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ORGANIZAÇÃO: ANDRÉ RUFINO DO VALE NO BRASIL E DEMOCRACIA FORÇAS ARMADAS A INTERPRETAÇÃO DO ART. 142 DA CONSTITUIÇÃO DE 1988 ALEXANDRE SANKIEVICZ - ANDRÉ RUFINO DO VALE - DIEGO WERNECK ARGUELHES - ELIARDO FRANÇA TELES FILHO - GLAUCO SALOMÃO LEITE GUSTAVO FERREIRA SANTOS - JOÃO PAULO BACHUR - JOÃO PAULO ALLAIN TEIXEIRA - JOÃO TRINDADE CAVALCANTE FILHO - JORGE OCTÁVIO LAVOCAT GALVÃO - LENIO STRECK - LEONARDO AUGUSTO DE ANDRADE BARBOSA MARCELO CASSEB CONTINENTINO - MARCELO LABANCA CORRÊA ARAÚJO MATHEUS PIMENTA DE FREITAS - ROBERTO CARLOS MARTINS PONTES SOPHSOPHIA GUIMARÃES - SÉRGIO ANTÔNIO FERREIRA VICTOR - THOMAZ PEREIRA Observatório Constitucional Edição especial: ISSN 1982-4564 Brasília, 2020 2 SUMÁRIO Apresentação André Rufino do Vale 1. Forças Armadas e Democracia no Brasil pós-1988 André Rufino do Vale 2. São as Forças Armadas o Poder Moderador na República? Uma correta hermenêutica do Artigo 142 da Constituição do Brasil Lenio Streck 3. Qual lugar para o Poder Moderador na Constituição Federal de 1988? Marcelo Casseb Continentino 4. Intervenção Militar é Golpe: é só ler a Constituição Thomaz Pereira Diego Werneck Arguelhes 3 5. O papel das Forças Armadas à luz do art. 142 da Constituição: uma leitura histórica e sistemática da impossibilidade de uma “intervenção militar” João Trindade Cavalcante Filho 6. A Prevalência do Poder Civil sobre o Militar na Constituição Federal de 1988: um estudo sobre os limites de emprego das Forças Armadas, conforme o artigo 142 da Constituição Federal Leonardo Augusto de Andrade Barbosa Roberto Carlos Martins Pontes Alexandre Sankievicz 7. O art. 142 da Constituição e os malabarismos constitucionais Glauco Salomão Leite, Gustavo Ferreira Santos, João Paulo Allain Teixeira Marcelo Labanca Corrêa Araújo 4 8. O sentido do artigo 142 da Constituição Federal de 1988 João Paulo Bachur 9. Ulisses, as sereias e o art. 142 da Constituição Federal Matheus Pimenta de Freitas 10. O significado original do art. 142 da Constituição Federal de 1988 Jorge Octávio Lavocat Galvão Sophia Guimarães 11. As Forças Armadas e o poder moderador no Direito Constitucional brasileiro Sérgio Antônio Ferreira Victor Eliardo França Teles Filho 5 Apresentação André Rufino do Vale As democracias liberais contemporâneas foram construídas baseadas na ideia da neutralidade política das Forças Armadas. Isso ocorreu, sobretudo, nas novas democracias da América Latina e do Sul da Europa, cujos processos de transição de regime, no último quarto do século XX, pautaram-se em complexas negociações de anistia política sobre a atuação de oficiais nos períodos de ditadura militar. Na Espanha, em Portugal, na Argentina, no Chile e também no Brasil, a ruptura político-constitucional com o autoritarismo anteriormente protagonizado pelas Forças Armadas caracterizou as transições democráticas e norteou o caminho da institucionalização e da consolidação das novas 6 democracias com o desejado distanciamento dos militares da atividade política. No Brasil, o novo regime democrático instaurado em 1985-88 inegavelmente foi exitoso na construção das relações de neutralidade entre forças armadas e a política. A Constituição submeteu as Forças Armadas aos poderes constitucionais e permitiu o afastamento paulatino de seus membros do exercício da política. Sob a nova ordem constitucional, os três comandos das Forças (Exército, Marinha e Aeronáutica) foram incorporados à estrutura do Ministério da Defesa, sob a direção de um Ministro civil, e passaram a atuar exclusivamente no âmbito de suas funções constitucionais, definidas no art. 142 da Constituição. Assim, desde a redemocratização, as relações civis-militares foram continuamente aperfeiçoadas, criando as condições institucionais, próprias de democracias liberais, para o surgimento de uma nova geração de oficiais dedicados às 7 tarefas profissionais e comprometidos com o regime democrático. O processo de consolidação democrática e de contínua profissionalização das Forças Armadas começou a dar sinais de retrocesso no final da década de 2010. O Presidente Jair Bolsonaro, eleito no final do ano de 2018 e declaradamente um admirador das Forças Armadas brasileiras, inclusive da sua atuação nos períodos ditatoriais, fez a opção política pela formação de um governo com a onipresença de militares nos diversos órgãos ministeriais. O Ministério da Defesa, até então dirigido por personalidades civis, voltou ao comando dos generais e assim passou a ter influência decisiva nos rumos governamentais, não apenas das suas políticas públicas, mas igualmente na condução das difíceis e tensas relações institucionais que desde então passaram a marcar a dinâmica entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário no Brasil. 8 O ano de 2020 iniciou com o profundo impacto social da pandemia do coronavirus (COVID-19), cuja consequência política mais evidente no Brasil foi o aprofundamento da crise institucional entre os Poderes da República. Com visões antípodas sobre a repartição das competências constitucionais entre os entes federativos para o combate à pandemia, a Presidência da República (apoiada pelo Ministério da Defesa) e o Supremo Tribunal Federal passaram a protagonizar conflitos de elevada tensão política, gerando temores a respeito de sua capacidade institucional para o diálogo e a moderação, mecanismos típicos das democracias constitucionais para a solução de impasses políticos entre os poderes. A crise se agravou quando o Presidente da República e seus apoiadores políticos (incluindo alguns militares) passaram a publicamente defender que as Forças Armadas poderiam exercer 9 uma espécie de "poder moderador" para arbitrar e assim solucionar o conflito entre os poderes. O governo se baseou na tese levantada pelo conhecido jurista Ives Gandra Martins, segundo a qual o art. 142 da Constituição autorizaria a qualquer dos poderes, ao se sentir violado por ato de outro poder, a reivindicar a "garantia da lei e da ordem" pelas Forças Armadas[1]. A ideia seria a de uma "intervenção moderadora pontual", para a "interpretação correta da lei aplicada no conflito entre Poderes". Uma intervenção militar "pontual, jamais para romper, mas para repor a lei e a ordem", segundo Ives Gandra. A tese de Ives Gandra - como ele próprio declara - sempre foi assim defendida, desde a promulgação da Constituição de 1988, ainda que de forma isolada. Não obstante, sua reaparição no calor de umas das crises políticas mais graves desde a redemocratização causou o espanto geral e a imediata reação da comunidade jurídica. 10 Os juristas que compõem esta obraresolveram dar a sua contribuição para a reafirmação e a defesa da interpretação correta do art. 142 da Constituição. Como se verá ao longo da obra, essa interpretação somente pode ser a de que as Forças Armadas, como instituições permanentes e essenciais ao Estado Democrático de Direito, devem exercer as suas funções constitucionais com a neutralidade política exigida pelo regime democrático, a elas não cabendo, porque não autorizado pela ordem constitucional vigente, o exercício de qualquer “poder moderador” dos conflitos entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. No decorrer da elaboração dos estudos que integram esta obra, diversas instituições manifestaram-se formalmente e defenderam a interpretação correta do art. 142 da Constituição. O Senado Federal[2], a Câmara dos Deputados[3] e a Ordem dos Advogados do Brasil[4] emitiram 11 pareceres jurídicos contundentes sobre o assunto. Entre os posicionamentos mais impactantes, deve-se mencionar a decisão do Ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, de 10 de junho de 2020, na qual ele afirma que “nenhum elemento de interpretação – literal, histórico, sistemático ou teleológico – autoriza dar ao art. 142 da Constituição o sentido de que as Forças Armadas teriam uma posição moderadora hegemônica”[5]. Dois dias depois, seguindo a mesma linha de raciocínio, o Ministro Luiz Fux, Vice-Presidente do STF, defendeu em decisão que “a missão institucional das Forças Armadas na defesa da Pátria, na garantia dos poderes constitucionais e na garantia da lei e da ordem não acomoda o exercício de poder moderador entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário”[6]. A reação imediata das instituições demonstra que a interpretação correta do art. 142 da Constituição tornou-se crucial para a continuidade 12 do processo de desenvolvimento e consolidação da democracia brasileira. Os autores que integram esta obra, conhecidos professores de direito constitucional em diversas instituições de ensino superior, de diferentes regiões do país, defendem a importância fundamental da definição e proteção dos contornos institucionais das Forças Armadas estabelecidos na Constituição de 1988, como garantias institucionais da própria democracia. Esperamos que os artigos aqui reunidos possam de alguma forma contribuir para o esclarecimento e a reafirmação das características institucionais e das funções constitucionais das Forças Armadas na democracia fundada sob a Constituição de 1988. 13 Forças Armadas e Democracia no Brasil pós-1988 André Rufino do Vale O (res)surgimento de uma versão interpretativa extravagante, equivocada e até assustadora do art. 142 da Constituição[7], mais de 30 anos após a sua promulgação, decorre, entre outras várias razões, do fato de que a interpretação desse dispositivo constitucional (1) permanece baseada nos aspectos linguísticos literais do seu texto, (2) ainda está envolvida pela atmosfera da memória histórica das intervenções militares no período republicano, ainda muito enraizada no imaginário de alguns juristas, e (3) parte de uma visão míope das forças armadas na democracia brasileira pós-1988, incapaz de compreender a 14 ruptura política e a transição de regime ocorrida na década de 1980. Pretendo neste texto abordar esses três aspectos, mesmo reconhecendo que as problemáticas decorrentes dos fatos recentes (descritos na apresentação desta obra) envolvem uma série de outras questões constitucionais importantes, que ficarão ausentes neste escrito, feito com a pretensão de ser breve e focado na correta interpretação do art. 142 da Constituição. É interessante notar que o art. 142 da Constituição de 1988 mantém, basicamente, a estrutura textual do tratamento constitucional das Forças Armadas nos períodos anteriores da República brasileira. Utiliza, inclusive, expressões textuais semelhantes ou idênticas àquelas que, desde a proclamação da República, destinam-se a definir a missão constitucional das Forças Armadas. 15 A Constituição de 1891, a primeira da história republicana, fazendo uso de expressões parecidas em conteúdo semântico, definia que “as forças de terra e mar são instituições nacionais permanentes, destinadas à defesa da Pátria no exterior e à manutenção das leis no interior”, e estabelecia que “a força armada é essencialmente obediente, dentro dos limites da lei, aos seus superiores hierárquicos e obrigada a sustentar as instituições constitucionais” (art. 14). A Constituição de 1934 passou a utilizar as expressões textuais que posteriormente permaneceram nos seguintes documentos constitucionais brasileiros, definindo que “as forças armadas são instituições nacionais permanentes, e, dentro da lei, essencialmente obedientes aos seus superiores hierárquicos. Destinam-se a defender a Pátria e garantir os Poderes constitucionais, e a ordem e a lei” (art. 162). Assim, a Constituição de 1946, repetindo esses termos, construiu a base textual que permanece até os dias atuais, ao estabelecer 16 que “as forças armadas, constituídas essencialmente pelo Exército, Marinha e Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República e dentro dos limites da lei. Destinam-se as forças armadas a defender a Pátria e a garantir os poderes constitucionais, a lei e a ordem” (artigos 176 e 177). A Constituição de 1967, ao invés de poderes constitucionais, fez uso da expressão “poderes constituídos”, mas manteve a mesma base textual anterior, com o seguinte dispositivo: “As forças armadas, constituídas pela Marinha de Guerra, Exército e Aeronáutica Militar, são instituições nacionais, permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República e dentro dos limites da lei. Destinam-se as forças armadas a defender a Pátria e a garantir os Poderes constituídos, a lei e a ordem” (art. 92). 17 A Constituição de 1988, portanto, ao fixar o desenho institucional das Forças Armadas, manteve essas mesmas definições textuais. Na dicção literal, o texto do atual art. 142 revela as três típicas e tradicionais funções das forças armadas: a "defesa da Pátria", a "garantia dos poderes constitucionais" e, "poriniciativa de qualquer destes", a garantia "da lei e da ordem". Não obstante, dada a identidade textual com as disposições constitucionais anteriores, uma interpretação literal dessas expressões contidas no art. 142 dificilmente conseguirá se afastar das pré-compreensões formadas ao logo de décadas na história constitucional brasileira, em que as intervenções politicas das Forças Armadas foram encaradas como um dos mecanismos legítimos para a solução de impasses nas relações entre os poderes. Como ressalta o historiador José Murilo de Carvalho, foram esses mesmos textos, com 18 estruturas semelhantes, que permitiram ao longo da história republicana as interpretações autorizadoras das intervenções militares com o objetivo da “garantia dos poderes constitucionais” e da “lei e da ordem”. Essa tradicional atribuição de garantir os poderes constitucionais sempre foi encarada por alguns militares como uma versão aproximada do papel do poder moderador previsto na Constituição Imperial de 1824, isto é, o de velar “sobre a manutenção da Independência, equilíbrio, e harmonia dos mais Poderes Políticos” (art. 98). A ideia de uma República que depende dessa permanente tutela das Forças Armadas começou a circular abertamente no Brasil na década de 1930, defendida especialmente por duas das maiores personalidades militares da época, Bertholdo Klinger e Góis Monteiro. A doutrina do general Góis Monteiro, constatou José Murilo de Carvalho, “previa a eliminação da política dentro das Forças Armadas para que pudessem agir mais eficazmente 19 como ator político”. Para o historiador, no pensamento de muitos militares, “é como se a República desconfiasse de sua capacidade de exercer o autogoverno civil e entregasse às Forças Armadas o papel político de tutela”. E conclui: “Parece haver um acordo tácito em torno da ideia de que a República ainda precisa dessa bengala. Não por acaso, chefes militares repetem sistematicamente que é seu dever constitucional intervir quando julgarem que as instituições correm risco”[8]. Assim, não se pode fechar os olhos para o fato de que essa interpretação dos textos constitucionais brasileiros (todos muito semelhantes nas expressões linguísticas) permanece viva na memória de muitos militares, e de alguns juristas. Para além da interpretação literal, porém, a compreensão adequada e correta do art. 142, como sói ocorrer em toda interpretação constitucional, está vinculada a uma visão contextual, que insira 20 esse texto na história em que construído (de redemocratização com ruptura política em relação ao passado autoritário), e ao mesmo tempo intertextual, que relacione o seu teor semântico com outros dispositivos textuais (especialmente a lei que o regulamenta, a conhecida Lei Complementar n. 97, de 1999) que, em seu conjunto, podem revelar o completo significado do sistema normativo que compõem. Apesar de se apropriar de expressões textuais muito semelhantes aos anteriores dispositivos constitucionais que definiam o papel das Forças Armadas na República, o art. 142 da Constituição de 1988 foi positivado em um momento de redemocratização que rompeu definitivamente com o passado das intervenções militares. Com o expresso objetivo de estabelecer as bases para a construção de uma efetiva democracia liberal, a Assembleia Constituinte de 1987-88 expressamente rejeitou a atribuição de um “poder moderador” às 21 Forças Armadas. Como se sabe, essa tese, que foi levantada nos trabalhos constituintes pelo General Leônidas Pires Gonçalves, na época o Ministro do Exército, foi motivo de crítica por parte dos constituintes defensores da completa superação do regime anterior, marcado pela ditadura militar[9]. E do texto que finalmente foi aprovado, exatamente a redação do atual art. 142, foi excluído qualquer significado que tornasse possível algum papel de intervenção militar de caráter político no funcionamento dos poderes constitucionais. A Constituição de 1988 não definiu nenhum poder moderador – o qual, ressalte-se, apenas existiu no Brasil Império, previsto no art. 98 da Constituição de 1824 –, mas estabeleceu todo um sistema de jurisdição constitucional que confere ao Supremo Tribunal Federal o poder de resolver juridicamente os impasses políticos sobre a repartição das competências constitucionais entre 22 os Poderes Executivo, Legislativo e o próprio Judiciário. Uma visão clara sobre o processo de redemocratização ocorrido no Brasil na década de 1980 é capaz de afastar qualquer interpretação da Constituição de 1988 no sentido de se atribuir às Forças Armadas um poder moderador dos conflitos entre os poderes. Como ocorreu em diversos países, na mesma época, a democracia brasileira instituiu um arranjo de freios e contrapesos entre os poderes que adota mecanismos de jurisdição constitucional, a cargo de uma Corte Constitucional (o Supremo Tribunal Federal), que desde então tem assumido a função de solucionar os conflitos jurídicos sobre a delimitação das competências constitucionais dos poderes. Todas as democracias surgidas naquele momento construíram sistemas muito parecidos, nos quais seria hoje um contrassenso sequer imaginar a discussão sobre eventual atribuição de 23 um poder moderador de caráter político às Forças Armadas. Nesse sentido, é preciso relembrar que, a partir da década de 1970, as transições de regime ocorridas no Sul e no Leste da Europa e na América Latina se caracterizaram pela clara opção que fizeram pela instituição de Cortes Constitucionais com a declarada função de arbitrar os conflitos entre os poderes e assim ocupar o espaço do poder moderador antes exercido pelas autoridades militares dos regimes ditatoriais depostos. A redemocratização do Brasil na década de 1980 seguiu essas mesmas tendências democratizantes, observada em diversos países - como Portugal, Espanha, Chile e Argentina, por exemplo - que criaram ou aperfeiçoaram a jurisdição constitucional, a cargo de tribunais especializados ou de cortes supremas de justiça, para a moderação das contendas entre as forças políticas remanescentes das transições de regime. 24 Como se sabe, transições de regime são eventos complexos que se desenvolvem de formas diferenciadas em cada momento e local em que serealizam. Não obstante, de modo geral, pode-se dizer que processos políticos de mudanças abruptas na sistematização e redistribuição dos poderes soberanos de uma nação se caracterizam pelos conflitos protagonizados, por um lado, pelas autoridades e elites políticas (muitas vezes de caráter militar, como ocorreu na maioria dos países da América do Sul) que estão em vias de perder o poder e, por outro, por aqueles que ascendem democraticamente ao comando dos novos rumos da nação e têm como objetivo primordial pôr fim às injustiças históricas que levaram à saturação do antigo regime. A via político-constitucional encontrada pela maioria das mesas de negociação próprias dos momentos de transição de regime tem sido a manutenção ou a instituição de um terceiro com 25 autoridade política e jurídica para fazer cumprir os acordos realizados e solidificados na forma de compromissos constitucionais. Assim se justifica a recorrente opção por democracias constitucionais qualificadas pela existência de uma Constituição organizadora dos poderes estatais, garantidora de direitos fundamentais (especialmente a propriedade e as garantias do devido processo legal) e instituidora de órgãos especiais (integrantes ou não da estrutura do poder judiciário) encarregados de sua proteção. A história do surgimento de novas democracias no mapa mundial assim o demonstra. Confiram-se, por exemplo, as transições ocorridas em finais do século XX em países da realidade latino-americana, assim como o emblemático caso sul-africano, no qual o delicado câmbio de um duro regime de apartheid para a democracia constitucional tornou-se possível através da atuação da Corte Constitucional na fiscalização 26 prévia da redação final do novo texto constitucional. Portanto, não é difícil verificar que a superação de regimes autoritários normalmente tem resultado em democracias constitucionais caracterizadas principalmente pela instituição de sistemas de jurisdição constitucional que, com variações em cada modelo, são dotados de Cortes Constitucionais. O fato é que as Cortes Constitucionais passaram a fazer parte do instrumental básico que tornam possíveis negociações exitosas em transições para o regime democrático. Em momentos de engenharia institucional, normalmente permeados por conflitos políticos de difícil solução, aos Tribunais Constitucionais são atribuídas as funções de árbitros dos jogos de poder em que se enfrentam elites tradicionais e novos protagonistas políticos. Não por outro motivo, diversos pesquisadores dessa realidade (que ainda se mostra bastante 27 recente na história da democracia) têm constatado que a instituição da jurisdição constitucional em novas democracias funciona como uma espécie de “seguro” (insurance)[10] contra os riscos imanentes aos sistemas com eleições periódicas e democráticas. Como em democracias multipartidárias os diversos segmentos políticos não têm nenhuma certeza sobre sua permanência no poder e sabem que mais cedo ou mais tarde tornar-se-ão minoria, a jurisdição constitucional acaba funcionando como um “seguro” para os futuros perdedores das disputas eleitorais, um foro independente onde a ação política das maiorias pode ser contestada pelas minorias. Com base nessa constatação empírica, Tom Ginsburg, por exemplo, afirma categoricamente que a expansão da jurisdição constitucional ao redor do mundo, ocorrida principalmente nas últimas décadas do século XX, é o produto dos processos de democratização ou redemocratização em diversos 28 países e, portanto, não pode ser considerada antidemocrática, como muitos estudiosos ainda sustentam. Ao fornecer um foro de disputa apartidário com autoridade suficiente para decidir as controvérsias políticas com base nos compromissos constitucionais a que todos estão submetidos, as Cortes permitem a convivência política sob uma mesma ordem constitucional, favorecendo a manutenção de um quadro de pluralismo político próprio das democracias[11]. É por isso que nas democracias dotadas de sistemas de jurisdição constitucional, as Forças Armadas – que, frise-se, figuraram como partes nas negociações desses processos de transição de regime – recebem um desenho institucional caracterizado pela profissionalização e pela neutralização política, ficando inteiramente limitadas à sua missão de defesa do Estado, não menos importante para a sobrevivência da própria democracia. 29 A democracia é um regime de governo que depende da estrutura constitucional do Estado de Direito. Sem o Estado, não é possível a democracia. Essa é uma constatação tanto teórico como empírica, como já verificaram (empiricamente) diversos estudos da ciência política sobre o funcionamento concreto das democracias contemporâneas, especialmente na região da América Latina. O cientista político espanhol Juan Linz, um dos grandes conhecedores dos processos de redemocratização da América do Sul, afirmava categoricamente que “em termos lógicos e empíricos, a ausência de uma organização com os atributos de um Estado moderno impossibilita o governo democrático sobre o território do Estado como um todo”[12]. O conhecido politólogo argentino Guillermo O’Donnell, também um conhecedor profundo da realidade política latino-americana, igualmente verificou 30 empiricamente que “o Estado de Direito é um pilar essencial da democracia de boa qualidade”[13]. O fato é que a existência de um Estado efetivamente soberano representa um pré-requisito para o desenvolvimento de um governo democrático, principalmente nas democracias da América do Sul. E essa soberania estatal somente é possível por meio de Forças Armadas adequadamente estruturadas, organizadas e bem equipadas. A preservação do Estado de Direito, especialmente do seu componente territorial (nas suas diversas dimensões: terrestre, marítima e aérea), está condicionada à ação eficaz dos comandos do Exército, da Marinha e da Aeronáutica. Assim, as Forças Armadas são essenciais para a existência do Estado de Direito soberano, o qual, por sua vez, é um pré-requisito para a democracia. Em Estados constitucionais, portanto, há uma relação de simbiose constitucional entre as Forças 31 Armadas e a Democracia. A democracia depende das Forças Armadas para se sustentar e para se desenvolver. Mas a função atribuída às Forças Armadas nademocracia é a de defesa dos fundamentos do Estado de Direito, especialmente de seu território. Esse é o significado mais evidente das expressões “defesa da pátria” e “garantia dos poderes constitucionais” contidas no art. 142. A profissionalização e a neutralidade política são garantias institucionais do pleno exercício pelas Forças Armadas dessa importante missão constitucional. Não há espaço nas democracias para intervenções militares de caráter político, ainda que “pontuais”. Justamente tendo em vista a sua função de defesa do Estado de Direito, as Forças Armadas são instituições de Estado, e não de governo. Como define a Constituição, são “instituições nacionais permanentes e regulares”. Enfim, são órgãos do Estado, organizados com base na hierarquia e na disciplina, submetidos à autoridade do Presidente 32 da República e, dessa forma, pertencentes à estrutura do Poder Executivo Federal. Integrantes da estrutura e subordinadas hierarquicamente a um dos poderes, às Forças Armadas obviamente não poderiam ser conferidas atribuições de resolver conflitos institucionais entre os demais poderes. Para a defesa plena do Estado de Direito, as Forças Armadas também receberam da Constituição a atribuição de preservar a ordem pública interna. A competência para atuar na garantia “da lei e da ordem”, como prescreve o art. 142, deve ser entendida como uma função excepcional, que apenas se justifica ante situações extraordinárias, visto que a própria Constituição, no seguinte artigo 144, estabelece os órgãos (polícia federal, polícia rodoviária federal, polícias civis, polícias militares e corpos de bombeiros militares) que estão exclusivamente incumbidos do dever de garantir a segurança pública. Por isso, a compreensão adequada dessa atuação excepcional das Forças 33 Armadas na segurança pública depende da interpretação do art. 142 em conjunto não apenas com o art. 144 da Constituição, mas também com o artigo 34, inciso III (que trata da hipótese de intervenção federal para pôr termo a grave comprometimento da ordem pública), com os artigos 136 e 137 (que tratam dos estados de defesa e de sítio ante grave instabilidade institucional) e, especialmente, com a Lei Complementar n. 97, de 1999, que dispõe sobre as normas gerais para a organização, o preparo e o emprego das Forças Armadas. Nesse caso, não se trata de interpretar a Constituição conforme a lei, o que evidentemente seria um equívoco. Mas de levar em consideração que, para a aplicação da parte final do art. 142, quando trata da “iniciativa de qualquer” dos poderes para solicitar à Forças Armadas a garantia “da lei e da ordem”, são necessárias normas de organização e procedimento, como exige o próprio 34 art. 142, em seu § 1º, ao prescrever que “lei complementar estabelecerá as normas gerais a serem adotadas na organização, no preparo e no emprego das Forças Armadas”. Essas normas foram definidas na Lei Complementar n. 97, de 1999, a qual prevê que “a atuação das Forças Armadas, na garantia da lei e da ordem, por iniciativa de quaisquer dos poderes constitucionais, ocorrerá de acordo com as diretrizes baixadas em ato do Presidente da República, após esgotados os instrumentos destinados à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, relacionados no art. 144 da Constituição Federal” (art. 15, § 2º). Segundo a lei, “consideram-se esgotados os instrumentos relacionados no art. 144 da Constituição Federal quando, em determinado momento, forem eles formalmente reconhecidos pelo respectivo Chefe do Poder Executivo Federal ou Estadual como indisponíveis, inexistentes ou insuficientes ao desempenho regular de sua missão 35 constitucional” (art. 15, § 3º). De todo modo, a lei deixa claro que a atuação excepcional das Forças Armadas na segurança pública deve ser “de forma episódica, em área previamente estabelecida e por tempo limitado”, e deve se limitar às “ações de caráter preventivo e repressivo necessárias para assegurar o resultado das operações na garantia da lei e da ordem” (art. 15, § 4º). Essas, portanto, são as balizas normativas para a compreensão adequada da função de “garantia da lei e da ordem” por parte das Forças Armadas. Como se vê, elas decorrem de uma visão intertextual de diversos dispositivos constitucionais e legais, que conformam um sistema normativo regulador dessa atuação dos militares na preservação da ordem pública. Enfim, a análise do contexto histórico da construção do art. 142, assim como a apreciação de todo o sistema normativo em que ele se insere, são cruciais para a correta apreensão do seu real 36 significado e, desse modo, para a precisa identificação do papel das Forças Armadas no Estado Democrático de Direito fundado pela Constituição de 1988. Todos esses elementos e parâmetros de interpretação devem ser seriamente considerados, porque, no fundo, eles se traduzem em defesa e persistência do contínuo processo de consolidação da democracia constitucional brasileira pós-1988. 37 São as Forças Armadas o Poder Moderador na República? Uma correta hermenêutica do Artigo 142 da Constituição do Brasil Lenio Streck [14] O modo de organização social surgido por volta do século XVI no Ocidente, abrindo espaço à modernidade política e deixando o fragmentado Medievo para trás, centralizava o poder – pulverizado, até então, entre muitos senhores feudais – nas mãos do soberano. Esse traço alinhava-se às mais típicas características de Estado, sumariamente contidas em noções como fronteira, povo e soberania – percebida, aqui, como 38 uma espécie de irmã gêmea dessa mesma centralidade. Ou seja, a concentração de poder no soberano, verdadeira condição de possibilidade àquele Estado de matiz absolutista, era fundamentada e legitimada na mítica descendência de Adão, dialogando, pois, com o direito divino ao trono, exclusivamente apontado pelo papa. Disso tudo resta, claro, não apenas a importância política da Igreja – que certamente não é objeto desse pequeno texto – como, também, o oportuno espaço para interrogar: se a infalibilidade papal dizia o rei, legitimando-o no trono, o que permitia o exercício de sua soberania? A questão é complexa, evidentemente, mas podemuito bem ser resumida no reflexo das instituições da aurora da modernidade política no soberano. Rei e instituições confundiam-se. O poder restava garantido no irrestrito domínio da força (compreendida como violência), responsiva, sem nenhum controle ou 39 constrangimento, às pulsões de sua vontade. Se o rei – bem definido no frontispício do Leviatã de Hobbes – era “as instituições”, encerrava em si também o limite de seus próprios desejos. Podia o que queria. É por essa razão que o momento seminal do Estado foi posto mesmo como Absoluto. Sem dúvida, é essa a sua melhor definição. Embora os primeiros esboços constitucionais propusessem freios, ainda que tímidos, à ação do soberano, mesmo a fase mais madura dessa moderna instituição política – que é o Estado – manteve essa centralidade na figura do rei – e não da nação, como é hoje. O Brasil, embora colônia de uma metrópole europeia na sua gênese, experimentou esse modelo já independente de Portugal. Veja-se, nesse sentido, o Poder Moderador[15], bem estampado no Artigo 98 da monárquica Constituição de 1824. O imperador era não apenas a “chave de toda organização política”, como, também, o “chefe 40 supremo da nação”. Não por outro motivo é que, diante desses atributos, recaía sobre si a missão de velar “sobre a manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos poderes políticos”. É bem verdade, entretanto, que esse mesmo Brasil independente surgiu como uma monarquia tíbia. A separação de Portugal veio frente a uma franca disputa entre monarquistas e republicanos, que cederam, grosso modo, somente frente ao slogan de “Pedro Primeiro sem Segundo”. Como de resto todos sabem, essa mesma condição não se sustentou, claro, e a sucessão ao trono ocorreu. Houve um Segundo, e a República chegou tardiamente entre nós, somente em 1889, diante de uma América já bem mais célere nesse sentido. Com a República – descortinada a cavalo e de golpe[16] – esse ranço absolutista, bem refletido no famoso l'État c'est moi atribuído a Luís XIV, dissolveu-se. O Poder Moderador inspirado nas ideias de Benjamin Constant já não aparecia na 41 Constituição de 1891, francamente inspirada em Montesquieu e nos chamados pais fundadores norte-americanos. A “chave de toda a organização política” já não estava estampada na figura de um soberano, e com Rui Barbosa[17] passa-se ao Judiciário a tarefa de examinar a constitucionalidade dos atos dos Poderes da República. Embora isso nem de longe tenha significado colocar, sobremodo seu órgão de cúpula, como Poder Moderador, serviu de baliza à harmonia entre eles. O que esse pequeno inventário do exercício e controle do poder até aqui nos mostra é que – à exceção de regimes autoritários – impasses ou desacordos morais (políticos) entre Poderes passam pelo Judiciário – e mesmo ele é constitucionalmente limitado. Claro. É uma questão de democracia. De Estado de Direito. De princípios[18]. 42 É por essa razão que, diante da historicidade que nos molda, não há hermenêutica que permita ler o Artigo 142 da Constituição de 1988 como legítima atribuição, às Forças Armadas, do Poder Moderador, como propôs o professor Ives Gandra, em texto assinado ainda em 2011, na Revista Brasileira de Direito Constitucional. Referindo-se à decisão do Superior Tribunal Federal sobre aborto de anencéfalos (ADPF n. 54/DF), na ocasião, disse: E, na hipótese de fazê-lo e de a Suprema Corte não acatar a anulação, caberia até mesmo a intervenção das Forças Armadas para reestabelecer a lei e a ordem turbadas pela quebra de harmonia entre os Poderes da República, obrigando o Supremo Tribunal Federal a cumprir a Constituição[19]. 43 Desde então, o argumento de Gandra tem sustentado o amplo conjunto de insatisfeitos não apenas com as decisões do órgão de cúpula do Judiciário no Brasil, como, ainda, também em relação ao Poder Legislativo[20]. A partir dele – mas, sobremodo, para além dele – essas vozes descontentes, desconhecendo não apenas o traço contramajoritário da democracia, mas, para além disso, que o próprio Benjamin Constant percebia o Poder Moderador como “autorité à la fois supériere et intermédiaire, sans intérêt à déranger l'équilibre, mais ayant au contraire tout intérêt à le maintenir”[21], acenam mesmo ao fechamento de instituições ou deposição de seus membros como a paradoxal resposta a uma pretensa busca por harmonia ou independência. Nada mais contraditório, como resta evidente, mas também nada mais antidemocrático: assim como as decisões judiciais não devem procurar atender a chamada voz das ruas[22] (isso, entre outros aspectos, é ativismo 44 – fenômeno do qual sou um ferrenho crítico[23]), uma espécie de retorno do Poder Moderador – a partir das Forças Armadas – não pode emergir frente a nossas crises institucionais. Como diria Konrad Hesse – muito bem lembrado em Nota Informativa do Senado –, “a Constituição deve afirmar-se não só em tempos normais, mas também em situações de emergência e de crise”[24]. Diante disso entendo – e não poderia ser diferente – que o argumento voltado a essa confusa ideia de golpe constitucional ou intervenção militar constitucional deve ser constrangido[25], em sentido semelhante ao que proponho como forma de distinguir boas e más decisões judiciais. Assim como o jurista inserido em um habitus dogmaticus não se dá conta das contradições do sistema jurídico, projeções como esta – ideologizadas e cada vez mais voltadas às próprias subjetividades – também figuram imunizadas em relação às suas próprias contradições. 45 Quero dizer: na especificidade desse caso, os defensores da tese “o artigo 142 e o as forças armadas como guardiães da Constituição” - ignoram, no limite, a antropofagia de sua própria proposta realizada. Paradoxal e contraditoriamente, a busca por democracia, por harmonia entre Poderes, torna-se a predação dessa mesma democracia e dos Poderes que lhe emprestam movimento. Não há accountability, noutras palavras, porque a linguagem pública da democracia é babelizada. Daí a antropofagia, e a necessidade de desnaturalizar esses argumentos, tão representativos do sujeito da modernidade, constrangendo-os. Nesse sentido, vejamos, muito sinteticamente: Se oArtigo 142 diz que "as Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do presidente da 46 República, e destinam-se à defesa da pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem", há de se ver que, primeiro, o Presidente da República é posto como autoridade civil. Submeter as Forças Armadas a ele refere-se tão-somente à passagem do poder aos civis, como já dizia – sobre o tema – o constituinte Ricardo Fiúza[26], pouco mais de um ano antes da promulgação da Constituição. Mais: se, na República, a autonomia é do Direito – como de há muito venho dizendo –, essas mesmas forças não podem figurar como uma espécie de ultrapassada guarda pessoal do soberano. Seria um secular retrocesso. Enfim, seria um haraquiri institucional, que nos faria passar por imensa vergonha no cenário internacional. Projetar um superpoder acima do contrato – como propunha um Hobbes temerário às ameaças da Armada Espanhola nos já distantes primeiros passos da modernidade política – jamais poderá 47 corresponder, numa República à luz da contemporaneidade, à harmonia entre Poderes. Esse é o ponto. O principal, diria. Ora, a “a lei e a ordem a serem garantidas” – a que se refere o Artigo 142 – são as das próprias instituições democráticas (Título V da Constituição Federal), como já referi em outra oportunidade[27]. As Forças Armadas não são, portanto, o fiel da democracia. Ou seja, elas não podem intervir a qualquer momento. Aliás, o mesmo dispositivo prevê, no seu Parágrafo Único, que lei complementar estabelecerá as normas gerais a serem adotadas para isso (a LC nº 97, Artigo 15). Isso significa, repito, que não apenas seu emprego responde a uma cadeia de comando civil no seu topo, mas que todo esse trâmite ocorre a partir de um procedimento a ser estritamente seguido. Por fim, todos sabemos que, em uma democracia, não há de se falar em autonomia da parte de quem porta armas, como polícias 48 militarizadas (compreendidas como potencial contingente auxiliar) e Forças Armadas. Por essa razão é que somente um poder eleito poderá dispor da palavra final, como a Constituição e a lei aqui determinam. Diferente disso, é projetar ao Artigo 142 uma hermenêutica do retrocesso democrático, deslocando-o também em relação a um contemporâneo e intersubjetivo paradigma. O próprio teor literal – se assim se quiser tomar um textualismo – do Artigo 142 afasta a possibilidade de ação autônoma das Forças Armadas sem a subordinação a um poder civil. Mas consideremos outros elementos hermenêutico-constitucionais. O princípio da unidade da Constituição e o elemento sistemático permitem ver no Texto Magno outros dispositivos como aqueles que estabelecem as regras da intervenção federal, estado de defesa e estado de sítio (Artigos 34, 36, 136 a 141), bem como a existência de conselhos como o da República e o de 49 Defesa Nacional (Artigos 89 a 91), tendo os comandantes das Forças Armadas e o ministro de Estado da Defesa assento permanente neste último, mas com função opinativa, cabendo a decisão superior ao presidente da República. Numa palavra final, vai aqui uma pitada de hermenêutica. Os defensores da tese que o Ministro Roberto Barroso chamou de “terraplanismo constitucional” esquecem que a interpretação do Direito tem limites. Interpretar não é ser escravo da lei, como se ainda fosse possível propugnar por um textualismo ingênuo que tropeça no primeiro degrau de qualquer análise semioticista. Interpretar não é, pois, fazer Auslegung (retirar do texto o que ele mesmo, em si mesmo, contém, como bem criticado por Gadamer). E, fundamentalmente, não é uma freie Sinngebung (uma livre atribuição de sentido). Interpretar é dar sentido com limites (Begrenzte, como na feliz critica que Bernd Rüthers, em seu belo livro “Die unbegrenzte Auslegung”,[28] 50 faz à ausência de limites/constrangimentos da interpretação do Direito na ascensão do nazismo). A questão é, portanto, também de ordem simbólica. De que modo o imaginário jurídico alberga e permite frutificar teses como essa que alça as forças armadas à guardiães da Constituição? Eis aqui um profícuo campo para pesquisas. No âmbito das práticas cotidianas dos tribunais e na dinâmica das faculdades de Direito e cursos de pós-graduação, é visível a falta de uma crítica teórica que constranja interpretações sem limites ou simplesmente ideológicas. Retornando à Rüthers, corre-se o risco de um atropelo epistêmico, porque não compreendemos os sinais do autoritarismo. É preciso estar vigilante. Afinal, há bons indicativos de que a falta de críticas, enfim, a leniência da doutrina naquele momento histórico da Alemanha fez com que se tivesse uma interpretação sem constrangimentos, sem limites. Por isso, o alerta de Rüthers – problemática que 51 reelaboro no verbete Constrangimento Epistemológico no Dicionário de Hermenêutica - sobre interpretações não constrangidas, não limitadas, não questionadas. Assim, por todos os ângulos, uma interpretação do artigo 142 que ignore as instituições democráticas da República como um indissolúvel conjunto e, passo seguinte, autorize uma intervenção militar, é um arrematado absurdo que, no mais, acenaria a uma retumbante aporia: se dois Poderes – que por força constitucional são inoponíveis – convocarem as Forças Armadas, por exemplo, com que critérios um lado seria escolhido? A resposta é única e certamente moral. Eis o ponto. Se aí chegarmos, a República já naufragou. 52 Referências BRASIL. Senado Federal. Nota Informativa n. 2.866 de 2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/nota-tecnica-senado.pdf . Acesso em: 08.06.2020. BRASIL. Câmara dos Deputados . Diários da Assembleia Nacional Constituinte , 05 de agosto de 1987. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/ Constituicoes_Brasileiras/constituicao-cidada/publicacoes/d iarios_anc . Acesso em: 08.06.2020. CARVALHO, José Murilo. 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Marcelo Casseb Continentino [29] Nos últimos tempos, intensificou-se o debate constitucional sobre tema que, até então, não suscitava maior interesse, tampouco ensejava possibilidades de interpretação tão diversas entre si. Trata-se da questão do Poder Moderador ou, melhor, de uma espécie de sobrevida desse Poder na Constituição Federal de 1988 como se algum órgão, instituição ou poder fosse seu legítimo herdeiro e, como tal, pudesse arvorar-se das atribuições que um dia lhe pertenceram. 56 Chama-nos a atenção, nesse não tão novo contexto argumentativo, a forte presença do elemento histórico no discurso jurídico-político relativo ao Poder Moderador, que constituía o poder supremo da Constituição do Império de 1824. Associado à própria imagem pessoal do imperador, sua instituição acarretou uma série de questionamentos que minou a legitimidade da Carta de 1824. Fora conceitualmente previsto, quase em tom doutrinário, pelo art. 98: “Art. 98. O Poder Moderador é a chave de toda a organisação politica, e é delegado privativamente ao Imperador, como Chefe Supremo da Nação, e seu Primeiro Representante, para que incessantemente vele sobre a manutenção da Independencia, 57 equilibrio, e harmonia dos mais Poderes Politicos.” A simples leitura da disposição constitucional, contudo, não nos permite adentrar o alcance e o sentido da norma, muito embora, no art. 101, tenham sido estabelecidas atribuições que lhe seriam próprias: “Art. 101. O Imperador exerce o Poder Moderador: I. Nomeando os Senadores, na fórma do Art. 43. II. Convocando a Assembléa Geral extraordinariamente nos intervallos das Sessões, quando assim o pede o bem do Imperio. III. Sanccionando os Decretos, e Resoluções da Assembléa Geral, para que tenham força de Lei: Art. 62. 58 IV. Approvando, e suspendendo interinamente as Resoluções dos Conselhos Provinciaes: Arts. 86, e 87. (Vide Lei de 12.10.1832) V. Prorogando, ou adiando aAssembléa Geral, e dissolvendo a Camara dos Deputados, nos casos, em que o exigir a salvação do Estado; convocando immediatamente outra, que a substitua. VI. Nomeando, e demittindo livremente os Ministros de Estado. VII. Suspendendo os Magistrados nos casos do Art. 154. VIII. Perdoando, e moderando as penas impostas e os Réos condemnados por Sentença. 59 IX. Concedendo Amnistia em caso urgente, e que assim aconselhem a humanidade, e bem do Estado.” A pureza redacional dos dispositivos constitucionais, quando isolada do contexto jurídico e político da época em que vigoraram tais normas, ofusca significativamente o impacto de que se revestiu a (parcial) recepção da teoria do Poder Moderador na ordem constitucional brasileira. Devemos relembrar que sua previsão na Carta do Império deveu-se à insistência do imperador dom Pedro I, que, razoavelmente versado na literatura política de seu tempo, não via com bons olhos a proposta de uma Constituição que cumprisse com sua função elementar de limitar o exercício do poder político, o que fora positivamente consagrado no art. 16 da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 (“Qualquer sociedade, na qual uma norma não 60 tenha estabelecido a garantia dos direitos nem a separação dos poderes, não tem Constituição”)[30]. Após haver determinado a dissolução da Constituinte de 1823, que em sua visão havia elaborado um Projeto de Constituição não condizente com os princípios da independência do Brasil, da integridade do Império e da dinastia do imperador incorrendo em perjúrio[31], dom Pedro I delegou a tarefa de elaborar a futura Constituição do Império a um Conselho de Estado, que fez incluir o Poder Moderador na estrutura orgânica da Constituição a ser outorgada pelo imperador. Acontece que o imperador conhecia bem as doutrinas de sua época e melhor ainda as de Benjamin Constant, que desenvolvera a teoria do Poder Moderador, por ele denominada de “Poder Neutral ou Real”. Segundo Constant[32], o Poder Neutral atuaria de modo a conciliar cada um dos poderes como verdadeiro juiz a compor as relações 61 entre os demais poderes (Judiciário, Executivo e Legislativo) em caso de conflito. Neutralidade e passividade seriam suas características essenciais. E, por isso mesmo, esse Poder jamais atuaria diretamente em relação aos cidadãos ostentando sua força material contra as pessoas, mas, ao revés, sua ação seria estrategicamente dirigida à solução de conflitos institucionais, para o que se revestiria tão-somente de um poder geral de cassação ou anulação dos atos exorbitantes dos demais poderes, dada a própria inviolabilidade e irresponsabilidade do monarca (the king can do no wrong). Havia, ainda, uma outra característica essencial à formulação da teoria do Poder Moderador, a qual – não acidentalmente – foi tangenciada quando de sua recepção aqui no Brasil. E, caso não rigorosamente observada, acarretaria o total desvirtuamento da natureza neutra e conciliadora do Poder Moderador, além de arruinar 62 os fundamentos democráticos do Monarquia Constitucional: de acordo com Benjamin Constant[33], o Poder Neutral (ou Moderador) não poderia ter por titular o chefe de qualquer dos outros três poderes sob pena de romper-se o equilíbrio e a harmonia entre eles e, no limite, de quebrar a própria noção elementar de governo limitado, a qual reside na base da ideia mesma de Constituição e de sua razão de existir. No entanto, o personalismo e a vontade do imperador terminaram por prevalecer de modo que, na Constituição de 1824, em flagrante contradição com a teoria do Poder Neutral, foi prevista a instituição do Poder Moderador que seria privativamente exercido pelo imperador, a quem também cabia a titularidade do Poder Executivo. Nesse ponto, a teoria de Constant cedeu às forças das circunstâncias internas e dos interesses pessoais. 63 É que dom Pedro I[34] pretendia uma Constituição que fosse “digna de mim [dele]”, o que significava, em seu visão, que a Carta do Império deveria ser uma tal que conferisse ao Poder Executivo (isto é, a ele pessoalmente) “toda a força necessária” ao desempenho de suas altas funções. E assim aconteceu. Ao imperador cabia dissolver a Câmara dos Deputados, prorrogar ou adiar a Assembleia Geral, nomear vitaliciamente os senadores, nomear e destituir magistrados, nomear e demitir ministros, nomear comandantes das forças de terra e mar; enfim, tamanhas eram suas atribuições, que incontrastável praticamente se tornou seu poder. Houve reação ao arranjo institucional do poder na Carta de 1824, sendo de se destacar a dirigida por Frei Caneca[35] que, em 1824, fez pronunciamento contra a futura Constituição de 1824. O líder revolucionário da Confederação do Equador justificou sua recusa à vindoura norma 64 fundamental em face de seu caráter autoritário e, sobretudo, da previsão do Poder Moderador. Especialmente porque as funções executivas seriam atribuídas ao imperador em acumulação indevida com aquelas inerentes ao Poder Neutral, para Frei Caneca, o sistema de governo imperial se enquadraria como uma “monarquia absoluta”, e não uma monarquia constitucional. Comentando o texto de 1824, Frei Caneca[36] sentenciou: o Poder Moderador era “a chave mestra da opressão da nação brasileira e o garrote mais forte da liberdade dos povos”. A pecha da ilegitimidade do Poder Moderador e, por conseguinte, da Constituição de 1824 perseguiu o imperador dom Pedro I até sua renúncia. Com a sucessão ao trono de dom Pedro II, o exercício do Poder Moderador, ao menos até o final da década de 1860, ganhou contornos de parcimônia e equilíbrio, não havendo maiores 65 desmandos nem críticas demasiadas por parte dos atores políticos e juristas. Se o poder imperial e o Poder Moderador, por algum tempo, foram vistos como instrumentos de harmonia e equilíbrio da ordem política[37], a partir da década de 1870, modificando-se o contexto político e econômico, ocorreria mais uma vez a ressignificação da compreensão política em torno do Poder Moderador. Seu exercício voltaria a ser assimilado como fruto do autoritarismo e “imperialismo”, cujo léxico, desde então, constituiu-se como novo conceito na linguagem política, servindo de “arma” de ataque ao imperador, a seupoder pessoal e ao Poder Moderador[38]. A queda da Monarquia representou o fim do quarto poder na história constitucional brasileira. Por mais que haja alguma controversa quanto à legitimidade do exercício do Poder Moderador ao longo de toda a vigência da Carta de 1824[39], o certo 66 é que a pecha da ilegitimidade nunca se afastou da semântica do Poder Moderador, seja em razão da forma como foi recepcionado na Carta de 1824, seja em razão do modo como foi concebido na ordem constitucional positiva ou seja em razão do impacto político e social dos efeitos de sua ação no complexo xadrez político do Império. Isso nos leva à conclusão de que o uso do conceito de Poder Moderador na linguagem política atual, quase 200 anos depois de sua instituição, tanto em associação ao Supremo Tribunal Federal quanto às Forças Armadas, para situar o atual debate político-institucional, revela um grave descompasso histórico sem respaldo no texto constitucional de 1824 e de 1988. Primeiro, porque o Poder Moderador, em 1824, foi expressamente previsto como quarto poder (art. 10)[40] que sobrepairava os demais, fundado na premissa da supremacia, inviolabilidade e infalibilidade do imperador (art. 99)[41]; daí porque 67 Tobias Barreto[42], um dos grandes críticos do Poder Moderador, advertia que o pensamento constitucional brasileiro penava com sérios “prejuízos teológicos e metafísicos”. Esses pressupostos, que soerguiam a noção da supremacia imperial e da ordem política vigente, claramente, não foram mantidos na ordem constitucional brasileira, que, desde a Constituição de 1891 até a vigente Constituição de 1988, assentou-se noutros pilares constitucionais. E, na Constituição de 1988, já à luz dos arts. 1º e 2º, está muito claro um dos pilares fundamentais da República Federativa do Brasil: a separação dos três poderes, que são harmônicos e independentes entre si como condição à configuração do Estado Democrático de Direito. Segundo, porque, como visto acima, as atribuições do Poder Moderador estavam expressamente previstas na Constituição de 1824 (art. 101). As prerrogativas imperiais que mais 68 interferiam no funcionamento dos demais poderes, posicionando o Moderador acima dos Poderes Legislativo e Judiciário, a exemplo da dissolução da Câmara, da nomeação vitalícia de senadores ou da suspensão de magistrados, foram descontinuadas, a fim de consolidar-se a separação e a harmonia entre os três poderes. Terceiro, porque o Poder Moderador, em sua concepção originária, para se firmar como poder neutro e passivo, deveria ter sido integralmente separado do Poder Executivo e dos demais Poderes, o que não ocorreu em 1824; e, no caso da Constituição de 1988, tanto as Forças Armadas estão inseridas na estrutura do Poder Executivo, subordinadas ao Presidente da República que é seu comandante supremo (art. 84, XIII), quanto o Supremo Tribunal Federal integra a estrutura do Poder Judiciário. Portanto, trazer a semântica do Poder Moderador no debate constitucional hodierno revela-se um nonsense histórico e jurídico, 69 que fere a lógica da separação dos poderes atualmente estabelecida e os fundamentos da ordem constitucional hoje em vigor. Não podemos desconsiderar que o argumento histórico tenha papel fundamental no discurso jurídico-político, contudo não se pode deixar de ter em consideração que, ao assumir tal ônus argumentativo, o debatedor tem a responsabilidade de assumir em sua inteireza o fato histórico e não apenas o recorte que convém, sob pena de incorrer em um uso enviesado da história com propósitos marcadamente estratégicos. Por fim, conforme reconheceu Gláucio Veiga[43] ao discutir a história das ideias da Faculdade de Direito do Recife, retomando o pensamento de Tobias Barreto, poderíamos intuir que o resgate do conceito de Poder Moderador sugere a pretensão retórica de legitimação da “ideia da tutela” e da ênfase na “permanente menoridade do povo”, o que portanto autorizaria 70 excecionalmente a atuação de algum órgão, instituição ou poder como instância suprema e tutora da suposta cidadania juvenil brasileira[44]. O uso do argumento histórico no discurso jurídico-político, mais precisamente do conceito do Poder Moderador, não nos parece ter lugar ou vez à luz da Constituição Federal de 1988. Não nos parece crível, de igual modo, antever qualquer órgão, instituição ou poder como legítimo sucessor do Poder Moderador. A Constituição Federal de 1988 não tem como subsidiar tais ecos do passado nem as pretensões do presente de revigorar o Poder Moderador. 71 Intervenção Militar é Golpe: é só ler a Constituição Tomaz Pereira Diego Werneck Arguelhes Trazer as Forças Armadas para resolver disputas políticas é, tragicamente, um fato recorrente da história brasileira. São vozes sempre antidemocráticas em sua essência. Não surpreende que ressurjam em defesa de um presidente que se recusa a aceitar que há diversos poderes na República, todos constituídos e limitados pela Constituição. Há, no entanto, algo de peculiar no cenário atual. Vozes do campo bolsonarista afirmam que o artigo 142 da Constituição autorizaria a convocação das Forças Armadas para resolver disputas pontuais entre os poderes. O 72 elogio da intervenção militar, em outras épocas feito em nome de ideais abstratos como “segurança nacional”, agora se fantasia de interpretação constitucional. A invocação de artigos da própria Constituição de 1988 para tentar dar um verniz de legalidade a arroubos autoritários é um equívoco grave e sintomático. Um exemplo claro de produção e disseminação de desinformação no campo do Direito, essa afirmação viola simultaneamente (i) o significado político da Constituição, (ii) consensos profissionais mínimos e (iii) a literalidade do texto constitucional. O mínimo de conhecimento da história política brasileira recente nos mostra que a Constituição de 1988, marco fundamental da redemocratização, pôs fim ao exercício arbitrário do poder militar. Re-institucionalizando o Estado de Direito e a Democracia, desenhou uma série de mecanismos de controle para dar efetividade aos 73 limites constitucionais e legais ao exercício do poder político. Muitos detalhes do nosso texto constitucional poderiam
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