Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
PSICOLOGIA APLICADA AO CUIDADO Fernanda Egger Barbosa O conceito ampliado de saúde Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: � Traçar um perfil acerca da compreensão do conceito de saúde ao longo da história. � Reconhecer o conceito ampliado de saúde da Organização Mundial da Saúde alinhado aos modos de viver na contemporaneidade. � Problematizar a superação do binômio saúde-doença em meio às práticas dos profissionais de saúde. Introdução A Organização Mundial de Saúde (OMS) surgiu a partir da declaração de sua Constituição, em 1946. Contudo, somente se tornou uma instituição física em 7 de abril de 1948, sendo subordinada à Organização das Nações Unidas (ONU). A OMS tem como princípio básico repensar o conceito de saúde de forma universal, ou seja, a saúde passa a ser definida como um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade. Para compreender o conceito ampliado de saúde, faz-se necessário analisar alguns fatores históricos que mudaram as definições e os conceitos de saúde e doença no desenvolvimento das sociedades humanas. Além disso, é importante conhecer como foi formada a OMS e como foi concebido o Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil. Trata-se de um ponto de partida para o incremento de políticas públicas em saúde, baseadas nas três princi- pais esferas de atenção: primária, secundária e terciária, que destacam o conceito ampliado de saúde e seus desdobramentos nos modos de viver de nossa sociedade. Neste capítulo, você estudará sobre a evolução do conceito de saúde e doença ao longo da história humana. Além disso, conhecerá as iniciativas dos profissionais de saúde em sua prática cotidiana. Por fim, verá como se deu a superação do binômio saúde-doença proposto na época de implementação das políticas públicas da OMS. 1 O conceito de saúde ao longo da história O que você pensa quando ouve o termo saúde? O que primeiro lhe vem à mente? Um indivíduo saudável é aquele que não faz uso de nenhum medicamento e/ ou que dificilmente precisa procurar um profissional e/ou instituição de saúde? Provavelmente, sim. Assim, primeiro, faz-se necessário compreender o conceito de saúde. Por muito tempo, a saúde foi considerada como uma situação física de ausência de doenças para o ser humano, o que tornava esse manejo restrito à hegemonia do conhecimento médico sobre as patologias (DUARTE, 1998; HELMAN, 2006; POLIGNANO, 2001). No entanto, a doença pode ser compreendida como um conceito multi- paradigmático, pois existem vários tipos de doenças: doenças que provocam dor física; aquelas que produzem sofrimento psíquico; aquelas que possuem diversos sintomas observáveis; outras, assintomáticas; as que nos impossibi- litam de exercer atividades diárias; as que podemos lidar em nosso cotidiano, no curso de nossas vidas. Assim, entender a saúde tão somente como ausência de doença é uma tarefa bastante complexa. Ao longo da história humana, a doença apresentou-se bastante presente no cotidiano das pessoas. Nos primórdios de sua concepção, ela era considerada um mal que acometia pessoas ou famílias e comunidades inteiras. Conforme Scliar (2007), na Idade das Trevas (período da Idade Média marcado pelo predomínio de poder da Igreja Católica, época em que houve o acometimento da pandemia da peste negra por toda a Europa), por exemplo, a doença re- presentava a influência de alguma entidade “maligna” sobre um indivíduo, estabelecida pela crença de que este fora afetado por ter cometido um pecado, feito um pacto demoníaco ou por culpa, e o tratamento se resumia a uma prescrição mágica ou exorcismo. O conceito ampliado de saúde2 Nesse cenário, em algumas sociedades, pedia-se a interferência de um xamã, pajé, curandeiro ou mesmo da figura religiosa de autoridade. Scliar (2007, p. 30) descreve os rituais mágicos utilizados contra uma enfermidade: Assim, a concepção mágico-religiosa partia, e parte, do princípio de que a doença resulta da ação de forças alheias ao organismo que neste se introdu- zem por causa do pecado ou de maldição. Para os antigos hebreus, a doença não era necessariamente devida à ação de demônios, ou de maus espíritos, mas representava, de qualquer modo, um sinal da cólera divina, diante dos pecados humanos. Para o autor, a doença acompanha a espécie humana desde o início das sociedades. No Egito Antigo, constatou-se, por meio de estudos paleontológi- cos, que o faraó Ramsés V era acometido por varíola. Na Bíblia, encontram-se várias referências aos leprosos, que recebiam tratamentos que misturavam o cuidado familiar e a exclusão social. Entre os judeus, existiam medidas para a prevenção de doenças, como não deixar que uma pessoa com problemas de pele preparasse um alimento. Segundo Scliar (2007), na Antiguidade Clássica, eram cultuados deuses que representavam a saúde e a higiene, sendo Hipó- crates (grego que se acredita ter vivido entre 460–377 a.C.) considerado o pai da medicina, referência entre os filósofos antigos que destacavam a mudança de um caráter mais racional para a medicina, quebrando com a antigo fazer xamânico. No Oriente, a lógica para lidar com questões de saúde era procurar o equilíbrio de forças e hábitos, pois estas podiam influenciar no estado de saúde e doença de uma pessoa. Por volta de 1500, acreditava-se, na Europa, que as doenças eram causadas por agentes externos e, além das práticas da alquimia, houve avanços nos estu- dos de química e sobre a influência desta sobre a medicina. O saber científico passou a ser considerado com o avanço da mecânica, na industrialização. O homem passou a ser visto como uma máquina, na dualidade cartesiana de corpo-mente. Os estudos de anatomia deslocaram a perspectiva de doença baseada nos humores, passando a ser determinada a partir dos órgãos enfermos. Para a medicina, a doença era descrita como um distúrbio ou um quadro pato- lógico, de acordo com o conhecimento adquirido na prática. Assim, primeiro, insolava-se a enfermidade, para, então, reconhecer seus sintomas, determinar as causas e os efeitos e, por fim, prescrever um tratamento já reconhecido para ela (SCLIAR, 2007). 3O conceito ampliado de saúde Scliar (2007) explica, ainda, que, com os revolucionários descobrimentos de Pasteur (1822–1895), que trouxe um novo elemento detectado por meio dos microscópios, os microrganismos causadores de doenças, e a consequente produção de soros e vacinas, a medicina começou a avançar rapidamente. Já no século XX, a medicina e a saúde andavam de mãos dadas com a ciência, havendo um aumento de interesse na medicina tropical. Esta dava atenção às doenças endêmicas e epidêmicas, e a saúde passou a ser contabilizada não só quanto às suas características individuais, mas também quanto às sociais. Desse modo, a estatística passou a ser uma ferramenta de elaboração de novas teorias e controle de endemias. Após as duas Guerras Mundiais, tornou-se urgente uma conceituação uni- versal de saúde e a criação de um órgão que regulasse as relações internacionais e as medidas das ações públicas no campo da saúde. Assim, após a Segunda Guerra Mundial, foram criadas a Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização Mundial de Saúde (OMS, 1946). Atualmente, a OMS caracteriza a saúde como “uma situação de perfeito bem-estar físico, mental e social”. No entanto, diversos estudiosos consideram essa definição ultrapassada, visto que parece um tanto utópica, um objetivo que, na prática, é muito difícil de ser atingido, principalmente levando em consideração as desvantagens socioeconômicas e políticas dos países ainda em desenvolvimento (FARIAS; BUCHALLA, 2005; SEGRE; FERRAZ, 1997). Assim, pode-se afirmar que a definição de saúde passou por um processo de conceituação ao longo da história, processo este atrelado a movimentos políticos, sociais, educacionais e pragmáticos. Hoje, a saúde é um campo multidimensional (i.e.,pode ser vista sob diversos aspectos, principalmente na tríade biopsicossocial) e multidisciplinar, pois é descrita, estudada, praticada e concebida por várias categorias profissionais, não sendo mais objeto exclusivo do saber médico (FARIAS; BUCHALLA, 2005). Na atualidade, pensa-se o fenômeno saúde-doença como um processo ampliado que envolve aspectos individuais e coletivos, nos âmbitos público e privado, levando em consideração a história das sociedades, da formação e do desenvolvimento das cidades, a heterogeneidade dos povos, o trabalho, as guerras, as viagens, a ecologia e as condições naturais ambientais, as novas tecnologias e os modos de estar e se relacionar no mundo. Enfim, falar em saúde implica falar do ser humano e de suas diversas esferas de relações com o meio em que vive. O conceito ampliado de saúde4 Breve história da saúde no Brasil Desde a época do descobrimento do Brasil até o período chamado de Primeiro Reinado (1822), a atenção à saúde limitava-se a um repertório leigo, baseado nos recursos que a terra tinha a oferecer e em conhecimentos empíricos na arte de curar, em que curandeiros utilizavam ervas e plantas. Essas práticas foram, aos poucos, substituídas com a chegada da família real, que obrigou a implantação de uma organização sanitária mínima à cidade do Rio de Janeiro (BARBOSA, 2007). Até 1850, o controle sanitário ocorria, basicamente, pelo controle de navios e da saúde nos portos. Para controlar a epidemia de febre amarela, iniciou-se, com a proposta do sanitarista Oswaldo Cruz, uma campanha de erradicação da doença. Foram realizadas campanhas de vacinação, e, por isso, esse modelo de controle social ficou conhecido como modelo campanhista. Anos mais tarde, conforme explica Barbosa (2007), esse modelo foi inovado por Carlos Chagas e outros jovens sanitaristas, que introduziram a propaganda de ações de saúde e a educação sanitária à população. A proposta era produzir a internalização de comportamentos saudáveis e preventivos nos hábitos dos brasileiros mediante constantes ações educativas. A nova Constituição de 1937 instituía uma política social de massa, cen- tralizando a autoridade na figura do Presidente. O investimento na saúde se deu já no fim dos anos 50, com a criação do Ministério de Educação e Saúde Pública, que fazia a fiscalização de produtos utilizados na agricultura, na higiene e no trabalho (já em nível de segurança). Polignano (2001, p. 11) explica a crescente pressão por assistência médica no território brasileiro: “[...] a partir, principalmente, da segunda metade da década de 50, com o maior desenvolvimento industrial, com a consequente aceleração da urbanização, e o assalariamento de parcelas crescentes da po- pulação, [...] ocorre maior pressão pela assistência médica via institutos [...]”. Assim, como mencionado, com o fim da Segunda Guerra Mundial, surgiu a urgência entre vários países do mundo de se criar um órgão que gerenciasse e concentrasse ações em saúde, a fim de alcançar uma definição oficial de saúde em um sistema internacional. Assim, em 1948, subordinada à ONU, é criada a OMS, e o Brasil, por ser um país tropical, berço de diversas endemias, teve um papel fundamental na sua constituição. Com o período da ditadura militar (1964–1985), houve, no Brasil, o fortalecimento do poder executivo e do 5O conceito ampliado de saúde desenvolvimento nacional movido a capital estrangeiro. À época, dois órgãos de gerenciamento da saúde foram criados, o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) e o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps) (órgãos nacionais de previdência social e de assistência à saúde), e o modelo de saúde priorizado era o da medicina curativa. A diminuição do investimento estrangeiro afetou o ritmo de crescimento econômico, e, em 1975, o modelo desenvolvimentista da ditadura militar entrou em crise. A população brasileira passou a conviver com o desemprego, a marginalidade, o aumento da favelização e a mortalidade infantil. A insatis- fação com a administração, os escândalos de desvios de verbas dos sistemas previdenciários e a falta de investimento em saúde coletiva levou a população à descrença nas ações de saúde, acarretando uma crise no Brasil. Assim, o período que se segue ao fim da ditadura militar foi marcado por tentativas de avanço e alguns retrocessos na área de saúde, e mudanças efetivas no campo da saúde pública no Brasil ocorreram apenas com a concepção e a entrada em vigor da nova Constituição Federal de 1988. A Constituição Federal defende que a saúde é um direito de todos (BRASIL, 1988). Dessa forma, torna-se um dever do Estado assegurar o acesso à saúde a toda a população. Em conformidade com essa perspectiva, foram criadas políticas públicas, sociais e econômicas com o objetivo de reduzir o risco de doenças e agravos e garantir o acesso universal e igualitário às ações e aos serviços de promoção, proteção e recuperação da saúde de forma integral, culminando com a regulamentação do Sistema Único de Saúde (SUS) (BRA- SIL, 1990). O SUS foi definido a partir de três diretrizes básicas: � Descentralização: das ações de saúde com direção única em cada uma das esferas de governo (Federal, Estadual, Municipal). � Atendimento integral: com prioridade em atividades preventivas, sem prejuízo das atividades assistenciais. � Participação da comunidade: criação de fóruns para detectar neces- sidades de investimento nas principais demandas locais. A criação do SUS e a participação do Brasil nos fóruns de saúde em níveis mundiais trouxeram, efetivamente, um ganho político-social, porém os inte- resses hegemônicos do mercado acabaram dificultando a efetivação de uma prática plena nos princípios da noção ampliada de saúde proposta pela OMS desde a sua implementação até os dias atuais. O conceito ampliado de saúde6 Ao longo da história da saúde no Brasil e no mundo, muitos modelos de assistência foram ultrapassados e substituídos, mas o modelo biomédico prevaleceu por muitos anos e ainda obtém a hegemonia nas pesquisas e nas práticas de saúde nos dias atuais. Esse modelo rompeu com a concepção da Idade Média, com base nos avanços mecanicistas do século XIX, nas concepções do mundo e do homem, propostas por Galileu, Newton e Descartes, e no desenvolvimento de novas tecnologias e disciplinas. A partir de então, o homem passa a ser pensado como uma máquina e estudado em partes, e a doença e sua cura passam a ser os alicerces da concepção de saúde. Contudo, em relação ao modelo anterior, o modelo biomédico perde o caráter holístico. Embora, em seguida, tenha sido proposto o modelo biopsicossocial como um conceito ampliado de saúde, o modelo biomédico jamais foi ultrapassado. 2 Conceito ampliado de saúde na contemporaneidade A OMS, em sua Constituição, caracteriza a saúde como uma situação de perfeito bem-estar físico, mental e social. Essa organização contou com a participação de diversos países na sua concepção, principalmente o Brasil, e influenciou, com suas diretrizes, a criação e a implementação do SUS no País. Conforme visto, a OMS surgiu de uma perspectiva mundial de se descrever um conceito universal oficial de saúde que ajudasse a maximizar as prioridades para manter uma população ou nação saudável em todas as partes do mundo. Subordinada à ONU, a OMS foi criada em 7 de abril de 1948, tendo como principal objetivo a realização da saúde para todas (OMS, 1946). Leia, a seguir, um segmento de texto da Constituição da OMS: Os Estados Membros desta Constituição declaram, em conformidade com a Carta das Nações Unidas, que os seguintes princípios são basilares para a feli- cidade dos povos, para as suas relações harmoniosas e para a sua segurança; A saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade. Gozar do melhor estado de saúde que é possível atingir constitui um dos direitos fundamentais de todo oser humano, sem distinção de raça, de religião, de credo político, de condição econômica ou social. A saúde de todos os povos é essencial para conseguir a paz e a segurança e depende da mais estreita cooperação dos indivíduos e dos Estados. Os resultados conseguidos por cada Estado na promoção e proteção da saúde são de valor para todos. O desigual desenvolvimento em 7O conceito ampliado de saúde diferentes países no que respeita à promoção de saúde e combate às doenças, especialmente contagiosas, constitui um perigo comum. O desenvolvimento saudável da criança é de importância basilar; a aptidão para viver harmonio- samente num meio variável é essencial a tal desenvolvimento. A extensão a todos os povos dos benefícios dos conhecimentos médicos, psicológicos e afins é essencial para atingir o mais elevado grau de saúde. Uma opinião pública esclarecida e uma cooperação ativa da parte do público são de uma importância capital para o melhoramento da saúde dos povos. Os Governos têm responsabilidade pela saúde dos seus povos, a qual só pode ser assumida pelo estabelecimento de medidas sanitárias e sociais adequadas. Aceitando estes princípios com o fim de cooperar entre si e com os outros para promover e proteger a saúde de todos os povos, as partes contratantes concordam com a presente Constituição e estabelecem a Organização Mundial da Saúde como um organismo especializado, nos termos do artigo 57 da Carta das Nações Unidas (OMS, 1946, documento on-line). Para saber mais sobre a Constituição da OMS, seus princípios, bases, diretrizes e fun- cionamento, você pode digitar “Constituição da Organização Mundial da Saúde (OMS/ WHO)” no seu mecanismo de busca para ler o documento na íntegra. A OMS é composta por Estados-Membros, que nomeiam delegações para a Assembleia Mundial de Saúde, que se constitui como um corpo de comis- sários que tem poder supremo de decisões e promove reuniões anuais no mês de maio. Essa assembleia elege os 34 membros da direção executiva, com duração de 3 anos de mandato, que devem ser tecnicamente qualificados na área de saúde, para executarem as decisões tomadas. A OMS se sustenta com contribuições dos Estados-Membros, mas existem parcerias com instituições não governamentais e indústrias farmacêuticas, que excedem as contribui- ções realizadas pelos Estados-Membros. Cada Estado-Membro precisa ficar responsável por elaborar anualmente um relatório sobre as medidas de saúde tomadas e os progressos de melhoria da saúde da população e apresentá-lo à OMS (OMS, 1946). Além da definição de saúde como um processo que articula o binômio saúde-doença, a definição ampliada leva em consideração o que preconizou a OMS como completo bem-estar biopsicossocial. Na 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986, foi definido o conceito ampliado de saúde, que inclui bens e direitos humanos, como alimentação, habitação, educação, renda, meio O conceito ampliado de saúde8 ambiente, trabalho e emprego, lazer, transporte, liberdade, acesso à posse de terra e a serviços, como condições básicas e necessárias para garantir a saúde de uma população. O conceito ampliado de saúde da OMS foi muito importante para a composi- ção de novas formas de políticas públicas em países ainda pouco desenvolvidos, como o Brasil, pois inseriu campos importantes, como os da psicologia e da sociologia, na rede pública de saúde, influenciando a concepção do ser humano não apenas como indivíduo, mas também como sujeito social, privilegiando, assim, a subjetividade e a cidadania. A criação das diretrizes do SUS, por sua vez, principalmente o princípio de integralidade, foi baseada nessa concepção mais ampla da saúde. Segundo o Ministério de Saúde (MS) do Brasil, o SUS é um dos maiores e mais complexos sistemas de saúde pública no mundo, visto que abrange desde atendimentos simplificados, como avaliação da pressão arterial e da glicemia, até os mais complexos, como tratamentos de câncer e transplantes de órgãos. Além disso, garante o acesso integral, universal e gratuito de toda a população à saúde. Portanto, oferta aos brasileiros o acesso integral à saúde, buscando a qualidade de vida, a prevenção, a promoção, o tratamento e a reabilitação. O SUS foi criado a partir dos princípios da nova Constituição Federal de 1988, e são duas as principais leis que o regulamentam: a Lei nº 8.080/90 e a Lei nº 8.142/90, sendo que a primeira cria e define os princípios básicos do SUS e a segunda dispõe, principalmente, sobre a participação da comunidade no SUS (BRASIL, 1988, 1990a, 1990b). A estrutura do SUS é composta por: MS, Secretarias Estaduais (SES) e Municipais (SMS), Conselhos de Saúde, Comissões Tripartite (CIT) e Bipartite (CIB) e Conselhos, como Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems) e Conselho das Secretarias Municipais de Saúde (Cosems) (BRASIL, 1990a, 1990b). O SUS possui três princípios básicos: universalização, equidade e inte- gralidade. Segundo Barbosa (2007) e o MS (BRASIL, 2020), esses princípios são definidos da seguinte forma: � Universalidade: o direito à saúde é universal, é um direito de cidadania e garantido pelo Estado; o acesso aos serviços de saúde é para todas as pessoas, sem distinção, sendo inaceitável qualquer tipo de preconceito. � Equidade: apesar de os direitos serem iguais para todas as pessoas, elas não são iguais, e o SUS deve dar atenção, principalmente, àqueles que possuem maior carência. Segundo o MS, o objetivo da equidade é diminuir as desigualdades. 9O conceito ampliado de saúde � Integralidade: esse princípio pressupõe a pessoa como um todo, com múltiplas necessidades. Nesse sentido, as ações em saúde têm de ser integradas, por isso precisam ser pensadas em, pelo menos, três di- mensões, como preconizou a OMS, considerando o sujeito um ser biopsicossocial. Pressupõe-se a integração da saúde com as demais políticas públicas. As ações em saúde pensadas quanto a um direito integral consideram a promoção da saúde, a prevenção de doenças e agravos à saúde, o tratamento e a reabilitação a uma vida saudável, com qualidade de vida. Com base em uma das suas diretrizes básicas, a descentralização, bali- zada pela concepção de que o Governo Federal e os estados e municípios têm poder e responsabilidades iguais sobre as pesquisas e ações de saúde, o SUS se organiza de forma hierárquica e regionalizada (BRASIL, 1990a). Nessa concepção, não existe o poder concentrado em uma única pessoa ou instituição. Assim, o Governo Federal deve garantir condições técnicas e financeiras para que os municípios desempenhem suas capacidades administrativas de forma autônoma e soberana nas decisões e práticas em prol da saúde, desde que respeitem os princípios gerais da OMS e do SUS, bem como a participação da comunidade. A participação popular é outra das principais diretrizes do SUS, e as uni- dades básicas de saúde (UBS) devem incentivar a participação da comunidade nos conselhos e conferências de saúde, nos fóruns e nas atividades locais que visem a formular estratégias, para o controle e a avaliação da execução de políticas e ações de saúde (BARBOSA, 2007; BRASIL, 1990a, 1990b). A promoção da saúde é o grande tópico no que diz respeito a novas con- cepções e práticas em saúde pública no Brasil e no mundo. O SUS também está organizado em polos e unidades de assistência, no caso de uma doença já estar instalada e necessitar de tratamento ou reabilitação. As unidades de saúde são divididas de acordo com três graus de complexidade: primário, secundário e terciário (BRASIL, 1990a). No nível primário, são encontrados atendimentos e procedimentos básicos, como nos postos de saúde ou programas de saúde da família, onde costumam se concentrar a maioria das ações de promoção, principalmente as educativas e que busquem a participação comunitária. No setor secundário, são atendidas basicamente situações de urgência e emergência, como nas UPAse emergências de hospitais. Por fim, o terceiro nível abrange uma complexidade maior de especificidade de saberes e técnicas, instrumentos e aparelhagem avançados e cirurgias. São os casos, por exemplo, dos hospitais de referência. O conceito ampliado de saúde10 O conceito ampliado de saúde e sua operacionalização na contemporaneidade Atualmente, as pessoas no mundo todo estão sujeitas a constantes informa- ções a respeito de novos produtos e tecnologia de ponta que visam a facilitar a vida cotidiana, seja na sua esfera privada, seja em sociedade, modificando relações pessoais, de consumo, de aprendizado e de saúde. Esses avanços trazem sempre benefícios e prejuízos, como o constante descarte de lixo de tecnologias ultrapassadas, ocasionando problemas ambientais, problemas de postura, ergonômicos, problemas de concentração e de saúde. A busca pelo bem-estar biopsicossocial preconizado pela OMS e sua ope- racionalização no cotidiano do trabalho dos profissionais de saúde não é uma tarefa fácil. A Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde (OMS, 1986) estabeleceu uma série de princípios éticos e políticos, definindo os campos de ação de promoção da saúde. Acima de tudo, a promoção da saúde é um processo de capacitação da comunidade para melhorar a sua qualidade de vida e da sua comunidade por meio da participação nos programas (OMS, 1946). O mesmo documento (OMS, 1986) destaca que, para se obter esse estado de bem-estar coletivo, uma nação ou estado tem de fornecer à população recursos indispensáveis, como: paz, renda, habitação, alimentação adequada, ambiente saudável, situação econômica, social e cultural favorável, prevenção de problemas de saúde e acesso à informação. No entanto, o Brasil é um país com severas e múltiplas desigualdades sociais. Desse modo, na prática, a concretização do que preconiza a Constituição Federal de 1988 — de que a saúde é um direito de todos e um dever do Estado — está ainda longe de ser alcançada, a não ser por movimentos pontuais, que, na maioria das vezes, fazem alguma diferença. Nesse sentido, torna-se imprescindível a superação do modelo biomédico e a valorização e a superação do modelo biopsicossocial, promovendo a efe- tivação de ações cotidianas que valorizem a reorganização técnica, política e administrativa das unidades de saúde, preparando-as, e aos seus profissio- nais, para pensar e acolher o sujeito em suas necessidades básicas, visando à melhoria da qualidade de vida e, consequentemente, do bem-estar. Nesse aspecto, há de se reconhecer, no trabalho cotidiano, se realmente a população tem acesso a bens e serviços de educação, trabalho, transporte, lazer, entre outros, descritos na VIII Conferência. 11O conceito ampliado de saúde Segundo alguns pesquisadores, como Batistella (2007), o reforço da ação comunitária e a reciclagem do conhecimento técnico dos profissionais que atuam no campo da saúde são fundamentais para as ações nos moldes do conceito ampliado de saúde. Além disso, podem servir como ferramentas para ações de prevenção de doenças e agravos, construindo parâmetros saudáveis dentro de suas comunidades, além de promoverem melhores condições de tratamento e qualidade de atendimento na atenção básica, nos postos de saúde e nos núcleos de saúde da família. Portanto, a população precisa conhecer e se apropriar de seus direitos. A “Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde” traz informações para que você conheça seus direitos na hora de procurar atendimento de saúde. Ela reúne os seis princípios básicos de cidadania que asseguram ao brasileiro o ingresso digno nos sistemas de saúde, seja ele público ou privado: � Todo cidadão tem direito ao acesso ordenado e organizado aos sistemas de saúde. � Todo cidadão tem direito a tratamento adequado e efetivo para seu problema. � Todo cidadão tem direito a atendimento humanizado, acolhedor e livre de qualquer discriminação. � Todo cidadão tem direito a atendimento que respeite a sua pessoa, seus valores e seus direitos. � Todo cidadão tem responsabilidades para que seu tratamento aconteça da forma adequada. � Todo cidadão tem direito ao comprometimento dos gestores da saúde para que os princípios anteriores sejam cumpridos. Fonte: Brasil (2019). 3 Promoção da saúde: desafios dos profissionais de saúde frente ao cotidiano de seus trabalhos Segundo o MS, a promoção da saúde consiste em um conjunto de estratégias e formas de produzir saúde, no âmbito individual e coletivo, visando a atender às necessidades sociais de saúde e à melhoria da qualidade de vida. O conceito ampliado de saúde12 O informe sobre saúde apresentado pela OMS em 2002 apontava para um risco mundial de consumo pelo excesso ou pela escassez, com riscos ambientais e de saneamento pela produção industrial, propiciados por comportamentos inseguros (BRASIL, 2002). No caso do Brasil, era necessário tomar decisões efetivas para o enfrentamento das questões de saneamento. Segundo o MS (BRASIL, 2002), o Brasil é um país em desenvolvimento que convive com problemas de possuir um território extenso e muito diver- sificado, com grandes desigualdades sociais, determinadas historicamente. Essa extrema diversidade duplica e influencia a carga de doença, cenário que configura a complexidade dos desafios em saúde no País. Estatisticamente, em nível social, a saúde dos cidadãos é medida pelas taxas de morbidade (que descrevem a frequência com que ocorre uma doença em determinado período de tempo) e pelas taxas de mortalidade (que caracterizam o número de mortos daquele período). Contudo, individualmente, esse fator toma proporções menos quantitativas e mais qualitativas, pois baseia-se no depoimento de cada pessoa sobre como ela se sente, como ela descreve seu estado de bem-estar e suas capacidades de realizar atividades diárias. No documento do MS (BRASIL, 2002), novas contextualizações dos problemas que o SUS enfrenta para ser implementado de forma mais ampla e efetiva na sociedade brasileira foram explicitadas, como o fato de que, nos seus princípios orientadores, ele ainda resiste no modelo de atenção primária, fortemente fundamentado na biomedicina, o que acaba influenciando os dados epidemiológicos de problemas de saúde no País. Nesse sentido, a promoção da saúde se apresenta como uma possibilidade concreta de mudança, tanto para fortalecer quanto para fundamentar a consolidação da saúde. Hoje, vive-se esse grande dilema no campo da saúde, o que acaba impedindo o avanço na proposta de saúde pública do SUS e no que recomenda a OMS. Na prática, os profissionais de saúde estão cheios de ideologias, oriundas da sua formação, porém, quando chegam nas unidades de saúde para exercer suas práticas profissionais, acabam se decepcionando com a falta de recursos e condições de trabalho e com o fato de terem de lidar dentro dos princípios de cidadania e humanização do atendimento de forma ética. 13O conceito ampliado de saúde Relatórios mais atuais demonstram novas tendências e entraves no en- frentamento das práticas dos profissionais de saúde em relação ao conceito ampliado de saúde nas unidades do SUS. O Conass publicou uma proposta para a efetivação da promoção da saúde como política pública no Brasil. Em documento publicado na internet em 2016, o Conselho destacou que o objetivo geral da promoção da saúde é a qualidade de vida e a redução de fragilidades e riscos à saúde. Segue a descrição das medidas a serem adotadas (CONASS, 2016): 1. Concentrar os esforços políticos e técnicos, os recursos e o trabalho criativo para o enfrentamento dos problemas de saúde mais relevantes, traduzidos pelos índices de mortalidade e potencial de morbidade (hi- pertensão arterial e outras doenças cardiovasculares, diabetes melito, acidentes e violências). 2. Adotar medidas formais que instituam em todos os níveis de governo mecanismos claros e definidos de articulação intersetorial, com capaci- dade de ação sobre os determinantes sociais da saúde esobre os fatores que influenciam diretamente o nível de saúde e bem-estar da população. 3. Estabelecer medidas intersetoriais, no plano dos marcos legais, sobre os fatores que interferem diretamente sobre as diferentes manifestações da violência (homicídios, agressões interpessoais, suicídios e acidentes de trânsito, com especial atenção para o aumento exponencial daqueles que envolvem motocicletas). 4. Aprofundar as medidas de controle sobre a indústria alimentícia, a exemplo do que já está em curso com a redução dos níveis de sal nos produtos de panificação, regulamentando com maior rigor e precisão os níveis de sal, açúcar e gordura dos alimentos industrializados. 5. Aperfeiçoar as medidas de desestímulo ao consumo excessivo de álcool, integrando as ações intersetoriais e estabelecendo objetivos claros e bem-definidos, inclusive quanto ao calendário para sua efetiva implementação. 6. Promover a equidade desde o início da vida por meio da oferta de um conjunto amplo de políticas, programas e serviços para a promoção do desenvolvimento na primeira infância. Agregar aos programas de sobrevivência infantil componentes de promoção do desenvolvimento socioemocional, cognitivo e da linguagem. O conceito ampliado de saúde14 7. Buscar meios financeiros e organizacionais para apoiar a estruturação e o funcionamento de núcleos de promoção da saúde nos estados e municípios, com a formação de grupos técnicos com conhecimentos, habilidades e competências para efetivar a articulação intrassetorial e intersetorial. 8. Integrar efetivamente as ações de grupos técnicos à estrutura da atenção primária à saúde (equipes de saúde da família, núcleos de apoio à saúde da família [NASF]), promovendo a articulação intra e intersetorial, com a comunicação social direcionada à promoção da saúde para os diferentes atores (gestores, profissionais de saúde, comunidade). 9. Promover, de modo integrado entre as três esferas de governo, ações que estimulem e apoiem a prática regular da atividade física, formulando propostas conjuntas, alocando recursos específicos e integrando ações intra e intersetoriais, notadamente aquelas relacionadas à mobilidade urbana e à segurança. Estimular a implantação do autocuidado apoiado no âmbito da atenção primária à saúde, principalmente no trabalho das equipes de saúde da família. 10. Estabelecer, no âmbito do SUS, uma metodologia de avaliação perma- nente sobre as ações estabelecidas, com clareza quanto à periodicidade e ao método de aferição de resultados e correção de rumos. O site da ONU no Brasil informou que o último relatório da OMS, de 2019, definiu 10 prioridades de saúde. Entre os problemas mencionados, estão poluição do ar, pandemias e atenção básica da saúde. Fonte: Nações Unidas (2019). Apesar dos vários avanços alcançados desde a concepção do SUS até os dias atuais, ainda há um longo caminho que os profissionais de saúde devem percorrer para alinhar as suas práticas aos moldes do conceito ampliado de saúde do SUS e superar o tratamento das questões de saúde apenas sobre a ótica de um binômio saúde-doença. Batistella (2007) conceitua bem esses entraves e sua multiplicidade de fatores de clivagem quando afirma que, por um lado, é preciso compreender os determinantes sociais do processo saúde- 15O conceito ampliado de saúde -doença, evitando, assim, a individualização e a fragmentação com base no modelo biologicista; e, por outro, os profissionais de saúde devem ter atenção para que não haja uma normatização dos corpos baseados numa lei biossocial que prescreve estilos de vida e comportamentos mediante normas culturais e particulares, visto que a saúde, em sua multiplicidade de aspectos, não pode ser redutível a uma de suas dimensões. Daí a importância de uma leitura baseada em um trabalho interdisciplinar em saúde-doença-cuidado para a população. O autor defende, ainda, uma mudança paradigmática na operacionalização da promoção da saúde para evitar incorrer a uma prática reducionista ou cristalizadora, uma prática generalizante modeladora de comportamentos saudáveis, por meio de ações que busquem a participação da comunidade: Mais do que médicos, enfermeiros, técnicos, agentes e demais trabalhadores da saúde, serão incorporados ambientalistas, engenheiros, advogados, antro- pólogos, artistas, jornalistas, garis, e a própria população envolvida direta ou indiretamente na produção e/ou na solução do problema [...] (BATISTELLA, 2007, p. 81). Batistella (2007) também afirma que o objetivo da ação em saúde é a qualificação do tradicional cuidado preventivo-curativo em relação às doenças infecciosas e não infecciosas, expandindo-a para a compreensão de danos, riscos, necessidades e determinantes das condições de vida, saúde e trabalho. Às vezes, os problemas são ambientais, como ausência de saneamento, ou sociais, como a deficiência da escola, a violência entre os jovens e a indisponibilidade de áreas de lazer e de acesso à cultura (transporte, moradia, etc.). Nas práticas, segundo o autor, é preciso contar com uma dimensão comu- nicativa, estabelecendo vínculos sociais com a comunidade, “[...] visando à troca de saberes populares e científicos, ao fortalecimento técnico e ao ama- durecimento político a partir do reconhecimento da história, dos problemas e das próprias potencialidades do território [...]” (BATISTELLA, 2007, p. 81). O autor ainda aponta para o planejamento participativo como ferramenta para viabilizar esse encontro, identificando e definindo prioridades nas propostas de intervenção e a capacidade de mobilização dessas ações. Batistella (2007) indica uma ferramenta que considera mais efetiva nas ações atuais do SUS para as atividades que o profissional de saúde deve buscar no seu cotidiano de trabalho, como os diagnósticos participativos e interdisciplinares, favorecendo encontros entre a população e os serviços de saúde, pois, assim, serão definidas práticas mais efetivas para a qualidade de vida e a saúde. O conceito ampliado de saúde16 Portanto, o profissional de saúde precisa estar seguro de sua formação técnica e ética e, ao mesmo tempo, compreender que, na prática, infinitas e múltiplas possibilidades e situações irão surgir, de modo que não deve se desesperar com elas, mas sim aproveitá-las para construir sua própria forma de trabalho, tendo como base o que recomenda o SUS e a OMS. Um movimento importante para o atendimento das demandas nas uni- dades de saúde respeitando direitos, subjetividades e cidadanias é chamado de humanização. O conceito de humanização está voltado para as ações de assistência à saúde, de forma integral, no tratamento de doenças e agravos. Assim, a humanização torna-se uma importante ferramenta para a prática profissional. Segundo Goulart e Chiari (2010), a Política Nacional de Humanização (PNH) apontou, em 2004, algumas marcas que precisam ser atingidas no atendimento resolutivo e acolhedor, a fim de combater a despersonalização dos usuários de saúde e garantir seus direitos, além da educação permanente dos profissionais e da participação nos modos de gestão. A humanização também avalia e valoriza o grau máximo de satisfação do usuário, institucionalmente mensurado na qualidade dos serviços de saúde. Bueno, Agostinho e Carvalho (2007) apontam para os entraves à qualidade do atendimento, que levaram as políticas a valorizar o trabalho de humanização. Segundo os autores, apesar dos grandes avanços ocorridos desde então, no que se refere aos seus princípios norteadores e à descentralização da atenção e da gestão, grandes desafios ainda são enfrentados, como os listados a seguir: � Fragmentação do processo de trabalho e das relações entre os diferentes profissionais. � Precária interação das equipes e despreparo para lidar com a dimensão subjetiva nas práticas de atenção. � Sistema burocrático e verticalizado. � Baixo investimento na qualificação dos trabalhadores, principalmente no que se refere à gestão participativae ao trabalho em equipe; poucos dispositivos de fomento à cogestão e à valorização e à inclusão de gestores, trabalhadores e usuários no processo de produção de saúde. � Desrespeito aos direitos dos usuários. � Desvalorização dos trabalhadores de saúde. 17O conceito ampliado de saúde Goulart e Chiari (2010) apontam que uma das formas de combater esses entraves é propor estratégias de atenção para a implementação da humaniza- ção como uma política transversal sustentada pelo Estado. A humanização, como política transversal, supõe enfrentar e atravessar fronteiras às vezes rígidas nos núcleos de saber/poder na produção da saúde. Uma das práticas mais fundamentais em termos de humanização do atendimento em saúde é o chamado acolhimento. Segundo o MS (BRASIL, 2010), acolher, entre outros significados (dar acolhida, aceitar, dar crédito, agasalhar, receber), é uma forma eficaz de apro- ximação e inclusão do usuário de saúde. Assim, o acolhimento é considerado uma das diretrizes de maior relevância ética, estética e política da PNH do SUS, na qual a ética se traduz por compromisso com o reconhecimento do outro e acolhimento de suas diferenças e seu modo de viver. Ela é estética nas relações, nos encontros, com estratégias que contribuam para a dignidade da vida humana, e política enquanto compromisso coletivo no “estar com” o usuário, potencializando seu protagonismo nesses encontros. Contudo, não se deve considerar o acolhimento como oferecimento de um simples espaço de atendimento confortável ou repasse de encaminhamento de serviços especializados, pois essas ações são importantes, mas não devem ser isoladas de outras que realmente trazem benefícios à saúde da população e à satisfação do usuário. Segundo o MS (BRASIL, 2010), a proposta de acolhimento deve estar articulada com outras propostas de mudança nos processos de trabalho e nas gestões dos serviços de saúde, como a ambiência, um programa de formação em saúde do trabalhador e demais ações coletivas, recursos importantes no processo de humanização dos serviços de saúde. O texto do MS de 2010 traz um exemplo importante de como o acolhimento e a humanização do atendimento produzem resultados na prática: Uma postura acolhedora implica estar atento e poroso às diversidades cultural, racial e étnica. Vejamos aqui o caso de uma usuária indígena que Cartilha da PNH 22 Acolhimento nas Práticas de Produção de Saúde dá entrada numa unidade de saúde e, após o atendimento e a realização do diagnóstico, é indicada para ela uma cirurgia (laparoscopia) urgente, a ser realizada pelo umbigo. Após a comunicação do procedimento indicado, a usuária se recusa a realizar o procedimento, dizendo que ela não pode deixar que mexam no seu umbigo, pois (segundo a sua concepção, herança de sua cultura) este é a fonte de onde brota a vida. Se assim o fizesse, infortúnios diversos poderiam recair sobre ela, conforme acredita. Diante da recusa e frente à urgência para a realização do procedimento, a equipe entra em contato com o cacique ou a liderança política do grupo e, juntos, decidem que a usuária seria levada para uma unidade mais perto de sua aldeia. Decidem também que, antes do O conceito ampliado de saúde18 procedimento, o pajé ou a liderança religiosa realizaria um ritual ou proce- dimento cultural direcionado à preservação de sua integridade, de acordo com o ponto de vista da concepção de saúde da própria sociedade e cultura. Isso foi realizado e acolhido pela equipe, que posteriormente teve sucesso na realização da cirurgia (BRASIL, 2010, documento on-line). BARBOSA, F. E. Análise das demandas e perspectivas de alunos de pós-graduação sobre o campo da comunicação em saúde. 2007. Dissertação (Mestrado em Biociências e Saúde) – Fundação Oswaldo Cruz, 2007. BATISTELLA C. Abordagens contemporâneas do conceito de saúde. In: FONSECA, A. F.; CORBO, A. D. (org.). O território e o processo saúde-doença. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2007. p. 51-86. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 12 mar. 2020. BRASIL. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990a. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/leis/l8080.htm. Acesso em: 12 mar. 2020. BRASIL. Lei nº 8.142, de 28 de dezembro de 1990b. Dispõe sobre a participação da comuni- dade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre as transferências intergover- namentais de recursos financeiros na área da saúde e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8142.htm. Acesso em: 12 mar. 2020. BRASIL. Ministério da Saúde. Acolhimento das práticas de produção da saúde. 2. ed. Brasília: MS, 2010. BRASIL. Ministério da Saúde. Política nacional de promoção da saúde. Brasília: MS, 2002. BRASIL. Ministério da Saúde. Princípios do SUS. 2020. Disponível em: https://www.saude. gov.br/sistema-unico-de-saude/principios-do-sus. Acesso em: 12 mar. 2020. BRASIL. Ministério da Saúde. Sistema Único de Saúde (SUS): estrutura, princípios e como funciona. 2019. Disponível em: https://www.saude.gov.br/sistema-unico-de-saude. Acesso em: 13 mar. 2020. BUENO, E.; AGOSTINHO, M. L.; CARVALHO T. H. P. F. Humanização: construindo um novo conceito de fazer saúde. In: VILARTA, R. (org.). Qualidade de vida e novas tecnologias. Campinas: Ipes Editorial, 2007. CONASS. Promoção da saúde. 2016. Disponível em: conass.org.br/promoção-da-saude. Acesso em: 12 mar. 2020. 19O conceito ampliado de saúde DUARTE, L. F. D. Pessoa e dor no Ocidente (o “holismo metodológico” na antropologia da saúde e doença). Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 4, n. 9, p. 13–28, 1998. FARIAS, N.; BUCHALLA, C. M. A classificação internacional de funcionalidade, incapaci- dade e saúde da organização mundial da saúde: conceitos, usos e perspectivas. Revista Brasileira de Epidemiologia, São Paulo, v. 8, n. 2, p. 187–193, 2005. GOULART B. N. G.; CHIARI, B. M. Humanização das práticas do profissional de saúde: contribuições para reflexão. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 15, n. 1, p. 255–268, 2010. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413- -81232010000100031&script=sci_abstract&tlng=pt. Acesso em: 12 mar. 2020. HELMAN, C. G. Interações médico-pacientes. In: HELMAN, C. G. Cultura, saúde e doença. 4. ed. Porto Alegre: Artmed, 2006. NAÇÕES UNIDAS. OMS define 10 prioridades de saúde para 2019. 2019. Disponível em: https://nacoesunidas.org/oms-define-10-prioridades-de-saude-para-2019/. Acesso em: 13 mar. 2020. OMS. Carta de Ottawa para la promoción de la salud. Ottawa: OMS, 1986. OMS. Constituição da Organização Mundial da Saúde. 1946. Disponível em: http:// www.direitoshumanos.usp.br/index.php/OMS-Organiza%C3%A7%C3%A3o-Mundial- -da-Sa%C3%BAde/constituicao-da-organizacao-mundial-da-saude-omswho.html. Acesso em: 13 mar. 2020. POLIGNANO, M. V. História das políticas de saúde no Brasil: uma pequena revisão. 2006. Disponível em: http://www.saude.mt.gov.br/ces/arquivo/2165/livros. Acesso em: 13 mar. 2012. SCLIAR, M. História do conceito de saúde. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, p. 29–41, 2007. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/physis/ v17n1/v17n1a03.pdf. Acesso em: 13 mar. 2020. SEGRE, M.; FERRAZ, F. C. O conceito de saúde. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 31, n. 5, p. 538–542, 1997. Os links para sites da Web fornecidos neste capítulo foram todos testados, e seu fun- cionamento foi comprovado no momento da publicação do material. No entanto, a rede é extremamente dinâmica; suas páginas estão constantemente mudando de local e conteúdo. Assim, os editores declaram não ter qualquer responsabilidade sobre qualidade, precisão ou integralidade das informações referidas em tais links. O conceito ampliado desaúde20
Compartilhar