma discussão rigorosa acerca da sociedade capitalista, dando ênfase a sua dinâmica, contradições e dos futuros possíveis e, sobretudo, desejáveis que poderiam e deveriam causar as lutas sociais. Posicionando-se politicamente a partir do seu tempo presente – período em que a classe operária já se colocava como antagônica à burguesia industrial – as obras de Marx e Engels não só contribuíram para a criação de um novo método de pesquisa e interpretação da sociedade a partir do real como também para a possibilidade de transformação social. No Manifesto do Partido Comunista (1848), suas propostas não partem, como afirma José Paulo Netto, “de uma prospecção utópica de um futuro a ser construído pela dedicação eticamente generosa de uma vanguarda ilustrada, mas da análise das possibilidades concretas postas na dinâmica histórica pelo desenvolvimento real da situação presente.” (2013, p. 24) Com essa breve análise procurou demonstrar a vitalidade das obras de Marx e Engels para a compreensão que temos hoje de história como processo, o modo como os seres humanos constroem socialmente a sua vida, ligando-se ou opondo-se entre si, de acordo com sua disposição nas relações de produção na sociedade e no Estado de forma dinâmica. Ainda que haja críticas negativas em relação à teoria marxiana por parte de grupos conservadores, é inegável a importância e eloquência de suas discussões, dentro e fora dos muros acadêmicos, na análise da sociedade e na proposição do materialismo histórico como um ponto de partida para o conhecimento das relações sociais, políticas, econômicas e culturais que os homens estabelecem entre si no processo de produção dos bens materiais; bem como, para a transformação da sociedade em que vivemos. Desdobramentos da tradição marxista Atualmente existe uma grande produção em diversas áreas do conhecimento sobre o que Marx e Friedrich Engels escreveram. Muitas dessas produções fizeram uma análise apressada e distante e, às vezes, até divergente daquilo que eles estavam nos propondo. Paradoxalmente, os equívocos de interpretação de suas obras foram feitos tanto por seus próprios seguidores quanto por seus adversários. “Uns e outros, por razões diferentes, contribuíram decisivamente para desfigurar o pensamento marxiano” (PAULO NETTO, 2011, p.11-12), dando origem a diferentes vertentes e alternativas de uma larga tradição teórica e política chamada de marxismos. Entre os marxistas, as deformações e os equívocos tiveram por base as influências positivistas, vindas dos principais pensadores da Segunda Internacional, Georgi Plekhanov e Karl Kautsky. Paulo Netto discute que essas influências não foram superadas, pelo contrário, tornaram-se ainda mais intensas, inclusive com incidências neopositivistas, no desenvolvimento ideológico da Terceira Internacional, culminando na ideologia stalinista. (2011, p. 12) Delas resultou um reducionismo da obra marxiana que define o materialismo dialético como uma espécie de conhecimento geral, articulado sobre uma teoria total do ser, e o materialismo histórico como a sua particularização em face da sociedade. Sobre esta base, de acordo com o entendimento de Paulo Netto, “surgiu farta literatura manualesca, apresentando o método de Marx como resumível nos ‘princípios fundamentais’ do materialismo dialético e do materialismo histórico” (2011, p.12). Defendia-se, assim, a aplicação da lógica dialética a natureza e a sociedade, sem nenhuma distinção, sendo necessário apenas o conhecimento das suas leis (as célebres “leis da dialética”) para garantir o bom andamento das pesquisas. Neste sentido, o conhecimento da realidade não demandaria os árduos esforços investigativos de sempre, “substituído pela simples ‘aplicação’ do método de Marx, que haveria de ‘solucionar’ todos os problemas: uma análise ‘econômica’ forneceria a ‘explicação’ do sistema político, das formas culturais etc.” (PAULO NETTO, 2011, p. 13) O historiador Eric Hobsbawm (1917-2012) faz uma discussão acerca da influência de ideias marxistas entre os historiadores, as quais foram associadas a Marx e aos movimentos inspirados por seu pensamento, mas que não são marxianas. Ele denomina esse tipo de influência de “marxismo vulgar” e afirma que é necessário separá-la do componente marxista na análise história. Com esse propósito sugere que o “marxismo vulgar” abarca principalmente os seguintes elementos: 1. A “interpretação econômica da história”, ou seja, a crença de que “o fator econômico é o fator fundamental do qual dependem os demais” (para usar a frase de R. Stammler); e, mais especificamente, do qual dependiam fenômenos até então não considerados com muita relação com questões econômicas. Nesse sentido essa interpretação se superpunha ao 2. Modelo da “base e superestrutura” (utilizada mais amplamente para explicar a história das ideias). A despeito das próprias advertências de Marx e Engels e das observações sofisticadas de alguns marxistas iniciais como Labriola, esse modelo era usualmente interpretado como uma simples relação de dominância e dependência entre “base econômica” e “superestrutura”, na maioria das vezes mediada pelo. 3. “Interesse de classe e a luta de classes”. Têm-se a impressão de que diversos historiadores marxistas vulgares não liam muito além da primeira página do Manifesto Comunista, e da frase “a história [escrita] de todas as sociedades até agora existentes é a história das lutas de classes”. 4. Temas específicos de investigações históricas derivavam dos próprios interesses de Marx, por exemplo, na história do desenvolvimento capitalista e da industrialização, mas também, por vezes, de comentários mais ou menos casuais. 5. “Leis históricas e inevitabilidade histórica”. Acreditava-se, acertadamente, que Marx insistira sobre um desenvolvimento sistemático e necessário da sociedade humana na história, a partir do qual o contingente era em grande parte excluído, de qualquer maneira, ao nível de generalização sobre os movimentos de longo prazo. Daí a constante preocupação nos escritos históricos dos primeiros marxistascom problemas como o papel do indivíduo ou do acidente na história. Por outro lado, isso podia ser – e em grande parte era – interpretado como uma regularidade rígida e imposta, como, por exemplo, na sucessão das formações socioeconômicas, ou mesmo como um determinismo mecânico que às vezes se aproximava da sugestão de que não havia alternativas na história. 6. Temas específicos de investigação não derivavam tanto de Marx quanto do interesse dos movimentos associados a sua teoria, por exemplo, nas agitações das classes oprimidas (camponesas, operárias), ou nas revoluções. 7. Várias observações sobre a natureza e limites da historiografia derivavam principalmente do elemento número 2 e serviam para explicar as motivações e métodos de historiadores que afirmavam não estarem fazendo mais que a busca imparcial da verdade e se orgulhavam de simplesmente estabelecer wie es eigntlich gewesen,( Como era adequado). Fonte: HOBSBAWN, Eric J. Sobre história. Tradução Cid Knipel Moreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p.159-160. A referência ao “fator econômico” como categórica em relação aos fatores sociais, culturais, políticos etc. na história, dominante pós-fim da Segunda Guerra Mundial, atingiu a minoria dos países – como a Alemanha Ocidental e os Estados Unidos –, e que continua se expandindo por outros países, é fruto de uma leitura apressada de parte das obras de Marx e não de sua totalidade. É, ainda, resultado dos interesses de pesquisadores para adequar o pensamento dele ao seu objeto de estudo ou as suas propostas políticas. No entanto, é importante registrar que essa tendência, embora seja produto da influência marxista, não há nenhuma ligação com a obra original de Marx. No trecho de uma carta de cinco do mês de agosto de 1890, citada por Paulo Netto, Engels reclamava contra procedimentos deste gênero, insistindo em que a: [...] a nossa [de Marx e dele] concepção da história é, sobretudo, um guia para o estudo [...] É necessário voltar a estudar toda a história, devem examinar-se em todos os detalhes as condições de existência das diversas formações sociais antes de procurar deduzir delas as ideias políticas, jurídicas, estéticas, filosóficas, religiosas etc. que lhes correspondem. (MARX; ENGELS, apud PAULO NETTO, 2011, p.13) O que eles sustentavam tão somente era a ideia segundo a qual a produção e a reprodução da vida real somente em última instância determinavam a história. Tomavam a sociedade como uma totalidade, mas não na formulação leninista que divide essa totalidade em estrutura e superestrutura. Essa concepção reducionista é compartilhada também por muitos dos seus adversários teóricos, como Weber, que “criticou, na ‘concepção materialista da história’, as explicações ‘monocausalistas’ dos processos sociais, isto é, explicações que pretendiam esclarecer tudo a partir de uma única causa (ou "fator")”. (PAULO NETTO, 2011, p. 14) Porém, como afirmei no parágrafo anterior, Marx e Engels levavam em consideração o ponto de vista da totalidade e não a predominância das causas econômicas. O historiador marxista Edward Palmer Thompson (1924-1993) argumenta que a analogia “base e superestrutura” são radicalmente inadequadas. Raymond Williams, em Marxismo e Literatura, já alertava que a crítica original de Marx volta-se “principalmente contra a separação das áreas do pensamento e atividade (como na separação entre a consciência e a produção material) e contra o esvaziamento correlato do conteúdo específico – atividades reais – pela imposição de categorias abstratas.” (1979, p. 82) Portanto, a abstração comum da infraestrutura é uma continuação radical dos modos de pensar que Marx atacou. Assim como as categorias infraestrutura e superestrutura, o conceito de classe tendo sido interpretado de forma estática e abstrata, desconsiderando sua historicidade. Se a adotarmos nesse sentido, estaremos propondo que a classe sempre esteve presente como um resultado de relações de produção, daí resultando a luta de classes. Historicamente, sabemos que, no uso moderno, o termo classe guarda relação com a sociedade capitalista industrial do século XIX. Portanto, é somente no seu uso moderno que essa categoria se torna utilizável para um sistema de conhecimento da sociedade que vive nesse período (THOMPSON, 2001, p.273) e não de toda a história como difundiu o marxismo vulgar. Outro “erro recorrente de compreensão do pensamento de Marx diz respeito a um pretenso ‘‘determinismo”. Neste caso, “a teoria social de Marx estaria comprometida por uma teleologia evolucionista, ou seja, [...] uma dinâmica qualquer (econômica, tecnológica etc.) dirigiria necessária e compulsoriamente a história para um fim de antemão previsto (o socialismo).” (PAULO NETTO, 2011, p.13) No entanto, a história, na concepção marxiana, é vista como processo, em movimento. Um fator que contribuiu para a disseminação de interpretações distorcidas da teoria formulada por Marx foi à consolidação do stalinismo, quando o marxismo a partir da Segunda Internacional se converteu numa ideologia do Estado, difundindo um discurso adequado para legitimar aparatos de poder. Ainda nos anos 1930, o marxismo se institucionalizou: investido como ideologia oficial do Estado autocrático stalinista, ele se tornou uma linguagem e uma estratégia de poder. (PAULO NETTO, 2011, p. 50-51) Por meio da Terceira Internacional – criada com o propósito de homogeneizar o pensamento comunista segundo as formulações do marxismo institucionalizado –, essa transformação não aborda apenas o mundo cultural soviético. De acordo com Paulo Netto, “os modelos políticos e ideológicos do partido soviético stalinizado se generalizam entre os comunistas de todo o mundo.” (2006, p. 51). Nos finais dos anos 1950, novas divisões dentro do movimento revolucionário, segundo Paulo Netto: Tipificadas no conflito sino-soviético e reproduzidas largamente entre os comunistas, terminam por cristalizar outra divisão entre as correntes renovadoras da tradição marxista e aquelas apegadas a um novo dogmatismo (a versão inicial do maoísmo, as caricaturas albanesas e, no plano teórico mais sofisticado, o marxismo impregnado de neopositivismo, como o de Althusser). De outra, a aproximação ao legado de Marx de movimentos de insurgência de origem não proletária – baseados especialmente em camadas médias urbanas ou pequenas burguesas, intelectuais ou de inspiração religiosa –, que utilizam categorias marxianas num quadro de referência que nada tem a ver com a teoria social de Marx. (PAULO NETTO, 2006, p. 67) Infelizmente, muitas pessoas se limitaram a essas versões distorcidas das obras de Marx – que no caso do “althusserianismo”, usando um termo citado por Thompson, constitui uma evidente ação política ideológica que separa teoria e prática, construindo uma rejeição a seu pensamento que tem impossibilitado conhecê-lo em sua originalidade. Para não incorrer nos equívocos apontados acima é indispensável que todas as ideias de Marx, Engels e de seus seguidores sejam testadas e verificadas sempre, evitando que constituam verdades invariáveis e evidentes por si mesmas. Retomo Paulo Netto, para afirmar que praticamente todas essas explicações equivocadas podem ser superadas desde que o leitor não tenha preconceitos com o uso de “fontes que operam uma análise rigorosa e qualificada da obra marxiana como, por exemplo, os diferenciados estudos de Rosdolsky (2001), Dal Pra (1971), Lukács (1979), Dussel (1985), Bensaid (1999, terceira parte) e Mészáros (2009, cap. 8)”. (2011, p. 16) Mas é importante advertir que a recorrência a esses autores não dispensa uma leitura demorada e cuidadosa dos próprios textos de Marx (e, eventualmente, de Marx e Engels), pois “propicia o material indispensável e adequado para o conhecimento do método que ele descobriu para o estudo da sociedadeburguesa.” (PAULO NETTO, 2011, p. 16) Ademais, como afirma Hobsbawm, “Marx continua a ser a base essencial de todo estudo adequado de história, porque até agora apenas ele tentou formular uma abordagem metodológica da história como um todo, e considerar e explicar todo o processo de evolução social humana.” (1998, p. 181). Uma escola histórica contemporânea: a Escola dos Annales 2 CONHECIMENTOS Seu desenvolvimento em fases distintas. Compreender como nasceu o movimento dos Annales, bem como. HABILIDADES Identificar as contribuições dos Annales para a diversidade de abordagens, de temas, sujeitos e fontes na produção do conhecimento histórico. ATITUDES Instigar o pensamento crítico em relação às diferentes perspectivas de estudo da história que os Annales possibilitaram constituir. A Escola dos Annales O final do século XIX foi marcado por amplas transformações sociais e políticas, fruto das mais diversas manifestações revolucionárias que se alastraram pelos continentes europeu e americano, como os movimentos em prol da Independência dos EUA, a Revolução Francesa, as Revoluções Liberais. Mais adiante, “os movimentos feministas, a gradual inserção da mulher no mercado de trabalho, o reconhecimento acadêmico e político das minorias e maiorias oprimidas, e outros tantos processos que se desenvolveram no decurso do século XX”. (BARROS, 2007, p.26). “Felizes os apaixonados pela História, felizes porque podem ler este texto, suas rasuras e acréscimos, [...]” (FEBVRE, 1998, p. 7). Assim inicia o prefácio da obra: Honra e Pátria, de autoria do francês Lucien Febvre, feito pelo historiador Charles Morazé. Faremos destas palavras as nossas para convidá- los a apreciar esta discussão sobre a Escola dos Annales. Inicialmente, consideramos pertinente apresentar as condições que possibilitaram essa revolução na historiografia. No segundo momento, trataremos das ações e práticas gerais dos Annales, fazendo uma discussão sobre as três “gerações” e suas peculiaridades. Usando as palavras de Tânia Navarro Swain, autora, organizadora e apresentadora da obra História no Plural: “Abre-se aqui mais um palco de debates”. (1994, p. 8). Os acontecimentos de cunho histórico geralmente são gestados por insatisfação à atuação de uma política vigente. Com os Annales não foi diferente, assim como também não se revelou no alvorecer de uma manhã de sol. Eles foram estruturados a partir de estudos, pesquisas e análises do processo metodológico da pesquisa em história. A rejeição à história clássica política e militar, a construção de ídolos e a cronologia foram à base da renovação teórica e metodológica da historiografia francesa. As discrepâncias de pensamento sobre a atuação da história geraram intensos debates e embrenhou-se no território europeu como uma serpente ao meio dia sobre a areia quente, com maior ênfase na França. Historiadores como J. Michelet e Fustel de Coulanges despertaram curiosidade e admiração de muitos estudantes, entre eles Lucien Febvre; e os sociólogos Émile Durkheim e Lévy-Bruhl tiveram grande influência na formação de Marc Bloch. Imerso nesta seara, alguns pesquisadores, professores e alunos popularizaram inúmeras inquietações acerca da atuação da história e suas fronteiras com as ciências humanas e sociais, especialmente com a sociologia, a geografia, a antropologia e a economia. Eram, assim, instigados pela concepção de uma História viva e interdisciplinar. A história dos Annales tem início em 1929 e se prolonga até, aproximadamente, 1989. Porém, é necessária nossa circulação tanto no sentido de recuo quanto de avanço a esse recorte temporal, haja visto que existem versões diferenciados sobre o número de fases da Escola dos Annales e suas temporalidades. Georges Iggers citado por José Carlos Reis divide os Annales em dois momentos, um anterior a 1945, caracterizado por Emmanuel Le Roy Ladurie como sendo a “história estrutural qualitativa”, e outro pós 1945, a “história quantitativa conjuntural” (2000, p.92). Entretanto, é mais frequente uma divisão dos Annales em três fases distintas, de (1929-1946), (1946-1968) e de 1968 em diante, como veremos a partir do segundo item deste capítulo. Há ainda outros historiadores que falam de uma quarta fase, pós (1988), na qual os Annales reveem seus conceitos, suas metodologias e posições frente ao projeto da Escola. A historicidade reside na relação das ações e experiências do presente para com o passado. As perguntas adequadas às fontes históricas fazem com que o pesquisador realize a leitura destas, no tempo e no espaço ocupado pelas mesmas. Como podemos destacar no trabalho de Reinhat Koselleck: O conhecimento histórico é sempre mais do que aquilo que se encontra nas fontes. [...] Toda fonte ou, mais precisamente, todo vestígio que se transforma em fonte por meio de nossas interrogações nos remete a uma História que é sempre algo mais ou algo menos que o próprio vestígio, e sempre algo diferente dele. Uma História nunca é idêntica à fonte que dela dá testemunha. Se assim fosse, toda fonte que jorra cristalina seria já a própria História que se busca conhecer. (KOSELLECK, 2006, p.186). Tal iniciativa é fruto dos novos conceitos históricos e da mudança das ações e práticas no campo da investigação e dos métodos historiográficos que tomou forma, principalmente, pós-vanguarda da nova concepção de História, pensada por Lucien Febvre, Marc Bloch e Ernest Labrousse, em 1929, na Universidade de Estrasburgo, na França. Este movimento foi denominado de Revolução dos Annales, uma manifestação que primou por novos objetos, novas problemáticas e novas abordagens. Os Annales, ao se aproximarem das ciências sociais, romperam com a influência incisiva da Filosofia na construção do conhecimento histórico. A Revolução Francesa da Historiografia, como também ficou conhecido esse movimento, foi marcada por um veículo de comunicação escrita que perpassou as suas diversas fases e ainda em vigor, a revista de história intitulada, inicialmente, de Annales d’Histoire Economique et Sociale, fundada em 1929. Essa revista foi apontada como ferramenta de combate a história fatual e de divulgação da revolução historiográfica francesa. A historiografia do século XIX se constituiu tradicionalmente em torno do campo político e militar, mais precisamente, na constituição e desenvolvimento dos Estados Nacionais, primando por discussões como nacionalismo, narrativa dos grandes nomes e acontecimentos. É válido salientar que a Escola dos Annales, não propôs o abandono da historiografia anterior, mas sugeriu problematizar o objeto de pesquisa, diversificar as fontes e a metodologia de pesquisa, ou seja, pensar o tema sobre a abordagem da história problema. Nem sempre se fez História do mesmo jeito, de modo que a partir dos Annales, o rompimento com as narrações da história política, com o tempo cronológico, linear e irreversível se fez necessário para o aprimoramento e ampliação do conhecimento histórico através de novas técnicas e novas abordagens. Veja a citação a seguir: De certa forma Karl Marx (1818-1883), no próprio século XIX, já havia sido um percussor deste novo tipo de história, juntamente com outros historiadores isolados. O fundador do Materialismo Histórico estava preocupado com um problema muito específico quando elaborava as suas análises sociológicas e históricas: o problema do desenrolar da luta de classes e de sua inserção em um modo de produção específico. (BARROS, 2007, p.30). Porém, os trabalhos de Karl Marx apresentaram-se de modo tímido nas primeiras fases dos Annales, em razão de seus fundadores não terem sido influenciados por seu pensamento, com exceção de Ernest Labrousse, que sofreu sua influência na formação. Afinal, o que os Annalesteriam a oferecer como novo paradigma e identidade da pesquisa em história? A história a partir de então não mais construiria “Impérios”, forjaria nomes, defenderia o tempo contínuo, mas adotaria como instrumentos de pesquisa o estudo das margens, as circunstâncias dos “desvios”. A história é uma construção política e social, que tem mais consistência quando feita em consonância e contextualizada com a vivência e identidade do tempo presente. A postura questionadora do historiador, neste sentido, faz-se necessária para perceber os contrapontos e intenções presentes nas evidências históricas, pois “Os textos ou os documentos arqueológicos, mesmo os aparentes mais claros e mais complacentes, não falam senão quando sabemos interrogá-lo” (BLOCH, 2001, p.79). Neste sentido, o historiador Durval Muniz de Albuquerque Junior acrescenta, “O conhecimento, o evento em História não é, pois, um dado transparente que se oferece, por inteiro, ou em sua essência, mas é uma intriga, um tecido que vai ser retratado e, é refeito pelo historiador.” (ALBUQUERQUE JUNIOR, 2007, p.63). A historiografia pós-Annales incorpora um caráter mais reflexivo e questionador, primando não mais pela quantidade ou a qualidade (a oficialidade) dos documentos, mas procura dá ênfase à forma como estes foram ou são trabalhados e contextualizados. Da mesma forma que o pesquisador não é passivo perante as fontes, estas por sua vez, também não são neutras, são resultados de quem as produziu e fruto da seleção de quem as analisa. No texto de autoria de Tuchman Bárbara, podemos perceber como se dá a relação entre o passado (fontes) e o presente (lugar social do pesquisador) quando frisa: “[...] a razão é que quem escreve sobre o passado não esteve no passado. Não podemos nunca ter certeza de ter recapturado o passado como realmente foi. Mas o mínimo que podemos fazer é ficar dentro das provas.” (1991, p. 11), deste modo, é indispensável à consciência de que o passado é, antes de tudo, um produto e que os registros são fundamentais para sua constituição. No entanto, a História não é o que está posto nas fontes, nem mesmo o que virá a ser ou o que já é, isto é, a “presentificação” do passado. Mas, afinal, o que seria fonte para a pesquisa histórica? Até o final do século XIX apenas os documentos escritos oficiais eram considerados fontes. Um dos primeiros passos para a ruptura da oficialidade das fontes documentais foi com o movimento liderado por James Harvey Robinson, o qual defendia que: “História inclui qualquer traço ou vestígio das coisas que o homem fez ou pensou, desde o seu surgimento sobre a terra”. Por método, “A nova história deveria utilizar-se de todas as descobertas sobre a humanidade, que estão sendo feitas por antropólogos, economistas, psicólogos e sociólogos”. (ROBINSON apud BURKE, 1997, p.20). Em conformidade com essa maneira de pensar, Bloch ressalta que “A diversidade dos testemunhos históricos é quase infinita. Tudo que o homem diz ou escreve, tudo que fabrica tudo que toca pode e deve informar sobre ele.” (2001, p.79). Na pesquisa histórica, o historiador limita-se aos relatos dos testemunhos, pois, na maioria delas não vivenciou os fatos estudados. O passado é imutável, no entanto, seu conhecimento não, podendo ser progressivo e aperfeiçoado. Reinventar é uma ação que denota plena subjetividade e é necessário que todo pesquisador tenha consciência do caráter subjetivo que lhe rodeia. O objeto da pesquisa, desde a escolha do recorte, da linha metodológica, da maneira de vê-lo, da aceitação e/ou reprovação de algumas fontes durante a seleção no acervo, tem a subjetividade presente. A filosofia, começando na Antiguidade, atuou como mola mestra na condução das pesquisas e na construção do conhecimento, mas sua ramificação se fez imperativa como forma de melhor trabalhar os múltiplos fenômenos naturais e históricos que nos cercam. Isso foi essencial para a ampliação do conhecimento do homem. A ideia, proposta pelos reformadores do século XX, visou aproximar as ciências sociais para que as mesmas dialogassem entre si interdisciplinaridade, buscando melhores interpretações dos fatos, eventos e circunstâncias que envolvem a humanidade. Além da interdisciplinaridade, tal proposta tomou como base a desaceleração do tempo histórico e a ampliação das fontes. A Primeira Geração dos Annales (Marc Bloch e Lucien Febvre), 1929-1946. A Escola dos Annales teve, inicialmente, como principais articuladores Lucien Febvre e Marc Bloch (veja um pouco mais sobre eles no quadro abaixo). Reservadas as diferenças entre eles, a maneira de abordar os temas com uma perspectiva de uma história-problema os aproximava. Ambos frequentaram a Escola Normal Superior da França, que, mesmo contando com uma linha metodológica tradicional, foi um terreno fértil para o amadurecimento e troca de ideias entre estudiosos e professores das mais variadas vertentes da ciência, historiador, geógrafo, antropólogo, psicólogo social, sociólogo etc. Marc Bloch nasceu em 6 de julho de 1886, em Lyon. Convocado em 1914 como sargento de infantaria, terminou a Primeira Guerra Mundial como capitão. Em 1919, tornou-se professor da Universidade de Estrasburgo, onde desenvolveu e sistematizou, ao longo de dezessete anos, o essencial de sua obra. Em 1939, apesar da idade e das responsabilidades familiares que poderiam isentá-lo das obrigações militares, foi novamente convocado, a seu pedido. É nessa época que redige, em sua casa de campo, A estranha derrota, cujos manuscritos foram mantidos em local secreto até o fim da guerra. Ajudou a renovar as pesquisas históricas na França graças a uma abertura aos estudos da antropologia, da sociedade e da economia. Lucien Febvre nasceu em 1878, em Nancy. Estudou na École Normale Supérieure, onde se formou em história e geografia. Em 1911, doutorou-se com a tese Philippe II et la Franche-Comté: étude d"histoire politique, religieuse et sociale. Oito anos mais tarde, tornou-se professor de história moderna na Universidade de Estrasburgo (França). Publicou então La Terre et l"évolution humaine (1922) e Martinho Lutero, um destino (1928). Em 1929, junto ao historiador Marc Bloch (1886-1944), fundou a revista Annales d"histoire économique et sociale, que deu origem à corrente historiográfica conhecida como Escola dos Annales. Febvre dirigiu a revista até sua morte, em 1956. Algumas de suas principais obras traduzidas para o português são O problema da incredulidade no século XVI (1942) e Combates pela história (1952). Lucien Febvre era mais ligado à geografia de Paul Vidal de la Blache, um de seus professores; e Marc Bloch, por influência de Durkheim, à sociologia. Quando nomeados para cargos na Universidade de Estrasburgo, juntos provocaram uma mudança repentina na historiografia francesa. Segundo Peter Burke: O período de encontros diários, em Estrasburgo, entre Bloch e Febvre durou apenas treze anos, de 1920 a 1933; foi, porém, de vital importância para o movimento dos Annales. Mais importante ainda pelo fato de que ambos estavam cercados por um grupo interdisciplinar extremamente atuante. Daí a importância de realçar-se o ambiente em que se formou o grupo. (BURKE, 1997, p.27). Estrasburgo tornou-se a partir da atuação Bloch e Febvre, o principal centro de estudos e inovação intelectual da Europa, pós-Primeira Guerra Mundial (1914-1918). A unificação da França, a efervescente discussão sobre a epistemologia da história, as possíveis relações com outras ciências foram elementos que contribuíram para que o país se tornasse referência e berço da Escola dos Annales. Rogério Forastieri da Silva afirma que: O aparecimento de certa forma tardia de histórias gerais da historiografia na França associa-se, por sua vez, a um quadro de referências mais amplo que deveser explicitado. Acreditamos que seja possível afirmar que a intensificação das reflexões historiográficas de caráter geral na França situa-se em torno do imediato pós-primeira Guerra Mundial e parece que, não sem bons motivos, tendem a se concentrar naquele momento na Universidade de Estrasburgo. (SILVA, 2001, p.175). A atuação do renascentista Febvre e do medievalista Bloch como professores, facilitou o intercâmbio entre disciplinas e ideias sobre a renovação da história, pois, de acordo com Febvre apud Burke: Suas salas de trabalho eram contíguas, e as portas permaneciam abertas (Febvre, 1953, p. 393). Em suas infindáveis discussões participavam colegas como o psicólogo social Charles Blondel, cujas ideias eram importantes para Febvre, e o sociólogo Maurice Halbwaches, cujo estudo sobre a estrutura social da memória, publicada em 1925, causou profunda impressão em Bloch. (BURKE, 1997, p.27). Após (1918), Febvre idealizou uma revista internacional dedicado à história econômica que existiu por pouco tempo, em decorrência de algumas dificuldades. Em (1928), Marc Bloch criou a Annales d’Histoire Economique et Sociale, que ficou sob sua direção e de Febvre. “Promover a aproximação da história das ciências sociais e afirmar a nouvelle histoire não por artigos teóricos, mas ‘pelo exemplo e pelo fato’”, destaca o editorial do primeiro número da revista, publicado em 15 de janeiro de 1929. Com o objetivo de socializar e divulgar as ideias do movimento, esta revista marcaria a liderança intelectual dos Annales. Ela seria, segundo Burke, “... O porta voz, melhor dizendo, o alto falante de difusão dos apelos dos editores em favor de uma abordagem nova e interdisciplinar da história.” (BURKE, 1997, p.33). Surgiu com o objetivo de fazer o contraponto aos veículos tradicionais reverberante na sociedade europeia da época. Tomando um termo histórico, Burke declara que os Annales atuaram como uma revista de seita herética. “É necessário ser herético”, declara Febvre em sua aula inaugural. (BURKE, 1997, p.43). Sobre a fundação da revista e de sua proposta, destaca Silva: Em torno de Marc Bloch e Lucien Febvre estão dispostos e empenhados em inovar as perspectivas sobre os estudos históricos, como já referimos com a fundação da revista Annales (1929), concebida, entre outros aspectos, como um veículo para condenar o que consideravam ser a “história tradicional” e ao mesmo tempo promover as suas novas propostas. (SILVA, 2001, p.194). A atuação efetiva de Febvre e Bloch na sociedade francesa fertilizou o terreno para a sociabilização dos novos conceitos e métodos da história. A ação deles se deu por meio da direção da revista científica; de publicações de artigos, defendendo a nova metodologia historiográfica; dos embates com pesquisadores de correntes historiográficas diferentes; como professores universitários. Bloch ainda participou do primeiro e segundo conflito mundial. Burke afirma em seus escritos a atuação do colega em um trecho intitulado Febvre no poder: Depois da guerra, Febvre foi convidado a auxiliar na reorganização de uma instituição mais prestigiosas no sistema francês de educação superior, a École Pratique de Hautes Études, fundada em 1884. Foi eleito membro do Instituto e tornou-se também o delegado francês na UNESCO, participando da organização da coleção sobre a “História Cultural de Científica da Humanidade.” Se não bastasse Febvre ainda fundou a VI Seção da École Pratique des Hautes Études, em 1947. Ele tornou-se presidente da VI Seção, dedicada às ciências sociais, e Diretor do Centro de Pesquisas Históricas, uma seção dentro da seção. Nomeou discípulos e amigos para as posições chave da organização. Braudel, [...], auxiliou-o a administrar o Centro de Pesquisas Históricas e os Annales. (BURKE, 1997, p.42). A Primeira Fase dos Annales, de modo geral, é entendida como o período de constituição de um olhar inovador do historiador, a conscientização da necessidade de ampliação das fontes documentais, problematização dos fatos históricos, revisão da noção de temporalidade e sistematização dos métodos de pesquisa. Bloch, em especial, já escrevia uma história de longa duração, com períodos mais alongados e estruturados. Em sua obra Apologia da História, é possível destacar os objetos de estudo de forma problematizada e sua credibilidade a temas como poder monárquico, crenças e ritos, medicina popular e mentalidades etc. A nova concepção de história não criou um novo método de pesquisa, apenas empregou os métodos de forma sistemática e interdisciplinar. A escola dos Annales foi um movimento de aversão à História Metódica Francesa, que tinha como inspiração a Escola Histórica Alemã. Propunha deste modo, uma renovação da pesquisa em história. Febvre apud Burke enfatiza que: Pouco a pouco os Annales converteram-se no centro de uma escola histórica. Foi entre 1930 e 1940 que Febvre escreveu a maioria de seus ataques aos especialistas canhestros e empiristas, além de seus manifestos e programas em defesa de “um novo tipo de história” associado aos Annales – postulando por pesquisa interdisciplinar, por uma história voltada para problemas, por uma história da sensibilidade, etc. (FEBVRE apud BURKE, 1997, p.38). Pela oportunidade de atuarem frente a diversos setores da sociedade francesa, os Annales conseguiram despertar em ex-alunos e colegas de profissão um entusiasmo crescente. Febvre reconhecia a existência de um grupo de discípulos, um núcleo fiel de jovens, que adotaram o que chamavam de “o espírito dos Annales”. Entre esses jovens, destacou-se Fernand Braudel, com quem Febvre teve contato em 1937, e Pierre Goubert que: “[...] estudava com Bloch, nessa época, e, embora viesse a especializar-se na história do século XVII, permaneceu fiel ao estilo da história rural de seu mestre. Alguns de seus discípulos em Estrasburgo estavam, então, transmitindo suas mensagens em escolas e universidades.” (BURKE, 1997, p.38). Com esses nomes, o movimento continuou firme na campanha de formular teórica e metodológica a ciência histórica. A História foi, por muito tempo, entendida como uma ciência do passado. No entanto, é válido salientar que este entendimento caiu por terra, principalmente, no decorrer do século XX. Como diria mais tarde Walter Benjamin, “a História é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de agoras”, (1985, p.229). Nessa lógica, a relação passado/presente se inverte para tornar mais clara à relação do momento do qual partimos. Assim, é imprescindível saber lidar e contextualizar as experiências envolvidas no processo de pesquisa da história. A produção do conhecimento histórico lida com as mais diversas circunstâncias de tempo e espaço, ou seja, o historiador, em suas análises, parte de inquietações e problematizações do presente, no sentido de desvendar, compreender e até mesmo transformar as versões dos fatos e acontecimentos por ele selecionados, de modo que a História se torna uma realidade viva e mutável. O campo de atuação do historiador torna-se complexo, o objeto de pesquisa e análise do pesquisador em História é o tempo passado, mas diretamente relacionado ao presente. Este passa a ser o ponto de partida de investigação do passado. Por fim, cabe-nos perguntar: o que justifica o nascimento da revolução historiográfica na França? Por volta de 1900, as críticas à história política eram particularmente agudas e as sugestões para sua substituição bastante fértil. Nesta mesma época, na França, a natureza da história tornou-se o objeto de um intenso debate (BURKE, 1997, p.20). É notório e quase que consenso o reconhecimento da Alemanha, pelos estudiosos da historiografia, como o local mais propício para liderar a revolução da historiográfica no início do século XX, sobretudo porque era norteadorada história até então. No entanto, a atuação de pensadores, como o economista François Simiand, Ernest Lavisse, e Henri Berr – que promoviam constantes críticas ao trabalho de Charles-Victor Langlois e Charles Seignobos, principais representantes da Escola Metódica Francesa, alimentou o sentimento de insatisfação em relação à maneira de fazer a história na França. Além do mais, as iniciativas políticas dos governos franceses de financiarem as pesquisas históricas, a eliminação da competição intelectual alemã, somada as contribuições individuais de Febvre, Bloch e Braudel e as influências coletivas dos Annales foram decisivas para que a revolução historiográfica partisse da França. A Segunda Geração dos Annales (Fernand Braudel), 1946-1968. Mach Bloch foi fuzilado na data de 16 de julho de 1944 pelas tropas alemãs, após ser capturado na Resistência Francesa grupo de Lyon. Lucien Febvre veio a óbito doze anos depois, (1956). Mas seus legados e influências difundiram-se pela Europa e demais continentes. Fernand Braudel (veja mais sobre ele no quadro abaixo), discípulo e continuador da obra de Bloch e Febvre, foi um dos mais importantes expoentes da Segunda Fase dos Annales. Em 1929, quando surgiram os Annales, Braudel tinha vinte e sete anos, no entanto, já vivia intensamente o mundo da história. Estudava na Sorbonne, lecionava em uma escola da Argélia e em Besançon e trabalhava em sua tese, intitulada Felipe II e o Mediterrâneo. Sua rotina foi interrompida ao ser convidado para lecionar na Universidade de São Paulo (USP), durante dois anos (1935-37). Esse período foi definido por ele, posteriormente, como um dos mais felizes de sua vida (BURKE, 1997, p.46), pois, ao regressar, conheceu Febvre, que, além de intervir na ordem do título de sua tese, transformando-o em Mediterrâneo e Felipe II, adotou-o como discípulo que continuaria o legado e os projetos dos Annales. Durante a primeira geração, a abordagem dos Annales focava, sobretudo, nos estudos da economia e das relações sociais. No entanto, com o desenrolar da segunda, outros temas ganharam força, como o estudo das civilizações, da demografia, por exemplo. A segunda geração dura três décadas, liderada por Fernand Braudel. Ele faz com que os Annales se aproximem mais de uma escola, com a criação de conceitos e métodos. Braudel foi, assim como seus antecessores, um homem de grande influência na sociedade francesa. Publicou sua tese em (1949) e, no mesmo ano, iniciou sua carreira como professora no Collége de France, assumindo, ao lado de Febvre, a direção do Centre Recherches, na École de Hautes Études. Quando Febvre veio a óbito, em 1956, Braudel tornou-se sucessor efetivo nos Annales. Em 1962, o secretário executivo da revista, Robert Mandrou, outro “filho” de Fevbre, demitiu-se da função em decorrência de desafeto com o presidente Braudel. (Burke, 1997, p.56). Naquele momento, o presidente iniciou uma campanha para escolher pessoas que dessem continuidade a seu projeto, surgindo nomes como Jaques Le Goff, Ladurie e Marc Fero. Braudel, conforme afirma Burke, “Era impaciente com fronteiras, que separassem elas, regiões ou ciências. Desejava ver as coisas em sua inteireza, integrar o econômico, o social, o político e o cultural na história total”. (BURKE, 1997, p.56). A ideia da história geral ainda marcava a pesquisa histórica nesta fase. As orientações e influências de Febvre, somadas aos escritos recentes sobre esta proposta, estimulavam essa identidade. O Mediterrâneo é a audaciosa proposta feita por Febvre a Braudel, visando escrever a história da Europa, em dois volumes, abrangendo o período de (1400 a 1800). Braudel escreveu a sua parte em três volumes, com o título: Civilization matérielle et capitalisme. Além deste trabalho com vistas à história total, temos a tese de Pierre Chaunu, Sevilha e o Atlântico (1955-1960), que, de acordo com Burke, é “talvez a mais longa tese já escrita, [...] tenta imitar, se não mesmo superar Braudel, tomando como sua região o oceano Atlântico”. (BURKE, 1997, p.69). Essas obras são exemplos da perspectiva e marco da história regional e serial, das mudanças na longa duração. Braudel alarga o conceito de tempo, ao distingui-lo em curta e longa duração, ou seja, os eventos históricos, podem se dar em ampla ou restrita dimensão temporal. O recorte é estabelecido em função de uma “série” de fontes ou materiais que se tornam o alvo das inquietações do pesquisador. Chaunu dividiu seu escrito em duas partes, intituladas “Estrutura” e “Conjuntura”. Acerca da relevância e das características da história serial: François Furet, em seu Atelier do Historiador, define a História Serial em termos da constituição do fato histórico em séries homogêneas e comparáveis. Dito de outra forma trata-se de “serializar” o fato histórico, para medi-lo em sua repetição e variação através de um período que muitas vezes é o da longa duração. (BARROS, 1997, p. 47). A principal contribuição da segunda geração dos Annales foi o reconhecimento de que era preciso mudar a percepção de uma história fechada, imutável, com base nas “estruturas”. Braudel tinha a obsessão por conhecer o todo, desejava ver o objeto em sua plenitude, ver grande, o todo. Como bem destaca Burke, tinha “vasto apetite para estender as fronteiras de seu objeto” (1997, p.55). Através do posto que ocupava, conseguiu pulverizar esta concepção histórica, chegando a marcar as primeiras décadas da segunda geração dos Annales, que formou um arcabouço de pesquisa, tendo como base a Influência de Ernest Labrouse, da Demografia Histórica e História Demográfica e a formalização da História Regional e Serial. Braudel manteve contatos com os novos métodos e colaborou para o crescimento e correlação com as ciências vizinhas. Enquanto presidente dos Annales manteve grande influência na produção historiografia, apoiou financeiramente (através de bolsas de estudo) pesquisadores nacionais e estrangeiros, visando melhor difundir o estilo da historiografia francesa. Embora Braudel seja reconhecido, a história quantitativa foi fruto de uma colaboração geral dos pesquisadores da história e demais ciências humanas. Conhecida também por “Revolução quantitativa” teve como base de sustentação as estruturas socioeconômicas. Recebeu a influência de dois importantes pensadores, o economista François Simiand e o historiador e marxista Ernest Labrousse, que, desde a fundação dos Annales, colaborou com o projeto da nova historiografia. Braudel, de acordo com Burke, fazia uso das estatísticas ocasionalmente. “Contudo, não é parcial dizer que os números são apenas a decoração de seu edifício histórico, e não parte de sua estrutura.” (HEXTER apud BURKE, 1997, p. 66). Burke continua destacando como Braudel foi de alguma maneira ausente a dois grandes movimentos no interior da história dos Annales, a história quantitativa e a história das mentalidades. De modo que o mérito e sucesso da segunda fase deste movimento devem ser sociabilizados. A escrita formulada a partir de gráficos e tabelas, pautada em dados gerais, criou a história quantitativa. Na segunda geração, é visível o uso frequente de métodos quantitativos, no caso de Braudel, por influência. “Há motivos para suspeitar que houvesse influência de Labrousse na 2ª edição do Mediterrannée, em 1966, pois há uma maior ênfase na história quantitativa e inclusão de tabelas e gráficos inexistentes na primeira.” (BURKE, 1997, p.69). Foi com Labrousse que o marxismo começou a penetrar no grupo dos Annales. O mesmo ocorreu com os métodos estatísticos, pois Labrousse foi incentivado pelos economistas Albert Alfalion e Simiand a empreender um rigoroso estudo quantitativo da economia francesa do século XVIII. (BURKE, 1997, p.68). O artigo de Lucien Febvre, Amiens, da Renascença a Contrarreforma, publicadoem 1941 nos Annales, trata da importância do estudo das séries de documentos, na longa duração, para mapear mudanças de atitudes e mesmo no gosto artístico. Mas, nesse artigo, Febvre não oferece aos seus leitores estatísticos precisos. A estatística “foi desenvolvida para estudar a história da prática religiosa, a história do livro e a história da alfabetização. Espraiou-se, algum tempo depois, para outros domínios históricos.” (BURKE, 1997, p.62). A Terceira Geração dos Annales, 1968-1989. Existem diferentes interpretações sobre a terceira geração dos Annales. “O problema está em que é mais difícil traçar o perfil da terceira geração do que das duas anteriores. Ninguém neste período dominou o grupo como o fizeram Febvre e Braudel” (BURKE, 1997, p.56). Essa fase foi profundamente marcada pela fragmentação, tanto do processo de liderança, quanto do objeto de estudo. “Nos últimos vinte anos, porém alguns membros do grupo transferiram-se da história socioeconômica para a sociocultural, enquanto outros estão redescobrindo a história política e mesmo a narrativa”, destaca Peter Burke (1997, p. 56). As duas pessoas de maior destaque na terceira geração dos Annales, segundo Burke, foram Ladurie e Jacques Le Goff. O primeiro, escreveu sua tese sobre a França mediterrânea, sob influência e orientação de Braudel e Jacques Le Goff. Ladurie sucedeu Braudel no colégio Collège de France. (1997, p.58). O segundo sucedeu o autor de O mediterrâneo na presidência da antiga VI Seção da École Pratique des Hautes Études e é também considerado como um dos expoentes da história das mentalidades. (LACERDA, 1994, p.12). Durante suas três fases, os Annales sofreram um “vendaval de eventos” e se alteraram para se adaptar às mudanças da sociedade do século XX. (REIS, 2006, p. 79). A terceira geração, segundo Burke, apresentou três pontos centrais: a redescoberta da história das mentalidades, as tentativas de empregar métodos quantitativos na história cultural e a reação oposta a tais métodos. Ainda nessa fase, uma “Nova história” ou História Cultural começou a se constituir. Lilia Moritz Schwarcz, na apresentação à edição brasileira da obra Apologia da História, ou, o ofício do historiador, enfatiza que os estudos de Bloch e Febvre “convertiam-se em motes de ataque aos modelos mais empíricos, assim como libelos de defesa de ‘um novo tipo de história’, identificada no grupo seleto dos Annales.” (In: BLOCH, 2001, p. 10). O século XX foi expressamente o tempo das mudanças, em especial, no que diz respeita às ciências. A revolução dos Annales atravessou o século XX de modo que suas inquietações, seus objetos e interpretações também mudaram simultaneamente, pois partiam de tempos e problemas distintos, que necessitavam de novas versões e informações sobre os fatos pesquisados. Já não teria mais sentido para este novo século uma História meramente descritiva ou narrativa, no sentido exclusivamente factual. Aos historiadores impunha-se agora a tarefa não de simplesmente descrever as sociedades passados, mas de analisá-las, compreendê-las, decifrá-las. [...], não faria sentido a não ser uma obra de divulgação para o grande público produzir uma história descritiva e narrativa dos acontecimentos que marcaram a Revolução Francesa. O que exigia do historiador agora era que ele recortasse um problema dentro da temática mais ampla da revolução Francesa como, por exemplo, o problema da “dessacralização do poder público na Revolução Francesa” ou o problema da “Influência das ideias iluministas nos grupos revolucionários”, ou o problema da “evolução dos preços na crise que precedeu o período revolucionário”. (BARROS, 2007, p. 31). A história passa a ser norteada por hipóteses. Formular questões e alimentar dúvidas se torna crucial para a pesquisa em história. Deste modo, a história busca, numa perspectiva maior, explorar as lacunas, os temas, que outrora eram desprezados pela história fatual. Daí surge a “história vista de baixo”, a “história das massas” ou dos “homens comuns”, reafirmando o rompimento com a tradição elitista, com a história dos “grandes homens”. Os escritos baseavam-se em questões como a ascensão do proletariado, a alfabetização, relações de serviço e comércio do dia a dia. Fatos como o carnaval de (1580) na França, momento em que artesãos e camponeses se valeram das máscaras para proclamar que “os ricos da cidade tinham se tornados prósperos à custa dos pobres” (BURKE, 1997, p.77), ganharam ênfase. A História vista pela “perspectiva das classes subalternas”, o estudo das revoltas camponesas, com participação de jovens, mulheres e crianças são outros exemplos dessa abordagem. Foi somente nessa fase que mulheres, como Christiane Klapisch, Arlette Farge, Mona Ozouf e Michèle Perrot, foram inclusas no grupo de discussões de Annales. Georges Duby e Michèle Perrot, por exemplo, empenharam-se em organizar uma história da mulher em vários volumes. (BURKE, 1997, p. 80). Acompanhando as tendências de seu tempo, os domínios da História se ampliaram para âmbitos cada vez mais diversos, que vai da cultura material as mentalidades, a “história imediata” “história do tempo presente”, por meio da adoção de abordagens de outras disciplinas. A velha história política, com suas escolhas temáticas entre o institucional e o individual de elite, com seu olhar de cima e sua perspectiva eurocêntrica, teve de ceder espaço a uma nova história com a sua miríade de novos temas, a eclipsar os antes tradicionais objetivos de estudo que agora, teriam de esperar novas reviravoltas para recuperar algum espaço no palco historiográfico. (BARROS, 2007, p.32). A descentralização adotada nessa fase possibilitou o diálogo com conceitos de outras disciplinas. Braudel havia incentivado a interdisciplinaridade e o contato com intelectuais de outros países por meio do financiamento de estudantes estrangeiros, quando estava na direção do movimento. Muitos dos membros da Escola dos Annales viveram um tempo nos Estados Unidos e aprenderam a falar e escrever em Inglês, o que facilitou esse intercâmbio. O movimento cresceu e as ideias e tendências ligadas aos Annales não atuavam mais só na França, desenraizou-se, perpassou fronteiras, ampliando as chances de inovações e contribuindo para a sociabilização de seu estudo. Os campos temáticos da historiografia vêm e vão de acordo com as próprias flutuações histórico-social e em sintonia com as mudanças de paradigmas historiográficos. Diante dessas colocações, você deve se perguntar: se os Annales contestaram a história dos grandes nomes e datas, por que Bloch intitulou uma de suas maiores obras de Os reis Taumaturgos e por que Febvre escreveu sobre Rabelais e Braudel O Mediterrâneo? (BARROS, 1997, p. 31). Há de fato diferenças entre a primeira, segunda e terceira fase dos Annales. No entanto, não se trata de distorção ou de diferenças arbitrárias, elas são fruto do aperfeiçoamento dos métodos e adaptação da história às circunstâncias e aos acontecimentos da sociedade de seu tempo. Outro ponto a ser considerado é a expansão das fronteiras geográficas da história. Heri Moniot, autor do Artigo “L’histoire des peuples sans histoire” chama a atenção pelo fato de que durante muito tempo o que se constituía a história como disciplina era fundamentalmente marcada pelo eurocentrismo, como se outros povos não possuíssem sua própria história. (SILVA, 2001, p. 209). Com uma política mais heterogênea adotada pela terceira Geração dos Annales, observa-se uma abertura do leque de observação e estudo de outras culturas. Entram em pauta novos campos de investigação, como a “história dos povos sem história”, especialmente em relação à África. Como podemos constatar, a segunda fase desse movimento deu maior atenção à história quantitativa, a pesquisas socioeconômicas,
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