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ESTUDOS LEGISLATIVOS AULA 2 Prof. Luiz Domingos Costa 2 CONVERSA INICIAL A organização interna dos parlamentos em perspectiva histórica Anteriormente, vimos como a lógica de coalizões está presente tanto em regimes parlamentaristas quanto em presidencialistas, bem como a limitação de uma visão normativa da divisão dos poderes Executivo e Legislativo. Assim, a agenda governamental é resultado de um processo de negociação entre líderes partidários que compõem a coalizão. Além disso, todos esses processos são influenciados pelas regras que organizam a ação destes atores. Tendo em vista aquela discussão, esta aula se concentra na organização dos parlamentos em perspectiva comparada e histórica. São dois objetivos aqui presentes. Primeiro: conceber a organização das casas legislativas como resultado de um contínuo processo histórico de racionalização e centralização. Segundo: apresentar como as mudanças das regras institucionais que regem os trabalhos legislativos foram feitas com relação ao próprio impacto sobre a atividade legislativa. TEMA 1 – TEORIAS SOBRE A ORGANIZAÇÃO DOS TRABALHOS LEGISLATIVOS O desenho institucional comum presente na maioria das casas legislativas do mundo ocidental segue, primeiro, as diretrizes básicas das cartas constitucionais e, segundo, os regimentos internos – documentos que, de fato, detalham e regem o processo legislativo. Tal característica é vista como aspecto que atribui um elevado grau de autonomia à essas instituições, dada a organização geral do Estado prevista pela Constituição. Tendo em vista os regimentos internos das principais assembleias do globo, duas regras básicas no processo de tomada de decisão são frequentes. Primeiro, a regra da maioria simples, que define como bem-sucedida a decisão aprovada pela quantidade de representantes superior à metade dos presentes (50%+1). A exemplo disso, na Câmara dos Deputados do Brasil, composta por 513 representantes, a aprovação via maioria simples corresponde a 257 votos favoráveis. Para o Senado, composto por 81 senadores, a maioria simples seria de 41 senadores. 3 Uma segunda regra complementa o princípio da maioria no caso brasileiro. Chamamos de quórum simples a necessidade da presença mínima da maioria dos representantes. Ou seja, na prática, há a necessidade da presença de ao menos 257 deputados (50%+1) para compor o quórum simples. Neste caso, o número de 129 votos (também 50%+1) seria suficiente para obter a maioria simples e a aprovação de uma determinada decisão. Vale ressaltar que este tipo de procedimento (exigência do quórum simples) normalmente ocorre na decisão de leis ordinárias, de caráter “cotidiano”. A tabela abaixo sistematiza essas maiorias para cada uma das casas do Congresso Nacional: Tabela 1 – Maiorias das casas do Congresso Nacional Câmara dos Deputados Brasil Total de cadeiras 513 (100%) Maioria absoluta 257 (50%+1) Maioria simples para um quórum mínimo 129 (1/2 da maioria absoluta+1) Senado Brasil Total de cadeiras 81 (100%) Maioria absoluta 41 (50%+1) Maioria simples para um quórum mínimo 21 (1/2 da maioria absoluta+1) Fonte: adaptado do Regimento Interno da Câmara dos Deputados e do Senado, S.d. Porém, em determinadas conjunturas ou em algumas nações específicas (por exemplo, o parlamento alemão), a tomada de decisão é dada com base em uma maioria qualificada, com quórum qualificado. Esse tipo de procedimento estabelece frações mínimas de votos necessários de acordo com o tipo de decisão a ser tomada. No Brasil, por exemplo, são três as formatos e condições que o princípio de maioria qualificada é aplicado: i) dois terços (2/3) da câmara para acusações contra o Presidente da República começar a tramitar; ii) dois quintos (2/5) para deliberar matérias de concessão de radiodifusão no país; iii) três quintos (3/5) para levar adiante um projeto de emenda constitucional. No Senado, tais mecanismos também estão presentes em condições semelhantes. Abaixo é possível visualizar esses valores em um gráfico de barras para termos ideia da proporção de cadeiras conforme a dificuldade de aprovação de cada tipo de dispositivo jurídico: 4 Figura 1 – Proporção de cadeiras para diferentes dispositivos legais - CD Fonte: adaptado do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, S.d. Apesar das regras do processo legislativo serem claras, alguns autores apresentaram teorias que problematizam tais procedimentos. O maior exemplo disso é a discussão lógica levantada pelo filósofo e matemático marquês de Condorcet e revisitada por Kenneth Arrow na década de 1950. O teorema da impossibilidade de Arrow demonstra que agregar preferências numa única escolha coletiva, tal como objetiva-se em casas legislativas, não é tarefa tão simples. Isso porque indivíduos votam de forma estratégica de acordo com o andamento do processo. Como forma de ilustrar, o problema se traduz quando um representante, diante de três possíveis escolhas, opta por não votar na sua favorita para evitar que a sua opção menos favorita vença. Isso se torna um problema a ser discutido sob as luzes da representação política, já que o ponto de vista estratégico tende a sobrepor as reais preferências dos atores em determinados contextos. O problema apresentado por Arrow foi diluído teoricamente por Gordon Tullock (1981), mais tarde. Este autor demonstra, em linhas gerais, que a concentração do poder de decidir os termos e a ordem de votação das propostas legislativas em poucos atores se torna um remédio em relação a possível paralisia decisória. Assim, a presidência do parlamento ou assembleia é uma figura chave também nas decisões, já que suas escolhas de como, quando e em que ordem proceder é impactante também no resultado do processo decisório. 129 129 129 129 206 308 342 -87 13 113 213 313 413 513 Leis ordinárias Medidas Provisórias Projetos de Resolução Decretos Legislativos dois quintos três quintos dois terços Proporção de cadeiras para diferentes dispositivos legais - CD 5 Além disso, é relevante ressaltar o papel das lideranças partidárias, em muitos casos capazes de unificar e consolidar os votos de suas legendas. TEMA 2 – O PODER DE AGENDA: CONCEITOS Duas duplas de conceitos antagônicos podem nos ajudar na compreensão do processo legislativo em relação à atuação dos atores políticos envolvidos. Primeiro, a oposição entre poder de agenda positivo e poder de agenda negativo. Entendamos por poder de agenda “o poder distribuído a determinados atores por um conjunto de regras para que esses atores possam viabilizar e estabilizar processos decisórios realizados via voto” (Santos; Borges, 2018, p. 11). Portanto, na sua forma positiva, o poder de agenda abarca um conjunto de normas que aceleram ou asseguram a votação de um projeto de lei nas casas legislativas. Utilizamos como exemplo o regimento francês, exemplo claro de capacidade positiva do governo de acelerar o processo decisório: França. Art. 44, c. 3: Se o governo o pedir, a Assembleia se pronuncia com uma única votação sobretudo ou parte do texto em discussão com as emendas propostas ou aceitas pelo governo. Na contramão, o poder de agenda negativo diz respeito aos mecanismos que permitem vetar, reavaliar ou atrasar o processo decisório. O exemplo abaixo demonstra um tipo de mecanismo negativo, presente no regimento espanhol: Espanha. Art. 133 do Regimento: As emendas ao projeto de Lei Orçamentário que impliquem a diminuição das entradas requerem o consentimento do governo para ser examinadas. O poder de agenda diz respeito aos mecanismos que atores políticos detêm para atuar no processo legislativo. Uma segunda oposição, a centralização e a descentralização das funções legislativas, se refere à concentração ou não desses mecanismos num determinadonúmero de atores. Assim, quando líderes partidários, por exemplo, concentram o poder destes mecanismos em suas mãos, observa-se um elevado grau de controle, por consequência, uma centralização do poder de agenda. Um exemplo de centralização, segundo Negretto (2013), são os próprios presidentes latino- 6 americanos, já que possuem prerrogativas de iniciar o projeto orçamentário e de elaborar decretos-leis. Ao contrário da centralização, a descentralização das funções legislativas narra a condição na qual a capacidade individual de atores individuais em influenciar a definição de uma agenda ou processo é elevada em detrimento da capacidade das lideranças partidárias. TEMA 3 – A RACIONALIZAÇÃO DOS TRABALHOS LEGISLATIVOS NO DECURSO DA HISTÓRIA Dado os conceitos de poder de agenda e centralização, muitos estudos de caso do processo legislativo identificaram uma transformação histórica da distribuição de poderes de agenda dentro dos parlamentos. Originalmente, as regras atribuíam maior espaço individual aos representantes e suas decisões (poder descentralizado). No entanto, com o tempo, os partidos políticos e suas lideranças passaram a tomar para si o protagonismo dentro dos regimentos internos. Essa centralização do poder é constatada por diversos estudos de caso de processos legislativos (Redslob, 1924; Dize-Picazo, 1996; Huber, 1996; Leston-Bandeira, 2002). De forma geral, a literatura sobre o tema associa a tendência de centralização das regras decisórias como um tipo de facilitador da relação entre as arenas Executivo-Legislativo, processo também alcunhado pelo termo “racionalização”. Nesse cenário, tal como descrevem Cheibub e Limongi (2010, p. 39) “o executivo deve ser visto como um agente da maioria, e o uso dos poderes da agenda legislativa pelo executivo deve ser visto como um instrumento que serve aos interesses da maioria”. TEMA 4 – CAUSAS DA CENTRALIZAÇÃO DOS TRABALHOS LEGISLATIVOS O que pode explicar essa tendência de as regras regimentais promoverem a centralização das funções legislativas? São três interpretações teóricas presentes em literatura: i) com o foco nos efeitos decorrentes das regras eleitorais; ii) interpretação estruturalista e socioeconômica; iii) com o foco nas dinâmicas internas dos parlamentos. Como é comum em estudos da ciência política, muitos analistas partem do sistema eleitoral para derivar características outras da política nacional. No 7 caso das regras regimentais do processo legislativo, este tipo de interpretação levanta uma constatação de natureza lógica: quando o sistema eleitoral incentiva o eleitor a votar em representantes individuais, a descentralização do legislativo predomina. Ao contrário, quando o sistema eleitoral não incentiva, a tendência é de centralização das funções legislativas nas lideranças do partido. É importante ressaltar que a presença ou não do incentivo ao voto ligado à figura do representante ou à identidade do partido é justamente a característica que difere dois modelos de sistemas eleitorais. Em linhas gerais, o sistema eleitoral proporcional de lista aberta é aquele que incentiva o voto pessoal. A lista aberta significa que o eleitor escolhe o seu representante diretamente por meio do seu número eleitoral individual. Tal aspecto, de acordo com a literatura, eleva a possibilidade de o eleitor focar nos atributos individuais dos candidatos. A relação direta eleitor-representante tende a suprimir o intermédio do partido. Deste aspecto, alguns analistas derivam o processo de descentralização dos trabalhos legislativos, já que deduz do estímulo à ação individual a manutenção de um comportamento também individual do representante no plano legislativo. Mediante esse ponto de vista, se eleitores identificam seus representantes por meio da avaliação personalista, a atuação individual dos políticos passa a ser uma questão de sobrevivência política. Um segundo modelo é o sistema eleitoral proporcional de lista fechada, visto pela literatura como aquele que induz fortalecer os vínculos entre eleitor- partido. Isso porque o termo “lista fechada” significa que o eleitor escolhe apenas qual partido político ele deseja votar para posteriormente saber quem serão seus representantes. Ou seja, a ordem/escolha dos candidatos é reservada ao partido e só é revelada após o fim do processo de votação. Assim, o estímulo está na percepção do eleitor identificar o partido mais adequado à sua representação. Ao contrário da lista aberta, a literatura defende que a lista fechada tende a fortalecer o partido e a centralizar as funções legislativas. Tendo em vista essa discussão e a literatura, quais as características presentes no caso brasileiro? No Brasil, adota-se o sistema proporcional de lista aberta. Assim, parte dos estudiosos defendem a tese de que o voto pessoal predomina num ambiente onde os partidos são enfraquecidos. A avaliação com o tempo ganhou interpretações diferentes, já que há também no país dispositivos regimentais que conferem altos poderes aos partidos e suas lideranças no interior da casa legislativa. Essa discussão será aprofundada posteriomente. 8 Uma segunda corrente teórica para explicar a centralização do poder parte das modificações macroestruturais da sociedade/economia nacional para derivar a organização e distribuição de poder entre atores políticos. Diferentemente da abordagem anterior, focada na variável sistema eleitoral, a abordagem estruturalista se concentra em grandes transformações sociais, tais como a industrialização e a urbanização, para identificar transformações dos entes estatais. Historicamente, o estado liberal da Primeira República brasileira (1889-1930) era pouco voltado à intervenção na sociedade e passou, com os grandes processos de transformação social, a desempenhar novas funções legislativas. A título de exemplo contido no caso brasileiro, é possível citar as novas leis trabalhistas da década de 1940, a organização de um novo corpo burocrático, as complexas políticas tarifárias e a expansão da infraestrutura econômica. Diante da necessidade e das crescentes demandas sociais, as casas legislativas “pareciam mais um entrave do que uma solução”. Isso porque a dificuldade de estabelecer acordos e de fechar negociações impossibilita que legisladores tomem decisões no mesmo ritmo das transformações socioeconômicas e das demandas delas derivadas. É com base neste cenário que as transformações estruturalistas explicam o processo de racionalização/centralização das relações entre Executivo e Legislativo. A terceira família teórica também assume o diagnóstico das dificuldades do processo legislativo, no entanto, se concentram num nível micro, nos efeitos das reformas regimentais. Tais estudos afirmam que a racionalização e centralização do processo decisório acontecem de forma incremental, já que a descentralização poderia contribuir para um efeito obstrucionista da casa legislativa. O risco de uma minoria bloquear o andamento dos trabalhos legislativos poderia resultar na paralisia decisória. Assim, o processo de centralização é resultado de reformas que procuram diminuir o poder de atuação individual dos atores políticos, conferindo maior capacidade às lideranças partidárias. A figura abaixo ilustra essas três teorias: a teoria calcada nas estruturas sociais é uma teoria de nível macro. A teoria do sistema eleitoral pode ser considerada uma teoria de nível meso e, por fim, a teoria sobre os regimentos internos é uma teoria de nível micro. 9 Figura 2 – Teorias para explicação da centralização política das casas legislativas Por fim, vale ressaltar que todas essas explicações possuem argumentos consistentes, cabendo ao pesquisador avaliar qual dos focos e argumentações são mais adequados ao problema de pesquisa levantado. TEMA 5 – OS EFEITOS DO NÍVELDE CENTRALIZAÇÃO DA AGENDA Dado o processo de centralização da agenda política, quais são os efeitos que derivam desse tipo de aspecto? Uma parte da literatura se dedica ao estudo de regras regimentais, assumindo o pressuposto de que estas podem condicionar a ação individual e coletiva. Ou seja, regras do processo legislativo acabam alterando o produto final do processo decisório. A exemplo disso, alguns estudos revelaram que quanto maior o poder de agenda que um governo detém, maior também a facilidade de aprovação de leis consideradas conflituosas (Doring, 1995; Hallemberg, 2004). Quais são os mecanismos que aumentam o poder de agenda? Alguns exemplos são as regras que limitam ou estimulam a atuação individual, os critérios para obter o direito de discursar em plenário, as condições de dar início num processo legislativo e o tipo de votação das matérias. Em termos históricos, a centralização do poder de agenda no partido pode também ser compreendida como resultado da urgência em acelerar o processo de tomada de decisão. Ressalta-se que até meados do século XIX prevaleceu em casas legislativas o modelo de debate e reunião de indivíduos menos conectados entre si. Com o tempo, os partidos e seus líderes passaram a consolidar suas posições, o que aumentou a velocidade do trabalho legislativo. Mudanças regimentais Sistema eleitoral Estrutura socioeconômica 10 NA PRÁTICA A par dos conceitos de poder de agenda positivo e poder de agenda negativo vistos nessa aula, procure identificar os poderes do governador estadual sobre o processo legislativo no seu estado. Para isso, procure na Constituição Estadual e no Regimento Interno da Assembleia Legislativa do seu estado quais mecanismos, tais como apresentados nesta aula, permitem ao poder executivo centralizar e agendar os trabalhos dos deputados estaduais. FINALIZANDO Ao longo desta aula diversos conceitos relevantes foram apresentados. Vimos que a decisão legislativa pode ser resultado de uma votação por maioria simples ou qualificada, que o poder de agenda pode ser negativo ou positivo e que a distribuição desse poder pode ser centralizada (em poucos líderes) ou descentralizada (individualista). Esses grandes processos não foram pensados exclusivamente para o caso brasileiro. Na verdade, foram resultado de muitos estudos e análises históricas, e narram processos que se apresentam em diversos casos nacionais. No entanto, se a aula apresenta a tendência de centralização do poder, não basta apenas constatar esse processo. Se torna relevante, também, identificar quais atores detêm o poder de agenda e como estes afetam o comportamento do Legislativo e a relação dessa esfera com o Executivo.
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