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1 REPERTÓRIOS ESPACIAIS DE AÇÃO NA LUTA ANTI-RACISMO: o caso da Pequena África no Rio de Janeiro1 Renato Emerson dos Santos2 O campo da compreensão espacial das relações sociais vem, nas últimas décadas, incorporando uma crescente valorização (analítica, mas também política) da ação de sujeitos sociais subalternizados. Se, historicamente, as leituras espaciais das dinâmicas sociais priorizavam como objetos de estudo (e, no mesmo movimento, priorizavam como protagonistas destas dinâmicas) o Estado e os agentes do Capital (sobretudo, as grandes corporações), vem juntando-se a estes também esforços focados no fazer e na experiência de indivíduos e grupos. O entendimento de que a globalização é marcada pela complexidade dos jogos de escalas (BRENNER, 2001), e que estas são instrumento da ação política de sujeitos (hegemônicos e subalternos) que executam políticas de escalas (SWYNGEDOUW, 1977), redimensiona nas leituras espaciais a importância das microanálises, que aparecem como reveladoras de traços do real fundamentais para o entendimento de processos mais amplos e que eram invisibilizados em paradigmas anteriores. Assim, análises passam também a focar sujeitos com suas espacialidades e temporalidades específicas, tornando reveladoras as nuances das relações entre processos em escala macro com as microconjunturas3. O presente texto se propõe como uma contribuição neste sentido, tomando como objeto as disputas que vem emergindo numa parte da área central do Rio de Janeiro. A ascensão de um projeto de renovação urbana na Zona Portuária da cidade, intitulado Porto Maravilha, anunciado em 2009, impulsiona um conjunto de transformações na área. Chama inicialmente a atenção, no caso, sua inserção num novo projeto de cidade, pós-industrial, que tem a promoção de grandes eventos como mote para a atração de investimentos, de fluxos, e para a instauração de processos de transformação urbana – social, material, de funções, etc. A proximidade da realização dos maiores eventos esportivos em escala mundial (a Copa do Mundo de Futebol e os Jogos Olímpicos), bem como a forma de realização do projeto de renovação (uma Operação Urbana Consorciada, forma de parceria 1 Agradecimento especial à pesquisadora Paula Cardoso Moreira, pela elaboração e autorização para uso dos mapas apresentados ao longo do texto. 2 Professor do IPPUR/UFRJ. 3 Ver, sobre tais articulações, o texto e a coletânea organizada por Revel (1998). 2 entre diversos entes do setor público com a iniciativa privada), ganham relevo no caso, pois apontam para novas coalizões de forças definindo, planejando e implementando (e, também, repartindo os ganhos de) um novo projeto de cidade. Emergem também resistências. Se o projeto inicialmente previa um conjunto de remoções de moradores da área, com vistas a mudanças na sua composição social (para além do adensamento da ocupação), grupos de moradores da região vão se articular com outros atores sociais (como, p. ex., universidade e técnicos, ou outros movimentos sociais, incluindo ameaçados de remoção em outras regiões afetadas pelo mesmo projeto de cidade). Articulações como o Fórum Comunitário do Porto, iniciativa protagonizada por associações de moradores locais, movimentos de ocupações, entre outros, que individual e coletivamente participavam também do Comitê Popular da Copa e Olimpíadas do Rio de Janeiro, são exemplos de redes de atores constituindo uma “área de movimento” em reação (na escala mais pontual do local e também na da cidade) ao projeto hegemônico - articulações compostas como resposta (de modo mais amplo) ao projeto de cidade e (mais pontualmente) a suas iniciativas localizadas, contrapontos a ele. Fazendo coro ao que propõe Santos (2011a), na leitura das espacialidades da ação dos movimentos sociais, nestes casos “os interlocutores têm escalaridades/espacialidades e, de alguma forma, eles acabam por definir ou redefinir as escalaridades/espacialidades dos movimentos” (pg. 188, grifo do autor). Aqui, pretendemos estender a leitura da ação dos sujeitos subalternos para um outro campo. Uma das vertentes de resistências que ao Projeto Porto Maravilha que vem ganhando visibilidade é a dos grupos vinculados à cultura e identidade negra e afro-brasileira, em suas múltiplas dimensões. Com efeito, a própria incorporação no âmbito do Porto Maravilha de menções à presença negra na região, através do Circuito Histórico e Arqueológico de Celebração da Herança Africana, conjunto de pontos de interesse constituindo quase que um museu de percurso a céu aberto4, tem relação direta com a resistência desses grupos, mais do que uma pré-disposição dos gestores do projeto. Tomamos aqui como ponto de partida a hipótese defendida por Santos et. Al (2018), de que há, por parte desses grupos, “disputas de lugar”. E, segundo os autores, estas disputas de lugar são anteriores ao Porto Maravilha – ou seja, diferente das outras iniciativas de resistência que aludimos acima, não tem suas espacialidades e temporalidades definidas pela interlocução com ele (ainda que, obviamente, passem a ser influenciadas pelo novo contexto). Grupos como o Quilombo da Pedra do Sal, o Instituto dos 4 Estamos aqui utilizando tal denominação para realçar a semelhança com outros casos de criações de certa maneira similares, em cidades como Porto Alegre e São Paulo, mas com a ressalva de que nem todos os pontos do Circuito do Rio de Janeiro são exatamente “a céu aberto”, e um dos pontos é, em si, um museu, o Instituto dos Pretos Novos. 3 Pretos Novos, o Afoxé Filhos de Gandhi, a roda de samba da Pedra do Sal, entre outros, vem já muito antes do Projeto Porto Maravilha disputando a carga semântica definidora do lugar. O que vem unificando as disputas desses grupos é a luta pela ressignificação da região, pela valorização da história negra. A reivindicação da denominação da região como “Pequena África”, nome cuja criação é atribuída a Heitor dos Prazeres no início do século XX e que realçava a grande aglomeração (populacional, mas também cultural) negra na área que ia da Pedra do Sal até a Cidade Nova, guarda a convergência de agires distintos destes grupos. Defendemos aqui que, cada grupo a seu modo, realiza disputas de lugar, com repertórios espaciais de ação distintos. Para isto, iniciaremos debatendo o que estamos chamando de “repertórios espaciais de ação”, como ferramenta para uma geografia da ação e dos sujeitos. Em seguida, passaremos ao caso da Pequena África, para na última seção destacarmos a ação de alguns grupos escolhidos. 1. POR UMA GEOGRAFIA DA AÇÃO E DOS SUJEITOS: REPERTÓRIOS ESPACIAIS DE AÇÃO Diversos autores vem, nas últimas décadas, apontando para uma “virada espacial” (cf. FOUCAULT, 2001; HAESBAERT, 2011; CLAVAL, 2013). Esta tendência se relaciona ao que Edward Soja (1993) denomina “afirmação do espaço na teoria social crítica”, uma valorização analítica (e, obviamente, também política) da dimensão espacial como algo imanente e central nas relações e estruturas sociais. Esta virada espacial, que podemos relacionar à emergência de um novo regime de relações (sociais, econômicas, de poder, etc.) chamado de globalização, reposiciona as ferramentas espaciais dentro dos sistemas explicativos da realidade (os campos de pensamento, que na ciência são chamados de campos disciplinares) e também nos próprios campos da vida social. Assim, de um lado vemos explicações espaciais (como, p. ex., a própria ideia de globalização) sendo mobilizadas para as mais diversas questões (políticas, econômicas, sociais, ou até mesmo sobre temas como futebol, culinária, música, etc.), e de outro vemos também o léxico espacial (p. ex., território, escalas, redes, lugar, etc.) sendo mobilizado como ferramenta ou objeto de disputa pelos mais diversosatores sociais (empresas, movimentos sociais, etc.). Temos, assim, um conjunto de tendências que se retroalimentam neste movimento de virada espacial. Aqui, nosso interesse se volta para a apropriação do léxico e das ferramentas espaciais como componente da ação de sujeitos subalternos em luta – independente do fato de a apropriação ser consciente e enunciada pelos sujeitos em luta ou, ao contrário, ser algo imanente e não enunciada, mas que salta aos olhos do analista. Nos interessa a valorização do agir em sua dimensão espacial - o que compreende também os discursos ou mesmo as significações atribuídas aos atos, mas não se 4 restringe a eles. Esta busca por uma “geografia da ação” vem sendo proposta por diversos autores. Benno Werlen (2005, p. 47)) propõe “uma mudança rigorosa de categorias do espaço à ação, ou do que eu chamo de uma ‘geografia das coisas’ para uma ‘geografia dos sujeitos’”. Diversos esforços neste sentido podem ser registrados. A “cartografia da ação” proposta por Ribeiro (2009) aponta nesta direção, e indica pontos de uma agenda que valoriza sujeitos e as espacialidades de sua ação: “(...) a valorização da ação possível, ainda que não apresente os traços esperados por teorias sociais e partidos políticos; a valorização dos usos do espaço, especialmente os construídos pelos movimentos populares; a valorização da memória popular das lutas urbanas e no urbano; a valorização dos vínculos entre identidades sociais e território (territorialidades); a valorização dos estudos transescalares da ação social; a valorização de inovações institucionais identificadas a partir da análise dos sentidos da ação social.” (pg. 155) Na mesma direção, Santos (2011a) constrói uma proposta de leitura geográfica da ação dos movimentos sociais, apontando oito dimensões espaciais da ação (individual e coletiva) dos movimentos: a materialização/manifestação, que seria a cartografia dos movimentos sociais em ato; recortes espaciais vinculando-se a construções identitárias; lutas por/com/a partir de território & territorialidades; a relação entre a ação, temário e agendas de lutas; espacialidades de interlocutores dos movimentos; espacialidades de atos, gestos e seus desdobramentos, impactos, efeitos, causas, origem; esferas institucionais dos movimentos como distintas dimensões espaço-temporais ou arenas de disputa; espacialidades dos sujeitos que constroem os movimentos. Esta proposta de leitura espacial da ação dos movimentos sociais é, a todo tempo, também uma proposição de que o espaço, em suas diversas dimensões que são reguladoras de relações sociais, é um dado que informa tomadas de decisão e estratégias de ação dos movimentos. Ao apontar a dimensão da materialização/manifestação, por exemplo, o autor chama a atenção de que, na escolha de locais de realização de atos públicos, movimentos consideram históricos e cargas simbólicas de lugares, impactos em fluxos (de pessoas, de veículos, etc.) e isso é balizado pelos objetivos de cada manifestação: a localização, primado fundamental da análise espacial, é critério definidor da ação. Mas, mais do que apenas mobilizar sentidos e cargas simbólicas dos lugares como ferramenta para suas lutas, há movimentos que vão buscar construir e impor novos sentidos aos lugares, atribuir novas cargas e conteúdos na busca de disputar consciências das pessoas que por eles passam ou neles vivem. O caso da Frente 3 de Fevereiro, grupo criado em São Paulo em 2004 após o assassinato por policiais de um jovem negro, recém formado dentista, é lapidar: numa iniciativa intitulada “Zumbi somos nós”, o grupo iniciou um conjunto de intervenções no espaço urbano, compreendendo apresentações artísticas, atos políticos e - o que mais nos interessa aqui – a produção de grafias urbanas, como a construção de “monumentos horizontais”, que eram pinturas e esculturas de corpos caídos no chão junto a datas, em locais onde houve episódios de assassinatos de jovens negros. Esse ato de “grafar a 5 terra”, portanto, “geo-grafar”, objetivava disputar a consciência sobre o genocídio da juventude negra através da ativação de uma memória dos lugares. Algo semelhante é realizado no caso do Museu de Percurso do Negro de Porto Alegre, conjunto de pontos grafados no Centro daquela cidade que remetem à presença histórica negra, que é apagada da memória coletiva e das narrativas históricas hegemônicas. A grafagem em pontos do espaço, que se transformam em referenciais de releitura da história mobilizada por estes conteúdos atribuídos ao passado dos lugares, ressignifica a relação entre indivíduos e sua ancestralidade, provocando câmbios de identidade e pertencimento. É a disputa de lugares como ferramenta de luta social. Outra ferramenta de ativismo que vem sendo acionada e tensionada por movimentos sociais é a cartografia. No Brasil, talvez a iniciativa mais difundida neste campo é a do projeto Nova Cartografia Social, liderada pelo antropólogo Alfredo Wagner Berno de Almeida, que gerou um estupendo volume de mais de 170 fascículos de mapeamentos de sujeitos coletivos feitos pelos próprios grupos (com a assessoria da equipe do projeto). Neste projeto os próprios grupos se cartografam, e trazem nas representações também diversos elementos que são importantes para sua existência, o que pode a cada caso compreender também interlocutores, conflitos, elementos de sua relação com a natureza, formas associativas, enfim, um conjunto de aspectos que eles consideram constitutivos de sua existência. Ou seja, os grupos constroem uma representação de sua existência no espaço, o que implica uma releitura espacial de sua existência - colocada num repositório de informações que é o mapa, ferramenta principal do campo da representação espacial –, processo que é uma leitura de si a partir de raciocínios centrados no espaço. No processo de gestação deste projeto, entretanto, há um antecedente que foi registrado num livro do antropólogo intitulado “Carajás: Guerra dos mapas”, no qual grupos - oprimidos por aquela mineração e que eram invisibilizados nas cartografias oficiais e das consultorias de avaliação de impactos necessárias aos processos legais de licenciamento do empreendimento – se apropriaram e mobilizaram as ferramentas do campo da representação espacial como instrumento de suas lutas. Santos (2011b) reúne este e outros casos em que são realizadas cartografias (i) de movimentos, (ii) para os movimentos, (iii) pelos movimentos, (iv) com os movimentos, constituindo uma tendência à apropriação por grupos subalternizados das ferramentas cartográficas, que provoca tensionamentos ao próprio campo da cartografia, que além de instrumento de lutas se torna então objeto de disputa. Se historicamente, como mostra Harley (2009), a cartografia foi instrumento de atores dominantes (sobretudo os Estados, as forças militares e as grandes corporações capitalistas), emerge uma politização a partir dos subalternos que tensiona os usos, mas também o próprio objeto cartográfico (os mapas e suas convenções, denunciadas em seu eurocentrismo e alienação em relação 6 às experiências espaciais de grupos) e, fundamental para nossa discussão aqui, o processo de produção cartográfica. Como um processo de produção de conhecimento, ele é apontado como um conjunto de operações de decisão (o que é mapeado, como é representado, o que é válido e o que não é, etc.) que são exercícios de poder. Ao se apropriarem e questionarem as ferramentas cartográficas da representação espacial, grupos subalternizados disputam o poder da construção de narrativas, disputam regimes de produção do conhecimento legítimo como sendo a verdade válida. Santos (2011b) mostra como esse compartilhamento de poder na produção do conhecimento cartográfico varia entre experiências: em algumas, os grupos se apropriam dos instrumentos; em outras, são as assessorias quem detém os instrumentosde conhecimento e os movimentos são depoentes; há casos híbridos entre essas duas possibilidades e, casos mais radicais em que os movimentos não apenas se apropriam dos instrumentos mas também questionam os próprios instrumentos e, a partir deles, os cânones do eurocentrismo e a razão tecnocrática inerentes a eles. Nestas diferentes situações, ferramentas e processos de produção ampliam e fortalecem repertórios espaciais de ação dos grupos subalternizados em luta. Santos (2011a) mostra também como movimentos mobilizam recortes espaciais como base de sua identidade, p. ex., de bairros, regionalistas ou mesmo nacionalistas. Movimentos pensam na possibilidade de saltos escalares na relação entre ato e desdobramentos: p. ex., a ocupação de um prédio público de um órgão federal pode gerar um fato político distinto da ocupação de outra construção, assim como a ocupação de uma fazenda de uma figura pública em escala nacional (como em 2002 o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra fez em fazenda do então presidente Fernando Henrique Cardoso) provoca um fato político distinto da ocupação de outra fazenda. Tais exemplos mostram como os movimentos mobilizam raciocínios centrados no espaço na constituição de suas estratégias. Barrar fluxos (ao ocupar uma via de circulação), mobilizar cargas simbólicas e históricas, acionar signos identitários, provocar atores relevantes em jogos de poder em escalas específicas são agenciamentos espaciais que vem sendo provocados pela ação de movimentos. Enunciar lutas por território, como fazem movimentos indígenas, quilombolas ou outros povos e comunidades tradicionais, também. Aparece, nesta leitura da ação de grupos subalternizados, mais uma ferramenta de ação que tem na espacialidade a chave central. Aqui, estamos chamando tais mobilizações de “repertórios espaciais de ação”, conjunto de ferramentas, táticas, formas de atuar de movimentos, lutas sociais e sujeitos que tem a dimensão espacial (ou, a representação espacial) como elemento imanente. Os repertórios espaciais de ação nos indicam espacialidades da ação social, nos permitindo avançar para uma “geografia da ação” e uma “geografia dos sujeitos”, como vimos propor 7 Benno Werlen. Defendemos a ideia de que isto nos fornece chaves de análise férteis para pensar as resistências na Pequena África no Centro do Rio de Janeiro. 2. DISPUTAS DE LUGAR NA PEQUENA ÁFRICA Reconstituiremos, nesta seção, alguns argumentos constitutivos da proposta de leitura das resistências negras contemporâneas na região do Porto Maravilha como “disputas de lugar”, feita por Santos et. Al. (2018). O primeiro argumento toma que o Porto Maravilha, sendo um projeto de renovação urbana, almeja uma transformação espacial, a instauração de novos conteúdos, significados, funções, materialidades, composição social, etc., para um recorte espacial específico, a sua área de abrangência, o que comporta efetivamente também a relação desta área com o restante da cidade e com redes e fluxos que a extrapolam, em diferentes escalas. Busca a criação de um novo “lugar”, e os grupos que resistem ao projeto disputam isso. Um traço desta transformação era a proposta de adensamento da ocupação e mudança da composição social da região. Mas, como se daria isso? Desde o seu início, as ações do Porto Maravilha tiveram nas remoções um de seus traços mais marcantes. Os principais objetivos da política de remoções na área eram as ocupações protagonizadas por movimentos de luta pela moradia (p. ex., Casarão Azul, Flor do Asfalto, Guerreiros do 234, Quilombo das Guerreiras, Machado de Assis, Zumbi dos Palmares, entre outras5), e moradores das favelas da área (Morro da Providência e Pedra Lisa). Junto à política de remoções, o conjunto de intervenções urbanas levaram à elevação do custo de vida na região, o que impulsiona o que a literatura tradicionalmente chama de “remoção branca” – destas intervenções, destaque para a privatização da gestão dos serviços na região para a Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio de Janeiro (CDURP), e as ações nas áreas de favela, como a instalação de um Teleférico no Morro da Providência e uma Unidade de Polícia Pacificadora, entre outras. Após 2013, os movimentos de resistência organizados em torno do Fórum Comunitário do Porto conseguiram deter os avanços das remoções nas favelas da região, mas estima-se que, p. ex., somente as obras do teleférico levaram à remoção de cerca de 200 famílias (FAULHABER & AZEVEDO, 2015). Como o plano inicial previa aumentar a ocupação da região de 28 para 100 mil moradores, considerando-se que as remoções também faziam parte deste plano, o que era almejado era a mudança da composição social dos moradores – ou seja, pelo menos uma boa parte deles não estava prevista na categoria de “beneficiários” das melhorias preconizadas pelo projeto. Se na retórica oficial isso significava renovação, revitalização ou requalificação, os movimentos de resistência denunciavam 5 Ver, a respeito, Faulhaber & Azevedo (2015) e Sanchez et. All (2016). 8 como gentrificação. Mas, Santos et. all (op. Cit.) vão apontar que se trata, na verdade, de um projeto que leva ao “branqueamento do território”: falar de mudança da composição social numa região cuja maioria da população é composta por negros (os dados do Censo 2010 apontam no Morro da Providência que pretos e pardos perfazem 65% da população, e na Pedra Lisa 54%) é falar do branqueamento desta população. Este debate remete ao conceito de “branqueamento do território”, proposto por Santos (2009). Numa releitura crítica da formação do território brasileiro, o autor propõe pensá-la a partir do locus epistêmico dos grupos não-brancos, sobretudo negros e indígenas. A partir da experiência destes grupos subalternizados (ver SPIVAK, 2010), a formação do nosso território é a experiência do branqueamento, que aparece em três dimensões: (i) branqueamento da ocupação, com a substituição dos estoques populacionais via extermínio (sobretudo dos indígenas), da expulsão (de grupos indígenas e negros quilombolas) ou de uma incorporação subalternizante na sociedade de hegemonia branca que comporta uma biopolítica de violências, condições sociais desiguais e sempre depauperadas na comparação com os brancos ou mesmo do genocídio (caso da juventude negra de favelas e periferias); (ii) branqueamento da imagem, com a construção de narrativas sobre o território que invisibilizam a presença (no presente ou no passado) de grupos não-brancos, o que interfere nas subjetividades e nas relações de pertencimento de indivíduos e grupos, e assim nas identidades territoriais, dado que informa posições de poder construindo hierarquias; (iii) branqueamento cultural, com a imposição de matrizes de relação sociedade e natureza eurocêntricos, o que envolve dimensões como práticas, matrizes de saberes, estéticas, e padrões de espiritualidade e religiosidade, entre outros aspectos. Sendo uma ferramenta analítica para pensar a formação do território a partir das experiências de grupos subalternizados a partir da dimensão racial, o conceito de branqueamento do território também é fértil para analisar as experiências de grandes intervenções urbanas, tão marcantes da história do Rio de Janeiro. As remoções de favelas na Zona Sul da Cidade nas décadas de 1960 e 1970 se descortinam como dispositivos biopolíticos que levaram à criação das áreas com composição populacional (e, por que não dizê-lo, ethos) mais brancos da cidade (ver, p ex, os mapas de segregação racial de Rios Neto & Rianni, 2007). Mas, se olharmos para a própria região onde agora se dá a política de “renovação” ou “requalificação”, a história urbana nos remete a grandes intervenções marcadas por remoção de populações também majoritariamente negras, como o “bota-abaixo” dos cortiços na Reforma PereiraPassos no início do século XX, ou mesmo na eliminação de um conjunto de mais de mil imóveis nas quadras entre duas ruas paralelas para dar origem à Avenida Presidente Vargas, na década de 1940. Ou seja, o branqueamento pela remoção já é um dado marcante na região. 9 Além disso, se recuamos mais na história, a própria reforma do Cais do Valongo em 1843, para transformá-lo em Cais da Imperatriz, por ocasião do desembarque da princesa Tereza Cristina, já foi também uma tentativa de branqueamento do território, na medida em que visava apagar dali a memória de ter sido o principal porto de chegada de africanos sequestrados e traficados para serem ali vendidos e escravizados, desde 1811 até 1831, quando foi proibido o tráfico. Esta tentativa de apagamento da memória já era o branqueamento da imagem, a eliminação da presença negra da narrativa sobre (a história d)o lugar, conforme proposto por Santos (2009). Temos, portanto, uma memória territorial marcada pela invisibilização e desqualificação da presença negra na região. O papel que essa região (que congrega a Zona Portuária e seus inúmeros galpões espalhados na área, muitos deles em desuso por atividades ligadas ao porto há décadas, os morros da Providência e Pedra Lisa, os bairros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo, além de uma parte em volta da Central do Brasil) desempenhou na maior parte do século XX durante o período do projeto de industrialização, de ser o que Roberto Lobato Correia chamou de “Zona Periférica do Centro”, área marcada por “usos sujos” e pela depauperação que mantém uma bacia de força de trabalho de baixo custo para atividades na outra parte do centro, o “Central Business District”, permitiu que se mantivesse como uma área de maioria negra ou, no dizer de Rolnik (1988/2007), um “território negro” da cidade. Invisibilização e desqualificação desta presença negra, dimensões do racismo, contribuem para a subalternização histórica desses grupos – e, legitimam e viabilizam os discursos que preconizam a necessidade de “revitalização” e “requalificação” da área. É contra tais leituras pejorativas, que alicerçam o que Albuquerque Jr. (2007) denomina “preconceito de origem geográfica e de lugar”, ali associado também à dimensão racial, que grupos vão operar no cotidiano através de práticas culturais que, trazendo dimensões positivas ao mundo da vida, disputam as significações atribuídas aos lugares. Esta disputa não se dá como resposta a uma intervenção específica, mas sim, contra as dimensões simbólicas de significação do urbano que operam de forma contínua, grafando no espaço da cidade as clivagens e hierarquias sociais para localizar em posições de subalternidade indivíduos e grupos cujos pertencimentos remetem a tais espaços. Visto dessa maneira, ressignifica-se o conjunto de ativismos que caracterizam a história da região, e que também é marca de sua história e memória territorial. Pode-se estabelecer nexos políticos, analíticos e mesmo apontar uma cultura de resistência em campos distintos como o cultural e o político, que se tornam imbricados como imanentes ao tecido social e ao território. Ativismos episódicos no tempo, em reação a alguma intervenção específica, ou permanentes no cotidiano e com durações variáveis, por anos ou mesmo décadas. Assim, a memória e história do território guardam 10 marcas de lutas como a Revolta da Vacina em 1904 (que teve ali a importante liderança de Horácio José da Silva, conhecido como “Prata Preta”), no mesmo contexto da Reforma Pereira Passos e seu bota-abaixo, ou a organização marcadamente negra de trabalhadores portuários na Sociedade de Resistência dos Trabalhadores em Trapiche e Café, fundada em 1905, um dos marcos do início do sindicalismo brasileiro. Lutas em cujas constituições tiveram papeis fundamentais as redes de sociabilidade negras, com a cultura e a religiosidade de matriz africana permitindo que casas (como a de Tia Ciata na Praça Onze) se tornassem sítio para o encontro e a agregação de sujeitos, frutificando iniciativas fundamentais no campo da cultura como da política. Nesta toada, compreendemos como parte desse ativismo imanente ao tecido social a criação ali de uma das primeiras escolas de samba do Rio de Janeiro, a Vizinha Faladeira, em 1932, que foi campeã da divisão principal do carnaval em 1937 e introduziu uma série de inovações que permanecem até hoje caracterizando os desfiles – p. ex., o uso de carro alegórico. Ligados ao samba, ali também foram criados Grupos como o GRES Fala Meu Louro, fundado em 1938, o Bloco Carnavalesco Coração das Meninas, existente desde 1964, e a Roda de Samba Banda da Conceição, criada em 1973, para trazer alguns poucos exemplos. Mais recentemente, o Bloco Escravos da Mauá e o Cordão do Prata Preta vão retomar essa tradição do lugar, com suas denominações marcando posição sobre a memória e história da região, e ressignificando o lugar: o Prata Preta foi fundado por moradores do bairro da Saúde em 2004, celebrando também o centenário da Revolta da Vacina. Este conjunto de ativismos políticos e culturais (as duas dimensões aí se imbricam e se mostram indissociáveis) disputam as significações do lugar. Os mais recentes, como os exemplos trazidos já mostram, buscam fazer tal ressignificação através da criação do que Pierre Norá (1993) denomina “lugares de memória”, repositórios de cargas simbólicas atribuídas por sujeitos que buscam articular passado e presente, sujeitos posicionados em dinâmicas sociopolíticas e que, por isso, transformam a memória em uma construção dinâmica, sempre em mutação, viva porque é disputada e, no dizer do próprio autor, “manipulada” – por isso, se diferencia da história6. Se os exemplos trazidos acima já nos evidenciam um tecido social pleno de ativismos disputando significações do lugar, aqui pretendemos lançar foco para um conjunto de iniciativas fundamentais para as disputas que se instauram nos marcos do Projeto Porto Maravilha, que tem na identidade, história e cultura negras âncoras fundamentais de sua ação. Por outro lado, é forçoso 6 “(...) longe de serem sinônimos, tomamos consciência que tudo opõe uma à outra. A memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações, susceptível de longas latências e de repentinas revitalizações. A história é a reconstrução sempre problemática e incompleta do que não existe mais. A memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente”. Nora, 1993, pg. 9. 11 relembrar que estes sujeitos, que lutam contra o branqueamento ressignificando o lugar através de suas práticas, não tem sua espacialidade e nem temporalidade dadas como reações a este mais recente projeto de intervenção urbana na região. Eles são anteriores, com historicidades, temporalidades e espacialidades distintas, o que no tempo presente também complexifica as construções de lugar que vão emanar da convergência destas lutas. Museu Instituto dos Pretos Novos, Pedra do Sal (o quilombo e a roda de samba) e o Afoxé Filhos de Gandhi são grupos que, no processo do Porto Maravilha, vem sendo protagonistas centrais (de diferentes maneiras) nas disputas de lugar que ocorrem na região. Defendemos aqui que eles têm, como marca de suas disputas, diferentes repertórios espaciais de ação. 3. OUTROS ATORES DISPUTANDO O LUGAR – PEDRA DO SAL, PRETOS NOVOS, FILHOS DE GANDHI Nas últimas décadas, as lutas pela memória negra na região da Zona Portuária do Rio de Janeiro vêm ganhando novas estratégias. Um conjunto heterogêneo de atores vem dando corpo a iniciativas que ganham corpo e especificidades, mas que se retroalimentam no seu conjunto. Acreditamos que um marco importante desse processoé a requisição de tombamento da Pedra do Sal em 1984 junto ao Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (INEPAC), reconhecido em 1987, com forte protagonismo de intelectuais militantes do Movimento Negro da época, não moradores da região, mas que aproveitando de um contexto favorável da gestão do Governo do Estado7, construíram a proposta e lograram êxito no processo. Esta patrimonialização, mais do que uma conquista, se torna instrumento de novas lutas – culturais, simbólicas, materiais e institucionais – na região. Ela cria (ou, ao menos, fortalece) uma ambiência para uma revalorização da história negra em torno da Pedra do Sal e região. Valorizada como berço do samba, de casas de candomblé, das casas de zungu (alimento feito à base de angu), entre outras manifestações e figuras (como as tias, a exemplo de Ciata e Carmen), se fortalece uma circulação de sentidos que envolve a necessidade de mais iniciativas que, mobilizando tais enunciados do passado, criassem base para a ressignificação da negritude. Isto vai redundar em iniciativas dispersas, pulverizadas, efêmeras, mas que se articulam por essa circulação de sentidos. Assim, ainda na década de 1980 já acontecem rodas de samba na área reivindicando tal acervo de memória. 7 Falamos do contexto da gestão de Leonel Brizola (1983-1986), no cenário da redemocratização pelo enfraquecimento do regime militar. Ivair Santos (2006) aponta que naquele contexto gestões de oposição ao regime militar, na busca de construção de bases sociais e políticas para governar, abriram diálogos com o Movimento Negro, o que resultou em experiências de incorporação da temática racial – o caso que ele analisa mais detidamente é o da criação do Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra no Governo de São Paulo, então, na gestão de André Franco Montoro. 12 Na década de 2000 um grupo de moradores da região começa a discutir o reconhecimento de parte da área em volta da Pedra do Sal como quilombo, o que ganhou reconhecimento pela Fundação Cultural Palmares. A ARQPEDRA (Associação da Comunidade Remanescente de Quilombo da Pedra do Sal) vai protagonizar tal processo, e a reivindicação da memória da presença e história negra no local é elemento fundamental: “A Pedra do Sal, tombada provisoriamente em 20 de novembro de 1984 e, definitivamente em 27 de abril de 1987 através da Resolução nº 23 e publicada no Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro em 11 de maio de 1987, é testemunho cultural mais que secular da africanidade brasileira, espaço ritual consagrado e o mais antigo monumento vinculado à história do samba carioca. Outrora teve os nomes de Quebra-Bunda, Pedra da Prainha e, como nas redondezas se carregava o sal, popularizou-se como do Sal. Ali se instalaram os primeiros negros da Saúde, se encontraram as Tias Baianas, soaram os ecos das lutas populares, das festas de candomblé e das rodas de choro. Nas ruas tortuosas e becos que a envolvem, nasceram os ranchos e o carnaval carioca. No dorso da Pedra do Sal estão inscritas as raízes do nosso samba”. (ARQPEDRA apud INCRA, 2010, pg. 19) Este grupo, já nessa época, começa a disputar essa memória negra da Pedra do Sal através da promoção de eventos com samba, religiosidade e culinária negra em datas celebrativas, como o 20 de novembro (Dia da Consciência Negra), o 2 de dezembro (Dia do Samba) ou mesmo o 23 de abril (Dia de São Jorge, identificado no sincretismo popular com o orixá Ogum). Tais atividades, que são celebrações, festas, mas também a disputa da carga simbólica atribuída à Pedra do Sal como lugar de memória da cultura negra, são reforçadas a partir de meados da década de 2000 com a criação de rodas de samba semanais – sobretudo as rodas praticadas nas segundas-feiras. Estas rodas adotaram também a postura de reivindicação e defesa da memória negra do lugar: “A história da Roda de Samba da Pedra se confunde com o reerguimento do samba na Região Portuária do Rio de Janeiro. Em 10 anos de comprometimento com a cultura do lugar, hiridizando gêneros regionais tradicionais, trazidos de África pela insana diáspora, o samba segue incólume, por todas as noites de segundas feiras. Ali nunca se negociou memória ancestral (...)” (http://rodadesambadapedradosal.blogspot.com/ acesso em 15/02/2019) A repercussão destas rodas de samba, sempre cheias de moradores de diversos bairros do Rio de Janeiro e região metropolitana além de turistas, transformaram a Pedra do Sal num “lugar de memória” conhecido por toda a cidade, amplificando o seu papel como ferramenta de disputa pelo pertencimento à ancestralidade negra. Samba e Quilombo, neste sentido, se retroalimentam enquanto sujeitos da ressignificação do lugar – ou, por que não dizê-lo, da própria criação da Pedra do Sal como um “lugar”, um ente espacial reconhecido e com um acervo de referenciais próprios identidade. Neste processo de construção da ideia da região como Pequena África, que é outro “lugar”, outro recorte espacial que reúne um acervo de referenciais dos quais a Pedra do Sal é apenas uma parte, as ações do Samba e do Quilombo da Pedra são fundamentais. Estamos falando, portanto, de dois processos http://rodadesambadapedradosal.blogspot.com/ 13 interligados de “criação de lugares”, com abrangências e recortes espaciais distintos mas interligados (um é parte do outro), onde as disputa de significado e memória se retroalimentam. Que outros processos de certa forma semelhantes se vinculam ao da Pedra do Sal para constituir a Pequena África contemporânea? A reivindicação da memória e da história negras da região já havia ganho impulso na década de 1990, quando um casal ao reformar sua casa na Rua Pedro Ernesto, na Gamboa, identificou fragmentos de ossos humanos. Primeiramente, consultaram a polícia, que apontou se tratarem de ossadas humanas, mas antigas. Então, profissionais historiadores e arqueólogos dos órgãos responsáveis, alguns dos quais já cientes do debate sobre a existência na região de um cemitério antigo onde eram enterrados os africanos sequestrados e traficados que não resistiam ao chegarem aqui pelo Cais do Valongo, identificaram se tratar ali a localização: era o antigo Cemitério dos Pretos Novos. Esta descoberta instaura novas possibilidades de luta contra o branqueamento da narrativa histórica da região, cuja urbanização (conforme já exemplificamos anteriormente com a própria transformação do Cais do Valongo em Cais da Imperatriz, em 1843) apagou os possíveis lugares de memória. Anos depois, a partir da ação dos proprietários, da articulação com militantes do Movimento Negro e profissionais (historiadores e arqueólogos) interessados e comprometidos, foi criado o Museu Instituto dos Pretos Novos (IPN). Enquanto achado arqueológico, o IPN se transformou numa ferramenta fundamental para reforçar a hipótese da existência de um conjunto de outros bens a serem protegidos na região, e de particular interesse para a história negra. Funcionou, então, duplamente, de um lado sendo uma referência para a difusão dessa história, na medida que recebe visitas de cariocas (incluindo muitos estudantes em visitações escolares) e turistas (brasileiros e estrangeiros), e também como prova inegável da necessidade de exploração de mais pontos na região. A partir dele pesquisadores puderam dar mais lastro às investigações a respeito do complexo logístico do mercado de africanos sequestrados e traficados para serem aqui escravizados, que chegavam pelo Cais do Valongo (ver o Mapa do Mercado Escravagista e Cultura no Porto do Rio de Janeiro, abaixo). Isto foi o que embasou pedidos de salvaguarda de patrimônio arqueológico quando das obras relacionadas ao Projeto Porto Maravilha, as quais revelaram as próprias instalações do Cais do Valongo. Em 2011, durante as obras da revitalização do Porto Maravilha, foi descoberta a localizaçãodo antigo Cais do Valongo – e, por cima dele, também o Cais da Imperatriz, construído para tampá- lo. Sendo um bem salvaguardado pelas leis de proteção ao patrimônio arqueológico, ele acabou impondo mudanças no planejamento das obras. Daí, a prefeitura juntou a ele outras construções protegidas por tombamentos e criou o Circuito Histórico e Arqueológico da Celebração da Herança 14 Africana, conjunto de pontos que, além do Cais, reúne a Pedra do Sal, o Largo do Depósito (onde se localizava um mercado de tráfico humano africanos escravizados), em frente a ele o Jardim Suspenso do Valongo (construído no bojo da Reforma Pereira Passos como embelezamento de instalações que serviam de apoio ao tráfico, como barracões conhecidos como casas de engorda, que serviam para os seres humanos traficados recuperarem peso perdido na viagem de travessia em navios chamados “tumbeiros”, e assim ganharem valor comercial), o Cemitério dos Pretos Novos e o Centro Cultural José Bonifácio. O Circuito apresenta-se como um paradoxo nas disputas de lugar: é fruto de conquista desses grupos que vinham disputando memória e história do lugar antes mesmo do Projeto Porto Maravilha; mas, se insere neste projeto que prevê remoção de população negra da região, portanto, foi transformado em peça discursiva de uma valorização da presença negra num projeto que expulsa populações negras e também outras instalações de atividades ligadas à cultura negra que é feita no presente, como barracões de escolas de samba; é a primeira vez no Rio de Janeiro (cidade que, como já exemplificamos, tem sua história marcada por diversos grandes eventos de intervenção) que um projeto de grande intervenção urbana traz alguma menção positiva à presença e cultura negra mas, como se pode ver, são valorizadas as presenças e culturas do passado, numa concepção arqueológica de patrimônio, visto que populações negras e práticas culturais de grupos no presente são levados a deixar a região – por força de remoções oficiais ou por força dos resultados de mercado do projeto. 15 Estes paradoxos aparecem fortemente na maneira como o poder público vai se relacionar com os grupos ligados à cultura e história negra. Quando estes recebem algum apoio, a alocação de recursos é abissalmente inferior ao que é carreado para iniciativas como o Museu do Amanhã, o Museu de Arte do Rio (MAR), ou o Aquário Marinho do Rio de Janeiro (AquaRio), equipamentos culturais instalados a partir da revitalização. O caso do Afoxé Filhos de Gandhi, grupo que associa a religiosidade do candomblé à musicalidade em apresentações de afoxé, é lapidar: mesmo tendo sido criado em 1951, o grupo funciona numa sede que é um casarão em condições precárias no Largo do Depósito, sem segurança jurídica e sob constante ameaça de expulsão. O Filhos de Gandhi é um dos grupos mais ativos no período recente em termos de disputa de lugar. Seu repertório espacial de ação no período recente contempla a realização de festas, ensaios e apresentações no Largo do Depósito, eventos com cortejos na região (p. ex., o Rolezão Preto, organizado junto ao Movimento Rua em março de 2018), lavagem das escadas do Cais do Valongo, desfiles no carnaval (na própria Zona Portuária mas também em outros locais, como em Copacabana, Quinta da Boa Vista, etc.), entre outros. Tais gestos evidenciam o câmbio da invisibilização como estratégia de sobrevivência (marca tradicional de grupos vinculados às religiões afro-brasileiras, para se proteger das violências do Estado e de outros agentes, que marcam a história do racismo religioso no Brasil) para a busca de uma visibilização cada vez maior nos espaços públicos. Aqui, vale destaque para a pluralização destes espaços públicos, o que contempla também a busca de interlocutores em espaços de representação política: o Gandhi recebeu, em novembro de 2017, a Medalha Pedro Ernesto, honraria concedida pela Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro, a partir de requerimento do mandato da vereadora Marielle Franco. Aparece, nesta ação, uma articulação da luta do grupo com um mandato parlamentar de uma representante política negra, o que nos remete à leitura de Kox (1998), que dissocia na ação dos grupos sociais “espaços de dependência” (aqueles necessários à sua própria reprodução social enquanto grupos) e “espaços de engajamento” (aqueles que são ocupados estrategicamente pelos grupos como necessidade do seu jogo político). Quando vemos, então, o reconhecimento pela UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, uma agência da ONU – Organização das Nações Unidas) do Cais do Valongo como Patrimônio da Humanidade (o reconhecimento e a inscrição no livro foi em 2017, e a entrega do título em 2018), citado na própria página da entidade como “o lugar mais importante de memória da diáspora africana fora da África”8, isto é o resultado de uma articulação de 8 http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/about-this-office/single- view/news/valongo_wharf_is_the_new_brazilian_site_inscribed_on_unesco/, visita em 13/02/2019. http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/about-this-office/single-view/news/valongo_wharf_is_the_new_brazilian_site_inscribed_on_unesco/ http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/about-this-office/single-view/news/valongo_wharf_is_the_new_brazilian_site_inscribed_on_unesco/ 16 atores sociais em lutas pela ressignificação de lugares, disputas por memória e história grafando lugares – e, importante dizê-lo aqui, estamos falando de lugares com recortes e abrangências espaciais distintos e combinados. A Pedra do Sal vem se tornando um lugar, um ponto de referência com cargas semântica, histórica e simbólica próprias, que compõe a Pequena África, mas se distingue do Cais do Valongo. Este, por sua vez, é a sua própria instalação, mas, no reconhecimento como Patrimônio da Humanidade, junta-se a uma Zona de Amortecimento que reúne os pontos de interesse do Circuito Histórico de Celebração da Herança Africana mas não se confunde com ele. Há, portanto, um processo múltiplo e complexo de disputas de lugares, no qual diferentes sujeitos lançam mão de diversos repertórios espaciais de ação, o que redunda numa multiplicidade de referenciais e recortes espaciais que se combinam (e, em alguns momentos, se atritam). O Mapa Circuitos da Memória traz esse conjunto de pontos – agregando, ainda, os pontos referenciados pelo projeto “Passados Presentes: Memória da escravidão no Brasil”, uma iniciativa de extensão da Universidade Federal Fluminense que marca pontos de interesse com códigos tipo QR, que a partir de um leitor óptico instalado como aplicativo em dispositivos telefones celulares tipo smartphone, permite acesso a informações no formato voz (das historiadoras coordenadoras do projeto ou de lideranças da região). Na Pequena África, são 19 pontos grafados pelo projeto. 17 4. PARA NÃO CONCLUIR O caso da Pequena África no Rio de Janeiro nos evidencia como, no período recente, a luta anti-racismo do Movimento Negro Brasileiro vem ampliando suas estratégias de luta. Ele nos mostra – esta foi a intenção deste artigo – como há o recurso crescente a repertórios de ação centrados no espaço. Disputas de lugar, grafagens espaciais, atribuição de sentidos e significados a lugares de memória, criação de novas cartografias e, a luta pelo reconhecimento social e institucional destes referenciais espaciais constituem algumas das ferramentas de luta social mobilizadas por sujeitos em luta contra o racismo. Vimos, aqui, o espaço urbano como palco, objeto e instrumento de disputa(s). A análise dos repertórios espaciais de ação mobilizados por tais sujeitos nos mostra um espaço praticado, disputado, aberto para múltiplas possibilidades como nos propõe imaginar Doreen Massey (2008). Mais do que um espaço “produzido”, temos um espaço disputado – olharque apenas leituras relacionais das dimensões de poder imanentes aos processos de “produção” permitem captar, e que nem sempre estão presentes em perspectivas que buscam observar a produção do espaço. Produzido, sim, mas aberto, praticado, e, no caso da Pequena África, disputado por um conjunto de sujeitos que protagonizam a luta anti-racismo, contra o branqueamento do território no espaço urbano. BIBLIOGRAFIA ALBUQUERQUE Jr., Durval Muniz. Preconceito contra a origem geográfica e de lugar: As fronteiras da discórdia. São Paulo: Cortez, 2007. BRENNER, Neil. “The limits to scale? Methodological reflections on scalar structuration”. In: Progress in Human Geography, 25(4), 2001, pp. 591-614. CLAVAL (2013) , Paul. O território na transição da pós-modernidade. GEOgraphia nº 2, Revista da Pós-Graduação em Geografia da UFF. Niterói: UFF/EGG, 1999. Disponível em http://www.uff.br/geographia/ojs/index.php/geographia/article/view/16/14 FAULHABER, L. & AZEVEDO, L. SMH 2016: remoções no Rio de Janeiro Olímpico. Rio de Janeiro: Mórula, 2015. FOULCAULT, M. 2001. “De outros espaços”. In: Ditos & Escritos. Rio de Janeiro: Forense Universitária. HAESBAERT, Rogério. 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