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1 A operação historiográfica: ver e fazer ver Rebeca Gontijo A palavra história tem origem grega e foi formada a partir do verbo historeîn (investigar). História significa investigação ou conhecimento por meio de investigação. Apareceu pela primeira vez no século V a. C., na obra Histórias, de Heródoto de Halicarnasso, posteriormente conhecido como “pai da história”. Inicialmente, designava tanto um saber como a sua busca, a pesquisa e, também, o resultado da pesquisa ou o seu relato. Então, a história começou a ser escrita pelos gregos antigos? Não. A história era escrita muito antes do século V a. C., em outros lugares, em outras línguas e de outros modos. O caso grego interessa, por um lado, porque deixou registros que nos ajudam a compreender os significados atribuídos ao termo história. Por outro lado, interessa porque, ao longo dos séculos, por meio de sucessivos investimentos, foi transformado em referência para a construção daquilo que veio a ser definido como Ocidente. A cultura grega e também a romana constituem a base de uma tradição identificada como clássica, que a época Moderna elegeu como referencial. Quando a palavra história era utilizada na Grécia antiga não remetia a qualquer conteúdo, mas a um meio, a um modo para conhecer aquilo que aconteceu. Modo que se confundia com o relato daquilo que aconteceu. O meio de conhecer e o relato sobre o que aconteceu eram, portanto, dois aspectos relacionados ao termo história. E é isso que lemos nas Histórias (Investigações), de Heródoto (485-425 a. C.), quando ele afirma que “esta é a apresentação da investigação de Heródoto de Halicarnasso”. É o relato da pesquisa desse homem. E a ambição de Heródoto era simplesmente “dizer o que se diz”, podendo privilegiar a versão que lhe parecesse mais confiável. Por meio de suas investigações, ele é aquele que faz ver e que faz saber. E os gregos tinham um termo para esse procedimento: semaínein (significar). Historeîn (investigar) e semaínein (significar) são dois verbos que indicam a ambição de ver mais longe no espaço e no tempo, ir além do que se pode ver por si mesmo, rompendo a fronteira entre o visível e o invisível. Entre um tempo que é (o presente) e um tempo que não é mais (o passado). Considerando a questão sobre como é possível ver o passado, observa-se que o sentido da visão está relacionado tanto à origem da palavra história como ao fazer do historiador. A palavra história, formada a partir do verbo historeîn (investigar), é um termo derivado de hístor cuja raiz é wid ou ideîn, que significa ver. Também está ligada ao termo (w)oida, que significa saber. Desse modo, a etimologia da palavra história indica que a mesma articula dois verbos: ver e saber. Podemos dizer que ver e saber são propósitos da história (investigação). Mas cabe observar que os usos do termo história variam ao longo do tempo e conforme o idioma. A mesma palavra nem sempre designa a mesma coisa. Por exemplo, podemos atribuir o termo história ao relato ou narrativa sobre uma experiência passada. É nesse sentido que nos referimos a um livro como de história. Trata-se do texto que o historiador produz sobre algum tema histórico. Esse texto constitui um gênero específico: o gênero histórico. Na época moderna 2 um novo vocábulo começou a ser empregado para distinguir esse texto: historiografia (história escrita). Mas, também podemos empregar o termo história para designar acontecimentos passados (ações cometidas ou vividas), aquilo que é objeto do estudo histórico e tema de algum relato ou narrativa. Observem que, em português, o mesmo termo serve para designar essas duas coisas distintas: a história como acontecimento ocorrido no passado próximo ou distante; e a história como relato sobre esse mesmo acontecimento. Em alemão, por exemplo, há duas palavras distintas: Geschichte e Historie. A primeira originalmente significava o acontecimento em si, enquanto a segunda designava o relato, a narrativa de algo acontecido. A partir do século XVIII, a palavra Geschichte passou a ser utilizada nos dois sentidos e a palavra Historie foi preterida. Esses exemplos nos mostram que uma mesma palavra pode ter diferentes usos ao longo do tempo e o estudo dessas variações permite compreender as mudanças da nossa relação com o passado e com a história. Voltando à etimologia da palavra história, formada a partir do verbo historeín, deriva da palavra hístor, que na Grécia antiga designava pessoas que assumiam a função de árbitro em situações de disputa. Curiosamente, nem sempre o hístor vira ou ouvira algo de fato. Mas, mesmo assim, sua palavra era valorizada, considerada como fiadora, por ser capaz de atestar o acordo entre as partes em litígio. Atestar após ouvir as partes, por considerar os dois lados de uma disputa. Seria uma espécie de mnémon, homem-memória ou “recordação viva”. O primeiro uso da palavra história está relacionado a um meio de conhecer, que é investigar (historeín). E aquele que investiga almeja saber e narrar, como se tivesse visto aquilo que, de fato, não viu, nem poderia ter visto. Para isso é preciso, ontem como hoje, recorrer a testemunhas e aos documentos. Uma das definições da história é, portanto, investigação através da interrogação de testemunhas. O latim dispõe de várias palavras para designar testemunha (cujo equivalente grego é martus): testis ou terstis (aquele que assiste a algo como terceiro elemento), superteste (aquele que subsiste, que sobreviveu a alguma coisa sobre a qual pode se pronunciar), arbiter (aquele que assiste a algo), autor (fiador). A etimologia da palavra grega martus nos conduz ao radical de um verbo que significa lembrar-se: em grego merimma e, em latim, memor(ia). E, a princípio, o martus / hístor tem, acima de tudo, mas não somente, ouvidos e seu papel é lembrar. Mas, a testemunha não é um historiador e este último só é capaz de ser historiador quando consegue manter-se à distância da testemunha. É um paradoxo: necessitar de testemunhas e, ao mesmo tempo, precisar afastar-se delas. Como isso é possível? Por que é necessário? Compreender isso é tarefa para um estudo mais amplo, a ser feito ao longo de todo o curso. Por hora, é possível indicar algumas pistas que ajudarão a compreender essa relação do historiador com os documentos, tema específico da nossa disciplina. Os gregos antigos estabeleceram um vínculo entre ver e saber, pois acreditavam que para saber alguma coisa era preciso ver, de preferência a ouvir dizer. Acreditavam que os ouvidos eram menos confiáveis que os olhos. Mas nem sempre foi assim. Resta saber como ocorreu a passagem da testemunha que escuta para a testemunha que vê, como o sentido da visão ganhou importância nesse mesmo contexto e além dele, desvalorizando o sentido da audição. Isso afetou o modo como os historiadores lidam com os vestígios da experiência 3 humana e influiu, também, sobre a própria cultura ocidental e sua relação com as demais culturas. Tucídides de Atenas (460-395 a. C.), autor da Guerra do Peloponeso, fornece algumas pistas importantes. Ele viveu no mesmo século que Heródoto, mas dele procurou se afastar. Tucídides ambicionou escrever uma história distinta. Quis ir além de “dizer o que se diz”, de expor as narrativas que circulavam de boca em boca, como fez Heródoto. Sua ambição era escrever uma história verdadeira e duradoura. Curiosamente, em sua obra não encontramos a palavra história. Ao invés de apresentar aquilo que Heródoto designara como sua investigação, Tucídides opta por apresentar sua própria escrita: “Tucídides de Atenas compôs por escrito (sunegrapse) a maneira como se desenrolou a guerra entre os pelopolésios e os atenienses”. Considerando os dois recursos disponíveis ao conhecimento histórico, a vista (opsis) e o ouvido (akoe), Tucídides acreditou que apenas o primeiro poderia levar a um conhecimento claro e distinto, desde que utilizado de modo adequado. Supondo que o ouvido nãoera confiável e que não era possível confiar na memória, porque ela esquece e deforma, ele desenvolveu seu próprio método, ao qual chamou de autopsía (visão direta). O saber histórico baseado na autopsía adotaria o procedimento de ver por si mesmo. Isso só seria possível se o historiador se dedicasse a investigar seu próprio tempo, o presente. O olhar passou a ocupar o centro da escrita. Tucídides acreditava que saber historicamente é ver. E aquilo que é visto deve ser submetido a um esforço de akribeia (exatidão), de modo a transformar o ver em saber, adequando a narrativa ao real. A escrita deve estar em conformidade com os fatos. Nem mais, nem menos. As coisas ditas devem estar de acordo com suas evidências. A palavra evidência tem origem latina (evidentia). Serviu como tradução de uma palavra grega: enargeia, por sua vez deriva de enarges, que significa visível, palpável, claro. Está ligada ao sentido da visão e à ideia de fazer ver. Em Homero (928-898 a. C.), autor da Odisseia e da Ilíada, enarges é o termo usado para qualificar a aparição de um deus que se mostra “em plena luz”. Serve, portanto, para designar a visibilidade de algo que era invisível. Já Dionísio de Halicarnasso (séc. I a. C.) apresenta uma definição declarando que enargeia é um efeito estilístico que apela aos sentidos ao descrever determinadas circunstâncias de modo que o ouvinte é transformado em espectador. Implica em uma narração detalhada. A enargeia é o que garante que o objeto é tal como aparece aos olhos. Por isso está associada ao sentido da visão. E para o filósofo Aristóteles (384-322 a. C.), a visão é o sentido da evidência, porque ligado ao que pode ser visto sem dar margem à dúvida. Como exemplo, Plutarco (46 d. C.) comenta que “o melhor historiador é aquele que através de emoções das personagens compõe a sua história como uma pintura”. Tucídides esforça- se sempre na sua escrita por alcançar essa vividez, porque deseja transformar o leitor em espectador (aquele que assiste, que presencia algo) e por gerar nos leitores as mesmas sensações de espanto e de consternação sentidas pelos que assistiram diretamente aos acontecimentos. Interessante observar que, além da poesia e da filosofia, outro campo dava valor à visão e à evidência: a retórica. Mas o significado é distinto, embora ambos recorram ao sentido da visão. No domínio da retórica, considera-se que a evidência nunca é dada por aquilo que é 4 visto. É necessário fazê-la surgir, produzi-la por meio do logos (discurso). Sendo assim, não se trata da evidência percebida pelo sentido tal como na visão do filósofo, mas da evidência produzida por efeito de um discurso, que deve ser capaz de transformar o ouvinte ou o leitor em um espectador. Aquele que ouve ou lê o discurso deve ver aquilo que é apresentado como se fosse aquilo que é evidente aos olhos. E é a enargeia que permite colocar sob os olhos (em grego, pro ommaton tithenai; em latim ante oculos ponere). A enargeia mostra, torna evidente, visível, quando cria um efeito ou uma ilusão de presença. Pela potência da imagem produzida pelo discurso, o ouvinte / leitor é afetado de modo semelhante ao que teria ocorrido se ele estivesse realmente diante daquilo que é narrado. Mas qual a importância do conceito de evidência para a história? E por que trazer tais questões para um curso sobre história e documento? Porque as primeiras escolhas dos historiadores apresentam desafios e soluções que nos ajudam a compreender o que veio a ser a história como disciplina, a partir do século XIX até os dias atuais. Além disso, para apreendermos algo sobre a história enquanto conhecimento é fundamental compreender seus fundamentos, seu potencial e seus limites, aquilo que a aproxima, mas também a diferencia de outros saberes. E a relação da história com os documentos é central. A noção de evidência estando relacionada ao trabalho de tornar o ausente presente, o invisível, visível. E esta relação com o ausente, com aquilo que não existe mais, porque pertencente a outro tempo, supostamente manifesta-se nos vestígios que podem ser ouvidos e vistos. Por isso é relevante entender esse trabalho e sua capacidade de evidenciar o que de outro modo ficaria esquecido, silenciado, invisível. Capacidade adquirida pelo investigador, que mistura visão e audição de forma precária e incompleta. Tucídides procurou tornar esse trabalho mais rigoroso e preciso. Ambicionando escrever uma história verdadeira, Tucídides acreditava que esta não se resumiria a um registro daquilo que não pode ser esquecido. Também não seria apenas uma investigação sobre o que se diz. Deveria ser a investigação e a busca da verdade. E esta só seria possível por meio da visão direta (autópsia) dos acontecimentos. Ele compreendia que para épocas antigas era impossível alcançar um conhecimento perfeito devido à ausência de testemunhas capazes de fornecer relatos confiáveis. Ao mesmo tempo, aceitava que a narração dos acontecimentos que ele mesmo testemunha e sobre os quais escreve (a guerra do Peloponeso) é marcada pela diversidade discordante dos relatos: sobre os mesmos fatos, diferentes observadores fornecem informações divergentes. Como resolver esse impasse? Na ausência de instrumentos e informações, os historiadores antigos adotavam a prática de atribuir autoridade a suas narrativas de modo a produzir um efeito emocional e visual sobre seus leitores / ouvintes. Essa prática é mencionada em antigos manuais de retórica sob o termo de enargeia. Esta, por sua vez, é a alma da ekphrasis (descrição), comum entre poetas, oradores e, também, historiadores. A ekphrasis corresponde a um recurso retórico que descreve de forma vívida alguma coisa real ou imaginária, desse modo colocando-a diante dos olhos. A enargeia da descrição contribuía para aumentar a credibilidade no relato aproximando a observação do leitor / ouvinte, da observação do historiador ou da testemunha daquilo que é descrito. Portanto, a enargeia apresenta-se como um substituto da visão, capaz de produzir um conhecimento claro. Mas, para ser válida, deve passar pelo crivo da crítica dos testemunhos. 5 Desde então, o termo história passou a designar cada vez menos uma investigação e cada vez mais a narrativa do que aconteceu, a questão da evidência se deslocando do ver para o fazer ver. A preocupação em saber como dizer, como contar a história, tornou-se central. E a ideia de que “a história é uma questão de olhar e de visão”, como observou o historiador francês François Hartog, afirmou-se. Nesse sentido, busca-se ver em melhores condições, de forma abrangente e profunda, trazendo à luz o que estava invisível, evidenciando a verdade e sobretudo, fazer com que possa ser vista. Dois desafios são colocados: o primeiro é saber como é possível alcançar o passado, considerando que o método da visão direta, proposto por Tucídides, tem limites; o segundo é saber como tornar esse passado visível, por meio de um relato. Embora interessados em dar visibilidade ao invisível e manifestar apreço pela verdade, os gregos não foram muito além no questionamento sobre os problemas da investigação e da escrita da história. Os momentos mais relevantes para a colocação de questões foram aqueles marcados pelo encontro entre duas culturas e duas formas de história, momentos de crise que abriram espaço para dúvidas e comparações, impondo a necessidade de fixar posições. Não sendo o objetivo aqui percorrer todos esses momentos de crise, proponho neste ponto retornar a Michel de Certeau. Ele nos lembra que o trabalho de escrever a história começa com o gesto de separar, de reunir, de transformar em documentos certos objetos distribuídos de outra maneira. É preciso procurar elementos dispersos no plano da experiência e organizá- los de acordo com um critério proposto pelo historiador: após separar os materiais, é preciso questioná-los, problematizá-los. Este texto foi baseado nas seguintes leituras:CERTEAU, Michel de. A operação historiográfica. In: _____. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982, p. 65-119. HARTOG, François. Evidência da história: o que os historiadores veem. Belo Horizonte: Autêntica, 2011. KOSELLECK, Reinhart et al. O conceito de história. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.
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