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ESTUDOS LEGISLATIVOS AULA 1 Prof. Luiz Domingos Costa 2 PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO CONVERSA INICIAL Vocês já pararam e se perguntaram como são feitas as leis que regulam a nossa vida? Todos sabem que elas são feitas pela classe política, que é eleita e representa o povo nas casas legislativas. Mas na prática, isso é muito pouco. As decisões políticas, em uma democracia representativa, obedecem a procedimentos complexos com várias etapas e que, necessariamente, passam pelo poder legislativo. Essa complexidade é o objeto dessa disciplina: iremos estudar as instituições que formulam e aprovam as leis, que são compostas por regras (formais e informais) e por atores (individuais e coletivos), que agem constantemente para que a engrenagem legiferante possa operar. Infelizmente, essa engrenagem altamente complexa é de difícil apreensão para a maior parte da população. Por outro lado, a arena em que se dá – o poder legislativo – é amplamente noticiado e seus dados são de amplo acesso público, na imprensa e nos sites oficiais. Além disso, o tema é um dos mais investigados pelos estudiosos da política, no Brasil e no mundo inteiro. Desse modo, esse material oferece um apanhado de como funciona o caminho de uma lei até a sua aprovação no Brasil. Também veremos as diferenças com relação a outros países, quando estes adotam outro sistema de governo (o parlamentarismo), ou possuem outra dinâmica entre os partidos, ou os diferentes mecanismos de obtenção das maiorias congressuais. Como dito, a área de ‘estudos legislativos’ conta com vasto acúmulo e tem uma gama significativa de aplicações: para o assessoramento parlamentar, para estabelecer estratégias de campanha política, para o monitoramento de temas de interesse de empresas, para a relação entre diferentes níveis de governo. Além disso, também é uma importante forma de conhecer detalhadamente o funcionamento da democracia contemporânea. O material aqui acompanha e complementa o livro didático disponível para os estudantes, de autoria de Paolo Ricci e Jaqueline Zulini. TEMA 1 – RELAÇÕES EXECUTIVO-LEGISLATIVO As coalizões se tornaram tema recorrente na discussão política, uma vez que governos frequentemente utilizam dessa estratégia para aumentar suas 3 bases de apoio e, consequentemente, suas chances de obter a maioria nas disputas travadas no âmbito legislativo. É esse tipo de mecanismo que a Ciência Política chama pela alcunha de “presidencialismo de coalizão”. Esta seção procura introduzir a temática apresentando como coalizões são produzidas e a relação que estas possuem com as regras que definem os procedimentos de escolhas de casas legislativas. De forma geral, duas formas diferentes de abordagens estão presentes na ampla literatura sobre coalizões. Primeiro, chama-se de literatura jurídica àquela que parte de uma visão normativa construída a partir da teoria da separação dos poderes, tal como presente na Constituição de 1988, art. 2°, que estabelece como Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Segundo essa abordagem, a função típica das casas legislativas seria a de legislar. Assim, o Poder Executivo poderia legislar, apenas em contextos excepcionais, utilizando de Medidas Provisórias ou leis delegadas. No entanto, por meio de pesquisas mais empíricas, a ciência política tem demonstrado que a proporção de leis de iniciativa do executivo é predominante em muitos países. A literatura comparada tem enfatizado que essa prevalência do Executivo na produção legal é característica de democracias representativas modernas, algo contra intuitivo no ponto de vista normativo (Duverger, 1980; Patterson, 1979). Tal cenário levanta a seguinte dúvida: qual é então o papel do Legislativo? Independente se o regime é presidencialista ou parlamentarista, as referentes Casas Legislativas são responsáveis pela aprovação de qualquer projeto de lei, mesmo aqueles originários do Poder Executivo. Além disso, é durante a tramitação legislativa que leis podem ganhar reparos e ajustes, após a apresentação do texto original. Portanto, é possível compreender o âmbito legislativo como um espaço de disputa, onde atores individuais ou coletivos (partidos) possuem a capacidade de influenciar a produção legislativa. Assim, para avaliar a capacidade decisória de um ator, dois fatores são relevantes. O primeiro, de natureza política, é a formação do governo. É muito improvável, principalmente no Brasil, que um governo obtenha, via eleições, a maioria das câmaras legislativas. Porém, para poder governar, o partido do Presidente da República se alia a outros partidos. No entanto, esse presidencialismo de coalizão tende a 4 ser mais ou menos eficaz dependendo das características dessa base de apoio (número de partidos e distância ideológica) (Tsebelis, 2009). Já o segundo fator diz respeito às regras que regem os trabalhos dos parlamentares. Ou seja, para compreender a capacidade decisória de atores políticos é fundamental considerar a existência de normas procedimentais que condicionam o processo decisório. TEMA 2 – COMO SE FORMAM GOVERNOS? Grande parte dos pesquisadores que concentraram suas análises na lógica de formação de governos parte da teoria da escolha racional para compreender a ação política dos atores envolvidos. O trabalho pioneiro de Riker (1962) apresenta a política de coalizão como um jogo estratégico entre líderes partidários. Estes, ao controlarem grupos de legisladores, além das vitórias no Congresso, visam também cargos governativos (ministérios, secretarias ou burocracia estatal). Assim, o processo de negociação entre líderes convergiria para a criação de coalizões mínimas ganhadoras, isto é, governos formados por um grupo mínimo de partidos cuja ação conjunta permitiria alcançar a maioria necessária para governar. Na ótica de atores racionais, seria a melhor forma de obter os ganhos e dividi-lo entre o menor número possível de atores. A composição das coalizões se daria em função do tamanho das bancadas parlamentares. Assim, a distribuição dos cargos governamentais aos parceiros da coalizão se dá proporcionalmente ao tamanho da bancada de cada partido no parlamento (Gamson, 1961). Posteriormente, trabalhos como os de Leiserson (1966) apontam que não é apenas uma questão de tamanho das bancadas, mas acrescentaram a variável ideológica nas análises. Segundo esse autor, coalizões se formarão em torno do menor diâmetro ideológico, já que se aliar a partidos muito distantes nesse quesito eleva os custos diante do eleitorado e da tomada de decisões. Na mesma direção, Axelrod (1970) demonstra que partidos não competem apenas para cargos (office), mas também para influenciar a formulação de políticas públicas (policy), tornando mais plausível compor coalizões com menor conflito ideológico. De forma geral, os analistas de formação de governos elaboram tipologias baseadas em dois fatores: i) a presença de apenas um partido ou de uma coalizão; ii) a composição da maioria do Congresso (50%+1) ou de 5 apenas uma parcela minoritária da casa. Destes aspectos, quatro variações (tipos de governo) estão presentes em diferentes democracias no mundo: governo minoritário, governos de coalizão minoritária, governo majoritário de um partido e governo de coalizão majoritária. Para ilustrar esses diferentes arranjos, observe os diagramas abaixo. Em uma assembleia com dez parlamentares, cada quadrado representa um deputado e cada cor representa um partido. Temos no arranjo (A), no canto superior esquerdo, o partido azul (seis parlamentares) e o partido vermelho (quatro parlamentares), numa situação típica de bipartidarismo. Nesse caso, o partido azul tem maioria suficiente para governar sozinho e montar um governo majoritário de umpartido (governo unipartidário), caso típico do Reino Unido após a Segunda Guerra Mundial. Os demais arranjos se referem a dinâmicas com mais de dois partidos parlamentares. No arranjo (B), temos o partido azul com quatro parlamentares, e os demais partidos com dois deputados cada (o verde, o roxo e o vermelho). O retângulo preto significa a bancada governista. Nesse caso, vemos um governo minoritário e que, portanto, não alcança metade+1 das cadeiras, não tem maioria, ou governo minoritário que pode ser de um só partido, casos da Suécia e Noruega, ou uma coalizão minoritária, casos da Finlândia e Itália. No arranjo (C), temos a mesma distribuição das cores da situação anterior, mas ali o retângulo indica uma aliança entre os partidos azul e verde, abarcando seis deputados e sendo, portanto, a situação de maioria mínima vencedora, caso da Alemanha e Áustria. Por último, no arranjo (D), com a mesma configuração de cores dos arranjos (B) e (C), mais um retângulo que indica uma coalizão entre os partidos azul, verde e roxo, produzindo uma ampla maioria ou uma coalizão sobredimensionada, bem acima do mínimo necessário para vencer as votações, caso do Brasil sob a presidência de FHC e Lula. 6 Quadro 1 - Modelos hipotéticos de formação de governos com diferentes composições partidárias Arranjo A: governo majoritário de um partido ou governo unipartidário. Arranjo B: governo minoritário (menos de 50% das cadeiras). Pode ocorrer com apenas um partido ou uma coalizão minoritária. Arranjo C: governo de coalizão majoritária (coalizão mínimas ganhadoras). Arranjo D: governo de coalizão majoritária (coalizão sobredimensionada). Fonte: o autor. Sabemos, no entanto, que regimes parlamentaristas se diferenciam de presidencialistas. Essas diferenças se traduzem em lógicas distintas de formação de governo? A literatura contemporânea tem diluído essas diferenças no que diz respeito especificamente à esta questão. No parlamentarismo, a figura do chefe de governo é normalmente representada pela figura do primeiro-ministro. Este procura montar sua base de apoio legislativo negociando cargos entre os partidos representados no parlamento, lógica semelhante da formação de governos em regimes presidencialistas. Estudos demonstram que na América Latina 76,2% dos governos presidenciais são formados por meio de coalizões. O caso do Brasil, do Chile, do Panamá e do Uruguai se sobressai, já que em toda a história democrática se caracterizaram por formar apenas governos de coalizão. Este é, portanto, uma característica dos governos brasileiros: a presença de coalizões que formam uma base de apoio congressual à ação do Presidente da República, o chefe de governo. 7 TEMA 3 – O PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO DO BRASIL Desde 1988, com o retorno das eleições, o Brasil nunca teve um governo majoritário unipartidário, e apenas uma vez na história o partido do presidente teve marca superior aos 19% das cadeiras da Câmara dos Deputados, durante o Governo de José Sarney. Por outro lado, as coalizões presidenciais garantiram a quase todos os presidentes a maioria absoluta dos votos no plenário. A exceção fica com o governo de Fernando Collor e em breves momentos do primeiro mandato de Lula e dos últimos meses do segundo período de Fernando Henrique Cardoso. Tendo em vista essas características, as relações Executivo-Legislativo podem ser interpretadas não como contraposição entre dois poderes (Legislativo e Executivo), cada um agindo de forma independente, mas a partir da relação entre presidente e sua base legislativa. Ou seja, partidos tendem a agir de acordo com sua posição em relação ao governo: ou fazem parte dele, ou se opõem. Do ponto de vista de estudos do legislativo, isso significa que a principal dimensão para compreender a produção legislativa é a relação governo versus oposição. TEMA 4 – ABRANCHES E SUA PREOCUPAÇÃO O termo presidencialismo de coalizão foi cunhado pelo cientista político Sergio Abranches (1988). O trabalho escrito em pleno processo de redemocratização analisava a experiência democrática brasileira que se estendeu entre os anos de 1946-1964. Segundo o autor, as grandes coalizões dos governos desse período eram resultado da necessidade de chegar a um acordo perante um quadro partidário fragmentado, refém de demandas regionais e marcado pela heterogeneidade das demandas sociais, econômicas e políticas. A análise de Abranches trazia uma ressalva para o novo período democrático: o constante enfraquecimento da autoridade executiva e os conflitos entre o Legislativo e o Executivo. Para o autor, foi devido à ausência de mecanismos capazes de amenizar conflitos entre membros da coalizão que a primeira experiência democrática apresentou aos governos da época problemas de governabilidade, abrindo caminho para o golpe militar de 1964. Como o desenho constitucional de 1988 repetia aquele presente da Carta de 8 1946, adotando o presidencialismo, sistema eleitoral proporcional de lista aberta, multipartidarismo, federalismo, havia preocupação se a nova democracia nasceria com as mesmas dificuldades de governabilidade observadas na década de 1960. TEMA 5 – AS PERFORMANCES LEGISLATIVAS DO PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO BRASILEIRO: A DEMOCRACIA DE 1946 VERSUS A DEMOCRACIA DE 1988 Apesar do problema levantado por Abranches, no que diz respeito ao arranjo político institucional, existem diferenças fundamentais entre o período de 1946-1964 e a constituição de 1988. Se no modelo de 1946 a crítica era a dependência do Executivo em relação ao Legislativo, o mais recente período democrático traz uma série de instrumentos formais que garantem ao Presidente da República e à sua coalizão um controle mais efetivo sobre o processo legislativo. Tais instrumentos foram consignados na Constituição de 1988, nas funções legislativas do Executivo, bem como no Regimento Interno da Câmara dos Deputados, e o poder conferido às instâncias decisórias, à Mesa Diretora e ao Colégio de Líderes. Esses instrumentos e as diferenças entre as constituições de 1946 e 1988 estão sistematizadas no quadro abaixo: Quadro 2 - Poderes legislativos do Executivo e competências dos líderes partidários na Câmara dos Deputados (1946 e 1988) Poderes legislativos do Executivo Constituição 1946 Constituição 1988 - Iniciativas exclusivas de caráter administrativo - Iniciativa exclusiva de caráter orçamentário - Iniciativa exclusiva de caráter tributário - Emendas constitucionais Sim Não Não Não Sim Sim Sim Sim - Editar Medidas Provisórias Não Sim - Editar leis delegadas (o Congresso Nacional delega competências legislativas ao presidente) Não Sim - Solicitar urgência dos projetos de lei Não Sim - Impor restrições a emendas orçamentárias Não Sim Direitos dos líderes de partido 1946-1964 Pós-1989 Determinar a agenda de plenário Não Sim Representar todos os membros do partido no legislativo Não Sim Restringir emendas e votações em separado Não Sim Retirar as leis das comissões permanentes por meio de pedido de urgência Restrito Amplo Apontar e substituir membros das comissões permanentes Sim Sim 9 Apontar e substituir membros das comissões mistas que analisam Medidas Provisórias Não Sim Apontar e substituir membros das comissões mistas que analisam o orçamento Não Sim Fonte: Ricci e Zulini, s/d (Cap. 1). Por meio da comparação acima podemos observar como há inúmeras diferenças de atribuições ao presidente entre as duas constituições. Além disso, os líderes partidários estão muito mais municiados de capacidade de centralizar os trabalhos no interior do Poder Legislativo, contribuindo para uma coordenação entre as instâncias políticas. Tais diferenças produziram performances governamentais significativamente diferentes. No período democrático recente,os presidentes passaram a deter muito mais poder de agenda e, consequentemente, dominar o processo decisório nacional. Esses dados ficam evidentes na tabela a seguir. Nela é possível perceber que no período entre 1946-1964 os presidentes formaram coalizões sobredimensionadas, obtendo 77% das cadeiras em sua base de apoio, em média. Entretanto, como não dispunham de mecanismos institucionais capazes de centralizar os trabalhos legislativos e dominar a agenda, sua taxa de sucesso é de apenas 29%. No período recente, de 1988 até 2007, esses dados mudam significativamente. Aqui a coalizão governamental tem 58% de cadeiras (menor que a da democracia de 1946), mas a taxa de sucesso do governo, isto é, a quantidade de suas leis que é aprovada na Câmara, é de 75%. 10 Quadro 3 - Legislação Ordinária. Produção Legislativa por governo (1949-1964 e 1988-2007) Fonte: Figueiredo e Limongi, 2007. Regras importam porque são capazes de constranger a ação de partidos e de políticos. Assim, a Constituição de 1988, ao trazer maiores mecanismos de constrangimentos institucionais sobre a ação individual dos legisladores e maior capacidade de centralização decisória aos líderes partidários, trouxe consigo índices de coesão partidária muito superiores aos experimentados pelos partidos de 1946. Isso quer dizer que “ao invés da contraposição entre “agenda do Executivo” versus “agenda do Legislativo”, ou “política do presidente” versus “política do Congresso”, o estudo do comportamento da coalizão de governo revela que faz mais sentido falar em agenda da maioria legislativa ou política da coalizão governista”. NA PRÁTICA Por meio de pesquisa em material jornalístico da internet, procure observar como se dá a montagem de governo em democracias bipartidárias (Estados Unidos e Reino Unido, por exemplo) em comparação com países multipartidários (Brasil ou a Alemanha, por exemplo). Reflita sobre como é possível obter maiorias em cada caso, se ocorre o recurso a coalizões partidárias, se essa coalizão envolve a distribuição de cargos do poder 11 executivo aos partidos aliados, se os governos resultantes são unipartidários ou contam com mais de um partido e, finalmente, como chefes de governo convivem com o poder legislativo para conseguir as maiorias necessárias para governar. FINALIZANDO A aula apresentou três grandes discussões. Primeiro, a necessidade de superar a contraposição entre Executivo e Legislativo como arenas independentes, especialmente quando tratamos os problemas de formação de governo e do processo de criação de leis. No caso brasileiro, governos necessitam de coalizões, construídas principalmente a partir da distribuição de cargos, para estabelecer uma maioria no Legislativo. O resultado disso é a criação de uma agenda política governista. Esse tipo de resultado empírico possui respaldo teórico nas teorias racionalistas, a segunda discussão aqui presente. Ao analisarmos a formação de governos com base na barganha entre atores políticos, fica evidente a necessidade de uma visão estratégica por parte do governo para o estabelecimento de uma base política sólida. A atuação partidária ou individual do ator político possui relações com elementos propriamente políticos, tal como a ideologia, e com as regras formais que regem o processo decisório. Por fim, a aula apresentou como as diferenças entre o sistema presidencialista e parlamentarista são pouco relevantes para discussão sobre formação de governos. Isso porque a própria lógica das barganhas se reproduz para as respectivas figuras de chefe de governo. Da mesma forma que o presidente brasileiro necessita negociar posições e ações com os partidos de sua base aliada, a figura do primeiro-ministro também necessita desse tipo de instrumento para se aliar com seus pares parlamentares à procura de apoio político.
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