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ORGANIZAÇÃO: ANDRÉ RUFINO DO VALE
NO BRASIL
E DEMOCRACIA
FORÇAS ARMADAS
A INTERPRETAÇÃO DO ART. 142 DA CONSTITUIÇÃO DE 1988
ALEXANDRE SANKIEVICZ - ANDRÉ RUFINO DO VALE - DIEGO WERNECK 
ARGUELHES - ELIARDO FRANÇA TELES FILHO - GLAUCO SALOMÃO LEITE 
GUSTAVO FERREIRA SANTOS - JOÃO PAULO BACHUR - JOÃO PAULO ALLAIN 
TEIXEIRA - JOÃO TRINDADE CAVALCANTE FILHO - JORGE OCTÁVIO LAVOCAT 
GALVÃO - LENIO STRECK - LEONARDO AUGUSTO DE ANDRADE BARBOSA 
MARCELO CASSEB CONTINENTINO - MARCELO LABANCA CORRÊA ARAÚJO 
MATHEUS PIMENTA DE FREITAS - ROBERTO CARLOS MARTINS PONTES 
SOPHSOPHIA GUIMARÃES - SÉRGIO ANTÔNIO FERREIRA VICTOR - THOMAZ PEREIRA
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Observatório Constitucional  
Edição especial: ISSN 1982-4564 
 
 
 
 
 
 
 
 
Brasília, 2020 
 
 
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SUMÁRIO 
 
Apresentação 
André Rufino do Vale 
  
1. Forças Armadas e Democracia no Brasil 
pós-1988 
André Rufino do Vale 
  
2. São as Forças Armadas o Poder Moderador na 
República? Uma correta hermenêutica do Artigo 
142 da Constituição do Brasil 
Lenio Streck 
  
3. Qual lugar para o Poder Moderador na 
Constituição Federal de 1988? 
Marcelo Casseb Continentino 
  
4. Intervenção Militar é Golpe: é só ler a 
Constituição 
Thomaz Pereira 
Diego Werneck Arguelhes 
3 
 
5. O papel das Forças Armadas à luz do art. 142 
da Constituição: uma leitura histórica e 
sistemática da impossibilidade de uma 
“intervenção militar” 
João Trindade Cavalcante Filho 
 
6. A Prevalência do Poder Civil sobre o Militar 
na Constituição Federal de 1988: um estudo 
sobre os limites de emprego das Forças 
Armadas, conforme o artigo 142 da Constituição 
Federal 
Leonardo Augusto de Andrade Barbosa 
Roberto Carlos Martins Pontes 
Alexandre Sankievicz 
  
7. O art. 142 da Constituição e os malabarismos 
constitucionais 
Glauco Salomão Leite, 
Gustavo Ferreira Santos, 
João Paulo Allain Teixeira 
Marcelo Labanca Corrêa Araújo 
4 
  
8. O sentido do artigo 142 da Constituição 
Federal de 1988 
João Paulo Bachur 
  
9. Ulisses, as sereias e o art. 142 da Constituição 
Federal 
Matheus Pimenta de Freitas 
  
10. O significado original do art. 142 da 
Constituição Federal de 1988 
Jorge Octávio Lavocat Galvão 
Sophia Guimarães 
  
11. As Forças Armadas e o poder moderador no 
Direito Constitucional brasileiro 
Sérgio Antônio Ferreira Victor 
Eliardo França Teles Filho 
 
 
 
 
5 
Apresentação 
André Rufino do Vale 
 
As democracias liberais contemporâneas       
foram construídas baseadas na ideia da           
neutralidade política das Forças Armadas. Isso           
ocorreu, sobretudo, nas ​novas democracias ​da           
América Latina e do Sul da Europa, cujos processos                 
de transição de regime, no último quarto do século                 
XX, pautaram-se em complexas negociações de           
anistia política sobre a atuação de oficiais nos               
períodos de ditadura militar. Na Espanha, em             
Portugal, na Argentina, no Chile e também no               
Brasil, a ruptura político-constitucional com o           
autoritarismo anteriormente protagonizado pelas       
Forças Armadas caracterizou as transições         
democráticas e norteou o caminho da           
institucionalização e da consolidação das novas           
6 
democracias com o desejado distanciamento dos           
militares da atividade política. 
No Brasil, o novo regime democrático           
instaurado em 1985-88 inegavelmente foi exitoso           
na construção das relações de neutralidade entre             
forças armadas e a política. A Constituição             
submeteu as Forças Armadas aos poderes           
constitucionais e permitiu o afastamento paulatino           
de seus membros do exercício da política. Sob a                 
nova ordem constitucional, os três comandos das             
Forças (Exército, Marinha e Aeronáutica) foram           
incorporados à estrutura do Ministério da Defesa,             
sob a direção de um Ministro civil, e passaram a                   
atuar exclusivamente no âmbito de suas funções             
constitucionais, definidas no art. 142 da           
Constituição. Assim, desde a redemocratização, as           
relações civis-militares foram continuamente       
aperfeiçoadas, criando as condições institucionais,         
próprias de democracias liberais, para o surgimento             
de uma nova geração de oficiais dedicados às               
7 
tarefas profissionais e comprometidos com o           
regime democrático. 
O processo de consolidação democrática e de             
contínua profissionalização das Forças Armadas         
começou a dar sinais de retrocesso no final da                 
década de 2010. O Presidente Jair Bolsonaro, eleito               
no final do ano de 2018 e declaradamente um                 
admirador das Forças Armadas brasileiras, inclusive           
da sua atuação nos períodos ditatoriais, fez a opção                 
política pela formação de um governo com a               
onipresença de militares nos diversos órgãos           
ministeriais. O Ministério da Defesa, até então             
dirigido por personalidades civis, voltou ao           
comando dos generais e assim passou a ter               
influência decisiva nos rumos governamentais, não           
apenas das suas políticas públicas, mas igualmente             
na condução das difíceis e tensas relações             
institucionais que desde então passaram a marcar a               
dinâmica entre os Poderes Executivo, Legislativo e             
Judiciário no Brasil. 
8 
O ano de 2020 iniciou com o profundo               
impacto social da pandemia do coronavirus           
(COVID-19), cuja consequência política mais         
evidente no Brasil foi o aprofundamento da crise               
institucional entre os Poderes da República. Com             
visões antípodas sobre a repartição das           
competências constitucionais entre os entes         
federativos para o combate à pandemia, a             
Presidência da República (apoiada pelo Ministério           
da Defesa) e o Supremo Tribunal Federal passaram               
a protagonizar conflitos de elevada tensão política,             
gerando temores a respeito de sua capacidade             
institucional para o diálogo e a moderação,             
mecanismos típicos das democracias       
constitucionais para a solução de impasses políticos             
entre os poderes. 
A crise se agravou quando o Presidente da               
República e seus apoiadores políticos (incluindo           
alguns militares) passaram a publicamente         
defender que as Forças Armadas poderiam exercer             
9 
uma espécie de "poder moderador" para arbitrar e               
assim solucionar o conflito entre os poderes. O               
governo se baseou na tese levantada pelo conhecido               
jurista Ives Gandra Martins, segundo a qual o art.                 
142 da Constituição autorizaria a qualquer dos             
poderes, ao se sentir violado por ato de outro poder,                   
a reivindicar a "garantia da lei e da ordem" pelas                   
Forças Armadas[1]. A ideia seria a de uma               
"intervenção moderadora pontual", para a         
"interpretação correta da lei aplicada no conflito             
entre Poderes". Uma intervenção militar "pontual,           
jamais para romper, mas para repor a lei e a ordem",                     
segundo Ives Gandra. 
A tese de Ives Gandra - como ele próprio                 
declara - sempre foi assim defendida, desde a               
promulgação da Constituição de 1988, ainda que de               
forma isolada. Não obstante, sua reaparição no             
calor de umas das crises políticas mais graves desde                 
a redemocratização causou o espanto geral e a               
imediata reação da comunidade jurídica. 
10 
Os juristas que compõem esta obraresolveram dar a sua contribuição para a             
reafirmação e a defesa da interpretação correta do               
art. 142 da Constituição. Como se verá ao longo da                   
obra, essa interpretação somente pode ser a de que                 
as Forças Armadas, como instituições permanentes           
e essenciais ao Estado Democrático de Direito,             
devem exercer as suas funções constitucionais com             
a neutralidade política exigida pelo regime           
democrático, a elas não cabendo, porque não             
autorizado pela ordem constitucional vigente, o           
exercício de qualquer “poder moderador” dos           
conflitos entre os Poderes Executivo, Legislativo e             
Judiciário. 
No decorrer da elaboração dos estudos que             
integram esta obra, diversas instituições         
manifestaram-se formalmente e defenderam a         
interpretação correta do art. 142 da Constituição. O               
Senado Federal[2], a Câmara dos Deputados[3] e a               
Ordem dos Advogados do Brasil[4] emitiram           
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pareceres jurídicos contundentes sobre o assunto.           
Entre os posicionamentos mais impactantes,         
deve-se mencionar a decisão do Ministro Luís             
Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, de             
10 de junho de 2020, na qual ele afirma que                   
“nenhum elemento de interpretação – literal,           
histórico, sistemático ou teleológico – autoriza dar             
ao art. 142 da Constituição o sentido de que as                   
Forças Armadas teriam uma posição moderadora           
hegemônica”[5]. Dois dias depois, seguindo a           
mesma linha de raciocínio, o Ministro Luiz Fux,               
Vice-Presidente do STF, defendeu em decisão que             
“a missão institucional das Forças Armadas na             
defesa da Pátria, na garantia dos poderes             
constitucionais e na garantia da lei e da ordem não                   
acomoda o exercício de poder moderador entre os               
poderes Executivo, Legislativo e Judiciário”[6]. 
A reação imediata das instituições demonstra           
que a interpretação correta do art. 142 da               
Constituição tornou-se crucial para a continuidade           
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do processo de desenvolvimento e consolidação da             
democracia brasileira. Os autores que integram esta             
obra, conhecidos professores de direito         
constitucional em diversas instituições de ensino           
superior, de diferentes regiões do país, defendem a               
importância fundamental da definição e proteção           
dos contornos institucionais das Forças Armadas           
estabelecidos na Constituição de 1988, como           
garantias institucionais da própria democracia. 
Esperamos que os artigos aqui reunidos           
possam de alguma forma contribuir para o             
esclarecimento e a reafirmação das características           
institucionais e das funções constitucionais das           
Forças Armadas na democracia fundada sob a             
Constituição de 1988. 
  
  
  
  
  
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Forças Armadas e 
Democracia no Brasil 
pós-1988  
 
André Rufino do Vale 
 
O (res)surgimento de uma versão         
interpretativa extravagante, equivocada e até         
assustadora do art. 142 da Constituição[7], mais de               
30 anos após a sua promulgação, decorre, entre               
outras várias razões, do fato de que a interpretação                 
desse dispositivo constitucional (1) permanece         
baseada nos aspectos linguísticos literais do seu             
texto, (2) ainda está envolvida pela atmosfera da               
memória histórica das intervenções militares no           
período republicano, ainda muito enraizada no           
imaginário de alguns juristas, e (3) parte de uma                 
visão míope das forças armadas na democracia             
brasileira pós-1988, incapaz de compreender a           
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ruptura política e a transição de regime ocorrida na                 
década de 1980. 
Pretendo neste texto abordar esses três           
aspectos, mesmo reconhecendo que as         
problemáticas decorrentes dos fatos recentes         
(descritos na apresentação desta obra) envolvem           
uma série de outras questões constitucionais           
importantes, que ficarão ausentes neste escrito,           
feito com a pretensão de ser breve e focado na                   
correta interpretação do art. 142 da Constituição. 
É interessante notar que o art. 142 da               
Constituição de 1988 mantém, basicamente, a           
estrutura textual do tratamento constitucional das           
Forças Armadas nos períodos anteriores da           
República brasileira. Utiliza, inclusive, expressões         
textuais semelhantes ou idênticas àquelas que,           
desde a proclamação da República, destinam-se a             
definir a missão constitucional das Forças Armadas. 
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A Constituição de 1891, a primeira da história               
republicana, fazendo uso de expressões parecidas           
em conteúdo semântico, definia que ​“as forças de               
terra e mar são instituições nacionais permanentes,             
destinadas à defesa da Pátria no exterior e à                 
manutenção das leis no interior”​, e estabelecia que ​“a                 
força armada é essencialmente obediente, dentro dos             
limites da lei, aos seus superiores hierárquicos e               
obrigada a sustentar as instituições constitucionais”           
(art. 14). A Constituição de 1934 passou a utilizar as                   
expressões textuais que posteriormente       
permaneceram nos seguintes documentos       
constitucionais brasileiros, definindo que ​“as forças           
armadas são instituições nacionais permanentes, e,           
dentro da lei, essencialmente obedientes aos seus             
superiores hierárquicos. Destinam-se a defender a           
Pátria e garantir os Poderes constitucionais, e a ordem                 
e a lei” (art. 162). Assim, a Constituição de 1946,                   
repetindo esses termos, construiu a base textual             
que permanece até os dias atuais, ao estabelecer               
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que ​“as forças armadas, constituídas essencialmente           
pelo Exército, Marinha e Aeronáutica, são instituições             
nacionais permanentes, organizadas com base na           
hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema               
do Presidente da República e dentro dos limites da lei.                   
Destinam-se as forças armadas a defender a Pátria e                 
a garantir os poderes constitucionais, a lei e a ordem”                   
(artigos 176 e 177). A Constituição de 1967, ao invés                   
de poderes constitucionais, fez uso da expressão             
“poderes constituídos”, mas manteve a mesma base             
textual anterior, com o seguinte dispositivo: ​“As             
forças armadas, constituídas pela Marinha de Guerra,             
Exército e Aeronáutica Militar, são instituições           
nacionais, permanentes e regulares, organizadas com           
base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade                 
suprema do Presidente da República e dentro dos               
limites da lei. Destinam-se as forças armadas a               
defender a Pátria e a garantir os Poderes constituídos,                 
a lei e a ordem” ​(art. 92). 
17 
A Constituição de 1988, portanto, ao fixar o               
desenho institucional das Forças Armadas, manteve           
essas mesmas definições textuais. Na dicção literal,             
o texto do atual art. 142 revela as três típicas e                     
tradicionais funções das forças armadas: a ​"defesa             
da Pátria"​, a ​"garantia dos poderes constitucionais" e,               
"poriniciativa de qualquer destes"​, a garantia ​"da lei e                   
da ordem"​. 
Não obstante, dada a identidade textual com             
as disposições constitucionais anteriores, uma         
interpretação literal dessas expressões contidas no           
art. 142 dificilmente conseguirá se afastar das             
pré-compreensões formadas ao logo de décadas na             
história constitucional brasileira, em que as           
intervenções politicas das Forças Armadas foram           
encaradas como um dos mecanismos legítimos para             
a solução de impasses nas relações entre os               
poderes. 
Como ressalta o historiador José Murilo de             
Carvalho, foram esses mesmos textos, com           
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estruturas semelhantes, que permitiram ao longo           
da história republicana as interpretações         
autorizadoras das intervenções militares com o           
objetivo da “garantia dos poderes constitucionais” e             
da “lei e da ordem”. Essa tradicional atribuição de                 
garantir os poderes constitucionais sempre foi           
encarada por alguns militares como uma versão             
aproximada do papel do poder moderador previsto             
na Constituição Imperial de 1824, isto é, o de velar                   
“​sobre a manutenção da Independência, equilíbrio,           
e harmonia dos mais Poderes Políticos” (art. 98). A                 
ideia de uma República que depende dessa             
permanente tutela das Forças Armadas começou a             
circular abertamente no Brasil na década de 1930,               
defendida especialmente por duas das maiores           
personalidades militares da época, Bertholdo         
Klinger e Góis Monteiro. A doutrina do general Góis                 
Monteiro, constatou José Murilo de Carvalho,           
“previa a eliminação da política dentro das Forças               
Armadas para que pudessem agir mais eficazmente             
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como ator político”. Para o historiador, no             
pensamento de muitos militares, “é como se a               
República desconfiasse de sua capacidade de           
exercer o autogoverno civil e entregasse às Forças               
Armadas o papel político de tutela”. E conclui:               
“Parece haver um acordo tácito em torno da ideia                 
de que a República ainda precisa dessa bengala. Não                 
por acaso, chefes militares repetem         
sistematicamente que é seu dever constitucional           
intervir quando julgarem que as instituições correm             
risco”[8]. 
Assim, não se pode fechar os olhos para o fato                   
de que essa interpretação dos textos constitucionais             
brasileiros (todos muito semelhantes nas         
expressões linguísticas) permanece viva na         
memória de muitos militares, e de alguns juristas.               
Para além da interpretação literal, porém, a             
compreensão adequada e correta do art. 142, como               
sói ocorrer em toda interpretação constitucional,           
está vinculada a uma visão contextual, que insira               
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esse texto na história em que construído (de               
redemocratização com ruptura política em relação           
ao passado autoritário), e ao mesmo tempo             
intertextual, que relacione o seu teor semântico             
com outros dispositivos textuais (especialmente a           
lei que o regulamenta, a conhecida Lei             
Complementar n. 97, de 1999) que, em seu               
conjunto, podem revelar o completo significado do             
sistema normativo que compõem. 
Apesar de se apropriar de expressões textuais             
muito semelhantes aos anteriores dispositivos         
constitucionais que definiam o papel das Forças             
Armadas na República, o art. 142 da Constituição de                 
1988 foi positivado em um momento de             
redemocratização que rompeu definitivamente com         
o passado das intervenções militares. Com o             
expresso objetivo de estabelecer as bases para a               
construção de uma efetiva democracia liberal, a             
Assembleia Constituinte de 1987-88 expressamente         
rejeitou a atribuição de um “poder moderador” às               
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Forças Armadas. Como se sabe, essa tese, que foi                 
levantada nos trabalhos constituintes pelo General           
Leônidas Pires Gonçalves, na época o Ministro do               
Exército, foi motivo de crítica por parte dos               
constituintes defensores da completa superação do           
regime anterior, marcado pela ditadura militar[9]. E             
do texto que finalmente foi aprovado, exatamente a               
redação do atual art. 142, foi excluído qualquer               
significado que tornasse possível algum papel de             
intervenção militar de caráter político no           
funcionamento dos poderes constitucionais. 
A Constituição de 1988 não definiu nenhum             
poder moderador – o qual, ressalte-se, apenas             
existiu no Brasil Império, previsto no art. 98 da                 
Constituição de 1824 –, mas estabeleceu todo um               
sistema de jurisdição constitucional que confere ao             
Supremo Tribunal Federal o poder de resolver             
juridicamente os impasses políticos sobre a           
repartição das competências constitucionais entre         
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os Poderes Executivo, Legislativo e o próprio             
Judiciário. 
Uma visão clara sobre o processo de             
redemocratização ocorrido no Brasil na década de             
1980 é capaz de afastar qualquer interpretação da               
Constituição de 1988 no sentido de se atribuir às                 
Forças Armadas um poder moderador dos conflitos             
entre os poderes. Como ocorreu em diversos países,               
na mesma época, a democracia brasileira instituiu             
um arranjo de freios e contrapesos entre os poderes                 
que adota mecanismos de jurisdição constitucional,           
a cargo de uma Corte Constitucional (o Supremo               
Tribunal Federal), que desde então tem assumido a               
função de solucionar os conflitos jurídicos sobre a               
delimitação das competências constitucionais dos         
poderes. Todas as democracias surgidas naquele           
momento construíram sistemas muito parecidos,         
nos quais seria hoje um contrassenso sequer             
imaginar a discussão sobre eventual atribuição de             
23 
um poder moderador de caráter político às Forças               
Armadas. 
Nesse sentido, é preciso relembrar que, a             
partir da década de 1970, as transições de regime                 
ocorridas no Sul e no Leste da Europa e na América                     
Latina se caracterizaram pela clara opção que             
fizeram pela instituição de Cortes Constitucionais           
com a declarada função de arbitrar os conflitos               
entre os poderes e assim ocupar o espaço do poder                   
moderador antes exercido pelas autoridades         
militares dos regimes ditatoriais depostos. A           
redemocratização do Brasil na década de 1980             
seguiu essas mesmas tendências democratizantes,         
observada em diversos países - como Portugal,             
Espanha, Chile e Argentina, por exemplo - que               
criaram ou aperfeiçoaram a jurisdição         
constitucional, a cargo de tribunais especializados           
ou de cortes supremas de justiça, para a moderação                 
das contendas entre as forças políticas           
remanescentes das transições de regime. 
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Como se sabe, transições de regime são             
eventos complexos que se desenvolvem de formas             
diferenciadas em cada momento e local em que serealizam. Não obstante, de modo geral, pode-se             
dizer que processos políticos de mudanças abruptas             
na sistematização e redistribuição dos poderes           
soberanos de uma nação se caracterizam pelos             
conflitos protagonizados, por um lado, pelas           
autoridades e elites políticas (muitas vezes de             
caráter militar, como ocorreu na maioria dos países               
da América do Sul) que estão em vias de perder o                     
poder e, por outro, por aqueles que ascendem               
democraticamente ao comando dos novos rumos da             
nação e têm como objetivo primordial pôr fim às                 
injustiças históricas que levaram à saturação do             
antigo regime. 
A via político-constitucional encontrada pela         
maioria das mesas de negociação próprias dos             
momentos de transição de regime tem sido a               
manutenção ou a instituição de um terceiro com               
25 
autoridade política e jurídica para fazer cumprir os               
acordos realizados e solidificados na forma de             
compromissos constitucionais. Assim se justifica a           
recorrente opção por ​democracias constitucionais         
qualificadas pela existência de uma Constituição           
organizadora dos poderes estatais, garantidora de           
direitos fundamentais (especialmente a propriedade         
e as garantias do devido processo legal) e               
instituidora de órgãos especiais (integrantes ou não             
da estrutura do poder judiciário) encarregados de             
sua proteção. 
A história do surgimento de ​novas           
democracias no mapa mundial assim o demonstra.             
Confiram-se, por exemplo, as transições ocorridas           
em finais do século XX em países da realidade                 
latino-americana, assim como o emblemático caso           
sul-africano, no qual o delicado câmbio de um duro                 
regime de ​apartheid para a democracia           
constitucional tornou-se possível através da         
atuação da Corte Constitucional na fiscalização           
26 
prévia da redação final do novo texto             
constitucional. Portanto, não é difícil verificar que a               
superação de regimes autoritários normalmente         
tem resultado em democracias constitucionais         
caracterizadas principalmente pela instituição de         
sistemas de ​jurisdição constitucional que, com           
variações em cada modelo, são dotados de Cortes               
Constitucionais. 
O fato é que as Cortes Constitucionais             
passaram a fazer parte do instrumental básico que               
tornam possíveis negociações exitosas em         
transições para o regime democrático. Em           
momentos de engenharia institucional,       
normalmente permeados por conflitos políticos de           
difícil solução, aos Tribunais Constitucionais são           
atribuídas as funções de árbitros dos jogos de poder                 
em que se enfrentam elites tradicionais e novos               
protagonistas políticos. 
Não por outro motivo, diversos pesquisadores           
dessa realidade (que ainda se mostra bastante             
27 
recente na história da democracia) têm constatado             
que a instituição da ​jurisdição constitucional ​em             
novas democracias funciona como uma espécie de             
“seguro” (​insurance​)[10] contra os riscos imanentes           
aos sistemas com eleições periódicas e           
democráticas. Como em democracias       
multipartidárias os diversos segmentos políticos         
não têm nenhuma certeza sobre sua permanência             
no poder e sabem que mais cedo ou mais tarde                   
tornar-se-ão minoria, a ​jurisdição constitucional         
acaba funcionando como um “seguro” para os             
futuros perdedores das disputas eleitorais, um foro             
independente onde a ação política das maiorias             
pode ser contestada pelas minorias. 
Com base nessa constatação empírica, Tom           
Ginsburg, por exemplo, afirma categoricamente que           
a expansão da jurisdição constitucional ao redor do               
mundo, ocorrida principalmente nas últimas         
décadas do século XX, é o produto dos processos de                   
democratização ou redemocratização em diversos         
28 
países e, portanto, não pode ser considerada             
antidemocrática, como muitos estudiosos ainda         
sustentam. Ao fornecer um foro de disputa             
apartidário com autoridade suficiente para decidir           
as controvérsias políticas com base nos           
compromissos constitucionais a que todos estão           
submetidos, as Cortes permitem a convivência           
política sob uma mesma ordem constitucional,           
favorecendo a manutenção de um quadro de             
pluralismo político próprio das democracias[11]. 
É por isso que nas democracias dotadas de               
sistemas de jurisdição constitucional, as Forças           
Armadas – que, frise-se, figuraram como partes nas               
negociações desses processos de transição de           
regime – recebem um desenho institucional           
caracterizado pela profissionalização e pela         
neutralização política, ficando inteiramente       
limitadas à sua missão de defesa do Estado, não                 
menos importante para a sobrevivência da própria             
democracia. 
29 
A democracia é um regime de governo que               
depende da estrutura constitucional do Estado de             
Direito. Sem o Estado, não é possível a democracia.                 
Essa é uma constatação tanto teórico como             
empírica, como já verificaram (empiricamente)         
diversos estudos da ciência política sobre o             
funcionamento concreto das democracias       
contemporâneas, especialmente na região da         
América Latina. O cientista político espanhol Juan             
Linz, um dos grandes conhecedores dos processos             
de redemocratização da América do Sul, afirmava             
categoricamente que “em termos lógicos e           
empíricos, a ausência de uma organização com os               
atributos de um Estado moderno impossibilita o             
governo democrático sobre o território do Estado             
como um todo”[12]. O conhecido politólogo           
argentino Guillermo O’Donnell, também um         
conhecedor profundo da realidade política         
latino-americana, igualmente verificou     
30 
empiricamente que “o Estado de Direito é um pilar                 
essencial da democracia de boa qualidade”[13]. 
O fato é que a existência de um Estado                 
efetivamente soberano representa um pré-requisito         
para o desenvolvimento de um governo           
democrático, principalmente nas democracias da         
América do Sul. E essa soberania estatal somente é                 
possível por meio de Forças Armadas           
adequadamente estruturadas, organizadas e bem         
equipadas. A preservação do Estado de Direito,             
especialmente do seu componente territorial (nas           
suas diversas dimensões: terrestre, marítima e           
aérea), está condicionada à ação eficaz dos             
comandos do Exército, da Marinha e da             
Aeronáutica. Assim, as Forças Armadas são           
essenciais para a existência do Estado de Direito               
soberano, o qual, por sua vez, é um pré-requisito                 
para a democracia. 
Em Estados constitucionais, portanto, há uma           
relação de simbiose constitucional entre as Forças             
31 
Armadas e a Democracia. A democracia depende             
das Forças Armadas para se sustentar e para se                 
desenvolver. Mas a função atribuída às Forças             
Armadas nademocracia é a de defesa dos               
fundamentos do Estado de Direito, especialmente           
de seu território. Esse é o significado mais evidente                 
das expressões “defesa da pátria” e “garantia dos               
poderes constitucionais” contidas no art. 142. A             
profissionalização e a neutralidade política são           
garantias institucionais do pleno exercício pelas           
Forças Armadas dessa importante missão         
constitucional. Não há espaço nas democracias para             
intervenções militares de caráter político, ainda que             
“pontuais”. Justamente tendo em vista a sua função               
de defesa do Estado de Direito, as Forças Armadas                 
são instituições de Estado, e não de governo. Como                 
define a Constituição, são “instituições nacionais           
permanentes e regulares”. Enfim, são órgãos do             
Estado, organizados com base na hierarquia e na               
disciplina, submetidos à autoridade do Presidente           
32 
da República e, dessa forma, pertencentes à             
estrutura do Poder Executivo Federal. Integrantes           
da estrutura e subordinadas hierarquicamente a um             
dos poderes, às Forças Armadas obviamente não             
poderiam ser conferidas atribuições de resolver           
conflitos institucionais entre os demais poderes. 
Para a defesa plena do Estado de Direito, as                 
Forças Armadas também receberam da Constituição           
a atribuição de preservar a ordem pública interna. A                 
competência para atuar na garantia “da lei e da                 
ordem”, como prescreve o art. 142, deve ser               
entendida como uma função excepcional, que           
apenas se justifica ante situações extraordinárias,           
visto que a própria Constituição, no seguinte artigo               
144, estabelece os órgãos (polícia federal, polícia             
rodoviária federal, polícias civis, polícias militares e             
corpos de bombeiros militares) que estão           
exclusivamente incumbidos do dever de garantir a             
segurança pública. Por isso, a compreensão           
adequada dessa atuação excepcional das Forças           
33 
Armadas na segurança pública depende da           
interpretação do art. 142 em conjunto não apenas               
com o art. 144 da Constituição, mas também com o                   
artigo 34, inciso III (que trata da hipótese de                 
intervenção federal para pôr termo a grave             
comprometimento da ordem pública), com os           
artigos 136 e 137 (que tratam dos estados de defesa                   
e de sítio ante grave instabilidade institucional) e,               
especialmente, com a Lei Complementar n. 97, de               
1999, que ​dispõe sobre as normas gerais para a                 
organização, o preparo e o emprego das Forças               
Armadas. 
Nesse caso, não se trata de interpretar a               
Constituição conforme a lei, o que evidentemente             
seria um equívoco. Mas de levar em consideração               
que, para a aplicação da parte final do art. 142,                   
quando trata da “iniciativa de qualquer” dos             
poderes para solicitar à Forças Armadas a garantia               
“da lei e da ordem”, são necessárias normas de                 
organização e procedimento, como exige o próprio             
34 
art. 142, em seu § 1º, ao prescrever que ​“lei                   
complementar estabelecerá as normas gerais a serem             
adotadas na organização, no preparo e no emprego               
das Forças Armadas”​. Essas normas foram definidas             
na Lei Complementar n. 97, de 1999, a qual prevê                   
que “a atuação das Forças Armadas, na garantia da                 
lei e da ordem, por iniciativa de quaisquer dos                 
poderes constitucionais, ocorrerá de acordo com as             
diretrizes baixadas em ato do Presidente da             
República, após esgotados os instrumentos         
destinados à preservação da ordem pública e da               
incolumidade das pessoas e do patrimônio,           
relacionados no ​art. 144 da Constituição Federal”             
(art. 15, § 2º). Segundo a lei, “consideram-se               
esgotados os instrumentos relacionados no art. 144             
da Constituição Federal quando, em determinado           
momento, forem eles formalmente reconhecidos         
pelo respectivo Chefe do Poder Executivo Federal             
ou Estadual como indisponíveis, inexistentes ou           
insuficientes ao desempenho regular de sua missão             
35 
constitucional” (art. 15, § 3º). De todo modo, a lei                   
deixa claro que ​a atuação excepcional das Forças               
Armadas na segurança pública deve ser “de forma               
episódica, em área previamente estabelecida e por             
tempo limitado”, e deve se limitar às “ações de                 
caráter preventivo e repressivo necessárias para           
assegurar o resultado das operações na garantia da               
lei e da ordem” (art. 15, § 4º).  
Essas, portanto, são as balizas normativas           
para a compreensão adequada da função de             
“garantia da lei e da ordem” por parte das Forças                   
Armadas. Como se vê, elas decorrem de uma visão                 
intertextual de diversos dispositivos constitucionais         
e legais, que conformam um sistema normativo             
regulador dessa atuação dos militares na           
preservação da ordem pública. 
Enfim, a análise do contexto histórico da             
construção do art. 142, assim como a apreciação de                 
todo o sistema normativo em que ele se insere, são                   
cruciais para a correta apreensão do seu real               
36 
significado e, desse modo, para a precisa             
identificação do papel das Forças Armadas no             
Estado Democrático de Direito fundado pela           
Constituição de 1988. Todos esses elementos e             
parâmetros de interpretação devem ser seriamente           
considerados, porque, no fundo, eles se traduzem             
em defesa e persistência do contínuo processo de               
consolidação da democracia constitucional       
brasileira pós-1988. 
  
  
  
  
  
  
  
 
 
37 
São as Forças Armadas o 
Poder Moderador na 
República? 
Uma correta hermenêutica 
do Artigo 142 da 
Constituição do Brasil 
 
Lenio Streck​ ​[14] 
  
O modo de organização social surgido por             
volta do século XVI no Ocidente, abrindo espaço à                 
modernidade política e deixando o fragmentado           
Medievo para trás, centralizava o poder –             
pulverizado, até então, entre muitos senhores           
feudais – nas mãos do soberano. Esse traço               
alinhava-se às mais típicas características de           
Estado, sumariamente contidas em noções como           
fronteira, povo e soberania – percebida, aqui, como               
38 
uma espécie de irmã gêmea dessa mesma             
centralidade. Ou seja, a concentração de poder no               
soberano, verdadeira condição de possibilidade         
àquele Estado de matiz absolutista, era           
fundamentada e legitimada na mítica descendência           
de Adão, dialogando, pois, com o ​direito divino ao                 
trono​, exclusivamente apontado pelo papa. 
Disso tudo resta, claro, não apenas a             
importância política da Igreja – que certamente não               
é objeto desse pequeno texto – como, também, o                 
oportuno espaço para interrogar: se a infalibilidade             
papal ​dizia o rei, legitimando-o no trono, o que                 
permitia o exercício de sua soberania? A questão é                 
complexa, evidentemente, mas podemuito bem ser             
resumida no reflexo das instituições da aurora da               
modernidade política no soberano. Rei e           
instituições confundiam-se. 
O poder restava garantido no irrestrito           
domínio da força (compreendida como violência),           
responsiva, sem nenhum controle ou         
39 
constrangimento, às pulsões de sua vontade. Se o               
rei – bem definido no frontispício do ​Leviatã de                 
Hobbes – ​era “as instituições”, encerrava em si               
também o limite de seus próprios desejos. Podia o                 
que queria. É por essa razão que o momento                 
seminal do Estado foi posto mesmo como ​Absoluto.               
Sem dúvida, é essa a sua melhor definição. 
Embora os primeiros esboços constitucionais         
propusessem freios, ainda que tímidos, à ação do               
soberano, mesmo a fase mais madura dessa             
moderna instituição política – que é o Estado –                 
manteve essa centralidade na figura do rei – e não                   
da nação, como é hoje. 
O Brasil, embora colônia de uma metrópole             
europeia na sua gênese, experimentou esse modelo             
já independente de Portugal. Veja-se, nesse           
sentido, o Poder Moderador​[15]​, bem estampado no             
Artigo 98 da monárquica Constituição de 1824. O               
imperador era não apenas a “chave de toda               
organização política”, como, também, o “chefe           
40 
supremo da nação”. Não por outro motivo é que,                 
diante desses atributos, recaía sobre si a missão de                 
velar “sobre a manutenção da independência,           
equilíbrio e harmonia dos poderes políticos”. 
É bem verdade, entretanto, que esse mesmo             
Brasil independente surgiu como uma monarquia           
tíbia. A separação de Portugal veio frente a uma                 
franca disputa entre monarquistas e republicanos,           
que cederam, ​grosso modo​, somente frente ao ​slogan               
de “​Pedro Primeiro sem Segundo​”. Como de resto               
todos sabem, essa mesma condição não se             
sustentou, claro, e a sucessão ao trono ocorreu.               
Houve um ​Segundo​, e a República chegou             
tardiamente entre nós, somente em 1889, diante de               
uma América já bem mais célere nesse sentido. 
Com a República – descortinada a cavalo e de                 
golpe[16] – esse ranço absolutista, bem refletido no               
famoso ​l'État c'est moi atribuído a Luís XIV,               
dissolveu-se. O Poder Moderador inspirado nas           
ideias de Benjamin Constant já não aparecia na               
41 
Constituição de 1891, francamente inspirada em           
Montesquieu e nos chamados ​pais fundadores           
norte-americanos. A “chave de toda a organização             
política” já não estava estampada na figura de um                 
soberano, e com Rui Barbosa[17] passa-se ao             
Judiciário a tarefa de examinar a           
constitucionalidade dos atos dos Poderes da           
República. Embora isso nem de longe tenha             
significado colocar, sobremodo seu órgão de cúpula,             
como Poder Moderador, serviu de baliza à harmonia               
entre eles. 
O que esse pequeno inventário do exercício e               
controle do poder até aqui nos mostra é que – à                     
exceção de regimes autoritários – impasses ou             
desacordos morais (políticos) entre Poderes passam           
pelo Judiciário – e mesmo ele é             
constitucionalmente limitado. Claro. É uma questão           
de democracia. De Estado de Direito. De             
princípios[18]. 
42 
É por essa razão que, diante da historicidade               
que nos molda, não há hermenêutica que permita               
ler o Artigo 142 da Constituição de 1988 como                 
legítima atribuição, às Forças Armadas, do Poder             
Moderador, como propôs o professor Ives Gandra,             
em texto assinado ainda em 2011, na ​Revista               
Brasileira de Direito Constitucional​. Referindo-se à           
decisão do Superior Tribunal Federal sobre aborto             
de anencéfalos (ADPF n. 54/DF), na ocasião, disse:  
E, na hipótese de fazê-lo e de a               
Suprema Corte não acatar a         
anulação, caberia até mesmo a         
intervenção das Forças Armadas       
para reestabelecer a lei e a ordem             
turbadas pela quebra de harmonia         
entre os Poderes da República,         
obrigando o Supremo Tribunal       
Federal a cumprir a       
Constituição[19]. 
  
43 
Desde então, o argumento de Gandra tem             
sustentado o amplo conjunto de insatisfeitos não             
apenas com as decisões do órgão de cúpula do                 
Judiciário no Brasil, como, ainda, também em             
relação ao Poder Legislativo[20]. ​A partir dele –               
mas, sobremodo, ​para além dele – essas vozes               
descontentes, desconhecendo não apenas o traço           
contramajoritário da democracia, mas, para além           
disso, que o próprio Benjamin Constant percebia o               
Poder Moderador como “​autorité à la fois supériere               
et intermédiaire, sans intérêt à déranger l'équilibre,             
mais ayant au contraire tout intérêt à le               
maintenir​”[21], acenam mesmo ao fechamento de           
instituições ou deposição de seus membros como a               
paradoxal resposta a uma pretensa busca por             
harmonia ou independência. Nada mais         
contraditório, como resta evidente, mas também           
nada mais antidemocrático: assim como as decisões             
judiciais não devem procurar atender a chamada ​voz               
das ruas​[22] ​(isso, entre outros aspectos, é ativismo               
44 
– fenômeno do qual sou um ferrenho crítico[23]),               
uma espécie de retorno do Poder Moderador – a                 
partir das Forças Armadas – não pode emergir               
frente a nossas crises institucionais. Como diria             
Konrad Hesse – muito bem lembrado em ​Nota               
Informativa ​do Senado –, “a Constituição deve             
afirmar-se não só em tempos normais, mas também               
em situações de emergência e de crise”[24]. 
Diante disso entendo – e não poderia ser               
diferente – que o argumento voltado a essa confusa                 
ideia de ​golpe constitucional ou ​intervenção militar             
constitucional deve ser constrangido[25], em sentido           
semelhante ao que proponho como forma de             
distinguir boas e más decisões judiciais. Assim             
como o jurista inserido em um ​habitus dogmaticus               
não se dá conta das contradições do sistema               
jurídico, projeções como esta – ideologizadas e cada               
vez mais voltadas às próprias subjetividades –             
também figuram imunizadas em relação às suas             
próprias contradições. 
45 
Quero dizer: na especificidade desse caso, os             
defensores da tese “​o artigo 142 e o as forças                   
armadas como guardiães da Constituição” - ignoram,             
no limite, a antropofagia de sua própria proposta               
realizada. Paradoxal e contraditoriamente, a busca           
por democracia, por harmonia entre Poderes,           
torna-se a predação dessa mesma democracia e dos               
Poderes que lhe emprestam movimento. Não há             
accountability​, noutras palavras, porque a         
linguagem pública da democracia é babelizada. Daí             
a antropofagia, e a necessidade de desnaturalizar             
esses argumentos, tão representativos do sujeito da             
modernidade, constrangendo-os. 
Nesse sentido, vejamos, muito       
sinteticamente: 
Se oArtigo 142 diz que ​"as Forças Armadas,                 
constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela             
Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e           
regulares, organizadas com base na hierarquia e na               
disciplina, sob a autoridade suprema do presidente da               
46 
República, e destinam-se à defesa da pátria, à               
garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa             
de qualquer destes, da lei e da ordem"​, há de se ver                       
que, primeiro, o Presidente da República é posto               
como autoridade civil. Submeter as Forças Armadas             
a ele refere-se tão-somente à passagem do poder               
aos civis, como já dizia – sobre o tema – o                     
constituinte Ricardo Fiúza[26], pouco mais de um             
ano antes da promulgação da Constituição. 
Mais: se, na República, a autonomia é do               
Direito – como de há muito venho dizendo –, essas                   
mesmas forças não podem figurar como uma             
espécie de ultrapassada guarda pessoal do           
soberano. Seria um secular retrocesso. Enfim, seria             
um haraquiri institucional, que nos faria passar por               
imensa vergonha no cenário internacional. Projetar           
um superpoder acima do contrato – como propunha               
um Hobbes temerário às ameaças da Armada             
Espanhola nos já distantes primeiros passos da             
modernidade política – jamais poderá         
47 
corresponder, numa República à luz da           
contemporaneidade, à harmonia entre Poderes.         
Esse é o ponto. O principal, diria. 
Ora, a “a lei e a ordem a serem garantidas” – a                       
que se refere o Artigo 142 – são as das próprias                     
instituições democráticas (Título V da Constituição           
Federal), como já referi em outra oportunidade[27].             
As Forças Armadas não são, portanto, o fiel da                 
democracia. Ou seja, elas não podem intervir a               
qualquer momento. Aliás, o mesmo dispositivo           
prevê, no seu Parágrafo Único, que lei             
complementar estabelecerá as normas gerais a           
serem adotadas para isso (a LC nº 97, Artigo 15).                   
Isso significa, repito, que não apenas seu emprego               
responde a uma cadeia de comando civil no seu                 
topo, mas que todo esse trâmite ocorre a partir de                   
um procedimento a ser estritamente seguido. 
Por fim, todos sabemos que, em uma             
democracia, não há de se falar em autonomia ​da                 
parte de quem porta armas​, como polícias             
48 
militarizadas (compreendidas como potencial       
contingente auxiliar) e Forças Armadas. Por essa             
razão é que somente um poder eleito poderá dispor                 
da palavra final, como a Constituição e a lei aqui                   
determinam. Diferente disso, é projetar ao Artigo             
142 uma hermenêutica do retrocesso democrático,           
deslocando-o também em relação a um           
contemporâneo e intersubjetivo paradigma. O         
próprio teor literal – se assim se quiser tomar um                   
textualismo – do Artigo 142 afasta a possibilidade               
de ação autônoma das Forças Armadas sem a               
subordinação a um poder civil. 
Mas consideremos outros elementos       
hermenêutico-constitucionais. O princípio da       
unidade da Constituição e o elemento sistemático             
permitem ver no Texto Magno outros dispositivos             
como aqueles que estabelecem as regras da             
intervenção federal, estado de defesa e estado de               
sítio (Artigos 34, 36, 136 a 141), bem como a                   
existência de conselhos como o da República e o de                   
49 
Defesa Nacional (Artigos 89 a 91), tendo os               
comandantes das Forças Armadas e o ministro de               
Estado da Defesa assento permanente neste último,             
mas com função opinativa, cabendo a decisão             
superior ao presidente da República. 
Numa palavra final, vai aqui uma pitada de               
hermenêutica. Os defensores da tese que o Ministro               
Roberto Barroso chamou de “terraplanismo         
constitucional” esquecem que a interpretação do           
Direito tem limites. Interpretar não é ser escravo da                 
lei, como se ainda fosse possível propugnar por um                 
textualismo ingênuo que tropeça no primeiro           
degrau de qualquer análise semioticista. Interpretar           
não é, pois, fazer ​Auslegung ​(retirar do texto o que                   
ele mesmo, em si mesmo, contém, como bem               
criticado por Gadamer). E, fundamentalmente, não           
é uma ​freie Sinngebung (uma livre atribuição de               
sentido). Interpretar é dar sentido com limites             
(​Begrenzte​, como na feliz critica que Bernd Rüthers,               
em seu belo livro “​Die unbegrenzte Auslegung​”,[28]             
50 
faz à ausência de limites/constrangimentos da           
interpretação do Direito na ascensão do nazismo). 
A questão é, portanto, também de ordem             
simbólica. De que modo o imaginário jurídico             
alberga e permite frutificar teses como essa que alça                 
as forças armadas à guardiães da Constituição? Eis               
aqui um profícuo campo para pesquisas. No âmbito               
das práticas cotidianas dos tribunais e na dinâmica               
das faculdades de Direito e cursos de             
pós-graduação, é visível a falta de uma crítica               
teórica que constranja interpretações sem limites           
ou simplesmente ideológicas. Retornando à         
Rüthers, corre-se o risco de um atropelo             
epistêmico, porque não compreendemos os sinais           
do autoritarismo. É preciso estar vigilante. Afinal,             
há bons indicativos de que a falta de críticas, enfim,                   
a leniência da doutrina naquele momento histórico             
da Alemanha fez com que se tivesse uma               
interpretação sem constrangimentos, sem limites.         
Por isso, o alerta de Rüthers – problemática que                 
51 
reelaboro no verbete ​Constrangimento       
Epistemológico no ​Dicionário de Hermenêutica -           
sobre interpretações não constrangidas, não         
limitadas, não questionadas. 
Assim, por todos os ângulos, uma           
interpretação do artigo 142 que ignore as             
instituições democráticas da República como um           
indissolúvel conjunto e, passo seguinte, autorize uma             
intervenção militar, é um arrematado absurdo que,             
no mais, acenaria a uma retumbante aporia: se dois                 
Poderes – que por força constitucional são             
inoponíveis – convocarem as Forças Armadas, por             
exemplo, com que critérios um lado seria             
escolhido? 
A resposta é única e certamente moral. 
Eis o ponto. Se aí chegarmos, a República já                 
naufragou. 
 
 
52 
Referências 
 
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2020. Disponível em:     
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Acesso em: 08.06.2020. 
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em: 
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CARVALHO, José Murilo. ​Os bestializados​: o Rio de Janeiro                 
e a República que não foi. São Paulo: Cia. das Letras, 1987. 
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GALINDO,Bruno. ​A Intervenção Militar “Constitucional”         
no Brasil e a Conspiração de Newburgh: Lições               
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53 
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https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/Constituicoes_Brasileiras/constituicao-cidada/publicacoes/diarios_anc
tar-constitucional-no-brasil-e-a-conspiracao-de-newburgh-
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G1. ​Ministro do STF rejeita ação que pedia               
regulamentação do artigo 142 da Constituição​.           
Disponível em:   
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-da-constituicao.ghtml ​. Acesso em: 10.06.2020. 
MARTINS, Ives Gandra da Silva. O ativismo judicial e a                   
ordem constitucional. ​Revista Brasileira de Direito           
Constitucional ​, n. 18 – jul./dez. 2011, p. 33. Disponível em:                   
http://www.esdc.com.br/RBDC/RBDC-18/RBDC-18-023.Arti
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ROCHA, Leonel Severo. ​A democracia em Rui Barbosa ​. O                 
projeto político liberal-racional. Rio de Janeiro: Liber Juris,               
1995. 
Cf. RÜTHERS, Bernd. ​Die Unbegrenzte Auslegung: Zum             
Wandel Der Privatrechtsordnung Im       
Nationalsozialismus ​. Heidelberg: Mohr Siebrek, 2017 
STRECK, Lenio Luiz. ​Dicionário de Hermenêutica ​: 50             
verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica                   
Hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Grupo Editorial             
Letramento, 2020. 
54 
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http://www.esdc.com.br/RBDC/RBDC-18/RBDC-18-023.Artigo_Ives_Gandra_da_Silva_Martins_(O_Ativismo_Judicial_e_a_Ordem_Constitucional).pdf
STRECK, Lenio Luiz. Interpretações equivocadas sobre           
intervenção militar no artigo 142. Revista Consultor             
Jurídico ​. Disponível em:     
https://www.conjur.com.br/2020-mai-07/senso-incomum-in
terpretacoes-equivocadas-intervencao-militar​. Acesso em:     
07.06.2020. 
STRECK, Lenio Luiz. Ives Gandra está errado: o artigo 142                   
não permite intervenção militar. Revista Consultor           
Jurídico ​. Disponível em:     
https://www.conjur.com.br/2020-mai-21/senso-incomum-iv
es-gandra-errado-artigo-142-nao-permite-intervencao-mili
tar ​. Acesso em: 07.06.2020. 
STRECK, Lenio Luiz. Judiciário decide quem pode ser               
ministro ou diretor-geral da PF? ​Revista Consultor             
Jurídico ​. Disponível em:     
https://www.conjur.com.br/2020-abr-29/streck-judiciario-de
cide-quem-ministro-ou-diretor-pf​. Acesso em: 05.06.2020. 
 
 
 
55 
https://www.conjur.com.br/2020-mai-07/senso-incomum-interpretacoes-equivocadas-intervencao-militar
https://www.conjur.com.br/2020-mai-07/senso-incomum-interpretacoes-equivocadas-intervencao-militar
https://www.conjur.com.br/2020-mai-07/senso-incomum-interpretacoes-equivocadas-intervencao-militar
https://www.conjur.com.br/2020-mai-21/senso-incomum-ives-gandra-errado-artigo-142-nao-permite-intervencao-militar
https://www.conjur.com.br/2020-mai-21/senso-incomum-ives-gandra-errado-artigo-142-nao-permite-intervencao-militar
https://www.conjur.com.br/2020-mai-21/senso-incomum-ives-gandra-errado-artigo-142-nao-permite-intervencao-militar
https://www.conjur.com.br/2020-mai-21/senso-incomum-ives-gandra-errado-artigo-142-nao-permite-intervencao-militar
https://www.conjur.com.br/2020-abr-29/streck-judiciario-decide-quem-ministro-ou-diretor-pf
https://www.conjur.com.br/2020-abr-29/streck-judiciario-decide-quem-ministro-ou-diretor-pf
https://www.conjur.com.br/2020-abr-29/streck-judiciario-decide-quem-ministro-ou-diretor-pf
Qual lugar para o Poder 
Moderador na 
Constituição Federal de 
1988? 
 
Marcelo Casseb Continentino​ ​[29] 
  
Nos últimos tempos, intensificou-se o debate           
constitucional sobre tema que, até então, não             
suscitava maior interesse, tampouco ensejava         
possibilidades de interpretação tão diversas entre           
si. Trata-se da questão do Poder Moderador ou,               
melhor, de uma espécie de sobrevida desse Poder na                 
Constituição Federal de 1988 como se algum órgão,               
instituição ou poder fosse seu legítimo herdeiro e,               
como tal, pudesse arvorar-se das atribuições que             
um dia lhe pertenceram. 
56 
Chama-nos a atenção, nesse não tão novo             
contexto argumentativo, a forte presença do           
elemento histórico no discurso jurídico-político         
relativo ao Poder Moderador, que constituía o poder               
supremo da Constituição do Império de 1824.             
Associado à própria imagem pessoal do imperador,             
sua instituição acarretou uma série de           
questionamentos que minou a legitimidade da           
Carta de 1824. 
Fora conceitualmente previsto, quase em tom           
doutrinário, pelo art. 98: 
“Art. 98. O Poder Moderador é a             
chave de toda a organisação         
politica, e é delegado       
privativamente ao Imperador,     
como Chefe Supremo da Nação, e           
seu Primeiro Representante, para       
que incessantemente vele sobre a         
manutenção da Independencia,     
57 
equilibrio, e harmonia dos mais         
Poderes Politicos.” 
A simples leitura da disposição         
constitucional, contudo, não nos permite adentrar o             
alcance e o sentido da norma, muito embora, no art.                   
101, tenham sido estabelecidas atribuições que lhe             
seriam próprias: 
“Art. 101. O Imperador exerce o           
Poder Moderador: 
I. Nomeando os Senadores, na         
fórma do Art. 43. 
II. Convocando a Assembléa       
Geral extraordinariamente nos     
intervallos das Sessões, quando       
assim o pede o bem do Imperio. 
III. Sanccionando os Decretos, e         
Resoluções da Assembléa Geral,       
para que tenham força de Lei:           
Art. 62. 
58 
IV. Approvando, e suspendendo       
interinamente as Resoluções dos       
Conselhos Provinciaes: Arts. 86, e         
87. (Vide Lei de 12.10.1832) 
V. Prorogando, ou adiando aAssembléa Geral, e dissolvendo a         
Camara dos Deputados, nos       
casos, em que o exigir a salvação             
do Estado; convocando     
immediatamente outra, que a       
substitua. 
VI. Nomeando, e demittindo       
livremente os Ministros de       
Estado. 
VII. Suspendendo os Magistrados       
nos casos do Art. 154. 
VIII. Perdoando, e moderando as         
penas impostas e os Réos         
condemnados por Sentença. 
59 
IX. Concedendo Amnistia em       
caso urgente, e que assim         
aconselhem a humanidade, e bem         
do Estado.” 
A pureza redacional dos dispositivos         
constitucionais, quando isolada do contexto         
jurídico e político da época em que vigoraram tais                 
normas, ofusca significativamente o impacto de que             
se revestiu a (parcial) recepção da teoria do Poder                 
Moderador na ordem constitucional brasileira. 
Devemos relembrar que sua previsão na Carta             
do Império deveu-se à insistência do imperador             
dom Pedro I, que, razoavelmente versado na             
literatura política de seu tempo, não via com bons                 
olhos a proposta de uma Constituição que             
cumprisse com sua função elementar de limitar o               
exercício do poder político, o que fora             
positivamente consagrado no art. 16 da Declaração             
de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789                 
(“Qualquer sociedade, na qual uma norma não             
60 
tenha estabelecido a garantia dos direitos nem a               
separação dos poderes, não tem Constituição”)​[30]​. 
Após haver determinado a dissolução da           
Constituinte de 1823, que em sua visão havia               
elaborado um Projeto de Constituição não           
condizente com os princípios da independência do             
Brasil, da integridade do Império e da dinastia do                 
imperador incorrendo em perjúrio​[31]​, dom Pedro I             
delegou a tarefa de elaborar a futura Constituição               
do Império a um Conselho de Estado, que fez incluir                   
o Poder Moderador na estrutura orgânica da             
Constituição a ser outorgada pelo imperador. 
Acontece que o imperador conhecia bem as             
doutrinas de sua época e melhor ainda as de                 
Benjamin Constant, que desenvolvera a teoria do             
Poder Moderador, por ele denominada de “Poder             
Neutral ou Real”. Segundo Constant​[32]​, o Poder             
Neutral atuaria de modo a conciliar cada um dos                 
poderes como verdadeiro juiz a compor as relações               
61 
entre os demais poderes (Judiciário, Executivo e             
Legislativo) em caso de conflito. 
Neutralidade e passividade seriam suas         
características essenciais. E, por isso mesmo, esse             
Poder jamais atuaria diretamente em relação aos             
cidadãos ostentando sua força material contra as             
pessoas, mas, ao revés, sua ação seria             
estrategicamente dirigida à solução de conflitos           
institucionais, para o que se revestiria tão-somente             
de um poder geral de cassação ou anulação dos atos                   
exorbitantes dos demais poderes, dada a própria             
inviolabilidade e irresponsabilidade do monarca         
(​the king can do no wrong​). 
Havia, ainda, uma outra característica         
essencial à formulação da teoria do Poder             
Moderador, a qual – não acidentalmente – foi               
tangenciada quando de sua recepção aqui no Brasil.               
E, caso não rigorosamente observada, acarretaria o             
total desvirtuamento da natureza neutra e           
conciliadora do Poder Moderador, além de arruinar             
62 
os fundamentos democráticos do Monarquia         
Constitucional: de acordo com Benjamin         
Constant​[33]​, o Poder Neutral (ou Moderador) não             
poderia ter por titular o chefe de qualquer dos                 
outros três poderes sob pena de romper-se o               
equilíbrio e a harmonia entre eles e, no limite, de                   
quebrar a própria noção elementar de governo             
limitado, a qual reside na base da ideia mesma de                   
Constituição e de sua razão de existir. 
  No entanto, o personalismo e a vontade do               
imperador terminaram por prevalecer de modo que,             
na Constituição de 1824, em flagrante contradição             
com a teoria do Poder Neutral, foi prevista a                 
instituição do Poder Moderador que seria           
privativamente exercido pelo imperador, a quem           
também cabia a titularidade do Poder Executivo.             
Nesse ponto, a teoria de Constant cedeu às forças                 
das circunstâncias internas e dos interesses           
pessoais. 
63 
É que dom Pedro I​[34] pretendia uma             
Constituição que fosse “digna de mim [​dele​]”, o que                 
significava, em seu visão, que a Carta do Império                 
deveria ser uma tal que conferisse ao Poder               
Executivo (isto é, a ele pessoalmente) “toda a força                 
necessária” ao desempenho de suas altas funções. 
E assim aconteceu. Ao imperador cabia           
dissolver a Câmara dos Deputados, prorrogar ou             
adiar a Assembleia Geral, nomear vitaliciamente os             
senadores, nomear e destituir magistrados, nomear           
e demitir ministros, nomear comandantes das           
forças de terra e mar; enfim, tamanhas eram suas                 
atribuições, que incontrastável praticamente se         
tornou seu poder. 
Houve reação ao arranjo institucional do           
poder na Carta de 1824, sendo de se destacar a                   
dirigida por Frei Caneca​[35] que, em 1824, fez               
pronunciamento contra a futura Constituição de           
1824. O líder revolucionário da Confederação do             
Equador justificou sua recusa à vindoura norma             
64 
fundamental em face de seu caráter autoritário e,               
sobretudo, da previsão do Poder Moderador. 
Especialmente porque as funções executivas         
seriam atribuídas ao imperador em acumulação           
indevida com aquelas inerentes ao Poder Neutral,             
para Frei Caneca, o sistema de governo imperial se                 
enquadraria como uma “monarquia absoluta”, e           
não uma monarquia constitucional. Comentando o           
texto de 1824, Frei Caneca​[36] sentenciou: o Poder               
Moderador era “a chave mestra da opressão da               
nação brasileira e o garrote mais forte da liberdade                 
dos povos”. 
A pecha da ilegitimidade do Poder Moderador             
e, por conseguinte, da Constituição de 1824             
perseguiu o imperador dom Pedro I até sua               
renúncia. Com a sucessão ao trono de dom Pedro II,                   
o exercício do Poder Moderador, ao menos até o                 
final da década de 1860, ganhou contornos de               
parcimônia e equilíbrio, não havendo maiores           
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desmandos nem críticas demasiadas por parte dos             
atores políticos e juristas. 
Se o poder imperial e o Poder Moderador, por                 
algum tempo, foram vistos como instrumentos de             
harmonia e equilíbrio da ordem política​[37]​, a partir               
da década de 1870, modificando-se o contexto             
político e econômico, ocorreria mais uma vez a               
ressignificação da compreensão política em torno           
do Poder Moderador. Seu exercício voltaria a ser               
assimilado como fruto do autoritarismo e           
“imperialismo”, cujo léxico, desde então,         
constituiu-se como novo conceito na linguagem           
política, servindo de “arma” de ataque ao             
imperador, a seupoder pessoal e ao Poder               
Moderador​[38]​. 
A queda da Monarquia representou o fim do               
quarto poder na história constitucional brasileira.           
Por mais que haja alguma controversa quanto à               
legitimidade do exercício do Poder Moderador ao             
longo de toda a vigência da Carta de 1824​[39]​, o certo                     
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é que a pecha da ilegitimidade nunca se afastou da                   
semântica do Poder Moderador, seja em razão da               
forma como foi recepcionado na Carta de 1824, seja                 
em razão do modo como foi concebido na ordem                 
constitucional positiva ou seja em razão do impacto               
político e social dos efeitos de sua ação no                 
complexo xadrez político do Império. 
Isso nos leva à conclusão de que o uso do                   
conceito de Poder Moderador na linguagem política             
atual, quase 200 anos depois de sua instituição,               
tanto em associação ao Supremo Tribunal Federal             
quanto às Forças Armadas, para situar o atual               
debate político-institucional, revela um grave         
descompasso histórico sem respaldo no texto           
constitucional de 1824 e de 1988. 
Primeiro, porque o Poder Moderador, em           
1824, foi expressamente previsto como quarto           
poder (art. 10)​[40] que sobrepairava os demais,             
fundado na premissa da supremacia, inviolabilidade           
e infalibilidade do imperador (art. 99)​[41]​; daí porque               
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Tobias Barreto​[42]​, um dos grandes críticos do Poder               
Moderador, advertia que o pensamento         
constitucional brasileiro penava com sérios         
“prejuízos teológicos e metafísicos”. Esses         
pressupostos, que soerguiam a noção da supremacia             
imperial e da ordem política vigente, claramente,             
não foram mantidos na ordem constitucional           
brasileira, que, desde a Constituição de 1891 até a                 
vigente Constituição de 1988, assentou-se noutros           
pilares constitucionais. E, na Constituição de 1988,             
já à luz dos arts. 1º e 2º, está muito claro um dos                         
pilares fundamentais da República Federativa do           
Brasil: a separação dos três poderes, que são               
harmônicos e independentes entre si como           
condição à configuração do Estado Democrático de             
Direito. 
  Segundo, porque, como visto acima, as           
atribuições do Poder Moderador estavam         
expressamente previstas na Constituição de 1824           
(art. 101). As prerrogativas imperiais que mais             
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interferiam no funcionamento dos demais poderes,           
posicionando o Moderador acima dos Poderes           
Legislativo e Judiciário, a exemplo da dissolução da               
Câmara, da nomeação vitalícia de senadores ou da               
suspensão de magistrados, foram descontinuadas, a           
fim de consolidar-se a separação e a harmonia entre                 
os três poderes. 
Terceiro, porque o Poder Moderador, em sua             
concepção originária, para se firmar como poder             
neutro e passivo, deveria ter sido integralmente             
separado do Poder Executivo e dos demais Poderes,               
o que não ocorreu em 1824; e, no caso da                   
Constituição de 1988, tanto as Forças Armadas             
estão inseridas na estrutura do Poder Executivo,             
subordinadas ao Presidente da República que é seu               
comandante supremo (art. 84, XIII), quanto o             
Supremo Tribunal Federal integra a estrutura do             
Poder Judiciário. Portanto, trazer a semântica do             
Poder Moderador no debate constitucional         
hodierno revela-se um ​nonsense histórico e jurídico,             
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que fere a lógica da separação dos poderes               
atualmente estabelecida e os fundamentos da           
ordem constitucional hoje em vigor. 
Não podemos desconsiderar que o argumento           
histórico tenha papel fundamental no discurso           
jurídico-político, contudo não se pode deixar de ter               
em consideração que, ao assumir tal ônus             
argumentativo, o debatedor tem a responsabilidade           
de assumir em sua inteireza o fato histórico e não                   
apenas o recorte que convém, sob pena de incorrer                 
em um uso enviesado da história com propósitos               
marcadamente estratégicos. 
Por fim, conforme reconheceu Gláucio         
Veiga​[43] ao discutir a história das ideias da               
Faculdade de Direito do Recife, retomando o             
pensamento de Tobias Barreto, poderíamos intuir           
que o resgate do conceito de Poder Moderador               
sugere a pretensão retórica de legitimação da “ideia               
da tutela” e da ênfase na “permanente menoridade               
do povo”, o que portanto autorizaria           
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excecionalmente a atuação de algum órgão,           
instituição ou poder como instância suprema e             
tutora da suposta cidadania juvenil brasileira​[44]​. 
O uso do argumento histórico no discurso             
jurídico-político, mais precisamente do conceito do           
Poder Moderador, não nos parece ter lugar ou vez à                   
luz da Constituição Federal de 1988. Não nos parece                 
crível, de igual modo, antever qualquer órgão,             
instituição ou poder como legítimo sucessor do             
Poder Moderador. A Constituição Federal de 1988             
não tem como subsidiar tais ecos do passado nem as                   
pretensões do presente de revigorar o Poder             
Moderador. 
  
  
  
  
  
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Intervenção Militar é 
Golpe: é só ler a 
Constituição 
  
Tomaz Pereira 
Diego Werneck Arguelhes 
 
Trazer as Forças Armadas para resolver           
disputas políticas é, tragicamente, um fato           
recorrente da história brasileira. São vozes sempre             
antidemocráticas em sua essência. Não surpreende           
que ressurjam em defesa de um presidente que se                 
recusa a aceitar que há diversos poderes na               
República, todos constituídos e limitados pela           
Constituição. Há, no entanto, algo de peculiar no               
cenário atual. Vozes do campo bolsonarista           
afirmam que o artigo 142 da Constituição             
autorizaria a convocação das Forças Armadas para             
resolver disputas pontuais entre os poderes. O             
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elogio da intervenção militar, em outras épocas             
feito em nome de ideais abstratos como “segurança               
nacional”, agora se fantasia de interpretação           
constitucional. 
A invocação de artigos da própria           
Constituição de 1988 para tentar dar um verniz de                 
legalidade a arroubos autoritários é um equívoco             
grave e sintomático. Um exemplo claro de produção               
e disseminação de desinformação no campo do             
Direito, essa afirmação viola simultaneamente (i) o             
significado político da Constituição, (ii) consensos           
profissionais mínimos e (iii) a literalidade do texto               
constitucional. 
O mínimo de conhecimento da história           
política brasileira recente nos mostra que a             
Constituição de 1988, marco fundamental da           
redemocratização, pôs fim ao exercício arbitrário do             
poder militar. Re-institucionalizando o Estado de           
Direito e a Democracia, desenhou uma série de               
mecanismos de controle para dar efetividade aos             
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limites constitucionais e legais ao exercício do             
poder político. 
Muitos detalhes do nosso texto constitucional           
poderiam

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