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1 Direito Constitucional Constituição é a Lei Maior de uma sociedade politicamente organizada. É o modo pelo qual se forma, se estabelece e organiza uma sociedade. Classificação. As constituições podem ser classificadas quanto ao conteúdo, como materiais e formais. Do ponto de vista material, Constituição seria um conjunto de normas que disciplinam a criação do Estado, da sua estrutura básica, das atribuições de seus órgãos, dos limites de poder, dos direitos dos indivíduos, dos grupos e da sociedade como um todo. Constituição é a lei maior, a lei fundamental e suprema de um Estado. Seu conteúdo atinge a estruturação do Estado, a formação dos poderes públicos, forma de governo, aquisição do poder, distribuição de competências, direitos, garantias e deveres dos cidadãos. Formalmente, Constituição é o texto escrito resul- tante da manifestação do Poder Constituinte Ori- ginário que somente poderá ser modificado nos limites estabelecidos pelo mesmo Poder Consti- tuinte. A Constituição Federal é a norma superior de todo o ordenamento normativo brasileiro que de- termina como devem ser produzidas as demais normas e que limita o conteúdo das mesmas, condicionando-o ao seu texto, às suas determina- ções. Conforme ensina Paulo Bonavides, as Constitui- ções não raro inserem matéria de aparên- cia constitucional. São pontos introduzidos no texto constitucional, mas que não se referem a elementos básicos ou institucionais da organiza- ção política. Em relação à forma, as constituições podem ser escritas e não escritas. Escritas seriam as constituições sistematizadas em um só texto. Já as constituições não escritas são geralmente contidas em textos esparsos ou em costumes e convenções. Em relação à origem, as constituições podem ser promulgadas ou democráticas e outorgadas. O que se analisa aqui é a legitimidade democráti- ca do exercício do Poder Constituite. Promulgadas serão as constituições que conta- rem com a participação popular na sua elabora- ção mediante a eleição de representantes. Outorgadas serão as constituições resultantes da ausência da legítima manifestação popular na sua construção e da imposição pelos detentores do poder político de fato. No tocante à estabilidade do seu texto, isto é, em relação ao procedimento adotado para a modifi- cação do texto constitucional, as constituições serão rígidas, flexíveis ou semirrígidas. As constituições serão rígidas quando o procedi- mento de modificação da Constituição é mais complexo do que aquele estipulado para a cria- ção de legislação infraconstitucional. Flexíveis serão as constituições que poderão ser modificadas pelo legislador ordinário conforme o procedimento adotado para a edição da legisla- ção infraconstitucional. Semirrígidas serão as constituições em que cuja parte só poderá ser alterada mediante um proce- dimento mais dificultoso, ao passo que o restante pode ser modificado pelo legislador ordinário, segundo o processo previsto para a edição de legislação infraconstitucional. No tocante à extensão e finalidade, as constitui- ções serão analíticas ou dirigentes e sintéticas ou negativas. As constituições analíticas trabalham todos os assuntos relevantes à formação, destinação e funcionamento do Estado. As constituições sintéticas apenas prevêem os princípios e as normas gerais de regência do Estado. TRAÇANDO a evolução constitucional do Brasil devemos concentrar todo o interesse indagativo e toda a diligência elucidativa numa seqüência de peculiaridades, de ordem histórica e doutrinária, que acompanharam e caracterizaram o perfil das instituições examinadas, designadamente com respeito à concretização formal e material da estrutura de poder e da tábua de direitos cujo conjunto faz a ordenação normativa básica de um Estado de poderes limitados. De tal sorte que a reflexão há de ocorrer ao redor de temas-chave como poder constituinte e Consti- tuição, separação de poderes, organização unitá- ria e organização federativa do Estado e direitos do homem, cuja universalidade e fundamentali- dade, por exprimir parte essencial de todo pen- samento político concretizado em termos consti- tucionais, não pode deixar de ser assinalado com todo o destaque devido. O Brasil desta análise histórica corresponde as- sim a um modelo de país constitucional que até 2 aos nossos dias se busca construir, numa longa travessia de obstáculos. Até agora esse modelo permanece, todavia, ina- cabado, após cerca de dois séculos de renovadas diligências e sacrifícios; é projeto fugaz sujeito às oscilações da ideia e da realidade com as quais não logrou ainda se compatibilizar. Projeto blo- queado inumeráveis vezes pelas resistências absolutistas, pelo continuísmo e vocação de per- petuidade governista, bem como pelos interesses representativos comprometidos com um status quo de dominação que a classe política busca manter inalterável, debaixo de seu jugo, insensí- vel por inteiro ao rápido senão vertiginoso agra- vamento das desigualdades sociais e regionais, cujo quadro é sobressalente enquanto prelúdio de uma tragédia de sangue e guerra civil, de conse- quências imprevisíveis. Vemos iminentes, na senda da política recoloni- zadora em execução, as batalhas de emancipa- ção do segundo período colonial de nossa Histó- ria. Mas essas batalhas hão de ferir-se unicamente se tivermos fibra, coração e alma para arrostar, com as energias do espírito nacional, rememora- tivo das páginas heroicas do passado, a soberba imperialista dos invasores silenciosos, que ora nos ameaçam dissolver a identidade de povo, apagando os traços, as cores e as raízes de nos- sa cultura, ou seja, de nossa brasilidade. O constitucionalismo europeu teve por premissa de luta e contradição o absolutismo de uma soci- edade já organizada e estruturada, a saber, a sociedade feudal do ancien régime. Tinha história e tradição. Tinha riqueza e cultura. Tinha profun- das raízes espirituais O nosso constitucionalismo, ao revés, levantou-se sobre as ruínas sociais do colonialismo, herdan- do-lhe os vícios e as taras, e ao mesmo passo, em promiscuidade com a escravidão trazida dos sertões da África e com o absolutismo europeu, que tinha a hibridez dos Braganças e das Cortes de Lisboa, as quais deveriam ser o braço da li- berdade e, todavia, foram para nós contraditoria- mente o órgão que conjurava a nossa recaída no domínio colonial. Sem embargo desses pressupostos negativos, que significaram desníveis qualitativos de inicia- ção constitucional, tanto de portugueses quanto de brasileiros, houve um processo até certo ponto comum de introdução de instituições representati- vas e constitucionais no que toca à velha metró- pole e à nascente nacionalidade, quando está estreou os primeiros passos da caminhada para a independência imperial e a criação do Estado. Com efeito, a fonte doutrinária fora a mesma: o constitucionalismo francês, vazado nas garantias fundamentais do número 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 26 de agosto de 1789. Nesse documento se continha a essên- cia e a forma inviolável de Estado de Direito. Idêntica, por igual, a fonte positiva de inspiração imediata: a Constituição de Cadiz. Fomos tão longe que lhe decretamos a vigência durante 24 horas. Com efeito, entre nós o fraco rei espavori- do a outorgou no Rio de Janeiro num triste episó- dio que mal recomenda a memória política de D. João VI. A Constituição de Cadiz fora deveras relevante em determinar as bases liberais da primeira Carta Magna de Portugal: a chamada "Constituição vintista" de 23 de setembro de 1822. O influxo europeu, inglês e continental sobre o constitucionalismo brasileiro é traço marcante dos primeiros momentos dedefinição do nosso esta- tuto institucional. As antigas colônias hispânicas recém- emancipadas ou em processo de emancipação, ao contrário, rompiam com o passado europeu, ou seja, com o velho mundo, deixando de consa- grar assim as instituições da liberdade derivadas do mundo inglês ou francês para recolherem e adotarem a grande sugestão republicana, federa- tiva e presidencial de Filadélfia, que seus consti- tuintes lhes sopravam; mas fracassaram por intei- ro criando repúblicas fragmentadas, federações desfeitas e governos presidenciais dissolvidos em ditaduras de opressão e caudilhismo. Só com o advento da república cerca de 70 anos depois é que o Brasil mudava o norte de sua na- vegação política e aportava no mesmo modelo malogrado das repúblicas vizinhas. A primeira época constitucional do Brasil, já nos seus primórdios, já na sua trajetória ao longo do Primeiro Reinado, guarda estreitos vínculos com Portugal, redundando numa singular comunhão de textos constitucionais, produto da mesma ou- torga imperial nos dois países: no Brasil, a Consti- tuição de 1824; em Portugal, a Carta de 1826, cópia daquela que D. Pedro nos concedera e que ele fez chegar à Regência de Lisboa pelas mãos do embaixador inglês. Foi, diga-se de passagem, um texto, em matéria de limitação de poderes, relativamente bem- sucedido, tanto lá quanto aqui, não obstante o seu baixo grau teórico de legitimidade e suas discrepâncias com a inteireza democrática e re- presentativa do século revolucionário que procla- mara os direitos do homem e sagrara a inviolabi- lidade constitucional da separação de poderes. 3 A linha originalíssima das nossas nascentes constitucionais se enraíza em fatos históricos que, de início, acompanham os dois povos, deci- dem-lhe o destino e fazem depois ambos perse- verarem na busca de um denominador comum das aspirações nacionais que é o Estado de Direi- to em toda a sua amplitude e solidez; um objetivo no caso brasileiro ainda por alcançar, decorridos já cerca de 200 anos de malogros institucionais, por obra de uma crise constituinte, instaurada ao começo da nacionalidade e recorrente em distin- tas ocasiões históricas, fazendo assim instável a base do regime político e jurídico, à míngua de elementos valorativos e espirituais suscetíveis de consolidar a ordem normativa da Constituição. Antes de passarmos revista àqueles fatos históri- cos, obedecendo a uma seqüência já estabeleci- da - poder constituinte, separação de poderes, organização federativa e direitos fundamentais - faz-se mister a remissão ao item 16 da Declara- ção de Direitos do Homem e do Cidadão, onde se lê, em síntese, que é monumento de universali- dade e precisão conceitual o programa constituci- onal da segurança jurídica, da liberdade e da contextura dos direitos fundamentais, conforme eles se vão positivando cumulativamente em dis- tintas dimensões, sem se arredarem todavia do pedestal onde primeiro foram erguidos e sobre o qual assentam o equilíbrio e a certeza de sua continuidade e consistência. É enorme - temos assinalado inumeráveis vezes - a importância daquele texto que, trasladado da Declaração de 1789 e incorporado na Constitui- ção francesa de 1791, conserva em nossos dias de globalização, neo-liberalismo, liberdades com- primidas e conculcadas, impressionante atualida- de. Vale por dogma de todo Estado que garante direitos e separa poderes, configurando na subs- tância e na essência a correta e perfeita imagem do Estado de Direito. Reza o texto, dantes pro- gramático, doravante normativo, depois de per- passar todas as idades constitucionais como farol que iluminava e guiava os navegantes da liberda- de: "Toute societé dans laquelle la garantie des droits n'est pas assurée ni la séparation des pou- voirs determiné, n'a point de constitution." O constitucionalismo tem sido a grande jornada do pensamento político e de sua criatividade insti- tucional buscando concreção no ordenamento dos povos que se sentem vocacionados para os regimes e governos da legitimidade democrática e representativa. Traçar-lhe a trajetória só é possível com os olhos fitos na garantia dos direitos fundamentais de todas as gerações já conhecidas: primeira, se- gunda, terceira e quarta, e na separação de pode- res que tanto incomodam contemporaneamente os arautos do absolutismo e os usufrutuários da autocracia, insubmissos às regras do Estado de Direito. Em rigor, o constitucionalismo brasileiro não tem um ponto de partida autônomo. Em sua primeira fase, buscando-lhe, portanto, as origens, vamos encontrá-lo inapartavelmente vinculado aos su- cessos políticos da velha metrópole. Segue assim um processo que faz mais inteligível e verídico versar o tema debaixo da designação de constitu- cionalismo luso-brasileiro até sua separação se tornar mais nítida com o fim do Segundo Reinado. O período de 1808, ano da trasladação da Corte portuguesa ao Brasil, até 1824, data da outorga da Carta do Império, insere episódios constitucio- nais de suma importância tanto em Portugal quanto no Brasil. Em ambos, a idéia de Constitui- ção e poder constituinte traz o sopro e a vibração das comoções revolucionários do século XVIII. Faz parte efetiva daquele momento de crise exis- tencial que os dois países atravessavam: um porfiando por sobreviver, o outro por emergir co- mo povo e nação. Portugal e Brasil eram ao mesmo passo duas contradições da História. Com efeito, os princípios de liberdade circulavam nos dois países, mas o quadro político em ambos se apresentava singu- larmente confuso e contraditório conforme vere- mos. Em Portugal a invasão e a ocupação pelo exército de Junot feriam o brio nacional, eram impopulares e provocavam reação armada, mas nem por isso a causa francesa, cifrada nos axiomas da Revo- lução, deixava de receber a simpatia e o apoio de uma vanguarda liberal que comungava com prin- cípios e idéias de renovação institucional. Desse grupo partiu em 23 de maio de 1808 a "Súplica" de Constituição a Napoleão Bonaparte; o primeiro documento de aspiração constitucional de língua portuguesa ou, como refere Canotilho, o primeiro "texto sistematizado em jeito de proposta de uma Constituição para Portugal" (J.J. Gomes Canotilho, "As Constituições". In: José Mattoso, direção, História de Portugal, v. V, p.149). Diz o insigne constitucionalista de Coimbra que os "suplicantes" não impetravam propriamente a convocação de um poder constituinte da nação senão que se contentavam com uma simples "outorga", uma "carta doada", algo à semelhança da Constituição outorgada por Napoleão ao Grão- Ducado de Varsóvia, enfim, um apelo à introdu- ção de formas representativas e princípios de igualdade civil e fiscal, bem como do axioma da igualdade de todos perante a lei no corpo e na estrutura do Estado. 4 A "Súplica" queria também uma sociedade com liberdade de imprensa, liberdade de cultos e fo- mento da instrução pública. Foi a primeira semen- te do constitucionalismo português, antecipando a ação das correntes do pensamento liberal que desembocaram na conspiração de Gomes Freire em 1817, na Revolução do Porto de 1820 e final- mente na Constituição de 1822, obra das Cortes de Lisboa, as quais tiveram, ao princípio, a pre- sença e a colaboração dos deputados brasileiros, cuja dissidência abriu depois caminho à ruptura definitiva dos laços que podiam ainda conduzir a uma projetada união política do Brasil com Portu- gal. As Cortes procederam, porém, de forma hostil aos interesses da nossa emancipação, seguindo política reacionária e desastrosa que levantava a suspeita de estar em curso de execução um pla- no de recaída nossa no estado colonial. Se as raízes do constitucionalismo português estavam na "Súplica" a Bonaparte,as nossas se entranhavam no solo da Revolução Pernambuca- na de 1817, de marcante inspiração republicana. Tinham aliás um significado constitucional mais profundo, colocando diretamente em pauta a questão do poder constituinte com extrema clare- za e determinação. Tanto pela natureza do movimento, confessada- mente separatista e emancipativo, quanto pelos princípios que o inspiravam, todos derivados da ideologia revolucionária solapadora das monar- quias absolutas, a Lei Orgânica da nova república era um projeto superior em substância e qualida- de à "Súplica" portuguesa de 1808. Com efeito, o Governo Provisório da República de Pernambuco decretava em março de 1817 aquela lei constante de 28 artigos e que tinha todas as características de um ato constituinte provisório, semelhante na essência ao decreto nº 1 de 15 de novembro de 1889, mediante o qual se decretou a queda do Império, a instituição da República, o fim do Estado unitário, o advento da Federação e a criação da forma presidencial de Governo. As Bases pernambucanas antecederam em qua- tro anos àquelas lançadas em 9 de março de 1821, em Lisboa pelos constituintes "vintistas" de Portugal. Foram formuladas já com o selo de legitimidade da soberania popular, expressamen- te invocado no texto revolucionário. Com efeito, o documento de 1817 consagrava fórmulas avançadas de organização do poder, vazadas na doutrina do povo soberano, na con- vocação de uma constituinte, na tolerância de todas as seitas cristãs, posto que estabelecesse o catolicismo romano por religião do Estado, na proibição de atos de perseguição por motivos de consciência, na garantia e estabilidade da magis- tratura, na proclamação da liberdade de impren- sa, no chamamento à responsabilidade dos go- vernantes cujos atos minassem a soberania do povo e os direitos do homem, equivalente portan- to ao instituto que na forma presidencial de go- verno tomou a designação deimpeachment, na criação de um Colégio Supremo de Justiça e fi- nalmente no reconhecimento inferido do art. 28 de que a Assembléia Constituinte é a sede do poder legítimo delegado pelo povo. Tratava-se de um projeto da lavra de Antônio Carlos proposto por instrumento de Governo aos revolucionários de Pernambuco de 1817, e que aparecia no mesmo ano da malograda conspira- ção de Gomes Freire de Andrade em Portugal à frente de conjurados liberais, todos imolados pela sentença capital do absolutismo. A Reação triunfara tanto no Brasil quanto em Portugal frente aos sucessos daquele ano. Mas as forças que então sucumbiram às armas do status quo desde logo renasceriam dos dois lados do Atlântico conduzidas pelo mesmo pen- samento constitucional de limitação da autoridade governativa: lá, com os civis e militares do Siné- drio, que prepararam a revolução do Porto de 24 de agosto de 1820, a qual, vitoriosa, teve em 1821 o seu coroamento liberal consubstanciado na convocação e instalação das Cortes de Lis- boa; aqui, com o decreto do Príncipe Regente de 3 de junho de 1822, que convocava a "Assem- bléia Geral Brasílica e Constituinte e Legislativa"; meses antes, portanto, que D. Pedro I, às mar- gens do Ipiranga, proferisse, segundo o testemu- nho da historiografia tradicional, o seu célebre grito de Independência ou Morte, do dia 7 de se- tembro daquele ano, depois convertido em data comemorativa da nossa emancipação política. A Constituinte convocada em 22 e instalada em 23 era a fronteira que realmente separava politi- camente o nosso destino do de Portugal, rom- pendo as derradeiras esperanças de estabelecer a comunhão constitucional dos dois Reinos. Esta poderia dantes ter resultado da tarefa constituinte das Cortes de Lisboa, não fora a cegueira reacio- nária de sua maioria, cujo comportamento hostil ao Brasil ficou patente numa série de decretos, cujo propósito se cifrava em reduzir o grau de nossa autonomia. A linguagem do decreto de 24 de abril de 1821, por exemplo, arrogante, capciosa e ambígua, inculcava uma retroação colonialista; já não fala- va em Reino Unido, mas em Províncias Ultrama- rinas e Estados Portugueses de Ultramar, ao mesmo passo que parecia atentar contra a políti- 5 ca de aglutinação do Príncipe Regente, cuja auto- ridade buscava desconsiderar ou enfraquecer. Assim é que outro decreto de 30 de setembro de 1821 sujeitava diretamente à autoridade das Cor- tes os governadores e comandantes de armas das Províncias e, finalmente, o decreto de 12 de janeiro de 1822, extinguia os tribunais criados no Brasil por D. João VI cassando a autonomia judi- cial do Reino. Todos esses atos faziam cada vez mais tensas as relações com a Regência, que já não se submetia às medidas de arbítrio provenientes de Portugal e suas Cortes. Enquanto isso se passava, nas Cortes mesmas, a deputação brasileira forcejava por trilhar os cami- nhos da união constitucional, ainda depois do escândalo e da indignação provocada pela Re- presentação da Junta de São Paulo de 24 de dezembro de 1821 dirigida ao Príncipe Regente, protestando com toda veemência contra a política de asfixiante centralização levada a cabo pelas Cortes e ao mesmo passo conclamando o Prínci- pe a não acatar as ordens de retorno a Portugal, como fora determinado por aquela assembléia, obtendo a célebre resposta afirmativa do "Fico". Os ânimos das Cortes ficaram ainda mais exa- cerbados depois que o padre Diogo Antônio Feijó, futuro Regente do Império, na sessão de 25 de abril de 1822 fez a sua célebre Indicação, movido do propósito de "consolidar a reunião da grande família portuguesa". Entre outros pontos propu- nha que o Congresso de Portugal declarasse o reconhecimento da Independência de cada uma das Províncias do Brasil, enquanto não se organi- zasse a Constituição e que esta obrigaria somen- te aquelas Províncias cujos deputados "nela" concordassem pela pluralidade de seus votos. Vejamos como as Cortes e a deputação brasileira em Lisboa reagiram aos dois documentos. As Cortes viram na Representação da Junta de São Paulo, endereçada ao Príncipe Regente e subscrita, entre outras figuras de relevo, por José Bonifácio de Andrada e Silva, um ato de rebeldia e ofensa à Regeneração Política de Portugal, tanto que propuseram a abertura de processo contra os membros da Junta. Ao mesmo, num recuo aparente, concordavam com a permanên- cia de D. Pedro no Brasil "até a publicação do Ato Adicional, governando, porém, com sujeição às Cortes" (Viveiros de Castro, Memórias, apresen- tada ao Primeiro Congresso de História Nacional. Rio de Janeiro, 1914, p. 94). No plenário do "Soberano Congresso" ecoavam protestos como os de Fernandes Thomaz, futuro ministro liberal, de grande renome, e deputado pela Beira, ou de Francisco Xavier Monteiro, de- putado pela Extremadura; o primeiro com mode- ração e ironia, mas um tanto resignado diante da separação iminente, asseverava: "passe o Sr. Brasil muito bem, que nós cá cuidaremos de nos- sa vida", ao passo que o segundo, demonstrando maior exaltação de ânimo, instava por salvar a dignidade nacional embora se perdessem dez Brasis" (Gomes de Carvalho, apud A.O. Viveiros de Castro, ob.cit., p. 94). Alguns deputados brasileiros, surpreendidos tal- vez pelos termos um tanto passionais da Repre- sentação, foram cautelosos na sua reação ao documento da Junta, todavia cingindo-se a con- denar os excessos de linguagem contra uma as- sembléia que ainda lhes merecia respeito por ser órgão do princípio mais avançado da época, a saber, o da soberania popular. Provavelmente por alimentarem a tênue e vaga esperança de restau- rar a confiança nas Cortes como assembléia constituinte, capaz de elaborar e executar um projeto de união constitucional dos dois Reinos cuja separação já se lhes afigurava iminente. Ocuparamentão a tribuna constituinte num tom conciliatório os deputados Gonçalves Ledo, Cam- pos Vergueiro, Pinto de França e Almeida e Cas- tro, que viam, contudo, esmaecer a possibilidade de reconciliar as Cortes com um Príncipe que lhes recusava obediência e súditos que aliados a ele engrossavam as hostes dissidentes. Quanto ao segundo documento - a Indicação de Feijó - as Cortes reagiram com a mesma indigna- ção, não tendo sido sequer submetido a debate e, por determinação do Presidente, o Conselheiro Fortes, remetido a uma Comissão de Negócios Políticos onde ficou engavetada ou "sepultada", consoante relata Viveiros de Castro em sua Me- mória (Viveiros, ob.cit., p. 99-100). A Indicação de Feijó também repercutiu entre seus colegas da bancada constituinte do Brasil que, sem embargo da tensão produzida por aque- la propositura, não arrefeceram, diante de tanta relutância e malevolência das Cortes, em insistir na obra comum de uma Constituição que salvas- se a unidade política luso-brasileira. Movendo-se nesse sentido, em 15 de junho de 1822, Fernandes Pinheiro, Antônio Carlos, Vilela Barbosa e Araújo Lima introduziam no "Soberano Colégio" um Projeto de Artigos Adicionais à Cons- tituição portuguesa constante de 15 artigos, no qual propunham, entre outras medidas de largo alcance, a existência de dois Congressos: um no Reino do Brasil, outro no de Portugal e Algarve, ambos compostos de representantes eleitos pelo povo na forma que a Constituição determinasse. "Tocante à sede do Congresso Brasileiro, ficaria 6 na capital onde o Regente do Reino residia en- quanto não se fundasse no Centro do Brasil uma nova Capital". Além dos Congressos das Cortes especiais, ha- veria as Cortes Gerais de toda a Nação que se reuniriam na Capital do Império Luso-Brasiliano. Instituía no Reino do Brasil um tribunal supremo de justiça e prescrevia que "as províncias da Ásia e da África Portuguesa declarariam a que Reino queriam incorporar-se para terem parte na res- pectiva representação do Reino a que se unis- sem". O Projeto de Artigos Adicionais à Constituição elaborado pela Comissão Brasileira era o ato final da batalha da bancada constituinte brasileira que passara à ofensiva derradeira em seus esforços de manter a união dos Reinos, cada vez mais ameaçada e comprometida pela intransigência passional das Cortes. Coube ao deputado de Trás-os-Montes, Ferreira Girão, fulminar o projeto em termos incandescen- tes: "Não é possível que o sangue deixe de ferver nas veias dos lusitanos perante um projeto que não ouso qualificar em consideração aos seus autores" (Viveiros de Castro, ob.cit., p. 85). Teve o Projeto uma tramitação penosa e tumultu- ada. Houve solicitação de novo projeto e quando as Cortes o puseram em discussão na sessão de 7 de agosto de 1822, o deputado Girão, segundo refere Aurelino Leal, pediu o adiamento do deba- te, até que chegassem informações mais precisas acerca dos sucessos no Rio de Janeiro (A. Leal, História Constitucional do Brasil, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1915, p. 47). Antônio Carlos requereu a declaração de vacância dos lugares da deputação brasileira às Cortes, ao perceber a inutilidade da nossa presença ali. O "Soberano Congresso" indeferiu-lhe o pedido, mas não pôde prevenir o colapso da tarefa de unificação constitucional que a nossa presença ali afiançava. Os fatos subseqüentes compendiavam o fim da- quela projetada aliança fundamental dos dois Reinos: a fuga de sete deputados brasileiros tras- ladados à Inglaterra, onde em Falmouth expedi- ram o célebre manifesto de 6 de outubro de 1822 dando a Portugal e ao mundo "os motivos que os obrigaram a assim obrar", e a promulgação em 23 de setembro de 1822 da primeira Constituição de Portugal pelas Cortes Extraordinárias e Consti- tuintes da Nação, decretada "em nome da Santís- sima e Indivisível Trindade". Debaixo de coação, 36 deputados brasileiros fizeram ali constar as suas assinaturas. Viveiros de Castro relata nestes termos a insólita ocorrên- cia: "Por escrúpulos de consciência, eles, os re- presentantes das províncias que se libertavam do jugo da Metrópole, não queriam jurar nem assinar a Constituição; as Cortes, porém, não consenti- ram nesse ato de rebeldia e quase todos os depu- tados brasileiros cumpriram a aludida formalida- de, convencidos de que não havia perjúrio sendo ato praticado sob coação" (Viveiros, ob.cit., p.102- 103). A primeira constituinte brasileira foi, portanto, aquela que se incorporou com a nossa deputação nas Cortes de Lisboa, onde deveria desempenhar a tarefa de escrever a Lei Fundamental de União dos dois Reinos. Constituinte, como vimos, malo- grada, invalidada e esmagada pelos ditames de- cisórios provenientes do peso majoritário que fazia onipotente a parcela maior da representação constituinte, formada por deputados portugueses, desfigurando-se assim, desde o começo, a pre- sença e eficácia participativa da nossa bancada. Esta ficava por sua inferioridade numérica inca- pacitada de exercitar influxos sobre os rumos a serem seguidos por aquele colégio constituinte. Ali a voz dos deputados constituintes do Brasil, pouca ou nenhuma importância teve na elabora- ção da Carta; em verdade foram compelidos a subscrever a Lei Maior das Cortes, depois de assistirem à rejeição aniquilante de suas Propos- tas e Projetos, designadamente aqueles nos quais se resguardava o interesse da nova nacio- nalidade que irreprimivelmente se formou à som- bra do Reino Unido e que procurava, a partir da- quele momento de decepção, seguir, como se- guiu, a via autônoma de sua própria legitimidade constituinte. Em suma, nas Cortes de Lisboa o poder consti- tuinte se repartia entre as deputações portuguesa e brasileira, mas o predomínio absoluto da primei- ra ofuscou, refreou, dominou e inibiu a segunda, que ali desempenhava basicamente função deco- rativa, colegitimando com sua presença decisões que até mesmo na esfera de interesses mais peculiares e diretos do Brasil lhe eram subtraídas, não podendo assim ter sobre elas eficácia ou jurisdição. Ao mesmo passo que em Lisboa se sufocara a ação constituinte participativa dos deputados brasileiros, no Rio de Janeiro o quadro não era menos dificultoso, atropelado e entregue às incer- tezas de um meio político convulsivo, onde tam- bém se jogava o destino do Reino Unido e ocorri- am episódios extremamente graves para o futuro da Coroa portuguesa. Não perceberam as Cortes que uma nova nacio- nalidade nascia do grande parto liberal da monar- quia portuguesa consorciada ao elemento nativo, 7 cuja busca de identidade e independência tinha raízes nas lutas coloniais de expulsão dos invaso- res, passava pela Inconfidência e subia de ponto nos sucessos da Revolução Pernambucana de 1817 até chegar ao momento culminante da As- sembléia Nacional Constituinte. É aí que se nos depara a intervenção simultânea de dois poderes constituintes, cujas relações fo- ram sempre marcadas de indissimulável tensão, de teor competitivo, e perpassadas de mútuos ressentimentos, disputas de supremacia e recí- procas desconfianças, acabando assim por inau- gurar uma crise constituinte da qual nunca nos libertamos por inteiro senão de maneira aparente, ocasional e fugaz, mais na aparência que na rea- lidade. Recidiva ao longo de nossa história constitucio- nal, tal crise se assemelha a um vulcão, ora adormecido, ora em erupção, deitando não raro sua lava fumegante sobre as instituições, e calci- nando os edifícios do Império e da República em distintas épocas constitucionais e políticas do passado. Chegou aos nossos dias como um fantasma que ronda a democracia, o sistema representativo, a separação de poderes. Quais Foram esses Dois Poderes Constituin- tes?O poder constituinte originário, dos governados, teve a sua soberania golpeada e embargada, não sendo portanto partícipe da obra criadora das nossas primeiras instituições públicas, como Es- tado e Nação; e o poder constituinte derivado do absolutismo, o poder constituinte do príncipe que fez a Carta Imperial; ao invés da promulgação, uma outorga; ao invés do ato de soberania de um colégio constituinte, o mesmo ato por obra da vontade e do livre arbítrio de um imperador, que na Carta Fundamental decretara a autolimitação de seus poderes. Em nenhum outro país da América Latina houve semelhante ato de poder. Ali as constituintes fun- daram repúblicas; aqui, nesta parte do continente, a constituinte não pôde cumprir sua tarefa, dissol- vida que foi pelo Golpe de Estado de 1823. Hou- ve tão somente a metamorfose de uma monar- quia absoluta em monarquia constitucional, abrangendo esta ao longo de sua trajetória o Pri- meiro Reinado, a Regência e o Segundo Reina- do; três épocas políticas que marcaram o Império sob a égide da Constituição outorgada, a célebre Carta de 1824. Durante a fase constitucional do Império inexistiu o controle de constitucionalidade. Em rigor, a Constituição era unicamente na essência a carta programática dos direitos da primeira geração e do princípio da divisão de poderes. Demais disso, a sua flexibilidade escusava grandemente a ado- ção daquele controle. Três originalidades teve, porém, o documento produzido pelos juristas do Conselho de Estado e que se transformou na célebre Carta política do Império, outorgada por D. Pedro I e depois trasla- dada para Portugal com modificações do próprio punho do Imperador, após abdicar o trono portu- guês, em favor de sua filha menor, D. Maria da Glória, a primeira rainha constitucional de Portu- gal. Foi assim que surgiu a Carta de 1826, símbo- lo e ícone do constitucionalismo português, na estréia de seu confronto e subseqüente consoli- dação frente à cruenta reação dos miguelistas fratricidas, empenhados em restaurar a coroa do absolutismo e fazer outra vez vivas as instituições peremptas do passado e dos privilégios consa- grados. A primeira originalidade residiu na Carta de direi- tos e na enunciação de deveres. A segunda con- sistiu em estabelecer com relevância hierárquica superior a constitucionalidade material, definida com extrema clareza e tornada juridicamente de teor mais significativo que a constitucionalidade formal. A terceira esteve na criação de um quarto Poder, concebido primeiro na esfera teórica e importado de pensadores ou juristas franceses, desde Clermond Ferrand a Benjamin Constant. Teve esse quarto poder pela vez primeira no mundo das Constituições, segundo é de nosso conhecimento, o seu ingresso na Carta Política do Império. Tudo por obra das circunstâncias, associadas a um perfil de personalidade, tornan- do-se em seguida a mais venturosa de todas as inovações políticas e constitucionais que ornaram a autoridade imperial durante o Segundo Reinado da monarquia brasileira. Nossa primeira "ditadura constitucional" ocorreu ao alvorecer do Império. Foi obra do Poder Mode- rador, configurando, em verdade, um estranho paradoxo, do ponto de vista teórico, porquanto veio a ser exercitada precisamente por aquele Poder que havia sido concebido, teoricamente, pelo menos, como uma espécie de corregedoria dos três ramos em que se divide o exercício da soberania nacional (executivo, legislativo e judici- ário). O pensamento central de seu autor - o publicista Constant - era fazê-lo uma espécie de poder judi- ciário dos demais poderes, investido claramente nessa tarefa corretiva para pôr cobro às exorbi- tâncias e aos abusos suscetíveis de abalar a uni- dade política do sistema. Mas tanto na letra cons- 8 titucional como na execução, os políticos do im- pério lhe desvirtuaram o sentido e a aplicação. Desvirtuaram-lhe o sentido, quando o consubs- tanciam em artigo da Carta como profissão de fé política e normativa de uma concentração de poderes sem paralelo na história dos países he- misféricos, que se constitucionalizaram à sombra dos dogmas da Revolução Francesa ou dos pos- tulados da Revolução Americana. Basta ver a extensão de poderes conferidos a seu titular no art. 101 da Constituição Imperial de 25 de março de 1824. Desvirtuaram-lhe por igual a aplicação, quando o primeiro Imperador o exercitou em termos absolu- tos de exceção. Feriu ele desse modo o espírito da Carta, sobretudo a legalidade e a constitucio- nalidade do regime, ao fazer das Comissões Mili- tares o instrumento repressivo, por excelência, das agitações anti-imperiais e que impopularizou o monarca nas províncias do Nordeste e do ex- tremo Sul. Tudo isso precedeu as manifestações populares mais agudas e ostensivas ocorridas em solo mineiro, e que tiveram por desfecho o ato da Abdicação. Demais disso, o Poder Moderador era a progra- mação deliberada da ditadura porquanto contrari- ava a regra substantiva de Montesquieu da divi- são e limitação de poderes. Com efeito, a Carta enfeixava numa só pessoa - o Imperador - a titularidade e o exercício de dois Poderes. De tal sorte que a Lei Maior criava as- sim um monstro constitucional. Não criava um órgão legítimo, distinto e capacitado, como seria de sua vocação, a promover a harmonia e o equi- líbrio dos Poderes; um órgão que pudera ter si- do - e nele lhe vislumbramos essa virtude ou pos- sibilidade - o germe de uma espécie de judicatura política, capaz de antecipar nas práxis e na teoria, por sua ação, preventiva de controle de conflitos, os tribunais constitucionais a quem o século se- guinte entregaria os freios de constitucionalidade. Desse objetivo, porém nos acercamos depois confusamente por intuição teórica. Basta para tanto refletirmos a fundo acerca do alcance da- quela embrionária instituição preconizada por Constant, enquanto fórmula expansiva e aperfei- çoadora, construída sobre os alicerces da obra e do gênio de Montesquieu. Feitas estas ponderações respeitantes ao regime da Carta outorgada de 1824, cabe assinalar o seguinte: O constitucionalismo brasileiro do século XX é tão caracterizadamente republicano quanto o do sé- culo XIX, que já examinamos, fora imperial. Aliás este se viu marcado por uma única Constituição - a de 1824 - obra da outorga do Imperador e que regeu o país até 15 de novembro de 1889, quan- do se deu a queda do Império, e o advento de um novo sistema institucional proclamado naquela data. Graças a esse sistema instalou-se a repú- blica e a federação, constantes do Decreto nº 1 do Governo Provisório, cujos membros assumi- ram os encargos imediatos da nova ordem esta- belecida sobre as ruínas da monarquia deposta. Após um interregno ditatório de dois anos, resta- beleceu-se a normalidade constitucional do regi- me político mediante a promulgação do primeiro Estatuto Fundamental da República. Estreia-se desse modo o primeiro período do constitucionalismo republicano, que vai perdurar de 1891 a 1930, assinalado, de início, por profun- das transformações em relação ao sistema deca- ído e sem as quais não se lograria a consolidação do poder recém-inaugurado. Com efeito, a primeira dessas mudanças, de ins- piração americana, cifrou-se na adoção do mode- lo federativo, pelo qual Rui Barbosa com ardente empenho se batera em vão durante os derradei- ros anos do Segundo Reinado. A campanha malograda por uma monarquia fede- rativa atuou decisivamente no ânimo de Rui para convertê-lo, de última hora, em adepto da causa republicana, cuja pregação não constava aliás dos seus escritos políticos estampados na im- prensa às vésperas do movimento que derrubou a monarquia. E o mais singular é que este insigne homem pú- blico se tornou de repente a cabeça pensanteda república, o arquiteto das novas instituições, o criador da fórmula que seu decreto antecipara e logo foi consagrado pela Constituição de 1891, da qual, como se sabe, e já se provou inequivoca- mente por via documental, fora ele o principal artífice. Das suas luzes e das suas idéias nasceu aquela Carta do Brasil republicano, federativo, presiden- cialista, arredado da tradição européia e acercado ao influxo norte-americano, em cuja órbita gira até hoje sob a égide de um presidencialismo consti- tucional. As alterações da segunda Constituição brasileira com respeito à Carta outorgada de 1824 foram portanto a introdução da república, da federação e da forma presidencial de governo. A evolução constitucional do país patenteia que nessas três espécies políticas o progresso quali- tativo se apresentou basicamente nulo durante o 9 primeiro período republicano, cujas turbações mais de uma vez puseram o regime à beira da ruptura. Com efeito, as três inovações fundamentais leva- das a cabo por inspiração do constitucionalismo norte-americano, cuja excelência Rui professava com ardor, foram de certa maneira decepcionan- tes e mais uma vez puseram em contraste a dife- rença da forma à matéria, da idéia à realidade, da teoria à prática. A república em si mesma não penetrara ainda a consciência da elite governante e da camada social hegemônica, talvez à míngua de prepara- ção, porquanto no diagrama do novo regime os fatos atropelaram os valores; os interesses so- brepujaram as idéias; a destemperança, as vai- dades e a soberba calcaram as verdades; as paixões, as ambições e os ódios escureceram o bom senso e a razão. Disso promanou a ditadura militar de Floriano que Rui tanto exprobrou e da qual veio a ser, sem dúvida, a principal vítima. A solução republicana, ministrada de surpresa, não estava ainda por inteiro presente nem ama- durecida no espírito público e no domínio da opi- nião. O ato institucional de 15 de novembro, se não fora as ditaduras de Deodoro e Floriano e a fereza da repressão, segundo escreviam na épo- ca os opositores da monarquia, não teria vingado. É de recordar que Rui mesmo deixara aberta no decreto nº 1 a porta plebiscitária de um eventual retorno ao regime decaído. Essa porta foi fechada dois anos depois pela Constituição de 1891 em termos definitivos. Tocante à federação, o sistema logo manifestou na aplicação as suas fraquezas, as suas imper- feições, os seus erros, distanciando-se, por com- pleto, do original norte-americano, de que fora cópia servil. Durante décadas perdurou a instabilidade, a ten- são, a crise, a animosidade, o desequilíbrio nas relações entre a União e os corpos federados. O despreparo destes para o exercício das compe- tências federativas manifestava-se patente, oca- sionando assim um quadro político deveras turbu- lento, marcado por abusos, extravios de poder, intervenções federais e freqüente decretação de estados de sítio, fontes, portanto de violência e desrespeito contumaz e descarado à liberdade e às competências constitucionais dos entes políti- cos da federação. Toda a nossa evolução constitucional, já ao longo do Império, já ao longo da República é entrecor- tada de crises e rupturas. Não é, como se poderia cuidar à primeira vista, uma evolução tranqüila, isenta das tormentas de sangue e violência que se estamparam na crônica de outros povos e nações. Foi perpassada sempre de grave crise e essa crise chega aos nossos dias, qualificada, com inteira razão, de crise constituinte porque é crise das instituições e da Constituição; não é como seria normal crise na Constituição ou crise mera- mente constitucional, conforme temos em outras ocasiões assinalado com reiterada freqüência. A Carta do Império, outorgada sobre as ruínas de uma constituinte dissolvida, nasceu debaixo dos protestos constitucionais dos revoltosos da Con- federação do Equador, sob o signo da desconfi- ança e da suspeita de uma restauração absolutis- ta. Mas por um acaso histórico das circunstâncias, aquilo que tinha tudo de negativo para ser um desastre constitucional, como aliás foi no Primeiro Reinado, prosperou e floresceu depois da Regên- cia durante o Segundo Reinado por obra e tempe- ramento de um rei ilustrado, sábio e prudente que foi D. Pedro II. Estamos nos referindo ao Poder Moderador, cujo titular, o monarca, enfeixava ilimitadas competên- cias, exaradas nos artigos da Carta, e, todavia, se houve com extremo zelo, afastando-se da sedu- ção daquele círculo de autoridade verdadeira- mente absoluta que a contradição da Lei Funda- mental do Império lhe depositara nas mãos. E, mediante o abrandamento do poder pessoal, fez possível vingar no país um projeto representativo e parlamentar de poder consentido e comparti- lhado, de inspiração inglesa. Foi esta, sem dúvida, uma das máximas originali- dades da época imperial de nossa História. Mode- lo aliás deploravelmente atropelado e aniquilado pelo Golpe de Estado republicano, o qual operou uma reviravolta das nossas instituições. Com efeito, derrubado o Império, Rui Barbosa inaugurou outro farol político e constitucional, aquele do modelo americano, estabelecido pelos fundadores da União Americana. Ergueram os constituintes de Filadélfia o edifício de uma Cons- tituição republicana, presidencialista e federativa. Dela fizemos o traslado numa cópia que serviu tão somente para prolongar ou perpetuar a nossa crise constituinte. Trocamos o trono inglês pelo Capitólio americano. Troca tão malfeita e tão desastrada que a substi- tuição nada acrescentou de útil ou proveitoso ao aperfeiçoamento da cidadania e à qualidade polí- tica das elites cuja decadência ficou patente até chegarem à ingovernabilidade destes dias. 10 Épocas de federalismo autoritário - uma contradi- ção política em termos - ocorreram no país e osci- laram, durante a Primeira República, da frouxidão dos laços federativos ao extremo arrocho das intervenções centralizadoras, cujo unitarismo contravinha a índole do regime. Demais disso, o quadro social e político das anti- gas províncias imperiais, erigidas de repente ao status da autonomia federativa, era sobremo- do traçado pela força incontrastável dos oligarcas e coronéis que formavam o patronato do poder e recebiam da autoridade central a sagração de sua ascendência na esfera local de governo. A primeira Constituição republicana foi na apa- rência, pelo aspecto formal, a mais estável das Constituições do sistema inaugurado em 15 de novembro de 1889. Durou 39 anos e passou por uma única reforma que aliás veio demasiado tardia, não podendo conjurar o seu colapso na sucessão do presidente Washington Luís, em 1930. Mas a evidência his- tórica de uma estabilidade que acabamos de refe- rir era de teor apenas aparente, não disfarçando a república constitucional deveras violenta. Com efeito, a violência se instalou com a ditadura de Floriano, quando a república correu o risco de soçobrar e prosseguiu dissimulada nas comoções políticas ligadas à sucessão dos governos presi- denciais. Aqui entra a figura do presidencialismo, a terceira inovação do regime estabelecido pela Carta de 1891. Presidencialismo que tem sido talvez a peça-chave da crise estrutural do sistema. Em verdade, uma das ocasiões mais significativas em que essa crise penetrou a consciência da nação ocorreu com o deflagrar da Campanha Civilista, promovida e chefiada por Rui Barbosa. Valeu como uma cruzada de regeneração dos costumes políticos, até então atados aos vícios de um pre- sidencialismo militarista, deformador da imagem das instituições e que lhes retirava toda a legiti- midade. O mesmo sentido teve depois a Reação Republi- cana de Nilo Peçanha, bem como as sublevações dos dois5 de julho da década de 20 e, por derra- deiro, culminando o processo, o movimento da Aliança Liberal, a chamada Revolução de 30. Com esta selou-se o destino da Primeira Repúbli- ca cujas paredes desabaram, carcomidas na fal- sidade ideológica das atas eleitorais, suprema e afrontosa contradição da representatividade cons- titucional do regime. Uma tempestade política e ideológica, acompa- nhada de fortes abalos na ordem institucional marcou, a seguir, a década de 30 no século XX. Foi a década mais autoritária da primeira metade dos novecentos. Ficou assinalada do mesmo passo por uma invasão de idéias novas e projetos e fórmulas de mudança, ilustrativas do quadro de instabilidade e efervescência, que teve forte re- percussão sobre a índole do ordenamento. Sua tonalidade social, bem distinta das cores do sis- tema decaído, dava a medida das preocupações transformadoras ínsitas aos titulares do poder emergente. A cognominada Revolução de 30 significou dessa maneira o ponto de partida e a base de apoio de um ambicioso programa de renovação dos cos- tumes políticos, cujo objetivo maior era o estabe- lecimento da verdade eleitoral, pressuposto de uma ordem representativa mais legítima, em cor- respondência com o sentimento nacional vigente. Depois da escravidão, representou o momento em que o país mais sentiu o peso das injustiças sociais e buscou aparelhar-se para ter seu in- gresso na era industrial, valendo-se de instrumen- tos legais aptos a mitigar as proporções do imi- nente conflito do trabalho com o capital. Do ponto de vista político, é de ponderar que a ditadura instalada pelo segundo governo provisó- rio republicano em 1930 durou quatro anos e manifestou desde o começo certo pendor continu- ísta alimentado pelo seu chefe, cujos desígnios nesse sentido foram embargados por uma corren- te empenhada em restaurar, o mais breve possí- vel, a ordem constitucional suspensa desde aque- le ano. Desse movimento de resistência nasceu a malo- grada Revolução Constitucionalista de 1932, em São Paulo. A derrota militar dos revoltosos em nada obstou, porém, o triunfo da causa, logo con- cretizada e consagrada com o ato convocatório da Constituinte de 1933. Daí resultou logo depois a promulgação da Carta de 1934. Fechado o interregno ditatório de quatro anos, a Constituição de 1934 inaugurou a Segunda Re- pública. Teve ela, contudo breve e precária exis- tência porquanto promanara de uma ambiência política marcada por mutilações participativas, crises, desafios, suspeitas, incertezas, contesta- ções e ressentimentos. A Constituinte que a promulgou não auferiu a necessária densidade legitimante que é de exigir de um colégio de soberania. As lideranças do ancien régime republicano permaneciam no exílio político, afastadas de toda participação. As forças políticas situacionistas, por sua vez, elege- ram presidente da República, por via indireta, o ex-ditador e chefe revolucionário do movimento de outubro de 30, um homem cujo apetite pelo 11 poder o levou, três anos, depois a desferir o golpe de Estado de 10 de novembro de 1937. O novo interregno republicano de normalidade constitucional ocorreu tão somente na aparência, sobretudo a partir de novembro de 1935, quando rebentaram as quarteladas comunistas do Rio de Janeiro, Natal e Recife, cuja eclosão sobressaltou o país e intimidou as camadas sociais do corone- lismo rural e da burguesia urbana ascendente. A repressão feita, cifrada na Lei de Segurança, no estado de guerra e no Tribunal de Segurança Nacional e nas pressões sobre as duas Casas do Congresso, processando deputados e senadores e expurgando das fileiras militares e civis da soci- edade personalidades suspeitas ao regime, vati- cinava já o desfecho trágico do golpe de 1937. Este se consumou às vésperas da eleição presi- dencial direta em que concorriam ao poder as candidaturas de José Américo de Almeida e Ar- mando Sales de Oliveira, o primeiro candidato do Governo, o segundo da Oposição, ambos, porém vítimas do braço golpista que inaugurou no país a ditadura do Estado Novo. À frente desta, Vargas governou o Brasil sem dar sequer execução à própria Carta que outorgou, a célebre "polaca" de autoria do jurista mineiro Francisco Campos. O regime de exceção caiu em 29 de outubro de 1945, por um golpe militar inspirado no sentimen- to de redemocratização que se enraizara na consciência nacional ao longo dos anos da pre- sença brasileira na Segunda Guerra Mundial, quando efetivos da Força Expedicionária Brasilei- ra foram aos campos de batalha da Itália enfren- tar os exércitos da aliança totalitária do fascismo e do nacional-socialismo. Pôs-se termo assim a uma flagrante contradição política e ideológica que era a sobrevivência do Estado Novo, de bases ditatoriais, num mundo que emergia das ruínas da guerra, fizera vitoriosa a causa das velhas democracias liberais e passa- ra a reconstruir o contrato social, escrevendo em São Francisco, em 1945, a Carta das Nações Unidas, logo seguida, em dezembro de 1948, da Declaração Universal dos Direitos do Homem. A Constituição de 18 de setembro de 1946, com seus 218 artigos e 36 disposições transitórias, representou um compromisso das correntes con- servadoras da velha tradição republicana e repre- sentativa de 1891 com as forças remanescentes do radicalismo liberal de 30. Sobretudo com a facção congressualmente majoritária que provi- nha do Estado Novo e ressentida ainda com a deposição de seu ditador e o desmantelamento de sua máquina política, ganhara, todavia, contra todas as expectativas, a eleição de 2 de dezem- bro de 1945. Essa facção conservadora, formada nos quadros da ditadura, mostrava-se disposta a manter sua hegemonia governativa nos moldes da Lei Magna recém-promulgada. As pressões ideológicas da década já não eram, contudo tão fortes e os constituintes de 46 logra- ram escrever uma Constituição com pontos signi- ficativamente positivos. Constituição que traduzia equilíbrio e bom senso para as circunstâncias da época, pôde ela atenuar e fazer latente e ador- mecida durante largos anos de sua vigência o vulcão da crise constituinte, cujas erupções não vieram tão imediatas e de súbito como as que implodiram a Constituição de 1934. Sem revogar o Estado social do texto efêmero da primeira reconstitucionalização, a Carta de 46 ficou limitada aos termos programáticos de justiça social, não podendo concretizar cláusulas como aquelas que determinavam a participação do trabalhador nos lucros da empresa nem tantas outras exaradas na esfera das relações do capital com o trabalho. As comoções políticas de raiz social fizeram-na desembocar, por obra da corrupção do regime presidencial, na segunda ditadura do século, a mais longa e perniciosa por haver mantido aberto um Congresso fantoche, debaixo de uma Consti- tuição de fachada outorgada pelo sistema autori- tário, que ao mesmo tempo censurava a imprensa e reprimia a formação, pelo debate livre, de novas lideranças, sacrificando assim toda uma geração. Tal aconteceu em 1964 quando o país atravessou durante duas décadas a mais sombria ditadura militar de sua história. Com a Constituição de 1988 e ligeiras observa- ções acerca da crise em que ela se acha imersa, poremos o ponto final a este despretensioso rela- to da evolução constitucional do Brasil. A Constituição de 1988, ao revés do que dizem os seus inimigos, foi a melhor das Constituições brasileiras de todas as nossas épocas constituci- onais. Onde ela mais avança é onde o Governo mais intenta retrogradá-la. Como constituição dos direitos fundamentais e da proteção jurídica da Sociedade, combinando assim defesa do corpo social e tutela dos direitos subjetivos, ela fez nes- se prisma judicial do regime significativoavanço. Fez, por exemplo, do Supremo Tribunal Federal taxativamente um tribunal de guarda da Constitui- ção. Mas ele nesse ponto se autodemitiu da im- portantíssima e crucial tarefa de concretizar nas controvérsias do sistema, onde as bases da de- mocracia constitucional estavam em jogo, a sua missão protetora de salvaguarda das instituições. 12 Os que ora desfecham um golpe de Estado insti- tucional não são, portanto, molestados pela Justi- ça constitucional: e permanecem intangíveis, fora do alcance do braço da Lei Suprema, perverten- do, afrontando e despedaçando, cada vez mais, as instituições do país. Com referência a outro ramo de sustentação da ordem republicana e democrática, a mesma Corte fez vista grossa ao poder que mais pode e que em verdade é o motor constitucional dos demais poderes, atrelando-os às suas irresponsabilida- des legislativas e aos seus atentados desrespei- tos e desmoralização de decisões judiciais, os- tensivamente descumpridas. Aniquilam-se assim por obra do Executivo as bases éticas e jurídicas do sistema. E onde tal acontece, há ditadura, e não há governo. Há despotismo, e não há Consti- tuição. Há obediência, e não há consenso. Há legalidade, e não há legitimidade. E a legalidade que há é, todavia, a força, que enfraquece a dig- nidade da pessoa humana, a justiça dos direitos sociais, a sobrevivência da democracia, a defesa e proteção do Estado soberano. Cabe, portanto, na seqüência dessas reflexões, fazer esta tríplice indagação: Até quando a Amazônia permanecerá exposta às lesões da soberania nacional? Até quando a política ingovernável governará a república? Até quando o síndico da massa falida no poder liquidará as contas do patrimônio público cifradas nas privatizações alienadoras da riqueza nacio- nal? São três indagações cruciais que comprometem todos os princípios de sustentação e legitimidade constitucional pertinentes à república criada pela Constituição de 1988. O ordenamento jurídico vem sendo destroçado em grande parte pelo golpe de Estado institucio- nal desferido por meio de Medidas Provisórias que expulsam do exercício do poder legítimo os dois órgãos paralelos da soberania nacional, o Legislativo e o Judiciário. E assim o governo, sem dar satisfação ao povo, à opinião, ao país e à sociedade, executa a implacável política da reco- lonização. A evolução constitucional do Brasil termina com as omissões da falsa elite representativa, cúmpli- ce silenciosa dos atos que destroem a democra- cia e o regime. Mas não termina aí a luta do povo brasileiro. A alvorada da democracia participativa se desenha nas linhas do horizonte político e esparge luz sobre as esferas teóricas nas quais se constrói um novo constitucionalismo de luta e resistência, abraçado com o povo, com a cidada- nia, com as atas da Inconfidência, com a memória da Confederação do Equador, com a campanha abolicionista de Castro Alves, Nabuco e Rui Bar- bosa, com as Diretas-Já e com as jornadas do impeachment que ontem mostraram como as lideranças podem sucumbir. O que jamais poderá sucumbir é o povo brasileiro. Para o operador do direito, interessa saber quem pode e como pode reformar a constituição e qual a tendência de julgamento do Supremo Tribunal Federal (1) caso este venha a apreciar a reforma. Quem pode reformar a Constituição da República Federativa do Brasil, segundo as próprias dispo- sições da carta, é o Congresso Nacional (artigo 60, § 2º). Mas esta emenda só pode ser votada se a proposta for feita por um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal ou pelo Presidente da Repúbli- ca ou por mais da metade das Assembléias Le- gislativas das unidades da Federação, manifes- tando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros (artigo 60, I, II e III da C.R.F.B.). Mas não pode haver emenda da constituição na vigência de intervenção federal, de estado de defesa ou de estado de sítio (art. 60, § 1º). Além disso, não pode haver proposta de emenda cons- titucional tendente a abolir a forma federativa de Estado, o voto direto, secreto, universal e periódi- co, a separação dos Poderes e os direitos e ga- rantias individuais. E, satisfeitas todas estas con- dições, a proposta será discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois tur- nos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros. A tendência de julgamento do Supremo Tribunal Federal, manifestada na Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 981 MC/PR, em que foi Relator o Ministro Néri da Silveira (2) é a seguinte: EMENDA OU REVISAO, COMO PROCESSOS DE MUDANCA NA CONSTITUICAO, SAO MANI- FESTAÇÕES DO PODER CONSTITUINTE INS- TITUIDO E, POR SUA NATUREZA, LIMITADO. ESTA A "REVISAO" PREVISTA NO ART. 3. DO ADCT DE 1988 SUJEITA AOS LIMITES ESTA- BELECIDOS NO PARAGRAFO 4. E SEUS INCI- SOS, DO ART. 60, DA CONSTITUICAO. (...) AS MUDANCAS NA CONSTITUICAO, DECOR- RENTES DA "REVISAO" DO ART. 3. DO ADCT, ESTAO SUJEITAS AO CONTROLE JUDICIAL, DIANTE DAS "CLAUSULAS PETREAS" CON- 13 SIGNADAS NO ART. 60, PAR. 4. E SEUS INCI- SOS, DA LEI MAGNA DE 1988. SILVA (3) lembra que a doutrina classifica as limitações do poder de reforma em três gru- pos: temporais (artigo 174 da Constituição de 1824: só após 4 anos de sua vigência podia ser reformada – única ocorrência no Brasil, segundo o referido autor), circunstanciais (proibição de reforma durante o estado de sítio, por exemplo) e materiais (quais dispositivos podem ser refor- mados). Ainda segundo SILVA, as limitações materiais podem ser explícitas (os casos do art. 60, § 4º, acima mencionados) e implícitas (proibição de mudar o titular do poder constituinte, o titular do poder reformador e processo de emenda). Mes- mo a revisão constitucional ocorrida em 1994 respeitou as limitações explícitas e as implícitas do poder de reforma. BONAVIDES (4) lembra que já no século XVIII Vattel, Sieyès e Rousseau admitiam a reforma da constituição. Araujo e Nunes Junior (2008, p.3), lecionam que “as classificações não possuem outra finalidade senão realçar as características do texto constitu- cional segundo valores determinados”. Assim, as classificações seguiram critérios quanto a origem, a forma, conteúdo, sistemática, ideologia e muta- bilidade. Aqui nos interessa a classificação quan- to à mutabilidade. Segundo Lopes (1993, p.123), Nelson de Souza Sampaio foi o autor que teria se dedicado mais longamente ao estudo do Poder Constituinte re- formador e para ele, teoricamente, poderíamos mencionar quatro tipos de Constituições quanto ao problema de sua reforma: imutáveis, fixas, rígidas e flexíveis. No entanto, para a doutrina majoritária, no campo da mutabilidade, estabilidade ou consistência, as Constituições se classificam em flexível, rígidas, semirrígidas (ou semi-flexíveis). Para Lopes (1993, p.124) “denomina-se imutáveis as consti- tuições que não permitem qualquer tipo de altera- ção, nem reforma”, nem revisão. Pretendem ser eternas não admitindo que ne- nhum poder as possa reformar legitimamente e muito menos revogar ou revisar, exaure-se em uma só expressão, ou atinge sua forma definitiva e imutável de modo que não seria concebível, nem legítima, a recorrência do Poder Constituinte, ou como ensina Pontes de Miranda (1987, p.145): “Aquelas que nem sequer cogitaram o modo pelo qual se haviam de emendar, ou haviam de ser revistas; que tinham por imperecíveis aos seus princípios e a si mesmas, constituições, enfim, que se impondo ao tempo e “impedindo” que este lhes corroa o texto, só deixam ao povo, ou as gerações que nela não vêem solução para os seus destinos, os recursos da revolução.” Importante salientarque há também Constitui- ções fixas que são aquelas que somente podem ser modificadas por um poder de competência igual ao que as criou, ou seja, por nova manifes- tação do Poder Constituinte. Esse tipo não possui nenhum interesse prático, tendo seu estudo ape- nas interesse histórico. Ressalte-se que em nosso tempo, constitui um absurdo falar em texto constitucional imutável, perpétuo, pois a Constituição destina-se a regular a vida de uma sociedade em contínua mutação. Assim, quanto a mutabilidade das Constituições, temos necessariamente três tipos, as flexíveis que são aquelas que permitem a modificação de seu conteúdo através de um procedimento seme- lhante ao da aprovação de lei ordinárias, as rígi- das, que exigem um procedimento legislativo especial (solene) e complexo para a alteração de seu texto e as semi-rígidas (também chamadas de semi-flexíveis) que são aquelas que só exigem um procedimento especial para apenas parte de seu texto, ou seja, apresenta uma parte rígida e outra parte flexível. Embora as constituições sejam concebidas para durar no tempo, a evolução dos fatos sociais po- de reclamar ajuste e modificação no texto consti- tucional, uma alteração posterior, visando ajustar as vontades do poder constituinte originário e da sociedade. Assim, o próprio poder constituinte originário prevê a possibilidade de alteração na Lei Maior, justamente para regenerá-la e conser- vá-la na essência eliminando normas e revitali- zando o texto para atender os anseios da socie- dade e acompanhar o desenvolvimento social. Os adeptos as constituições flexíveis apontam como mérito a flexibilidade, pois seus textos cons- titucionais sempre estão predispostos a se adap- tarem as necessidades mutantes da sociedade, mas as constituições flexíveis podem acarretar conseqüência indesejadas num país sem espírito conservador e sem tradições firmes. Já a maioria da doutrina, entende que a constitui- ção por nascer com a pretensão de ser eternas, mas não imodificáveis, as rígidas possuem a so- lução intermediária entre a inalterabilidade da Constituição e sua banalização pela facilidade de reforma, sendo assim, as constituições rígidas marcam a distinção entre o poder constituinte originário e os poderes constituídos, inclusive os 14 de reforma, reforçando a supremacia da Consti- tuição , na medida em que repelem que o legisla- dor ordinário disponha em sentido contrario ao texto maior e levam a instituição de mecanismos de controle de constitucionalidade de leis, como garantia real de superlegalidade das normas constitucionais. Se as constituições são criadas com a pretensão de serem definitivas, no sentido de voltadas para o futuro, sem duração prefixada, nenhuma consti- tuição deixa de sofrer modificação ao longo do tempo para adaptar-se aos novos tempos, as circunstancias ou ainda, para acorrer às exigên- cias de solução de problemas que podem nascer de sua própria aplicação e interpretação (MI- RANDA, 2002). O poder constituinte de reforma, então, é o poder instituído pelo poder constituinte originário para alterar a Carta Constitucional visando a adapta- ção do texto original ás modificações ocorridas na sociedade, adequando-se as exigências sociais que são mutáveis, podendo essa reforma consis- tir no acréscimo, modificação ou supressão de partes do texto constitucional. “O poder constituinte de reforma é um poder secundário ou derivado” (ARAUJO; NUNES JU- NIOR, 2008, p.10), criado pelo poder constituinte originário que lhe estabelece o procedimento a ser seguido e as limitações a serem observadas. Assim, não é inicial, nem incondicionado, nem ilimitado, é um poder que esta subordinado ao poder originário. O poder de reforma recebe denominações diver- sas pela doutrina, sendo eles: poder constituinte derivado reformador, poder constituinte constituí- do, poder constituinte sedundário, poder consti- tuinte instituído ou poder constituinte de segundo grau. Canotilho (1991, p.99), nos ensina que: “Os poderes constituídos movem-se dentro do quadro constitucional criado pelo poder constituin- te. O Poder de revisão constitucional é, conse- quentemente, um poder constituído tal como o poder legislativo. Verdadeiramente o poder de revisão constitucional só em sentido impróprio se poderá considerar constituinte; será quando mui- to, “ uma parodia ao poder constituinte verdadei- ro”. Nesse sentido, Temer (2008, p.36), em sua obra preceitua que: “É certo que por força da reforma criam se nor- mas constitucionais. Já agora, entretanto, a pro- dução, dessa normatividade não é emanação direta da soberania popular, mas indireta, como também ocorre no caso da formulação da norma- tividade secundária (leis, decretos, sentenças judiciais). No caso da edição de lei, por exemplo, também há derivação indireta da soberania popu- lar. Nem por isso se aludira a um “Poder Consti- tuinte Originário”. Parece-nos mais conveniente reservar a expressão “Poder Constituinte” para o caso de emanação normativa direta da soberania popular. O mais é fixação de competência: a re- formadora (capaz de modificar a Constituição); a ordinária (capaz de editar a normatividade infra- constituicional). É apropriado, assim, denominar a possibilidade de modificação parcial da Constitui- ção como competência reformadora. ” (Grifo do autor) O poder constituinte reformador, também chama- do de competência reformadora, caracteriza-se pela possibilidade de poder alterar o texto consti- tucional, função exercitada por órgãos determina- dos pelo poder originário, respeitando a regula- mentação prevista pela própria Constituição. Essa atividade reformadora sujeita-se a limitações im- postas pelo Poder Constituinte Originário e serão o objeto principal deste estudo. Primeiramente, faz-se necessário explicar que o artigo no qual as cláusulas pétreas estão inseri- das trata da forma como são elaboradas as pro- postas de modificação à Constituição, sendo que as quatro hipóteses elencadas não podem ser modificadas, nem ao menos serem discutidas em qualquer proposta de modificação constitucional. Isso se deve ao fato dos conceitos nelas contidos serem fundamentais na tradução das bases em que se estabelece a República Federativa do Brasil. Para modificá-las, só anulando a atual Constituição. Desse modo, o legislador considerou que os con- ceitos a serem protegidos sob quaisquer aspectos seriam estes quatro, a saber: Forma Federativa de Estado - O próprio nome em extenso do país traduz esse princípio. A de- nominação República Federativa do Brasil já indi- ca que o país é baseado em uma federação, isto é, uma pluralidade de povos sob diversas latitu- des, das mais diversas raças, crenças e origens, unidos para constituir um país. Portanto, a forma como o estado está organizado não é passível de discussão. Não se aceitam propostas que possam transfor- mar o Brasil em um estado unitário, por exemplo, sem estados, e sem a autonomia que estes pos- suem. Isso não quer dizer que não se possam criar novos estados dentro do país, nem que não se possam dois ou mais estados se unir para formar um único estado dentro da federação. 15 Voto Direto, Secreto, Universal e Periódico - Não se pode discutir, muito menos cogitar a modi- ficação do sistema de voto direto, onde cada ci- dadão devidamente alistado tem direito a voto. Além de ser direto, este deverá sempre ser secre- to (o cidadão tem o direito de não revelar o seu voto, evitando assim perseguições políticas ou qualquer outra coerção). Além de secreto, deve ser universal, ou seja, todos os brasileiros, natos ou naturalizados têm a oportunidade de se alistar e votar, a menos que se encaixem em certos casos previstos no artigo 14 da Carta Magna. Deve estevoto ser ainda periódico, ou seja, o cidadão deve ter a oportuni- dade de votar de tempos em tempos. Assim, qualquer proposta de modificação do voto que não inclua essas características é passível de discussão e modificação, como por exemplo, o voto obrigatório ou o voto distrital. A Separação dos Poderes - Não se pode discu- tir a organização tripartite do Estado em Judiciá- rio, Legislativo e Executivo. Os Direitos E Garantias Individuais - importante notar que este dispositivo não deve ser confundi- do com o nome dado ao Título II da Constituição, com o qual se inicia o artigo 5º. Ali temos as ga- rantias fundamentais, aqui, as garantias individu- ais (apesar de que as garantias do artigo 5º esta- rão incluídas no conceito aqui mencionado). Te- remos, porém, garantias individuais em outros pontos da Constituição, fora deste artigo, como por exemplo, boa parte do conteúdo do artigo 7º. Faz-se importante mencionar que direitos não exclusivamente individuais, como o direito de greve estão incluídos. Apesar de direito individual, a greve só se concretiza se organizada coletiva- mente, mas mesmo assim, pode-se considerar como integrante do conjunto de direitos individu- ais do cidadão. A ideia de controle de constitucionalidade está relacionada à supremacia da Constituição sobre todo o ordenamento jurídico e, também, à rigidez constitucional e proteção dos direitos fundamen- tais. A supremacia constitucional adquiriu tanta impor- tância nos Estados Democráticos de Direito que Cappelletti afirmou que “o nascimento e expansão dos sistemas de justiça constitucional, após a Segunda Guerra Mundial, foi um dos fenômenos de maior relevância na evolução de inúmeros países europeus”. Em defesa basicamente dos direitos fundamen- tais do homem e dos direitos das minorias, após a Segunda Guerra Mundial, houve necessidade do surgimento de tribunais que velassem pela com- patibilidade dos atos do poder público com as normas constitucionais, pois a força dos tribunais tem sido, em todos os tempos, a maior garantia que se pode oferecer às liberdades individuais. O controle de constitucionalidade tem como ponto fundamental a defesa dos valores constitucionais básicos e dos direitos fundamentais. Assim, o controle de constitucionalidade das leis tem por finalidade verificar se as leis editadas no país são materialmente compatíveis com as regras consti- tucionais. Porém, para que haja uma rigidez constitucional, diferenciando o poder constituinte originário do derivado, é necessária a existência de um contro- le de constitucionalidade. Pois controlar a consti- tucionalidade significa impedir a subsistência de inconstitucionalidades de forma a assegurar a supremacia da Constituição. É a verificação da adequação de um ato jurídico, particularmente a lei, à Constituição. Formas de Controle O controle pode ser judiciário ou político. O con- trole político, aquele onde a verificação da consti- tucionalidade é confiada a órgão não pertencente ao Poder Judiciário e sim ao poder Executivo e Legislativo. Já o controle judiciário é feito pelos órgãos do Poder Judiciário. O controle pelo Poder Judiciário abrange dois métodos, concentrado ou difuso. • O controle concentrado é observado quando é atribuído a um único órgão específico. No Brasil, o controle concentrado é realizado pelo Supremo Tribunal Federal. O STF é órgão integrante do Poder Judiciário, sendo a instância máxima desse Poder. Em mui- tos países, o controle da constitucionalidade cabe a um órgão autônomo e distinto do Poder Judiciá- rio, chamado Corte ou Tribunal Constitucional. Dessa forma, ao controlar a constitucionalidade, o STF realizará a verificação de adequação ou compatibilidade de uma lei ou de um ato normati- vo com a constituição, verificando seus requisitos formais e materiais. • O controle difuso funciona quando a qualquer juiz é dado apreciar alegação de inconstituciona- lidade. É a chamada via de exceção ou defesa. Então, o controle de constitucionalidade pelo Po- der Judiciário será feito de forma difusa ou de forma concentrada. Será de forma difusa quando qualquer juiz ou tribunal declara a inconstituciona- lidade de alguma lei, portanto não se aplicando, o que nela está disposto, para a situação específica discutida no processo. 16 No Brasil, salvo na Constituição do Império, sem- pre houve a adoção do controle difuso de consti- tucionalidade repressivo jurídico ou judiciário, em que é o próprio poder judiciário quem realiza o controle da lei ou do ato normativo, já editado, perante a Constituição Federal, para retirá-los do ordenamento jurídico, desde que contrários à Carta Magna. Na atual Constituição, foram adotados os dois sistemas de controle do judiciário de constitucio- nalidade repressiva. O primeiro denominado con- trole difuso, por via de exceção, é aquele em que todos os juízes e tribunais poderão realizar o con- trole de constitucionalidade. O segundo será exercido por via de ação direta, denominando-se concentrado. Existe ainda, o controle preventivo ou repres- sivo: • O controle preventivo opera antes que a lei se aperfeiçoe. • O repressivo, depois de promulgada a lei. Na Constituição atual, há tanto o controle preven- tivo, como o repressivo. O primeiro é atribuído ao Presidente da República, que o exerce por inter- médio do veto, ou ao Legislativo, no processo legislativo. O controle repressivo é confiado ao Judiciário. O Brasil é uma República Federativa Presidencia- lista, formada pela União, estados e municípios, em que o exercício do poder é atribuído a órgãos distintos e independentes, submetidos a um sis- tema de controle para garantir o cumprimento das leis e da Constituição. O Brasil é uma República porque o Chefe de es- tado é eleito pelo povo, por período de tempo determinado. É Presidencialista porque o presi- dente da República é Chefe de Estado e também Chefe de governo. É Federativa porque os esta- dos têm autonomia política. A União está divida em três poderes, independen- tes e harmônicos entre si. São eles o Legislativo, que elabora leis; o Executivo, que atua na execu- ção de programas ou prestação de serviço públi- co; e o Poder Judiciário, que soluciona conflitos entre cidadãos, entidades e o estado. O Brasil tem um sistema pluripartidário, ou seja, admite a formação legal de vários partidos. O partido político é uma associação voluntária de pessoas que compartilham os mesmos ideais, interesses, objetivos e doutrinas políticas, que tem como objetivo influenciar e fazer parte do poder político. O conceito de omissão constitucional exige uma reflexão cuidadosa, que passa pela observação de questões cruciais. A primeira delas consiste em identificar se a Constituição exigiu do legisla- dor uma ação positiva, pois, caso contrário, este goza do princípio da discricionariedade. O segundo ponto é se tal omissão está a inviabili- zar a plena aplicabilidade da norma, pois como é sabido, embora sempre haja possibilidade de detalhamento por parte do legislador, muitas normas já dispõem de aplicação imediata, ou seja, não precisam de lei regulamentadora. Portanto, estaremos diante de omissão inconsti- tucional tão somente quando a própria Cartadei- xar claro que o legislador tem o dever de se pro- nunciar, sendo tal ação necessária para a concre- ta efetividade da norma. Estão previstos dois mecanismos através dos quais os legitimados podem fazer a reclamação quando ficar configurada a omissão legislativa, quais sejamo mandado de injunção e aação dire- ta de inconstitucionalidade. Entretanto, tal tutela se mostra ainda insuficiente e seus institutos, desprovidos de eficácia, pois esbarram em problemas decorrentes do conflito entre o princípio da supremacia
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