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DIREITO ADMINISTRATIVO - SISTEMA ADMINISTRATIVO

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APOSTILA DE DIREITO ADMINISTRATIVO I
Profª Jussara Maria Pordeus e Silva
I - SISTEMAS ADMINISTRATIVOS
Por sistema administrativo, ou sistema de controle jurisdicional da Administração, como se diz modernamente, entende-se o regime adotado pelo Estado para a correção dos atos administrativos ilegais ou ilegítimos praticados pelo Poder Público em qualquer dos seus departamentos de governo.
Vigem, presentemente, dois sistemas bem diferençados: o do contencioso administrativo, também chamado sistema francês, e o sistema judiciário ou de jurisdição única, conhecido por sistema inglês. Não admitimos o impropriamente denominado sistema misto, porque, como bem pondera Seabra Fagundes, hoje em dia “nenhum país aplica um sistema de controle puro, seja através do Poder Judiciário, seja através de tribunais administrativos”. O que caracteriza o sistema é a predominância da jurisdição comum ou da especial, e não a exclusividade de qualquer delas, para o deslinde contencioso das questões afetas à Administração.
I.1. SISTEMA DO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO
O sistema do contencioso administrativo foi originariamente adotado na França, de onde se propagou para outras nações. Resultou da acirra da luta que se travou no ocaso da Monarquia entre o Parlamento, que então exercia funções jurisdicionais, e os Intendentes, que representavam as administrações locais.
A Revolução (1789), imbuída de liberalismo e ciosa da independência dos Poderes, pregada por Montesquieu, encontrou ambiente propício para separar a Justiça Comum da Administração, com o quê atendeu não só ao desejo de seus doutrinadores como aos anseios do povo já descrente da ingerência judiciária nos negócios do Estado. Separaram-se os Poderes. 
E, extremando os rigores dessa separação, a Lei 16, de 24.8.1790, dispôs: “As funções judiciárias são distintas e permanecerão separadas das funções administrativas. Não poderão os juízes, sob pena de prevaricação, perturbar, de qualquer maneira, as atividades dos corpos administrativos”.
A Constituição de 3.8.1791 consignou: “Os tribunais não podem invadir as funções administrativas ou mandar citar, para perante eles comparecerem, os administradores, por atos funcionais”.
Firmou-se, assim, na França o sistema do administrador-juiz, vedando-se à Justiça Comum conhecer de atos da Administração, os quais se sujeitam unicamente à jurisdição especial do contencioso administrativo, que gravita em torno da autoridade suprema do Conselho de Estado, peça fundamental do sistema francês. Essa orientação foi conservada na reforma administrativa de 1953, sendo mantida pela vigente Constituição de 4. 10.58.
No sistema francês todos os tribunais administrativos sujeitam-se direta ou indiretamente ao controle do Conselho de Estado, que funciona como juízo de apelação (juge d’appel), como juízo de cassação (juge de cassation) e, excepcionalmente, como juízo originário e único de determinados litígios administrativos (juge de premier et dernier ressorte), pois que dispõe de plena jurisdição em matéria administrativa.
“Como no passado — explica Vedei, em face da reforma administrativa de 1953 —, o Conselho de Estado é, conforme o caso, juízo de primeira e última instâncias, corte de apelação ou corte de cassação. A esses títulos ele conhece ou pode conhecer de todo litígio administrativo. A diferença está em que como juízo ou corte de primeira e última instâncias ele perdeu a qualidade de juiz de direito comum excepcional”.
Na organização atual do contencioso administrativo francês, o Conselho de Estado, no ápice da pirâmide da jurisdição especial, revê o mérito das decisões, como corte de apelação dos Tribunais Administrativos (de nominação atual dos antigos Conselhos de Prefeitura) e dos Conselhos do Contencioso Administrativo das Colônias; e, como instância de cassação, controla a legalidade das decisões do Tribunal de Contas, do Conselho Superior da Educação Nacional e da Corte de Disciplina Orçamentária (Lei de 25.9.48). 
Embora caiba à jurisdição administrativa o julgamento do contencioso administrativo — “ensembie des litiges que peut faire naitre l’activité de l’Administration” —‘ certas demandas de interesse da Administração ficam sujeitas à Justiça Comum desde que se enquadrem numa destas três ordens: a) litígios decorrentes de atividades públicas com caráter privado; b) litígios que envolvam questões de estado e capacidade das pessoas e de repressão penal; c) litígios que se refiram à propriedade privada.
Como a delimitação da competência das duas Justiças está a cargo da jurisprudência, freqüentes são os conflitos de jurisdição, os quais são solucionados pelo Tribunal de Conflito, integrado por dois ministros de Estado (Garde des Sceaux et Ministre de la Justice), por três conselheiros de Estado e por três membros da Corte de Cassação.
As atribuições do Conselho de Estado são de ordem administrativa e contenciosa, servindo ao governo na expedição de avisos e no pronunciamento sobre matéria de sua competência consultiva e atuando como órgão jurisdicional nos litígios em que é interessada a Administração, ou seus agentes.
A composição e funcionamento do Conselho de Estado são complexos, bastando recordar que atualmente é integrado por cerca de duzentos membros, recrutados entre funcionários de carreira (indicados pela Escola Nacional de Administração), auditores, juristas e conselheiros, e sua atividade se distribui entre as seções administrativa e contenciosa, subdividindo-se esta em nove subseções.
A jurisdição deste órgão supremo da Administração francesa é manifestada através de um desses quatro recursos: a) contencioso de plena jurisdição, ou contencioso de mérito, ou contencioso de indenização, pelo qual o litigante pleiteia o restabelecimento de seus direitos feridos pela Administração; b) contencioso de anulação, pelo qual se pleiteia a invalidação de atos administrativos ilegais, por contrários à lei, à moral, ou desvia dos de seus fins (détournement de pouvoir), que, por isso, é também chamado recurso por excesso de poder (recours d ‘excès de pouvoir); c) contencioso de interpretação, pelo qual se pleiteia a declaração do sentido do ato e de seus efeitos em relação ao litigante; d) contencioso de repressão, pelo qual se obtém a condenação do infrator à pena administrativa prevista em lei, como nos casos de infração de trânsito ou de atentado ao domínio público.
O sistema do contencioso administrativo francês, como se vê, é complicado na sua organização e atuação, recebendo, por isso mesmo, adaptações e simplificações nos diversos países que o adotam, tais como a Suíça, a Finlândia, a Grécia, a Turquia, a Iugoslávia, a Polônia e a antiga Tcheco Eslováquia, embora guarde, em linhas gerais, a estrutura gaulesa.
Não abonamos a excelência desse regime. Entre outros inconvenientes sobressai o do estabelecimento de dois critérios de Justiça: um da jurisdição administrativa, outro da jurisdição comum. Além disso, como bem observa Ranelletti, o Estado moderno, sendo um Estado de Direito, deve reconhecer e garantir ao indivíduo e à Administração, por via da mesma Justiça, os seus direitos fundamentais, sem privilégios de uma jurisdição especial constituída por funcionários saídos da própria Administração e sem as garantias de independência que se reconhecem necessárias à Magistratura.
Na França o contencioso administrativo explica-se pela instituição tradicional do Conselho de Estado, que integra o regime daquele país como uma peculiaridade indissociável de sua organização constitucional, mas não nos parece que em outras nações possa apresentar vantagens sobre o sistema judiciário ou de jurisdição única.
I.2. SISTEMA JUDICIÁRIO
O sistema judiciário ou de jurisdição única, também conhecido por sistema inglês e, modernamente, denominado sistema de controle judicial, é aquele em que todos os litígios — de natureza administrativa ou de interesses exclusivamente privados — são resolvidos judicialmente pela Justiça Comum,ou seja, pelos juízes e tribunais do Poder Judiciário. Tal sistema é originário da Inglaterra, de onde se transplantou para os Estados Unidos da América do Norte, Bélgica, Romênia, México, Brasil e outros países.
A evolução desse sistema está intimamente relacionada com as conquistas do povo contra os privilégios e desmandos da Corte inglesa. 
Primitivamente, todo o poder de administrar e julgar concentrava-se na Coroa. Com o correr dos tempos diferençou-se o poder de legislar (Parlamento) do poder de administrar (Rei). Mas permanecia com a Coroa o poder de julgar. O Rei era a fonte de toda justiça e o destinatário de todo recurso dos súditos. O povo sentia-se inseguro de seus direitos, dependente corno permanecia da graça real na apreciação de suas reclamações. 
Continuaram as reivindicações populares, e em atendimento delas criou-se o Tribunal do Rei (King Bench), que, por delegação da Coroa, passou a decidir as reclamações contra os funcionários do Reino, mas o fazia com a chancela real. Tal sistema era ainda insatisfatório, porque os julgadores dependiam do Rei, que os podia afastar do cargo e, mesmo, ditar-lhes ou reformar-lhes as decisões. 
Logo mais, passou o Tribunal do Rei a expedir em nome próprio ordens (writs) aos funcionários contra quem se recorria e mandados de interdições de procedimentos administrativos ilegais ou arbitrários. Dessas decisões tornaram-se usuais o writ of certiorari, para remediar os casos de incompetência e ilegalidade graves; o writ of injunction, remédio preventivo destinado a impedir que a Administração modificasse determinada situação; e o writ of mandamus, destinado a suspender certos procedimentos administrativos arbitrários, sem se falar no writ of habeas corpus, já considerado garantia individual desde a Magna Carta (1215).
Do Tribunal do Rei, que só conhecia e decidia matéria de direito, passou-se para a Câmara Estrela (Star Chamber), com competência em matéria de direito e de fato e jurisdição superior sobre a Justiça de paz dos condados, e de cujas decisões cabia recurso para o Conselho Privado do Rei (King s Council).
Restava ainda a última etapa da independência da Justiça Inglesa. Esta adveio em 1701 com o Act of Settlement, que desligou os juizes do Poder real e deu-lhes estabilidade no cargo, conservando-lhes a competência para questões comuns e administrativas. Era a instituição do Poder Judicial independente do Legislativo (Parlamento) e do administrativo (Rei), com jurisdição única e plena para conhecer e julgar todo procedimento da Administração em igualdade com os litígios privados.
Esse sistema de jurisdição única trasladou-se para as colônias norte- americanas e nelas se arraigou tão profundamente que, proclamada a Independência (1775) e fundada a Federação (1787), passou a ser cânone constitucional (Constituição dos EUA, art. III, seção 2ª)
Pode-se afirmar, sem risco de erro, que a Federação Norte-Americana é a que conserva na sua maior pureza o sistema de jurisdição única, ou do judicial control, que se afirma no rule of Iaw, ou seja, na supremacia da lei. Definindo esse regime, Dicey escreve que ele se resume na submissão de todos à jurisdição da Justiça ordinária, cujo campo de ação coincide com o da legislação, sendo ao desta co-extensivo e equivalente. Nem por isso deixaram os Estados Unidos de criar Tribunais Administrativos (Court of Claims — Court of Custom Appeals — Court ofRecord) e Comissões de Controle Administrativo de certos serviços ou atividades públicas ou de interesse público, com funções regulamentadoras e decisórias (Interstate Com merce Commission — Federal Trade Commission — Tar Commission — Public Service Commission etc.), mas essas Comissões e Tribunais Administrativos não proferem decisões definitivas e conclusivas para a Justiça Comum, cabendo ao Poder Judiciário torná-las efetivas (enforced) quando resistidas, e para o quê pode rever a matéria de fato e de direito já apreciada administrativamente. 
A prática administrativa norte-americana levou Freund a afirmar, com inteiro acerto, que a existência desse duplo freio (do processo judicial e das Comissões Administrativas) visa a enfrentar e neutralizar os abusos do poder burocrático ou, pelo menos, reduzir o procedimento da Administração à condição de simples inquérito preliminar.
Não existe, pois, no sistema anglo-saxônio, que é o da jurisdição única (da Justiça Comum), o contencioso administrativo do regime francês. Toda controvérsia, litígio ou questão entre particular e a Administração resolve-se perante o Poder Judiciário, que é o único competente para proferir decisões com autoridade final e conclusiva, a que o citado Freund denomina final enforcing power e que equivale à coisa julgada judicial.
II - O SISTEMA ADMINISTRATIVO BRASILEIRO
O Brasil adotou, desde a instauração de sua primeira República (1891), o sistema da jurisdição única, ou seja, o do controle administrativo pela Justiça Comum. Daí a afirmativa peremptória de Ruy, sempre invocada como interpretação autêntica da nossa primeira Constituição Republicana: “Ante os arts. 59 e 60 da nova Carta Política, é impossível achar-se acomodação no Direito brasileiro para o contencioso administrativo”.
As Constituições posteriores (1934, 1937, 1946 e 1969) afastaram sempre a idéia de uma Justiça administrativa coexistente com a Justiça ordinária, trilhando, aliás, uma tendência já manifestada pelos mais avança dos estadistas do Império, que se insurgiam contra o incipiente contencioso administrativo da época. A EC 7/77 estabeleceu a possibilidade da criação de dois contenciosos administrativos (arts. 11 e 203), que não chegaram a ser instalados. Agora, com a Constituição de 1988, ficaram definitivamente afastados.
A orientação brasileira foi haurida no Direito Público Norte-Americano, que nos forneceu o modelo para a nossa primeira Constituição Republicana, adotando todos os postulados do rule oflaw e do judicial control da Federação co-irmã. Essa filiação histórica é de suma importância para compreendermos o Direito Público Brasileiro, especialmente o Direito Administrativo, e não invocarmos inadequadamente princípios do sistema francês como informadores do nosso regime político-administrativo e da nossa organização judiciária quando, nesses campos, só mantemos vinculação com o sistema anglo-saxônio.
Tal sistema, já o conceituamos, mas convém repetir, é o da separação entre o Poder Executivo e o Poder Judiciário, vale dizer, entre o administrador e o juiz. Com essa diversificação entre a Justiça e a Administração é inconciliável o contencioso administrativo, porque todos os interesses, quer do particular, quer do Poder Público, se sujeitam a uma única jurisdição conclusiva: a do Poder Judiciário. Isto não significa, evidentemente, que se negue à Administração o direito de decidir. Absolutamente, não. O que se lhe nega é a possibilidade de exercer funções materialmente judiciais, ou judiciais por natureza, e de emprestar às suas decisões força e definitividade próprias dos julgamentos judiciários (res judicata).
Neste ponto, a doutrina é pacífica em reconhecer que o sistema de separação entre a Justiça e a Administração torna incompatível o exercício de funções judiciais (não confundir com jurisdicionais, que tanto podem ser da Administração como da Justiça) por órgãos administrativos, porque isto não seria separação, mas reunião de funções.
Entre nós, como nos Estados Unidos da América do Norte, vicejam órgãos e comissões com jurisdição administrativa, parajudicial, mas suas decisões não têm caráter conclusivo para o Poder Judiciário, ficando sempre sujeitas a revisão judicial.
Para a correção judicial dos atos administrativos ou para remover a resistência dos particulares às atividades públicas, tanto a Administração como os administrados dispõem dos mesmos meios processuais admitidos pelo Direito Comum, e recorrerão ao mesmo Poder Judiciário uno e único — que decide os litígios de Direito Público e de Direito Privado (CF, art.5º, XXXV). Este é o sentido da jurisdição única adotada no Brasil.

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