Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Universidade Federal do Paraná – UFPR Setor de Ciências Jurídicas Curso de Direito – Habilitação em Direito do Estado Metodologia do Trabalho Científico em Direito – DV437 Professora Doutora Angela Couto Machado Fonseca Gabriel Alves Fonseca – GRR20177111 Primeiro Ano Diurno – Turma A Questionário de Metodologia 1) Com relação ao pensamento de Descartes, explique: a) Como o autor argumenta para sustentar a primeira certeza (cogito) como evidência; Ao comentar sobre o caminho adotado pelo filósofo René Descartes (1596- 1650) na elaboração de seu argumento do cogito, César Augusto Battisti comenta: Na Primeira Meditação, por meio dos três graus da dúvida, temos provisoriamente um resultado cético. Na Segunda, nos damos conta de que, por mais que duvidemos de tudo, é certo que duvidamos. E, como duvidar é um modo de pensar, é absolutamente certo que pensamos. Finalmente, como pensar é um ato, é preciso que haja um sujeito desse ato: o sujeito que pensa existe. Mais uma coisa: quando o sujeito pensa (dúvida), ele necessariamente sabe que pensa; e, ao saber que pensa, se dá conta de que é ele que pensa, e não outro ser. Disso nasce a noção de “eu” e a de consciência: quando penso, tenho consciência imediata de que sou eu que penso. E, assim, pelo ato de pensar, o sujeito se denuncia a si mesmo (daí nasce o tema moderno da subjetividade). Mas o que posso saber, além disso, sobre mim mesmo? Ora, apenas que penso: sou uma coisa que pensa e que pensa de vários modos. Mesmo o sentir, embora o que eu sinta possa ser uma ilusão, por se denunciar à consciência (por ser uma forma de pensar), é indubitável: não o que sinto, mas o sentir em si. E, assim, não há nada mais imediato que o conhecimento de mim mesmo e de meus atos. (BATTISTI, 2009, páginas 147-148) Nesse sentido, de acordo com Danilo Marcondes de Souza Filho (2001, página 167), “se até mesmo para duvidar é necessário pensar, a existência do pensamento, do ser pensante, não está sujeita à dúvida: é a mais básica, mais originária do que esta, é um pressuposto dela”. Desse modo, conforme apontam Maria Lúcia de Arruda Aranha e Maria Helena Pires Martins (2009, página 170), “Descartes só interrompe a cadeia de dúvidas diante do seu próprio ser que duvida”. Isso pode ser elucidado pelas palavras do próprio filósofo: Mas eu me persuadi de que nada existia no mundo, que não havia nenhum céu, nenhuma terra, espíritos alguns, nem corpos alguns; não me persuadi também, portanto, de que eu não existia? Certamente não, eu existia sem dúvida, se é que eu me persuadi, ou, apenas, pensei alguma coisa. [...] De sorte que, após ter pensado bastante nisto e de ter examinado cuidadosamente todas as coisas, cumpre enfim concluir e ter por constante que esta proposição, eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeira todas as vezes que a enuncio ou que a concebo em meu espírito. (DESCARTES, 1988, página 24) Nesse sentido, de acordo com Celito Meier (2014, página 257), “uma coisa que pensa, existe, pelo menos enquanto pensa. Descartes encontra, assim, a certeza primeira”. Assim, o filósofo argumenta para sustentar a primeira certeza (cogito) como evidência, pois, por mais que o conteúdo do pensamento possa ser enganoso, o exercício do pensamento é verídico e feito pelo próprio sujeito. Desse modo, quanto mais o sujeito se engana, mais ele pensa e, consequentemente, reforça sua existência enquanto um “eu” que pensa. Esse “eu” é puro pensamento, uma res cogitans (um ser pensante). Portanto, é como se dissesse: “existo enquanto penso”. Com essa primeira intuição, Descartes julga estar diante de uma ideia clara e distinta, a partir da qual seria reconstruído todo o saber, em seu projeto de estabelecer uma nova ciência. De acordo com as palavras do próprio filósofo: enquanto queria pensar assim que tudo era falso, era necessariamente preciso que eu, que o pensava, fosse alguma coisa. E, notando que esta verdade – penso, logo existo – era tão firme e tão certa que todas as mais extravagantes suposições dos cépticos não eram capazes de a abalar, julguei que podia admiti-la sem escrúpulo como o primeiro princípio da filosofia que buscava. (DESCARTES, 1996, página 38) b) O papel da primeira certeza em sua nova ciência. No que concerne ao projeto filosófico cartesiano e aos desdobramentos do cogito, Aranha e Martins comentam: No percurso realizado por Descartes, nota-se uma incontestável valorização da razão, do entendimento, do intelecto. Como consequência, acentua-se o caráter absoluto e universal da razão, que, partindo do cogito, e só com suas próprias forças, descobre todas as verdades possíveis. Daí a importância de um método de pensamento, como garantia de que as imagens mentais – ou representações da razão – correspondam aos objetos a que se referem, que por sua vez são exteriores à própria razão. Outra consequência do cogito é o dualismo psicofísico (ou dicotomia corpo-consciência), segundo o qual o ser humano é um ser duplo, composto de substância pensante e substância extensa. [...] De fato, o corpo é uma realidade física e fisiológica – e, [...] por isso, está sujeito às leis deterministas da natureza. Por outro lado, as principais atividades da mente, como recordar, raciocinar, conhecer e querer, não têm extensão no espaço nem localização. Nesse sentido, não se submetem às leis físicas, antes são a ocasião da expressão da liberdade. Estabelecem-se, portanto, dois domínios diferentes: o corpo, objeto de estudo da ciência, e a mente, objeto apenas de reflexão filosófica. (ARANHA & MARTINS, 2009, página 171) Em meio a esse percurso intelectual, de acordo com Meier (2014, página 258), “o objetivo de Descartes é encontrar um fundamento seguro para o saber”. Tal intento é assim exposto por Battisti: Descartes se pergunta pela base firme e indestrutível das ciências, pelos fundamentos do conhecimento. E, ao se perguntar de forma tão radical, ele não pode simplesmente apontá-los nem procurá-los diretamente. Por isso, procede por via negativa: toda via positiva pode chegar a determinados resultados, mas dificilmente poderá garantir que tais resultados sejam os únicos possíveis e que sejam definitivos. A via negativa tem essa vantagem, embora corra o risco de trazer uma resposta cética e absolutamente destrutiva. O procedimento da dúvida terá essa função no sistema filosófico de Descartes. Resultante de uma decisão, ela é pensada como estratégia (método), cujos riscos ele aceita correr; e, como tal, ela precisa ser cada vez mais radical, universal e exagerada, diferentemente da dúvida que naturalmente nos ocorre. (BATTISTI, 2009, página 147) Após se ver mergulhado em dúvidas, nasce a intuição fundamental de Descartes: percebe-se duvidando, com certeza e clareza. E, ao duvidar, encontra-se pensando. Nesse sentido, o argumento do cogito estabelece uma primeira certeza, de modo que seja possível a Descartes (1988, página 17) “estabelecer algo de firme e de constante nas ciências”. Logo, conforme aponta Filho (2001, página 164), “o objetivo principal do argumento do cogito é estabelecer os fundamentos do conhecimento [...] através da refutação do ceticismo”. Assim, a primeira certeza do “eu sou, eu existo” enquanto consciência pensante ocupa um papel central no projeto cartesiano de nova ciência, na medida em que ela é fundante ao permitir o estabelecimento de um ponto seguro capaz de levar a outras certezas. 2) Com relação ao pensamento de Kant, explique: a) Qual o campo de batalha que afirma existir na filosofia e seu procedimento para levar a filosofia ao caminho seguro de uma ciência; No tempo do filósofo Immanuel Kant (1724-1804), a ciência newtoniana já estava consolidada e as questões relativas ao conhecimento ainda giravam em torno da controvérsia entre racionalistas e empiristas. Em tal contexto, Kant estava atento à confusão conceitual a respeito da naturezado conhecimento humano e debruçou-se sobre o assunto em sua obra Crítica da razão pura, a qual visa, como elucida Filho (2001, página 209), “investigar as condições de possibilidade do conhecimento, ou seja, o modo pelo qual, na experiência de conhecimento, sujeito e objeto se relacionam e em que condições esta relação pode ser considerada legítima”. Sua filosofia é chamada criticismo porque, diante da investigação que tem como escopo o verdadeiro valor dos conhecimentos humanos e o que é conhecimento, Kant coloca a razão em um tribunal para julgar o que pode ser conhecido legitimamente e que tipo de conhecimento não tem fundamento, se valendo de uma postura autocrítica que procura, conforme aponta Vinicius Berlendis de Figueiredo (2009, página 402), “instituir o que está a nosso alcance conhecer”. Acerca dessas ponderações, Otfried Höffe disserta: É na autocrítica que a razão manifesta o seu poder; mas este poder serve para sua autolimitação. Na primeira parte da Crítica, na Estética e na Analítica, encontra-se o código que contém um primeiro juízo sobre a disputa em torno da metafísica: em contraposição ao empirismo existem fundamentos independentes da experiência, e por isso um conhecimento rigorosamente universal e necessário; porém este conhecimento se limita, contrariamente ao racionalismo, ao âmbito da experiência possível. Logo, na segunda parte, na Dialética, o processo é levado a cabo formalmente e decidido de forma definitiva. Com relação a objetos além de toda a experiência, a razão se mostra sem consistência. Assim que ela se move somente no âmbito de seus próprios conceitos, incorre em contradições. Kant recusa tanto o empirismo como o racionalismo; existem ideias puras da razão – mas meramente como princípios regulativos a serviço da experiência. (HÖFFE, 2005, páginas 38-39) Tais considerações são complementadas por Aranha e Martins: Segundo o próprio Kant, a leitura da obra de Hume o despertou do “sono dogmático” em que estavam mergulhados os filósofos que não se questionavam se as ideias da razão correspondem mesmo à realidade. Pretendia superar a dicotomia racionalismo-empirismo: condenou os empiristas (tudo que conhecemos vem dos sentidos) e não concordava com os racionalistas (tudo quanto pensamos vem de nós mesmos). Para ele, o conhecimento deve constar de juízos universais, da mesma maneira que deriva da experiência sensível. (ARANHA & MARTINS, 2009, páginas 180- 181) Mediante essa lógica, Kant estabelece que o conhecimento seguro deriva da experiência e caminha para os juízos universais, ou seja, ele faz, de acordo com Meier (2014, página 266), “uma síntese entre o empirismo e o racionalismo, articulando essas duas visões que eram vistas como antagônicas, contrárias, irreconciliáveis”. Nas palavras do próprio Kant (2001, página 62), “se, porém, todo o conhecimento se inicia com a experiência, isso não prova que todo ele derive da experiência”. Salvaguardas tais ponderações, é pertinente destacar, por fim, que ao afirmar existir um campo de batalha na filosofia, a saber, entre racionalistas (abarcando os dogmáticos) e empiristas (incluindo os céticos), Kant se propõe a levar a filosofia ao caminho seguro de uma ciência, procedendo, a fim de cumprir tal propósito, de maneira a colocar a razão sob o escopo de um autoexame crítico, capaz de identificar os limites da própria atuação racional, os quais pressupõem a possibilidade de investigação de um conhecimento cuja cientificidade advenha tanto do raciocínio intelectual quanto da experiência sensível. b) O que é a filosofia transcendental e como ela explica o funcionamento dos dois troncos do conhecimento. Para superar a contradição entre racionalistas e empiristas, Kant explica que o conhecimento é constituído de algo que o sujeito recebe de fora, da experiência (a posteriori, do latim posterus, posterioris, “posterior”) e algo que já existe nele mesmo (a priori, do latim prior, “precedente”, “anterior”) e, portanto, anterior a qualquer experiência. Mediante tais ponderações, é pertinente destacar que o que vem de fora é a matéria do conhecimento, que são as próprias coisas: nisso concorda com os empiristas. Por outro lado, o que vem do sujeito é a forma do conhecimento: com os racionalistas, admite que a razão não é uma folha em branco. Dadas essas considerações, qual é então a diferença entre Kant e os filósofos que o antecedem? É o fato de que matéria e forma atuam ao mesmo tempo. Logo, para conhecer as coisas, o sujeito precisa da experiência sensível (matéria); mas essa experiência não será nada se não for organizada por formas da sensibilidade e do entendimento, que, por sua vez, são a priori e condição da própria experiência. Nesse sentido, a sensibilidade é a faculdade receptiva, pela qual o sujeito obtém as representações exteriores, enquanto o entendimento é a faculdade de pensar ou produzir conceitos. Em cada uma dessas faculdades, Kant identifica formas a priori. Nessa análise, as formas a priori da sensibilidade ou intuições puras são o espaço e o tempo. Ou seja, o espaço e o tempo não existem como realidade externa, são antes formas a priori que o sujeito precisa para organizar as coisas. Dizendo de outra maneira, fora do sujeito estão as coisas, mas quando ele as percebe em cima, embaixo, do lado ou então antes, depois, durante é porque ele tem a intuição apriorística do espaço e do tempo, caso contrário ele não poderia percebê-las. Ao comentar sobre esse tronco do conhecimento, Höffe explana: A relação imediata do conhecimento com os objetos e o ponto de referência de todo pensamento é a intuição, a qual percebe um particular imediatamente. A intuição supõe um objeto dado. A única possibilidade mediante a qual nos podem ser dados objetos reside na sensibilidade receptiva, ou seja, na capacidade da mente de ser afetada por objetos; é por isso que podemos ver, ouvir, cheirar, saborear e tocar. [...] Somente a sensibilidade receptiva possibilita ao homem as intuições. Uma intuição ativa, espontânea e intelectual, ou seja, uma visão criadora, é algo impossível para o homem. A ação do objeto sobre a mente chama-se sensação; ela constitui a matéria da sensibilidade. Devido à falta do intelecto formador, o objeto da sensibilidade é o indeterminado, contudo determinável; ele representa o material do conhecimento. (HÖFFE, 2005, páginas 66-67) Por outro lado, as formas a priori do entendimento são as categorias. Em meio a tal ponderação, é importante atentar que como o entendimento é a faculdade de julgar, de unificar as múltiplas impressões dos sentidos, as categorias funcionam como conceitos puros, que não têm conteúdo, por serem formas a priori, condição do conhecimento. Nesse sentido, Kant identifica doze categorias, as quais, de acordo com Meier (2014, página 267), “são representadas nas dimensões que se referem a quantidade, qualidade, relação e modalidade”. Por exemplo, quando o sujeito observa a natureza e afirma que uma coisa é indivisível, ou uma coisa é falsa, ou tal coisa é causa de outra, ou tal coisa existe, há, de um lado, coisas que são percebidas pelos sentidos, mas, de outro, algo lhes escapa, isto é, respectivamente as categorias de unidade (quantidade), de negação (qualidade), de causalidade (relação), de existência (modalidade). Essas categorias não vêm da experiência, mas são postas pelo próprio sujeito que conhece. Assim, com sua teoria, Kant garante a possibilidade do conhecimento científico como universal e necessário. No entanto, até aqui trata-se do conhecimento fenomênico, isto é, restrito ao conhecimento do fenômeno (do grego phainoménon, “aparência”, o que “aparece” para o sujeito), que é percebido inicialmente pelos sentidos e pelo entendimento. Porém, seria possível conhecer a coisa em si, o noumenon (do grego, “o que é pensado”; particípio passado de noein, “pensar”; Kant usa o termo paradesignar “a coisa em si”, em oposição a “fenômeno”)? Ademais, o que seriam as coisas em si? São as ideias da razão para as quais a experiência não dá ao sujeito o conteúdo necessário. Nesse sentido, o noumenon pode ser pensado, mas não pode ser conhecido efetivamente, porque, como foi visto, o conhecimento humano limita-se ao horizonte da experiência. Entretanto, o ser humano deseja ir além da experiência e nisso consiste o trabalho da razão, que investiga as ideias de alma, liberdade e Deus, justamente os objetos da metafísica. Ao examinar cada uma dessas ideias, Kant se depara com uma antinomia (do grego anti-nomia, “contradição das leis”, “conflito de leis”) da razão pura, isto é, com um argumento contraditório que se opõe em tese e antítese. Mediante tais observações, é pertinente atentar que Kant conclui, portanto, não ser possível conhecer as coisas tais como são em si. Decorre dessa constatação a impossibilidade dos conhecimentos metafísicos. Logo, o sujeito deve se abster de afirmar ou negar qualquer coisa a respeito dessas realidades. Trata-se de um agnosticismo (do grego a, “não”, e gnosis, “conhecimento”. Para um agnóstico a razão é incapaz de afirmar ou negar a existência do mundo, da alma e de Deus. Com frequência o termo ficou reduzido à ideia de Deus e, nesse caso, distingue-se do ateísmo, que nega a existência de Deus). A esse respeito, Figueiredo diz: A resposta negativa de Kant representa o fim da metafísica tradicional: ao contrário do que haviam pretendido os filósofos dogmáticos, não há como fornecer, com base apenas na razão, um conhecimento de matiz teórico sobre a alma, a liberdade e Deus. Por outro lado, isso não significa que a razão não possa pensar tais “objetos”. Ao contrário, Kant, especialmente na Crítica da razão prática, mostra que esses temas são imprescindíveis para nossa razão em sua dimensão prática e moral. (FIGUEIREDO, 2009, página 402) Salvaguardadas tais ponderações, é importante destacar que o pensamento kantiano é conhecido como idealismo transcendental ou filosofia transcendental, que é, nas palavras do próprio Kant (2001, página 79), “todo o conhecimento que em geral se ocupa menos dos objetos, que do nosso modo de os conhecer, na medida em que este deve ser possível a priori”. Mediante tal perspectiva, a expressão transcendental em Kant significa aquilo que dá a condição de possibilidade da experiência, ou seja, o conhecimento transcendental é o que trata dos conceitos a priori dos objetos, e não dos objetos como tal. Esse sentido é reforçado por Filho: É na Crítica da razão pura que Kant formula sua concepção de uma filosofia transcendental, isto é, uma investigação que [...] contém a teoria do conhecimento de Kant, ou seja, sua análise das condições de possibilidade do conhecimento, por meio da qual se pode delimitar a ciência da pseudociência, distinguindo o uso cognitivo da razão, que efetivamente produz conhecimento do real, de seu uso meramente especulativo, em que ao pensamento não correspondem objetos. (FILHO, 2001, página 208) Nesse âmbito, o próprio Kant descreveu sua filosofia crítica como uma “revolução copernicana”: tal como Copérnico levantara a hipótese de não ser o Sol que gira em torno da Terra, mas o contrário, também Kant afirma que se a metafísica anterior admitia que o conhecimento do sujeito devia regular-se pelos objetos, agora admite-se que os objetos são regulados pelo conhecimento do sujeito. Portanto, conforme apontam Aranha e Martins (2009, página 183), “são os objetos que se adaptam ao conhecimento, e não o contrário”. Dadas tais considerações, é pertinente ressaltar, por fim, que a filosofia transcendental é a investigação que se ocupa de compreender as condições de possibilidade do conhecimento, que são dadas a priori (isto é, independente e anterior a qualquer experiência) e, nesse sentido, é capaz de explicar o funcionamento dos dois troncos do conhecimento, a saber, a sensibilidade (que recebe e adapta os dados empíricos advindos do mundo mediante as intuições a priori de espaço e de tempo) e o entendimento (que, por meio de categorias racionais, determina os dados da sensibilidade e os torna compreensíveis mediante e elaboração de conceitos e regras a priori), na medida em que o conhecimento científico (também chamado de apodítico, ao passo de que é necessário e universal) tanto se restringe ao campo da experiência possível como possui fundamento independente da experiência. 3) Cite e explique três características da ciência positivista. A Revolução Industrial mudou radicalmente o modo de vida na Europa. E os entusiasmos se cristalizaram em torno da ideia de progresso humano e social irrefreável, uma vez que, de agora em diante, possuíam os instrumentos para a solução de todos os problemas. Tais instrumentos eram, na concepção da época, a ciência e suas aplicações na indústria, bem como o livre intercâmbio e a educação. Assim, a era do positivismo é época perpassada por um otimismo geral, que brota da certeza de progresso ilimitado, rumo a condições de bem-estar generalizado em uma sociedade pacífica e prenhe de solidariedade humana. Dessa forma, o processo de industrialização e o desenvolvimento da ciência e da tecnologia constituem os pilares do meio sociocultural que o positivismo exalta e favorece. Nesse contexto, o positivismo reivindica o primado da ciência, afirmando que o sujeito conhece somente aquilo que as ciências lhe dão a conhecer, pois o único método de conhecimento é o das ciências naturais, capazes de captar e descrever a verdade do objeto. Por isso, de acordo com Meier (2014, página 320), “o positivismo combate toda forma de idealismo, uma vez que a referência deve ser o fato físico, empírico, positivo e não as especulações metafísicas”. Essa perspectiva cientificista é explicada por Aranha e Martins: A exaltação diante dos novos saberes e formas de poder levou à concepção do cientificismo, que se caracteriza pela valorização da ciência. Ela se tornou o único conhecimento possível, e o método das ciências da natureza passou a ser o único válido e que deveria, portanto, ser estendido a todos os campos de conhecimento e de atividades humanas. (ARANHA & MARTINS, 2009, página 186) Ademais, conforme aponta Hilton Japiassu (1981, página 7), “para os positivistas, só existe na natureza a ordem que o ser racional for capaz de dar-lhe”. Eles se limitam a reconhecer certas regularidades nos fenômenos naturais. A seu ver, o papel do cientista consiste em inventar leis para descrever tais fenômenos do modo o mais fiel possível. Chegam mesmo a admitir a possibilidade de várias teorias susceptíveis de explicar um mesmo fenômeno. Neste caso, compete ao cientista escolher uma ou outra teoria em função de sua maior simplicidade, de sua maior capacidade explicativa ou de seu maior caráter operatório. Diante de tais pressupostos, é pertinente ponderar como, de acordo com Alberto Oscar Cupani (1985, página 13), “a teoria da ciência [...] que consagra a ciência como única forma válida de conhecimento não é de fácil caracterização”. Entretanto, é possível, ainda de que maneira breve, mas oportuna, elencar alguns de seus elementos principais. Tendo esse esforço sob propósito, as linhas subsequentes se dedicarão, na medida de suas possibilidades, a citar e a explicar três das características da ciência positivista. Na primeira dessas características, pode ser mencionado o pressuposto segundo o qual a ciência é o único tipo de conhecimento válido. Fora da ciência, pretendem constituir formas de conhecimento da realidade as diversas religiões, as ideologias, os sistemas filosóficos e as crenças vulgares. Embora não esteja excluída a possibilidade de haver em todas essas criações humanas afirmações verdadeiras (vale dizer, que impliquem efetivo conhecimento), a maior parte dos pretensos conhecimentos da religião,das ideologias e filosofias e do pensamento vulgar carece, porém, de algumas valiosas propriedades do conhecimento científico, aquelas que o tornam válido (isto é, confiável), tais como: o respeito aos fatos, a possibilidade de verificação, a objetividade e a neutralidade. Já a segunda das características propostas, por sua vez, diz respeito à proposição segundo a qual a ciência é conhecimento objetivo. A ciência é objetiva no sentido em que as suas afirmações são intersubjetivamente controláveis mediante procedimentos predefinidos. Qualquer que seja o campo específico de uma pesquisa, o que um cientista enuncia como conhecimento adquirido, ou formula como problema a ser investigado, é algo que pode ser compreendido e, por conseguinte, confirmado ou refutado por qualquer pessoa que possa a formação específica requerida. Desta maneira, as afirmações científicas impõem-se – por assim dizer – aos pesquisadores como impessoalmente válidas. À diferença do que acontece na ciência, as religiões, ideologias, filosofias e convicções do saber vulgar estão cheias de afirmações não controláveis intersubjetivamente, algumas consideradas como evidentes, outras aceitas como dogmas, e outras enfim mantidas por tradição (baseada amiúde em algum tipo de autoridade). Por fim, a terceira das características assume o pressuposto de que a ciência é conhecimento metódico. A objetividade da ciência é possível porque a pesquisa supõe sempre procedimentos definidos, de comprovada eficácia, para se atingir o conhecimento almejado. Desse modo, a ciência é metódica, e isto num duplo sentido. Por um lado, porque existe um método geral da ciência, uma maneira de proceder que caracteriza uma pesquisa como científica independentemente do tema. Do outro lado, porque cada etapa de uma pesquisa, e de acordo com a natureza do tema, exige diferentes técnicas que dizem respeito à identificação dos problemas, à sua adequada formulação e resolução, e à avaliação do resultado obtido. Os conhecimentos não científicos, pelo contrário, carecem de método. As religiões fundamentam o seu saber na palavra de homens considerados como iluminados. O senso comum, caso chegue a obter suas verdades seguindo um procedimento ordenado, não costuma ser consciente dele. E ainda que certas filosofias (como a fenomenologia ou o tomismo) e ideologias (como o marxismo) afirmem possuir um método especial de conhecimento, a falta de uma aceitação universal de suas teses torna dúbio o método por elas reivindicado. 4) No que se refere ao pensamento de Kuhn, explique: a) Sua posição historicista e se ela pode ser lida como relativista; O filósofo Thomas Samuel Kuhn (1922-1996) originariamente foi um físico teórico que manifestou uma preocupação em explicar a ciência para os não cientistas, em um contexto intelectual marcado pelo pós-positivismo. Sob esse propósito, Kuhn fez uma espécie de sociologia da ciência, pautada por uma postura científica historicista, a qual pode ser brevemente elucidada sob três aspectos centrais: a) análise da prática científica concreta (que procura investigar como os cientistas realmente fazem a ciência ao longo da história); b) existência de múltiplas racionalidades científicas (há, aqui, uma contraposição ao pressuposto positivista de uma racionalidade científica unívoca, na medida em que historicamente há o registro observável de várias racionalidades científicas, isto é, de consensos entre os cientistas sobre o que se entende por ciência e como a mesma deve ser feita); c) inexistência de um progresso científico linear (ao passo de que há um movimento científico cíclico, tendo em vista que, em cada momento histórico, há um dado ciclo científico de racionalidade). Tais características auxiliam a promover um questionamento a uma tradicional concepção evolutiva e progressiva da ciência, a qual passa a ser colocada em xeque, na medida em que, pelo historicismo empregado, Kuhn infere que as racionalidades científicas não são superiores ou inferiores, mas apenas diferentes. Essa posição historicista não raramente é considerada como relativista. Contudo, essa é uma leitura apressada e equivocada do empenho de Kuhn, ao passo de que o filósofo não nega que as racionalidades científicas (também entendidas como paradigmas, sobretudo pelo fato de haver um consenso comum e não necessariamente explícito entre cientistas acerca de pressupostos e maneiras de fazer ciência) possam produzir verdades, mas apenas pondera que não há como considerar um modelo de racionalidade mais ou menos verdadeiro do que outro, tendo em vista que as verdades científicas estão submetidas, em última análise, aos limites de atuação de cada modelo ao longo da história. Ao refletir sobre os esforços promovidos por Kuhn, Alan Francis Chalmers comenta: Kuhn iniciou sua carreira acadêmica como físico e voltou então sua atenção para a história da ciência. Ao fazê-lo descobriu que seus preconceitos sobre a natureza da ciência haviam se esfacelado. Veio a perceber que os relatos tradicionais da ciência, fosse indutivista ou falsificacionista, não suportam uma comparação com o testemunho histórico. A teoria da ciência de Kuhn foi desenvolvida subsequentemente como uma tentativa de fornecer uma teoria mais corrente com a situação histórica tal como ele a via. Uma característica- chave de sua teoria é a ênfase dada ao caráter revolucionário do progresso científico, em que uma revolução implica o abandono de uma estrutura teórica e sua substituição por outra, incompatível. Um outro traço essencial é o importante papel desempenhado na teoria de Kuhn pelas características sociológicas das comunidades científicas. (CHALMERS, 1993, página 123) b) Como rejeita a ciência como uma produção unívoca e progressiva de conhecimento (utilize, para tanto, sua noção de paradigmas). Todo modelo é uma construção mental, fruto da imaginação humana. Por isso, é uma aposta. Thomas Kuhn, físico americano, em seu livro A estrutura das revoluções científicas, afirma que a comunidade científica se forma, organiza e caminha através da construção de certos modelos, chamados paradigmas, que são sistemas historicamente adequados para responder aos problemas que a ciência encontra no dia a dia de seus estudos sobre o mundo. A esse respeito, Aranha e Martins comentam: Thomas Kuhn (1922-1996) desenvolve uma nova noção de paradigma, segundo a qual a ciência progride pela tradição intelectual representada pela visão de mundo assumida pela comunidade científica, que fornece problemas e soluções exemplares para a pesquisa futura. Não se trata de um conceito simples, mesmo porque o próprio Kuhn o define de diferentes modos em sua obra, mas o principal é que o trabalho científico se desenvolve baseado no modelo consensual adotado pelos cientistas. (ARANHA & MARTINS, 2009, página 383) Durante o seu percurso histórico, a ciência já construiu e superou inúmeros modelos. O mais conhecido é aquele que ainda hoje reina no senso comum, presente na linguagem cotidiana dos indivíduos quando falam em pôr do sol. Esse paradigma, que acredita no movimento do Sol em torno da Terra, é conhecido como ptolomaico, pois foi Ptolomeu (90-168), cientista grego, que o estruturou a partir do sistema de mundo criado pelo filósofo Aristóteles (384-322 a.C.). Tal modelo, que respondeu muito bem a todas as questões ou problemas que a ciência formulava em sua pesquisa compreensiva do mundo, tornou-se inadequado e ineficiente a partir dos novos estudos feitos na Renascença. Os novos questionamentos feitos pela ciência, que não foram respondidos adequadamente, deram origem à crise do paradigma tradicional. A partir dessa crise, um novo paradigma começa a ser formulado. Com Nicolau Copérnico (1473-1543) formula-se o paradigma heliocêntrico, que foi reformulado por Johannes Kepler (1571-1630). Esses cientistas, astrônomos e matemáticosconsolidaram uma revolução científica. Como acontece essa revolução? Inicialmente, há aquilo que Kuhn nomeia como ciência normal, ou seja, a ciência que caminha normalmente no interior de um paradigma consolidado e aceito pela comunidade científica. Todos os questionamentos que essa comunidade faz são feitos no interior desse paradigma e satisfatoriamente respondidos por esse mesmo paradigma. Nesse sentido, o próprio Kuhn afirma: A ciência normal, atividade na qual a maioria dos cientistas emprega inevitavelmente quase todo seu tempo, é baseada no pressuposto de que a comunidade científica sabe como é o mundo. Grande parte do sucesso do empreendimento deriva da disposição da comunidade para defender esse pressuposto – com custos consideráveis, se necessário. Por exemplo, a ciência normal frequentemente suprime novidades fundamentais, porque estas subvertem necessariamente seus compromissos básicos. (KUHN, 1998, página 24) Entretanto, chega o momento histórico no qual novos questionamentos surgem e o paradigma tradicional não consegue mais responder adequadamente aos novos questionamentos. Nasce a crise do paradigma. Durante essa crise do paradigma, instaura-se a ciência extraordinária, dividida entre diferentes concepções. Somente a partir do momento em que um novo paradigma se consolida na comunidade científica, é que a ciência volta à normalidade. Entre os muitos paradigmas já assumidos historicamente pela comunidade científica, encontram-se o paradigma ptolomaico ou geocêntrico, superado pelo paradigma copernicano ou heliocêntrico; o paradigma criacionista superado pelo paradigma evolucionista; o paradigma que definia o ser humano como essencialmente racional, problematizado pelo paradigma psicanalítico, que coloca a primazia no inconsciente. A respeito dessa pretensa evolução de paradigmas, Meier elucida: Essa passagem de um paradigma a outro representa progresso científico? Thomas Kuhn responde que essas mudanças não representam necessariamente um avanço ou progresso, uma vez que nos falta a ciência da direção final. Não sabemos para onde caminha a ciência. Assim, não temos o horizonte à luz do qual possamos afirmar que determinada mudança significou progresso. Apenas podemos dizer que estávamos ali, e agora encontramo-nos aqui. (MEIER, 2014, página 331) Dadas tais ponderações, é possível notar como, a partir da noção de paradigma, Kuhn rejeita a ciência como uma produção unívoca e progressiva de conhecimento. Isso porque, segundo o filósofo, as regras e os paradigmas metodológicos são eficazes para auxiliarem os cientistas a fazerem escolhas na investigação dos problemas científicos, mas não são suficientes para dizerem qual desses paradigmas é superior ou inferior, haja vista que os paradigmas não podem ser comparados qualitativamente, por serem incomensuráveis entre si. Ademais, em cada momento histórico há um ciclo de racionalidade científica, isto é, de paradigma, havendo o registro histórico de vários paradigmas. Desse modo, os paradigmas não são superiores ou inferiores, mas apenas diferentes. Ao problematizar essa esfera de análise, Japiassu comenta: Os cientistas são vistos como se fossem os proprietários exclusivos do saber, devendo fechar todas as “cicatrizes do não saber” e fornecer os bálsamos para as angústias individuais e sociais. Essa imagem mítica do cientista ignora que ele faz parte e depende de uma estrutura bem real do mundo que o cerca. O mundo científico nada tem de ideal, não é uma terra de inocência, livre de todo conflito e submetida apenas à lei da verdade universal, isto é, de uma verdade testável e verificável em toda parte, através do respeito aos procedimentos de rigor e aos protocolos de experimentação. Como se o cientista pudesse ser o detentor de uma verdade que, uma vez formulada em sua coerência, estaria isenta da discussão; e como se ela pudesse guardar para sempre a imagem de um indivíduo sempre íntegro e rigoroso, jamais sujeito à incoerência das paixões. (JAPIASSU, 1975, página 116) Referências ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: introdução à filosofia. São Paulo: Moderna, 2009. BATTISTI, César Augusto. Descartes. In: MARÇAL, Jairo (organizador). Antologia de textos filosóficos. Curitiba: SEED-PR, 2009. Páginas 142-189. CHALMERS, Alan Francis. O que é ciência afinal? São Paulo: Editora Brasiliense, 1993. CUPANI, Alberto Oscar. A crítica do positivismo e o futuro da filosofia. Florianópolis: Editora da UFSC, 1985. DESCARTES, René. Discurso do método. São Paulo: Martins Fontes, 1996. DESCARTES, René. Meditações; Objeções e respostas; Cartas. São Paulo: Nova Cultural, 1988. FIGUEIREDO, Vinicius Berlendis de. Kant. In: MARÇAL, Jairo (organizador). Antologia de textos filosóficos. Curitiba: SEED-PR, 2009. Páginas 398-415. FILHO, Danilo Marcondes de Souza. Iniciação à história da filosofia: dos pré- socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2001. HÖFFE, Otfried. Immanuel Kant. São Paulo: Martins Fontes, 2005. JAPIASSU, Hilton. O mito da neutralidade científica. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1975. JAPIASSU, Hilton. Questões epistemológicas. Rio de Janeiro: Imago, 1981. KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. KUHN, Thomas Samuel. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1998. MEIER, Celito. Filosofia: por uma inteligência da complexidade: volume único: ensino médio. Belo Horizonte: PAX Editora e Distribuidora, 2014.
Compartilhar