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A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE Direção Editorial Lucas Fontella Margoni Comitê Científico Prof.ª Dr.ª Raquel Fabiana Lopes Sparemberger Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP) Prof.ª Dr.ª Daniela Pires de Oliveira Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP) Prof.ª Me.ª Thaís Teixeira Rodrigues Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP) A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE Uma análise à luz da criminologia feminista ao papel social da mulher condicionado pelo patriarcado Camila Belinaso de Oliveira φ Diagramação e capa: Lucas Fontella Margoni Arte de capa: Graça Craidy O padrão ortográfico, o sistema de citações e referências bibliográficas são prerrogativas do autor. Da mesma forma, o conteúdo da obra é de inteira e exclusiva responsabilidade de seu autor. Todos os livros publicados pela Editora Fi estão sob os direitos da Creative Commons 4.0 https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR http://www.abecbrasil.org.br Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) OLIVEIRA, Camila Belinaso de. A mulher em situação de cárcere: uma análise à luz da criminologia feminista ao papel social da mulher condicionado pelo patriarcado [recurso eletrônico] / Camila Belinaso de Oliveira - Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2017. 147 p. ISBN - 978-85-5696-219-5 Disponível em: http://www.editorafi.org 1. patriarcado; 2. mulher; 3. criminologia; 4. feminismo; 5. cárcere. I. Título. CDD-340 Índices para catálogo sistemático: 1. Direito 340 AGRADECIMENTOS De início, quero agradecer à minha mãe e ao meu pai pelo cuidado, pelo amor e pela oportunidade de estudo – privilégio de poucos na sociedade brasileira, já que uma ínfima parcela da população consegue acessar e concluir o ensino superior. Agradeço por estarem presentes nos bons, mas, principalmente, nos maus momentos, quando tanto precisei. Obrigada pelos abraços, pelo apoio e pelo carinho imensurável. Nesse sentido, expresso eterna gratidão à minha madrinha-tia-mãe-irmã e amiga, Ângela, e aos meus tios-irmãos, Ana e Paulo. O curso de graduação em direito propicia, a meu ver, duas possibilidades: a de se enclausurar entre papéis e reproduzir um sistema falho de justiça, ou a de compreender que justiça é, na realidade, um sofisma, que necessita de resistência e envolvimento dos/as profissionais na sociedade, nos movimentos e na cidade, a fim de encontrar resoluções coletivas. Assim, obrigada às professoras e aos professores que, no decorrer de suas vidas de ensino, apresentaram incansavelmente seus conhecimentos. Em especial às/aos que permitiram diálogos, mudanças e divergências; agradeço às/aos que amam ensinar e o fazem nunca de maneira neutra. Betânia de Moraes Alfonsin, Daniela Pires, Raquel Lopes Sparemberger, Renata Dotta e Thais Rodrigues: agradeço à Fundação Escola do Ministério Público e a cada uma em especial, por ensinarem a refletir sobre a sociedade e a aplicar o direito como método de transformação social. Ainda, à Thais e à Raquel como incentivadoras deste trabalho. Ao Coletivo de Mulheres Maria Lacerda, que luta por uma sociedade equitativa, por ensinar outra face da amizade entre mulheres através de laços fortes e (des)construtivos. Dafne Nogueira e Sophie Dall’Olmo: registro a minha admiração, minha sororidade e meu orgulho por todas vocês. Às minhas amigas e colegas de graduação, por todo apoio e cumplicidade, pelos estudos, pelo incentivo. À Ana Julia Saraiva e à Caroline Rocha de Abreu: muito obrigada, nada termina aqui. Às amigas e aos amigos, pelas aventuras em Direito Internacional, cujos aprendizados permitem uma outra forma de perceber e trabalhar o direito e os direitos humanos. Em nome da amiga Marina Rosa, pela sensibilidade e certeza de que nuestro norte es el sur, toda minha admiração por vocês. Às amigas e aos amigos de longa data, que desde muito anos estão presentes na minha vida e, consequentemente, na minha graduação, dando seus conselhos, compartindo experiências e, principalmente, compartilhando dos mais sinceros abraços. Ao Tiago, companheiro, por todo amor, cuidado e respeito. Acredite sempre na minha admiração pela pessoa que és. Às colegas de trabalho, por todos os ensinamentos e pela paciência, pelo ambiente compreensivo. Que venha mais um ano juntas e com novos projetos. Por fim, dedico este trabalho às mulheres da minha vida, em especial à minha querida avó materna, que há pouco nos deixou e dividiu comigo tantas histórias e tantos momentos felizes, e que sempre questionou sua condição de ser mulher, em silêncio. “Nunca se esqueça de que basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Você terá que manter-se vigilante durante toda a sua vida. ” Simone de Beauvoir SUMÁRIO INTRODUÇÃO ................................................................................... 13 CAPÍTULO I: .................................................................................... 21 O OUTRO: O QUE SIGNIFICA SER MULHER NA SOCIEDADE PATRIARCAL? 2.1 A Gênese do Patriarcado .................................................................... 21 2.2 Os tempos, suas manifestações e suas exclusões ............................ 31 2.3 As estruturas de poder e as suas opressões ..................................... 43 CAPÍTULO 2 ...................................................................................... 53 UM OLHAR FEMINISTA À CRIMINOLOGIA 3.1 As faces do pensamento criminológico ............................................. 53 3.2 A criminalidade e as inter-relações com o discurso criminológico: o controle social (formal e informal) do papel da mulher ....................... 65 3.3 Da criminologia crítica à criminologia feminista ........................... 86 CAPÍTULO 3 ...................................................................................... 99 EL EXTREMO DEL ENCIERRO CAUTIVO 4.1 A presa e a presidiária ........................................................................99 4.2 A situação da mulher no cárcere .................................................... 107 4.3 Um eco das vozes silenciadas ........................................................... 114 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................. 133 PARA QUE(M) SERVE SEU CONHECIMENTO? REFERÊNCIAS ................................................................................. 139 INTRODUÇÃO Refletir a mulher no extremo de sua privação decorre da minha condição de mulher, estudante e futura profissional do direito, campo conservador e permeado de desconfiança. Observar e indignar-se são fundamentais para a problematização do sistema patriarcal, que insere a mulher na situação de cárcere através da aplicação de tipos penais construídos de forma seletiva, e duplamente seletiva quando aplicados à mulher, sendo questionáveis, portanto, os motivos determinantes que criminalizam certos comportamentos e quais as raízes dessas condenações. As violências estruturais contra as mulheres ocorrem em todas as áreas sociais e em todos os períodos históricos, sendo que o âmbito penal representa o grau máximo de violência, pois priva de liberdade mulheres cujas condutas sãoidentificadas como desviantes por um sistema machista, punitivista e inquisitorial. A privação de liberdade é um eufemismo, pois pretende silenciar uma série de violações já sofridas pelas mulheres, consequentes de sua socialização impetuosa e condicionante ao papel social de inferioridade, que tem como regra o controle de sua sexualidade pelas instituições de poder. As características comuns entre as mulheres presas não são coincidências, apenas representam a perseguição instituída pelos controles formais e informais a todas as mulheres que questionam sua condição, que rompem com as expectativas da sociedade patriarcal, bem como a todas que ousam desvirtuar-se por amor. Atenta-se que, para toda e qualquer análise da condição e da situação das mulheres, deve-se considerar, para além do esperado comportamento natural – dócil e maternal – da mulher, os recortes de classe e cor, que são condicionantes da seletividade do sistema penal, caracterizado pela discriminação a certos padrões de mulheres conduzidas ao cárcere e, assim, ao esquecimento. Ir à raiz dos problemas e pretender uma mudança é o que o movimento feminista tem pautado desde os primórdios, tendo extrema relevância a partir das décadas de 60 e 70 do século XX, 14 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE quando as mulheres obtiveram, após muita resistência, a ocupação de representatividades antes limitadas apenas aos homens. No entanto, uma das estratégias do patriarcado é incluir mulheres nos espaços públicos, legislando – a título de exemplo, temos as parcelas determinadas que cabem às mulheres para cargos eletivos. Ou seja, se destina às mulheres uma representação de poder a partir de índices e porcentagens estabelecidas em lei, com o fim único de mascarar uma mudança. Assim, é cada vez mais necessário nomear o patriarcado e propulsionar novos espaços de discussão para novas estratégias, com ênfase para a libertação das mulheres, o que é diferente do “empoderamento”, pois representa uma luta coletiva da mulher pela mulher a partir do entendimento de que o Estado é um homem, de que a história é narrada e interpretada pelo olhar da dominação masculina e das opressões patriarcais, que condicionam e naturalizam a inferioridade das mulheres. Por conseguinte, o objeto desta pesquisa é compreender a relação entre o papel social da mulher e os fatores estruturantes da criminalidade feminina. Pretende-se um diálogo entre o patriarcado e o extremo da violência estrutural contra a mulher: a situação de cárcere. Dessa forma, a partir de uma metodologia dialética e indutiva, serão identificados, no pensamento criminológico, alguns pontos significativos para a construção de uma lógica persecutória da mulher, pela presença de comportamentos entendidos como desviantes e anormais. Ainda, considerando os dados particulares dos diálogos realizados com mulheres em situação de cárcere na Penitenciaria Estadual Modulada de Ijuí, propõe-se observar o que dizem as vozes silenciadas dessas mulheres, os motivos que as levaram a estar encarceradas, quais suas violências, suas dores e suas pretensões. O trabalho está dividido em três capítulos, que versam, respectivamente, sobre o patriarcado, a criminologia e a mulher em situação de cárcere. Em um primeiro momento, analisa-se a gênese do patriarcado e o alcance desse sistema, que configurou a CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 15 visão sobre o feminino de forma violenta, e que desde os aprendizados da infância começa a se instalar na consciência de ambos os sexos para delinear seu futuro, moldando a mente dos indivíduos de tal forma que a desconstrução do modelo assimilado se torna difícil, já que ele passa a ser um traço cultural da sociedade na qual se insere. O segundo capítulo destina-se ao entendimento da criminologia e as etapas de construção da criminologia crítica, em que se estabelece a discussão sobre a recente criminologia feminista. Assim, uma leitura das principais escolas da criminologia e a construção das criminologias antecede a análise do controle social formal e informal e suas inter-relações com o papel social da mulher, para, então, discorrer sobre a criminologia crítica e os contrapontos da criminologia feminista. A relação entre criminologia e feminismo apresenta várias fases de atração e repulsão; na década de setenta, por exemplo, Carol Smart, socióloga e feminista, acreditava que a criminologia feminista estava ao lado de outras existentes, como a radical e da classe trabalhadora, uma vez que a tradicional ignorava as mulheres. Assim, as feministas e as/os estudiosas/os sugeriram o repúdio total à criminologia atuante, sugerindo a quebra de um paradigma e uma nova perspectiva, a ser construída a partir da experiência das mulheres (feminist standpoint ou apenas standpoint). Entretanto, a resistência iniciada nos anos 90 do século XX apresentou uma série de novos estudos e divergências quanto ao objetivo do campo de pesquisa, indagando a pretensão à formação de uma criminologia transgressora ou de uma ciência sucessora. Então, o surgimento de novas criminologias, como a multiétnica e queer, além de acrescer à ambiguidade dos estudos, fragmentou a realidade do campo, o que torna razoável o questionamento em relação à existência de uma criminologia feminista, uma vez que presentes as condições necessárias para o desenvolvimento dessa perspectiva em criminologia. 16 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE Cabe ressaltar que tanto as teorias feministas como a criminologia estão marcadas por referências estrangeiras e, como salienta Raul Zaffaroni, todo o processo de recepção e tradução das teorias estrangeiras ao contexto local não escapou do colonialismo, o que faz importante conhecer o sujeito que as recepciona e perceber como estão entrelaçadas as estruturas de poder. A realidade brasileira configurou o feminismo de modo diferente aos países centrais, sendo a luta pela redemocratização do país, nas décadas de sessenta a oitenta, uma condicionante para que o feminismo pautasse liberdades democráticas e direitos humanos, especialmente introduzindo questões das mulheres na discussão, enquanto que, ao mesmo tempo, o feminismo estadunidense aprofundava o debate quanto à subordinação e ao direito das mulheres. O feminismo segue problematizando categorias que sustentam suas políticas e avança para novas fronteiras de conhecimento, apresentando novos contrapontos, como o do feminismo pós-moderno, que defende que as narrativas explicativas das opressões das mulheres já não se sustentam mais, o que, infelizmente, leva à tentativa de desconstrução de pensamentos fundantes do movimento que ainda não foram esgotados. Assim, as atuais problematizações e novos contrapontos, quando levados ao encontro da criminologia, não prosperam, não rompem paradigmas, pois a ausência da inclusão de gênero em todo o discurso criminológico, mesmo na criminologia crítica, torna impermeáveis tais aproximações. A omissão do gênero e das opressões das mulheres é verificada também nas teorias percursoras da chamada virada criminológica, ou seja, desde a recepção do paradigma da reação social, dado pela teoria do etiquetamento, (labeling approach), até a construção de uma criminologia crítica, estruturada através de um controle social. As formulações de inquietações na análise do discurso criminológico orientam a ideia primordial de um novo paradigma, CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 17 pois esse campo de estudo está vinculado a muitas outras áreas do saber e, por isso, tem grande influência na determinação e na construção de padrões de infratores e de condutas desviantes. O capítulo propõe uma análise temporal para tentar (re)conhecer as origens das opressões e consequências das socializaçõesna determinação da seletividade e do condicionamento da mulher à vulnerabilidade do cárcere, com a intenção de problematizar que não há possibilidade de recuperar-nos do sistema patriarcal sem desmistificar a imagem da mulher, traço cultural comum a muitas sociedades. O terceiro e último capítulo expõe a pesquisa de campo ou o resultado das entrevistas semiestruturadas realizadas na Penitenciária Estadual Modulada de Ijuí (PMEI). O modelo de entrevista semiestruturada é uma técnica de pesquisa mais espontânea do que a estruturada, pois, mesmo que parta de um conjunto de questões predefinidas, dá liberdade para adicionar outras que surjam no decorrer das entrevistas. As questões predefinidas funcionam como uma diretriz, mas não ditam a forma como decorre a entrevista, não estipulando ordem, nem mesmo forma. Na PMEI, foram entrevistadas seis (6) mulheres acerca de sua condição de cárcere, através de questionamentos quanto às suas motivações, suas vidas antes do envolvimento com o crime, mudanças, dificuldades e consequências do cárcere, bem como aspirações para uma vida depois do cumprimento da pena, que passará a ser sinalada como de uma ex-presidiária. Os dados colhidos durante a pesquisa serão apreciados com sigilo e com o intuito de identificar, nos discursos das mulheres, a abrangência do sistema patriarcal; verificar, nas situações particulares e comuns de cada, uma a transformação do patriarcado e sua atual e operante opressão; e identificar as mulheres que hoje são perseguidas e castigadas pelas instituições de poder. Os dados da PMEI serão comparados e analisados a partir do relatório prévio da atual pesquisa idealizada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio Grande do Sul, Edital PPSUS 2013-2015, 18 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE vencido pelo projeto A situação das mulheres privadas de liberdade e o Apoio Matricial em Saúde Mental a Equipes de Atenção Básica inseridas no Sistema Prisional e realizado pela coordenação da Professora Doutora Renata Dotta. O projeto foi constituído por uma Instituição Executora – a Secretaria Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul; uma Co-executora – a Fundação Escola do Superior do Ministério Público; e por Instituições Participantes do Projeto – o Instituto de Criminologia da Universidade de Sevilla/Espanha e o Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Assim, pede-se à leitora e ao leitor que considere se despir de pré-conceitos ao escutar as vozes silenciadas das mulheres em situação de cárcere, das mulheres que atingiram o ápice da violência, a fim de que seja possível um diálogo entre os dados apresentados e a situação atual do nosso sistema de justiça criminal, construído pelo patriarcado e que tem confirmado a sua falência em todos os aspectos. Apela-se, principalmente, às mulheres, que passem a observar e questionar as qualidades positivas atribuídas aos homens e as negativas atribuídas às mulheres, pois apenas o (re)conhecimento e a problematização dos questionamentos quanto à situação de inferioridade motivarão as buscas de soluções e câmbios de socializações, impedindo a legitimação e a perpetuação das violências enfrentadas pelas mulheres. Um dos principais pontos a serem pleiteados para uma mudança de paradigma é que o machismo compromete negativamente o resultado das lutas pela democracia, pois suas relevâncias dizem respeito apenas à elaboração de uma democracia pela metade e para a metade privilegiada da humanidade. Portanto, é impensável mudar comportamentos de mulheres sem também buscar redefinir os papéis dos homens, ressignificar as condições e as oportunidades de cada sexo e de cada gênero socialmente construído, para obter igualdade social e, principalmente, equidade, compreendendo a situação do oprimido CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 19 e, também, a situação do opressor. No entanto, é primordial que as redefinições de papéis aconteçam com o anterior conhecimento e real debate quanto às condições de opressão naturalizadas e impostas às mulheres, para que, a partir daí, da libertação do padrão social de inferioridade de cada mulher, seja dada sequência à ressignificação de papéis. Uma nova leitura dos chamados “paradigmas criminológicos” dá base para a discussão acerca das mulheres neles identificadas. Uma vez que a análise histórica e comparativa resgata, além das escolas criminológicas sistematizadas (clássica, positivista e crítica), os sistemas punitivos da antiguidade, pertencentes a uma criminologia etnológica que apresenta os momentos anteriores necessários para situar o papel da mulher em relação à transgressão das regras sociais. Trata-se de uma seletividade e de um poder estigmatizante que, no decorrer do tempo e das transformações sociais, permanecem controladas informal e formalmente, a fim de manter todas as relações de domínio que se entrelaçam e se sustentam tanto no espaço público quanto no espaço privado. CAPÍTULO I O OUTRO: O QUE SIGNIFICA SER MULHER NA SOCIEDADE PATRIARCAL? Hacemos al pasado las preguntas que queremos ver respondidas en el presente. (Gerda Lerner, 1990) 2.1 A Gênese do Patriarcado O patriarcado1 condicionou as mulheres através de características e comportamentos que definem quais são dignas de terem seus direitos reconhecidos, e também quais são merecedoras de proteção e sensibilização social. Carole Pateman (1993) assegura que o patriarcado se refere especificamente à sujeição da mulher e reafirma o direito político que todos os homens exercem pelo fato de serem homens. O patriarcado, portanto, pode ser entendido como uma forma de organização social favorável à metade masculina da espécie humana, caracterizado pela dominância dos homens e a subordinação das mulheres, que se manifesta a partir do domínio do homem sobre os interesses e as concepções de mundo. Registros históricos apontam que teóricos políticos travaram longas discussões a respeito da legitimidade e dos fundamentos das formas de poder político e, assim, do direito patriarcal. A interpretação tradicional da história do pensamento político se posiciona no sentido de o patriarcado ter sido superado há mais de 300 anos, devido também à considerável influência do século XX, quando o modelo patriarcal foi quase totalmente ignorado (LAGARDE, 2005). Os registros também mostram que as feministas têm questionado sua condição de mulher e, desde o final 1O termo patriarcado vem da combinação das palavras gregas pater (pai) e arkhe (origem e comando), raiz de duplo sentido também explícita em acarco e monarquia. Para o grego antigo, a primazia no tempo e a autoridade são uma só e a mesma coisa (HIRATA, 2009). 22 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE do século XVII2, afirmam que, na realidade, os teóricos políticos modernos perpetuam a instituição do direito patriarcal. As reinvindicações das mulheres construíram a dialética da história3, que consiste em uma série de questionamentos a diversas áreas do saber, quanto às interpretações das experiências reais das mulheres e quanto à sua exclusão do processo histórico. Assim, a procura por preencher essas lacunas de representação levou à construção de uma história compensatória, que permitiu a compreensão de que o homem não é a medida de tudo que é humano, mas sim os homens e as mulheres (LERNER, 1990). O ordenamento e a interpretação do passado da humanidade impediram a participação das mulheres, o que dá sentido a um processo de perpetuação da civilização patriarcal, em que as mulheres são uma maioria populacional estruturada pelas instituições sociais para representar uma minoria. Uma história das mulheres pretendeum novo marco teórico, não androcêntrico4, em que as mulheres sejam protagonistas de suas vidas, erradicando as opressões a partir de novos enfoques antropológicos, constituintes de uma antropologia da mulher5, cuja perspectiva incorpora seus conhecimentos e experiências em qualquer disciplina. No entanto, uma 2O feminismo identifica a obra de Mary Wollstonecraft, publicada em 1792 e intitulada “A Vindication of the Rights of Woman”, como percussora da defesa das mulheres. Segundo a autora, as mulheres deveriam ser tratadas de forma racional como eram tratados os homens. 3Dialética é a teoria das leis gerais do movimento, do desenvolvimento do mundo e do conhecimento da humanidade; é tese e antítese, cuja modalidade original é o diálogo. Inicia com os pensamentos de Heráclito no século VII e, posteriormente, no século XIX, Hegel afirma um terceiro tempo da dialética, a síntese, com o pensamento de que não se poderia restringir a dialética entre afirmação/negação; para ele, a dialética é consenso, integração do que há de bom na tese e na antítese, o que deu origem à dialética moderna, seguida por Marx, Gramsci, Sartre, entre outros (SOUZA, 2003). 4 “Androcentrismo é a visão do mundo que situa o homem como centro de todas as coisas. Parte da ideia de que uma visão masculina é a única possível e, portanto, universal para toda a humanidade, o que conduz a uma invisibilidade das mulheres, inclusive na ciência.” (HIRATA, 2009, p.58). 5 “(…) distante de conformarem um corpo de leis e um modelo fechado e acabado, a antropologia da mulher é uma perspectiva filosófica que tem incorporado conhecimentos da economia, biologia, sociologia, psicanálise e qualquer outra disciplina.” (LAGARDE, 2005, p 60). CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 23 continuidade patriarcal se revela a partir das características comuns às diversidades culturais e às sucessivas formações sociais, que não são alteradas mesmo após as mulheres terem formado parte dessas transformações, o que se identifica na transcrição de registros históricos (LERNER, 1990). A exclusão das mulheres da construção dos registros reforça, portanto, a sua aceitação da ideologia patriarcal, consequência dos mais de 2.500 anos em que as mulheres estiveram privadas de aceder conhecimentos e conviver em espaços de construção e intercâmbio cultural. O (re)conhecimento dessas opressões e o avanço da história e dos métodos de trabalho e pesquisa devem ser utilizados para que erros sejam citados: as parcialidades, a falta de objetividade dos estudos que foram feitos sem o enfoque de gênero. Trata-se não de desvalorizar o pesquisado, mas de não aceitar que as constatações são inquestionáveis, universais. Quer- se demonstrar que as evidências constituem uma das variáveis da realidade humana, e que todos os paradigmas extraídos do mundo masculino das ciências sociais nascem a partir da negação da humanidade da mulher. Há, aqui, uma oportunidade para homens e mulheres criarem e aceitarem novos modelos, parâmetros e paradigmas que correspondam a uma concepção de mundo que inclua interpretações de mulheres (FACIO e CAMACHO, 1995). Há grande urgência de que o patriarcado seja nomeado e estudado6, pois seu esquecimento ou substituição por termos relacionados às violências contra a mulher não aprofundarão os estudos de forma suficiente para que ocorra a quebra de um paradigma (PATEMAN, 1993). O sistema patriarcal se mantém também graças à cooperação das mulheres, que, condicionadas à inferioridade, são privadas da representação e interpretação de suas vidas, abstendo-se de questionamentos e naturalizando o 6“Porque o uso exclusivo de ‘patriarcado’ parece conter já, de uma só vez, todo conjunto de relações: como são e porque são. Trata-se de um sistema ou forma de dominação que, ao ser (re)conhecido já (tudo) explica: a desigualdade de gênero.” (MACHADO, 2000, p.3). 24 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE sistema opressor. Simone de Beauvoir, a partir de uma perspectiva de esvaziamento de valores e do direito de poder se consubstanciar em um tema de relevo, expressa que a cultura insere as mulheres na dimensão de simples alteridade, como o outro. Nesse sentido, a autora afirma e indaga que [t]odo indivíduo que se preocupa em justificar sua existência a sente como uma necessidade indefinida de se transcender. Ora, o que define de maneira singular a situação da mulher é que, sendo, como todo ser humano, uma liberdade autônoma, descobre-se e escolhe-se num mundo em que os homens lhe impõem a condição do Outro. Pretende-se torná-la objeto, votá-la à imanência, porquanto sua transcendência será perpetuamente transcendida por outra consciência essencial e soberana. O drama da mulher é esse conflito entre a reivindicação fundamental de todo sujeito, que se põe sempre como o essencial, e as exigências de uma situação que a constitui como inessencial. Como pode realizar-se um ser humano dentro da condição feminina? (BEAUVOIR, DS I, 1980, p. 23). A condição de ser mulher é resultado do conjunto articulado da civilização, que elabora o que se qualifica e, de forma ainda mais pejorativa, como deve se expressar o feminino na sociedade7. As atribuições de papéis sociais distintos a homens e mulheres, constituídos a partir de dados etnográficos e feitos históricos, permitem a perpetuação de uma assimetria sexual (LERNER, 1990), cujo complexo de fenômenos opressivos articula a inferioridade, a discriminação, a dependência e a subordinação das mulheres, tornando-as cativas8 em decorrência de sua condição genérica e de sua situação particular9. 7 O mito da feminilidade, conforme Beauvoir, é usado na tentativa de estereotipar o comportamento da mulher. A autora se dedica a discutir como se inicia essa construção, o que, para ela, acontece na infância. O mito da feminilidade se instaura silenciosamente nesta idade; desde os primeiros anos, os adultos passam a incentivar diferenças; ao menino, por exemplo, é dada a liberdade de brincar, de usar da violência para enfrentar outros meninos, enquanto a menina é confinada aos brincados, principalmente às bonecas, que espelham sua própria passividade (BEAUVOIR, 1980). 8 Existem poucas e reduzidas formas de ser mulher. A sociedade está definida para encerrar e estimular as mulheres para que representem um número reduzido de conhecimento cultural e, CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 25 Nesse sentido, O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir, revelou que a opressão está articulada em todos os aspectos do problema das relações entre os sexos, nas modalidades sociológicas, econômicas e psicológicas, pois elas estão criadas dentro da mesma estrutura, organizada por uma relação de dominação masculina evidenciada de forma reinante nas civilizações conhecidas e que, de forma desleal, é apresentada como passível de ser superada. Afirma o texto fundador do feminismo do século XX que as diferenças físicas entre os sexos não mais poderiam ser a justificação de uma hierarquia social e política. A obra tende a defender a teoria universalista, mas em nenhum momento exclui a persistência de uma diferença de sexos, que não poderia ser usada, portanto, para impedir o acesso social e político das mulheres. A concepção da relação entre os sexos é variável, devido à existência de particularidades em cada cultura. No feminismo, há três linhas sobre a percepção dessas diferenças; cito-as de forma breve: a linha universalista, que se baseia na ideia de que todos os seres humanos são iguais, independente das características físicas, pois sua estrutura é consequência da socializaçãoe das relações de poder, tratando-se, portanto, de querer dissolver as categorias homem e mulher, no sentido de que a especificidade das mulheres é uma produção social destinada a justificar sua subordinação; a linha diferencialista, que compreende que há dois sexos e que o principalmente, que estejam afastadas da possibilidade de compreender os motivos das opiniões dominantes na sociedade, uma vez que são os condicionantes de suas vidas particulares. Esses grupos e esses modos de vida são conhecidos porque são especificidades sociais e culturais das mulheres, que se configuram por alguma característica subjetiva decorrente da condição de ser mulher (LAGARDE, 2005). 9 A situação das mulheres é um conjunto de características que todas as mulheres possuem a partir de sua condição genérica em circunstâncias históricas particulares. A situação expressa a existência concreta das mulheres particulares a partir de suas condições reais de vida: a formação social em que nasce, vive e more cada uma, as relações de produção-reprodução e, junto com isso, a classe social, o grupo de classe, o tipo de trabalho, a atividade vital, os níveis de vida e o acesso a bens materiais e simbólicos, a língua, a religião, os conhecimentos, as definições políticas, o grupo de idade, as relações com outras mulheres, com os homens e com o poder, assim como as preferências eróticas, os costumes, as tradições próprias e a subjetividade pessoal (LAGARDE, 2005). 26 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE acesso à igualdade não equivale ao acesso à identidade, foi defendida pela psicanálise por muito tempo, e enxerga as diferenças morfológicas10 como fundamentos que determinam uma variante da humanidade, a mulher; já a teoria do pós- modernismo e a queer se desenvolveram a partir dos anos setenta, compreendendo que o sexo não pode ser substantificado, pois é entendido como performático (HIRATA, 2009). Ser mulher e ser homem11 são fatos socioculturais e históricos e, além das características biológicas de cada um, há um complexo de determinações e características econômicas e sociais que constituem o gênero12, produto de uma relação entre biologia, sociedade e cultura. Ser mulher é consequência de uma construção histórica, que a define como ser social e cultural genérico (SAFFIOTI, 1987). O processo histórico sob o qual surgiram as classes13 e os gêneros é representando, inicialmente, por uma cisão 10Sabendo, assim, que o homem e a mulher são vistos como duas variantes, superior e inferior, da mesma fisiologia, compreendemos por que, até o Renascimento, não se dispusesse de terminologia anatômica para descrever em detalhes o sexo da mulher, que é representado como composto dos mesmos órgãos que o do homem, apenas dispostos de maneira diversa. Por isso, como demonstra Yvonne Knibiehler, os anatomistas do princípio do século XIX (sobretudo Virey), ampliando o discurso dos moralistas, tentam encontrar no corpo da mulher a justificativa do estatuto social que lhes é imposto, apelando para oposições tradicionais entre o interior e o exterior, a sensibilidade e a razão, a passividade e a atividade. Bastaria seguir a história da “descoberta” do clitóris, tal como a relata Thomas Laqueur, prolongando-a até a teoria freudiana da ligação da sexualidade feminina do clitóris para a vagina, para acabar de demonstrar que, longe de desempenharem o papel fundador que lhes é atribuído, as diferenças visíveis entre os órgãos sexuais masculinos e femininos são uma construção social que se iniciou com os princípios de divisão da razão androcêntrica, ela própria fundamentada na divisão dos estatutos sociais atribuídos ao homem e à mulher (BOURDIEU, 2016). 11A divisão entre sexos parece estar “na ordem das coisas”, como se diz por vezes para falar do que é normal, natural, a ponto de ser inevitável: ela está presente, ao mesmo tempo, em estado objetivado das coisas (na casa, por exemplo, cujas partes são todas ‘sexuadas’), em todo o mundo social e, em estado incorporado, nos corpos e nos habitus de agentes, funcionando como sistemas de esquemas de percepção de pensamento e de ação (BOURDIEU, 2016). 12Minha definição de gênero tem duas partes e várias subpartes. Elas são ligadas entre si, mas são analiticamente distintas. O núcleo essencial da definição baseia-se na conexão integral entre duas proposições: o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos; e o sexo é uma forma primeira de significar as relações de poder (SCOTT, 1989). 13Do ponto de vista das classes sociais, podem-se distinguir, basicamente, dois sentidos da história: o das classes dominantes e o das classes subalternas. Do ângulo das categorias de sexo, as mulheres, ainda que façam a história, têm constituído sua face oculta (SAFFIOTI, 1987). CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 27 entre os seres humanos, fundamentada pela diferenciação excludente e compulsória entre homens e mulheres (LAGARDE, 2005). Dessa forma, o aporte de uma antropologia da mulher14 permitiu a retomada de conceitos que sustentam a disciplina, como a cultura, suas origens e suas evoluções, a partir da determinação de diferenças genéricas entre os sexos e a investigação da forma em que as mulheres interferiam para a construção de temas pontuais, como a religião, o poder e as relações econômicas. Neste trabalho, considera-se sexo e gênero uma unidade, uma vez que não existe sexualidade biológica independente do contexto social em que é exercida; por isso, o confinamento atribuído exclusivamente ao gênero feminino deve ser compreendido como um processo duplo, permanente e inconcluso, em que a mulher é reduzida à sua sexualidade, definida historicamente como produto de suas qualidades naturais e biológicas, representadas por um número escasso de reais diferenças entre os dois sexos e pelo desproporcional ao valor dado a essas diferenças (LAGARDE, 2005). Compreende-se, então, o sexo como uma realidade, uma condição biológica distinta entre homens e mulheres15, enquanto que o gênero é a definição cultural dos papéis sociais atribuídos aos sexos em uma sociedade e em um determinado momento histórico. Portanto, este trabalho acompanha as feministas que recusam o uso exclusivo do conceito de gênero, pois a rápida, ampla e profunda aceitação do termo está intimamente relacionada à omissão e ao silenciamento do fato de que é necessário alterar as relações sociais desiguais entre homens e mulheres. O uso exclusivo do conceito gênero como neutro e 14 A perspectiva antropológica é dialética: não encontra causas únicas nem últimas; por isso, é necessária para entender um fenômeno multideterminado, complexo e diverso como é a mulher. A antropologia é uma possibilidade para criação de novas perspectivas (LAGARDE, 2005). 15A diferença biológica entre os sexos, isto é, entre o corpo feminino e o masculino, e, especificamente, a diferença anatômica entre os órgãos sexuais, pode assim ser vista como justificativa natural da diferença socialmente construída entre os gêneros e, principalmente, da divisão social do trabalho (BOURDIEU, 2016). 28 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE equivalente a qualquer relação de violência, dá a ideia de que ele nada tem a ver com a biologia do corpo humano, sendo que, na verdade, ele depende do sexo, pois está construído socialmente, e os papéis sociais de homens e mulheres lhe são atribuídos de acordo com a sua genitália, o seu sexo. Dessa forma, tratar esta realidade em termos que seguem exclusivamenteo conceito de gênero distrai a atenção do patriarca, neutralizando a dominação masculina (SAFFIOTI, 2015) ao não nomear a parte oprimida da sociedade – mulheres, pessoas que têm vaginas – e a parte opressora – homens, pessoas que têm pênis. Então, são as definições estereotipadas das mulheres que resignam seus círculos de vida particulares, e, a partir disso, cada círculo passa a constituir um determinado confinamento, construído pelo entorno de definições essencialistas do que seria “ser mulher”, geralmente relacionadas à sua sexualidade. Segundo Marcela Lagarde: Todas las mujeres están cautivas de su cuerpo-para-otros, procreador o erótico, y de su ser de los otros, vivido como necesidad de establecer relaciones de dependencia vital y de sometimiento al poder y a los otros. Todas las mujeres, en el bien o en el mal, definidas por la norma, son políticamente inferiores a los hombres y entre ellas. Por su ser-de y para-otros, se definen filosóficamente como entes incompletos, como territorios, dispuestas a ser ocupadas y dominadas por los otros en el mundo patriarcal. Los grados y las formas concretas en que esto ocurre varían de acuerdo con la situación de las mujeres, con los espacios sociales y culturales en que se desenvuelven, con la mayor o la menor cantidad y calidad de bienes reales y simbólicos que poseen, y con su capacidad creadora para elaborar su vida y sobrevivir al cautiverio. (LAGARDE, 2005, p.41)16 16 Tradução: Todas as mulheres estão cativas de seu corpo-para-outros, procriador e erótico, e de seu ser para os outros, vivido como necessidade de estabelecer relações de dependência vital e de submissão ao poder e aos outros. Todas as mulheres, bem ou mal, definidas por normas, são politicamente inferiores aos homens e entre elas. Por seu ser-de e para-outros, se definem filosoficamente como entes incompletos, como territórios, dispostas a ser ocupadas e dominadas por outros no mundo patriarcal. Os graus e as formas concretas em que isso ocorre variam de acordo com a situação das mulheres, com os espaços sociais e culturais em que se desenvolvem, com a CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 29 Depreende-se que cada mulher é parte de um conjunto de determinações e características universais, que sustentam a existência de ciclos particulares, que, por sua vez, estão expressos em um ciclo cultural, conformado pela sua sexualidade e sua relação com os outros (poder), estruturantes de sua condição perante a sociedade (LAGARDE, 2005). Nesse sentido, desde o nascimento até a morte, a mulher é representada pela sociedade patriarcal como ser incompleto e em constante transformação, pois nascer mulher implica um futuro pré-moldado, que estará reforçado por opressões determinadas a partir da forma de vida e classe que ocupa cada mulher, e que arquitetam os cativeiros a que estão submetidas. A cultura patriarcal organiza a vida da mulher a partir da vivência de uma sexualidade destinada para o outro, como cidadã, como fiel, como mãe ou como prostituta, categorias aprofundadas de acordo com os necessários recortes culturais, que permitem a contextualização das opressões patriarcais – ou seja, permite a compreensão de quais os círculos e quais os cativeiros nos quais mulher está inserida. Nesse sentido, a história de qualquer sociedade conhecida e tradicional demonstra que os primeiros escravos foram as mulheres de grupos conquistados, o que precede a formação e a opressão de classe, e permite, por exemplo, compreender a múltipla exploração das mulheres negras, como trabalhadoras, como prestadoras de serviços sexuais e como reprodutoras. Os defensores científicos do patriarcado justificavam as mulheres seriam definidas pelo seu dom maternal, e que a sua exclusão de oportunidades econômicas e educativas se justificava por serem detentoras da causa mais nobre: a sobrevivência da espécie. Nota-se que a constituição biológica e o valor dado às suas relações limitou as mulheres a certas atividades profissionais, pois maior ou a menor quantidade e qualidade de bens reais e simbólicos que possuem, e com sua capacidade criadora para elaborar sua vida e sobreviver ao cativeiro. 30 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE eram dependentes de suas necessidades biológicas, de proteção, de recato. Consequentemente, o patriarcado gerou tensões nos relacionamentos entre homens e mulheres, visto que ambos estão condicionados a seus papéis sociais: o homem com o dever de preservar o domínio e a mulher de ser submissa (LERNER, 1990). Diante disso, o surgimento de codificações no decorrer da história demonstra a instituição de mecanismos de controle comportamentais para que a mulher não cogite outro papel que não o de reprodutora, fiel, amorosa e julgada pela lealdade devida ao marido. É fato que as mulheres estão subordinadas ao domínio, ao controle e à dependência do outro. Portanto, sua opressão se manifesta a partir da discriminação que sofrem, pois o paradigma social e cultural da humanidade é androcêntrico17 e define todas as construções mentais da civilização. Destaca-se, assim, a falácia do androcentrismo, pois a mudança de paradigma não pode ser alcançada simplesmente com o acréscimo de mulheres na formação de teorias e nos espaços públicos; é apenas a com a aceitação de que a humanidade é formada por homens e mulheres igualmente, e a reestruturação das crenças e realidades sociais, que esta mudança será alcançada (LERNER, 1990). A gênese do patriarcado, pelo exposto, é que as mulheres são oprimidas pelo fato de serem mulheres, independente de sua posição de classe, língua, idade, nacionalidade ou ocupação, porque o mundo patriarcal ensina que ser mulher é sinônimo de ser oprimido. Suas opressões se expressam e se fundamentam na desigualdade econômica, política, social e cultural e pela sua 17“A força da ordem masculina dispensa justificação: a visão androcêntrica impõe-se como neutra e não tem necessidade de se enunciar em discursos que visem a legitimá-la. A ordem social funciona como uma imensa máquina simbólica que tende a ratificar a dominação masculina sobre a qual se alicerça: é a divisão sexual do trabalho, distribuição bastante estrita das atividades atribuídas a cada um dos dois sexos, de seu local, seu momento, seus instrumentos; é a estrutura do espaço, opondo o lugar de assembleia ou de mercado, reservado aos homens, à casa, reservada às mulheres; ou, no próprio lar, entre a parte masculina, com o salão, e a parte feminina, com o estábulo, a água e os vegetais; é a estrutura do tempo, as atividades do dia, o ano agrário, ou o ciclo de vida, com momentos de ruptura, masculinos, e longos períodos de gestação, femininos” (BOURDIEU, 2016, p. 18). CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 31 posição submissa ao domínio do homem que, como veremos, são naturalizadas historicamente. 2.2 Os tempos, suas manifestações e suas exclusões A história demonstra a relevância do quarto milênio a.C., momento em que as sociedades começaram a se organizar e passaram a ser reconhecidas como civilizações, com seus métodos de domínio relacionados à terra e ao sexo. Nesse período, a maior parte das sociedades agrícolas tinha desenvolvido novas formas de desigualdades entre homens e mulheres, num sistema chamado de patriarcal, com o domínio de maridos e pais. As civilizações, de uma forma geral, aprofundaram o patriarcado, pois uniram aspectos culturais e institucionais amplos, perpassando suas particularidades e criando padrões de estrutura para avida humana, que combinam as crenças e instituições mais amplas de cada civilização em particular (STEARNS, 2015). O deslocamento da caça e da coleta para a agricultura pôs fim, gradualmente, a um sistema de sociedade com uma considerável igualdade entre homes e mulheres, pois, por exemplo, na cultura de caça e coleta, as taxas de natalidade eram relativamente baixas e aumentaram a partir do momento em que os suprimentos de alimentos se tornaram mais seguros, em parte porque havia mais condições e possibilidades de aproveitar o trabalho das crianças para aumento da produção e dos excedentes (STEARNS, 2015). O desenvolvimento da agricultura, já no período neolítico (8.000 a.C.), impulsionou o intercâmbio de mulheres, não só como uma maneira de evitar guerras incessantes mediante a consolidação de alianças matrimoniais, mas também porque as sociedades com mais mulheres poderiam produzir mais crianças, já que uma das diferenças primordiais entre as sociedades coletoras e agrícolas foi o emprego da mão de obra infantil (LERNER, 1990). 32 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE A fixação de grupos em determinados espaços e o estabelecimento de moradias mais estáveis mudou radicalmente a estrutura da vida humana nessas regiões. A partir da geração de excedentes de produção, as pessoas passaram a realizar outras atividades, como o artesanato, a religião e o governo, em decorrência do tempo disponível (STEARNS, 2015). Houve uma drástica mudança nas relações familiares, principalmente em relação ao cuidado da mãe com a criança, com a impossibilidade dela ser criada por outra pessoa. A função de reprodução imposta à mulher ocasionou um aumento nos índices de mortalidade infantil, uma vez que as mulheres estavam condicionadas a ter muitas gestações e a ser responsáveis pela sobrevivência dos filhos (LERNER, 1990). Cada civilização desenvolveu características próprias, determinadas pelos seus interesses e alcances naturais, pela sua localização e pelo seu tempo histórico, e pelas suas preocupações, reconhecidas através de suas religiões, produções científicas e seu modo de governo. As alterações nas relações de poder entre homens e mulheres são consequências e reflexos de importantes mudanças econômicas, tecnológicas e militares, pois o período de formação do patriarcado não ocorreu de repente, mas foi um processo que se desenvolveu e se aprofundou no transcurso de quase 2.500 anos, desde aproximadamente 3.100 a 600 a.C. (do quarto ao segundo milênio) (STEARNS, 2015). A necessidade dessas civilizações se identificarem umas com as outras está relacionada com a abrangência do comércio interno, consequência dos excedentes de produção da agricultura, que proporcionou uma integração entre os povos e a construção de unidade, mantendo populações que até então eram diferentes, juntas. As classes altas, privilegiadas quanto ao acesso e conhecimento de outras línguas e culturas, fomentaram debates sobre o sistema filosófico, construindo tradições culturais e padronizando estruturas, delimitadas a partir do sexo, em diferentes graus e intensidades (STEARNS, 2015). CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 33 O papel social dos sexos na criação das civilizações reflete a assimetria sexual que situa as causas de subordinação feminina. Biologicamente, o homem tem estrutura de caçador, o que o capacita para ser reconhecido como guerreiro protetor das mulheres vulneráveis, cujas habilidades eram restritas à função estrutural de reprodução, amor materno e dever de cuidado dos filhos (LERNER, 1990). Então, o tema do controle da sexualidade feminina e da procriação está inserido nas relações econômicas, restringindo o papel da mulher, que, ao perceber as diferenças e reconhecer suas opressões, manifesta-se por igualdade. Ocorre que tal reconhecimento é demorado, já que, como vimos, as representações femininas são constituídas pelo androcentrismo18, contestado pelas mulheres após o seu acesso à alfabetização, um dos desafiantes do protagonismo da história. As sociedades seguem a se modificar com os avanços culturais, principalmente pela industrialização, inerente a civilizações ocidentais ao final do século XIX. Os câmbios culturais permitiram que homens se libertassem de suas necessidades biológicas e que as mulheres acessassem uma possiblidade de igualdade formal; porém, as liberdades destinadas às mulheres só são compreendidas como aceitáveis porque ainda as mantêm destinadas ao mesmo serviço, principalmente pelo fundamento de sua estrutura biológica (LERNER, 1990). A mudança radical nas relações humanas ocorrida com o advento da agricultura e, principalmente, com o acesso aos excedentes de produção e câmbios culturais, permitiu que as civilizações se organizassem e se expandissem, mantendo domínios a partir de relações de poder 18 Tem-se androcentrismo quando um estudo, análise ou investigação tem como enfoque preponderante a perspectiva masculina, apresentando-a como central para a experiência humana de maneira que o estudo da população feminina, quando existente, se dá unicamente em relação às necessidades, experiências e preocupações dos homens. O androcentrismo pode se manifestar de duas formas, que são a misoginia e a ginopia. A misoginia consiste no repúdio ao feminino e ginopia na impossibilidade de ver o feminino ou na invisibilidade da experiência feminina. Estamos acostumados/as a ler e escutar explicações do humano que deixam as mulheres de fora, entretanto, nos sentimos incomodados/as quando se esquece do homem (FACIO, 1991). 34 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE entre sociedades e entre os sexos. A necessidade de garantir que esses excedentes e lucros ficassem sob o domínio masculino, para então se perpetuarem, criou novas formas e possibilidades de assegurar a propriedade privada nas mãos dos homens. Cabe observar a divergência histórica sobre as sociedades matriarcais, manifestada a partir de teorias que sustentam ou negam a universalidade da subordinação feminina. A existência ou não de um estágio de dominação feminina e de igualdade entre mulheres e homens, estão observadas pelas teorias marxista, estruturalista e materialista. É conveniente, então, que sejam apresentadas essas teorias. A teoria marxista trata de maneira mais específica quanto à mulher a obra A origem da família, da propriedade privada e do estado, de Engels, baseada em dados do trabalho de teóricos do século XIX19, que defendiam a existência de sociedades comunistas sem classes prévias antes da formação da propriedade privada; tais sociedades poderiam ser matriarcais ou não, mas o autor considera-as como igualitárias. Toda a divisão primitiva do trabalho descrita na teoria marxista está baseada na diferença entre os sexos, que condiciona a divisão em características biológicas e no alcance delas para medir força de produtividade. Essa divisão de trabalho perpetuou a ideia primitiva do determinismo biológico dos sexos20, estando os homens responsáveis por lutar na guerra, caçar e pescar, procurar alimentos e ferramentas necessárias para o trabalho, enquanto as mulheres estavam responsáveis por atender a casa, preparar os 19 Um dos doutrinadores utilizado por Engels foi J. J. Bachofen, jurista e antropólogo, cuja obra principal foi O direito materno, publicada em 1861, que tratou sobre o matriarcado, apresentando uma investigação sobre o caráter religioso e jurídico do matriarcado no mundo antigo. 20 “Em sociedades de tecnologia rudimentar, ser detentor de força física constitui, inegavelmente, uma vantagem. Em sociedades onde as máquinas desempenham funções mais brutas, que requerem força, a relativaincapacidade de levantar peso e realizar movimentos violentos não impede qualquer ser humano de ganhar seu sustento. Rigorosamente, portanto, a menor força física da mulher em relação ao homem não deveria ser motivo de discriminação. Todavia, recorre-se, com frequência, a este tipo de argumento, a fim de se justificarem as discriminações praticadas contra as mulheres. ” (SAFFIOTI, 1987, p. 12). CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 35 alimentos e confeccionar as roupas. Engels entende que o surgimento da propriedade privada foi a derrota do sexo feminino21 e, portanto, somente as sociedades comunistas poderiam tratá-las como iguais. Entretanto, o modelo de divisão de trabalho de Engels é em certo ponto equivocado e profundamente criticado, pois já restou demonstrado que a definição do trabalho realizado por homens e mulheres difere de acordo com a cultura e o entorno ecológico em que vivem as pessoas. A teoria marxista22 entende que, nas sociedades tribais, o desenvolvimento da domesticação animal condicionou o comércio e as propriedades às mãos dos homens de diferentes famílias, mas não foi capaz de explicar o porquê. Não foi demonstrado e explicado como se deu o domínio masculino sobre os excedentes de produção e a conversão deles em propriedade privada, institucionalizada em uma família monogâmica e no desenvolvimento da domesticação animal (LERNER, 1990). Consequentemente, assegurar a propriedade privada requereu a constituição e institucionalização da família monogâmica23 e do controle da sexualidade feminina. Com a 21“A reversão do direito materno foi a grande derrota do sexo feminino. O homem passou a governar também na casa, a mulher foi degradada, escravizada, tornou-se escrava do prazer do homem, e um simples instrumento de reprodução. Essa condição humilhante para a mulher, tal qual como aparece, notadamente, entre os Gregos nos tempos heroicos, e mais ainda dos templos clássicos, foi gradualmente camuflada e dissimulada, e também, em certos lugares, revestida de forma mais amenas, mas não foi absolutamente suprimida” (ENGELS, 2012, p.42). 22 Para a teoria marxista, a ideologia da classe dominante é a ideologia dominante do conjunto da sociedade. Constata-se que a classe dominante é, entre outras coisas, identificada pela capacidade de elaborar visões sociais, da cultura e da história segundo seus próprios interesses. Lagarde se contrapõe ao entendimento de Marx e Engels, afirmando que as teorias dominantes incorporam, além dos interesses classistas, outros, que se expressam em grupos determinados, cujo domínio é essencialmente advindo da divisão de classes. A autora entende que as ideologias são determinadas como dominantes porque expressam as concepções e as normas e porque contribuem para a criação de necessidades surgidas aos grupos dominados (LAGARDE, 2005). 23 “A monogamia não foi, de forma alguma, fruto do amor sexual individual, com a qual nada tinha que ver já os casamentos permaneciam, antes como depois, feitos de conveniências. Ela foi a primeira forma de família fundada sob condições não naturais, mas econômicas, a saber, o triunfo da propriedade individual sobre o comunismo espontâneo primitivo. Soberania do homem na família e procriação de filhos que só podiam ser dele e destinados a tornarem-se herdeiros da sua fortuna. ” (ENGELS, 2012, p. 50). 36 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE exigência de castidade pré-conjugal e o estabelecimento do um duplo padrão sexual dentro do matrimônio, os homens asseguraram a legitimidade de sua descendência e garantiram, assim, seus interesses de propriedade (LERNER, 1990). A família monogâmica se transforma em uma família patriarcal, perpetuando a inferioridade da mulher, cujo trabalho ficou confinado à esfera privada, excluindo-a da participação na produção social (ENGELS, 2012). A teoria marxista expressa que, a partir do momento que o homem toma el mando de la casa, a mulher é inferiorizada e reduzida à serventia, a uma escrava das luxúrias masculinas e a um mero instrumento de reprodução (LAGARDE, 2005). As atribuições do marxismo são reconhecidas como aportes da teoria feminista para o reconhecimento das mulheres sobre suas posições na sociedade e na história24, já que, mesmo que seus pressupostos não tenham sido comprovados, foram os que definiram as principais questões teóricas dos cem anos seguintes (LERNER, 1990). A teoria marxista denunciou a conexão entre as mudanças estruturais nas relações de parentesco e mudanças na divisão do trabalho, por um lado, e a posição que ocupam as mulheres, por outro; demonstrou uma conexão entre o estabelecimento da propriedade privada, o matrimônio monogâmico e a prostituição; e, ainda, a conexão entre o domínio econômico e político25 dos homens e seu controle sobre a sexualidade feminina. A definição do matrimônio monogâmico, para Engels, é a mesma da primeira sociedade estatal26, como a sujeição de um 24 O primeiro a afirmar que o desenvolvimento de uma sociedade se mede pela condição da mulher foi o socialista utópico Charles Fourier, encapado posteriormente por Marx e, sobretudo, por Engels. 25 “Não se pode assegurar a verdadeira liberdade, não se pode edificar a democracia – sem falar de socialismo – se não chamamos as mulheres ao serviço cívico, na milícia, na vida política, se não a tirarmos da atmosfera brutal do lar e da cozinha” (MARX, ENGELS, LENIN, 1979, p.12). 26 “Vimos o quanto Bachofen tinha razão ao considerar o progresso constituído pela passagem do casamento por grupos ao casamento tribal como obra da mulher; somente a passagem do último a CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 37 sexo ao outro, entendendo que a primeira oposição de classes que aparece na história coincide com o desenvolvimento do antagonismo entre homem e mulher no matrimônio monogâmico, reconhecendo-o como a primeira opressão de classes – a do sexo masculino sobre o feminino27. As afirmações de Engels sobre a relação entre os sexos e o antagonismo de classe fez com que os teóricos não compreendessem, realmente, as diferenças entre as relações de sexo e as relações de classe (LERNER, 1990). Cabe ressaltar que, paralelamente à teoria marxista, surge a psicanálise de Freud28, sendo que ambas dialogaram profundamente, e seus discursos continuam persistentes até hoje. A diferença entre as duas teorias, além de seus objetos de pesquisa, foi que o questionamento das categorias marxistas de gênero ocorreu no campo epistemológico29, enquanto que a psicanálise tratou da filogênese, no caso, do desenvolvimento do ser humano e não da busca da compreensão da natureza e da gênese, da origem, do ser social e da sociedade (ontogênese), da qual se ocupou Marx. monogamia pode ser posto em conta do homem; sua única razão na história foi tornar pior a situação das mulheres e facilitar a infidelidade dos homens” (ENGELS, 2012, p. 61 a 63). 27 Tanto Engels como Bachofen afirmam que o patriarcado surgiu ligado à passagem de uma vida sexual comunitária para a adoção de certas formas de associação sexual, primeiramente com a família sindiásmica (o homem pode ter outras ligações, mas a mulher não; ainda, o casamento pode ser dissolvido por divórcio), e depois com o casamento monogâmico. As duas últimas formas asseguram ao marido a posse sexual exclusiva da mulher. “[...] as suposições dos autores, segundo as quais o patriarcado tem origem unicamente, ou em grande parte, na adoção de certas formas de associação sexual são insustentáveis; outras modificações de ordem social, ideológica,tecnológica e econômica parecem mais plausíveis. Em contrapartida, a afirmação de Engels de as mulheres constituírem a primeira propriedade é verdadeira. Mas quando ele sustenta que as mulheres são reduzidas à condição de objeto pelo casamento, que dá ao homem a posse sexual exclusiva (posse não recíproca), isto pressupõe já condições patriarcais. ” (MILLETT, 1970, p.80). 28 “[...] a fundação da Psicanálise por Freud, no final do século XIX, que vai fazer a diferença dos sexos o motivo central da reflexão. Aqui, pode-se também observar oscilações complexas entre a afirmação de um e dos dois sexos, o horizonte do mais e do menos: a centralidade do falo força ambos os sexos à experiência de castração, mas de maneira mais difícil para as mulheres devido, por um lado, à sua primeira relação desejante da mãe que, em seguida, deve ser voltar para um homem, e, por outro lado, à falta de pênis traduzida como ‘inveja do pênis’. ” (HIRATA, 2015, p.61). 29 Compreende-se por epistemologia toda a noção ou ideia, refletida ou não, sobre as condições vitais para a constituição do conhecimento válido. É por via deste conhecimento válido que uma dada experiência social se torna intencional ou inteligível (SOUZA, 2013). 38 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE Assim, o pensamento psicanalítico foi subversivo e conservador30, ao passo que ao marxista não se aplica o segundo termo (SAFFIOTI, 2015). Outra teoria acerca da subordinação das mulheres é a estruturalista, baseada na obra do antropólogo Claude Lévi-Strauss (1973), que defende que os homens construíram a cultura a partir de um só componente histórico. Há o reconhecimento do tabu do incesto como um mecanismo universal humano, enraizado em qualquer organização social, sendo sua proibição compreendida não só como uma norma que proíbe o matrimônio com a mãe, a irmã e a filha, mas uma norma que obriga a dar a mãe, a irmã ou a filha a outros, como gratificações. Para a teoria, o intercâmbio de mulheres foi a primeira forma de comércio, que as converteu em mercadoria, considerando-as coisas antes de seres humanos (LERNER, 1990). Com relação ao entendimento do intercâmbio de mulheres como a primeira forma de comércio e em relação à teoria, a antropóloga e feminista Gayle Rubin31 apresenta as consequências e extensões desse sistema para o pleno exercício do direito das mulheres sobre si mesmas. As relações sociais do sistema familiar, segundo a antropóloga, decretam aos homens direitos sobre as mulheres da família, sem considerar os motivos que deram início a um intercâmbio de mulheres e não de crianças e sem lograr responder, também, o que levava as mulheres a estarem de acordo. 30 “Ao considerar as teorias de Freud sobre as mulheres, devemos atentar não só para as conclusões que tirou dos fatos que dispunha como também para as hipóteses sobre as quais se baseou. Para Freud, os sintomas das suas pacientes não traduziam uma insatisfação justificada perante a situação restritiva que lhes impunha a sociedade, mas uma tendência independente e universal do caráter feminino. Batizou esta tendência de ‘inveja ao pênis’, descobriu as origens na experiência de infância, e sobre ela fundou a psicologia da mulher, organizando o que considerava como os três corolários da psicologia feminina- passividade, masoquismo, narcisismo-, de forma que cada um destes aspectos dependia de ou estava em relação com a inveja do pênis.” (MILLETT, 1970, p. 177). 31 A antropóloga, em 1975, afirmou que o sistema sexo/gênero consiste numa gramática, segundo a qual a sexualidade biológica é transformada pela atividade humana, tornando disponíveis os mecanismos de satisfação das necessidades sexuais transformadoras. Sua principal obra é “Deviations: A Gayle Rubin Reader”, publicada em 2011. CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 39 Assim, “a teoria estruturalista reconhece o sistema sexo/gênero como um conjunto de arranjos através dos quais uma sociedade transforma a sexualidade biológica em produto da atividade humanas. ” (RUBIN, 1993, p.3). Esses questionamentos provocaram uma mudança nas teorias feministas, que passaram a buscar desde as origens econômicas até os sistemas de símbolos e significados das sociedades conhecidas, identificando as mulheres como inferiores, como forma de intermédio entre seres. Cabe salientar que os estudiosos de gênero pós-modernos32 apresentaram críticas à Gayle Rubin, devido ao fato de que ela trabalhava com oposições como natureza e cultura e separação entre os sexos; contudo, a antropóloga e professora Sherry Ortner,33 em 1974, apresentou um breve ensaio que defende a universalidade da subordinação feminina, afirmando que em qualquer sociedade conhecida as mulheres estão identificadas como mais próximas da natureza do que da cultura, tendo sido convertidas em um símbolo de inferioridade. Ao lado de Ortner, feministas defendem a universalidade da subordinação feminina, se não nas condições sociais atuais, ao menos nos sistemas de significado da sociedade. Os que se opuseram a essa visão foram criticados por desconsiderarem processos históricos, momento em que se coloca em dúvida a aceitação implícita do feminismo estruturalista na dicotomia imutável entre homens e mulheres (LERNER, 1990). O aprofundamento do debate evidenciou que nem a ideia de que um único e específico feito seria a causa responsável de certo problema, nem a ideia de universalidade, vão responder corretamente a questão das causas de subordinação. As explicações 32 Ao contrário do sentido adotado por este trabalho para sexo e gênero, podemos citar, a nível de informação, os estudos de Judith Butler, a partir dos quais o sexo passa a ser visto como culturalmente construído e gênero como meio de discurso para a construção do sexo. 33 Uma de suas principais obras foi publicada em 1974, intitulada Is female to male as nature is to culture?. 40 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE econômicas, realçadas a partir de considerações biológicas, passaram a ter que tratar com o poder dos sistemas de crenças, símbolos e construções mentais. A teoria materialista, portanto, tem sido considerada como uma teoria feminista na prática e nas intenções, e também como uma teoria representante da tradição histórica ao pensar sobre as mulheres, construída, portanto, a partir da aceitação de diferenças biológicas entre sexos e do reconhecimento de uma divisão de trabalho condicionada por essas diferenças. Uma das obras que impulsionou os debates feministas foi a de J.J. Bachofen, quando o antropólogo descreveu várias etapas da evolução da sociedade, desde a barbárie até o moderno patriarcado, afirmando que nas sociedades primitivas existiram culturas matriarcais. No entanto, as feministas norte-americanas desenvolveram a teoria materialista, dando origem a uma doutrina patriarcal redefinida quanto à esfera da mulher, que passou a relacionar as privações das mulheres com a imposição de fragilidade ao seu sexo, já que frequentemente os registros históricos colocam as mulheres como responsáveis por resgatar a sobrevivência da sociedade da destruição, da competitividade e das violências criadas por homens, possuidores de um poder absoluto, como portadoras de uma missão para sobrevivência humana. O acesso a uma educação igual e a participação na vida pública em igualdade com os homens foi, e ainda tem sido, um dos maiores obstáculos enfrentados pelas mulheres, que, mesmo após a instituição de novos modos de governo, mantiveram seus papéis de subordinação e de responsabilidade para com a educação dos filhos34, futuros condutores sociais (LERNER, 1990). Elizabeth34 “[...] o pai pode omitir-se em tudo, mas resguarda sua autoridade. Mesmo quando cabe à mulher total responsabilidade pela educação dos filhos, é ela mesma que, diante de uma traquinagem dele, ao invés de aplicar-lhe o castigo devido, omite-se, ameaçando-o com o famoso ‘contarei tudo a seu pai quando ele chegar’. A autoridade, assim, permanece nas mãos daquele que não educa. A responsabilidade cabe àquela que não detém autoridade. Desta forma, fica extremamente difícil, senão impossível, mostrar às crianças os limites de atuação, os limites do permissível. ” (SAFFIOTI, 1987, p.37). CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 41 Stanton35, feminista e ativista estadunidense, desenvolveu o argumento considerado materialista-feminista quando afirmou que as mulheres tinham direito a igualdade porque eram cidadãs. Posteriormente, com base no mesmo fundamento, as feministas organizaram o movimento sufragista e passaram a questionar o trabalho da mulher, além de reivindicar participação social e política através do voto. As feministas materialistas afirmam que a busca pela existência de sociedades matriarcais foi essencial para afirmar a teoria e reivindicar igualdade. Nessa busca se identificou que as mulheres são vistas em muitas civilizações como deusas, afirmando a existência de poder feminino, de uma idolatria; contudo, esses entendimentos são constituídos de uma combinação de pesquisas em diversas áreas, consideradas duvidosas e ligadas por presunções. Os antropólogos modernos têm refutado evidências etnográficas que embasaram os argumentos de Bachofen e Engels para a existência de uma civilização matriarcal, reconstituindo as evidências e fundamentando a existência de uma sociedade matrilinear, que, em regra, tinha sua economia e relações parentais controladas pelo parente-homem. Nota-se que são diversas as concepções acerca da existência de sociedades matriarcais (SAFFIOTI, 2015), e o espaço destinado à pesquisa não permite um aprofundamento da construção dessas sociedades. Contudo, as interpretações históricas demonstram que nas sociedades caçadoras e coletoras, independente do status social e econômico, as mulheres eram subordinadas, em alguns aspectos, aos homens, já que em nenhuma sociedade conhecida as mulheres, coletivamente, tiveram o poder de tomar decisões sobre os homens ou de definir as normas sobre suas condutas sexuais ou variar matrimônios (LERNER, 1990). Assim, aqueles que definem o 35 Stanton, ativista feminista e abolicionista, dedicou-se aos direitos políticos das mulheres, abordando questões para além do sufrágio feminino. Suas principais obras são History of Woman Suffrage, publicada em 1881, e The Woman’s Bible, publicada em 1972. 42 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE matriarcado como uma sociedade em que as mulheres dominam os homens, como o inverso do patriarcado36, sustentam seus argumentos em evidências extraídas da mitologia e da religião, e não de dados antropológicos e históricos. Dessa forma, a intepretação feminista de diversas áreas através da teoria materialista refuta, atualmente, uma série de definições a partir da releitura dos dados e nova interpretação das habilidades femininas como tão variadas quanto as dos homens e em igualdade de essencialidade para a sobrevivência humana. As descrições das interpretações feministas de Nancy Chodorow37 são apresentadas por Lerner (1990) e Pateman (1993), e evidenciaram discrepâncias sexuais universais na organização social dos gêneros, geradas pelo condicionamento das mulheres ao dever de cuidado dos filhos. Assim, cabe ressaltar que nada que aparece na história como eterno é mais que o produto de um trabalho de eternização, realizado por instituições como a família, a igreja e a escola. Portanto, uma história feminista deve apresentar outras visões que não a naturalista e essencialista. Sublinha-se que este trabalho baseia-se na teoria materialista-feminista, que compreende a subordinação da mulher como universal e que pretende a disseminação das diferenças e categorias entre homens e mulheres, a partir do questionamento da subordinação feminina e de todas as violências relacionadas a esse fenômeno patriarcal. Dessa forma, analisaremos o controle da sexualidade das mulheres e quais os motivos que ainda as mantêm em situação de inferioridade, buscando compreender os entrelaçamentos dos registros históricos e das atuais e perpetuadas opressões estruturais instituídas pelo patriarcado. 36 “Só se poderá seguir essa definição quando as mulheres possuírem poder sobre os homens e não poder ao lado deles, o que inclui a esfera pública e as relações om o exterior, bem como a tomada de decisões importantes por parte das mulheres no âmbito familiar e social. ” (LERNER, 1990, p.30). 37 Socióloga e psicanalista, é considerada uma das principais teóricas da psicanalítica feminista. Entre suas obras estão The Reproduction of Mothering: Psychoanalysis and the Sociology of Gender, publicada em 1978, e considerada um dos dez livros mais influentes dos últimos 25 anos, de acordo com a revista de sociologia americana Contemporary Sociology. CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 43 2.3 As estruturas de poder e as suas opressões As estruturas de poder não só dividem a sociedade em homens dominadores, de um lado, e mulheres subordinadas, de outro, mas também criam homens que dominam outros homens, bem como mulheres que dominam outras mulheres, o que permite o reconhecimento de que o patriarcado, articulado com as demais estruturas de poder (como o capitalismo e o racismo38), representa um sistema de relações sociais que mantém a subordinação da mulher. A supremacia masculina se faz presente em todas as classes sociais, desde as subalternas até as dominantes e, mesmo que uma mulher, em razão de sua classe, assuma posição social superior à de homens e outras mulheres de classes mais baixas, ela não será eximida de ser sujeitada ao julgamento do homem, seja 38 “Sexismo e racismo são irmãos gêmeos. Na gênese do escravismo constava um tratamento distinto dispensado a homens e a mulheres. Eis por que o racismo, base do escravismo, independente das características físicas ou culturais do povo conquistado, nasceu no mesmo momento histórico em que nasceu o sexismo. Quando um povo conquistava outro, submetia-o a seus desejos e a suas necessidades. Os homens eram temidos, em virtude de representarem grande risco de revolta, já que dispõem, em média, de mais força física que as mulheres, sendo, ainda, treinados para enfrentar perigos. Assim, eram sumariamente eliminados, assassinados. As mulheres eram preservadas, pois serviam a três propósitos: constituíam forca de trabalho, eram reprodutoras de força de trabalho e prestavam (cediam) serviços sexuais aos homens do povo vitorioso. Constitui-se uma prova cabal de que o gênero não e tão somente social, dele participando também o corpo, quer como mão de obra, quer como objeto sexual, quer ainda como reprodutor de seres humanos, cujo destino, se fossem homens, seria participar ativamente da produção e, quando mulheres entrar na engrenagem das funções descritas. Convém lembrar que o patriarcado serve a interesses dos grupos/classes dominantes e que o sexismo não é meramente um preconceito, sendo também o poder de agir de acordo com ele. No que tange ao sexismo, o portador de preconceito está, pois, investido de poder, ou seja, habilitado pela sociedade a tratar legitimamente as pessoas sobre quem recai o preconceito de maneira como este as retrata. Em outras palavras, os preconceituosos – e este fenômeno não é individual, massocial- estão autorizados a discriminar categorias sociais, marginalizando-as do convívio social comum, só lhes permitindo uma integração subordinada, seja em certos grupos, seja na sociedade como um todo. O sexismo não é somente uma ideologia, reflete, também, uma estrutura de poder, cuja distribuição é muito desigual, em detrimento das mulheres. O sexismo, contudo, trata de ocultar este fato, por exemplo, como a suspeita de que sempre se pode imputar a esterilidade às mulheres. Tanto assim é que, nos casais sem filhos, é sempre a mulher que se submete a exames de fertilidade. Só depois que esta fica provada, o homem se dispõe a procurar um médico. Comprovada a esterilidade masculina, em geral, a mulher é proibida de divulgar este resultado. A falha, no homem, deve continuar oculta. ” (SAFFIOTI, 2015, p.100-101). 44 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE seu pai ou companheiro. Por isso, podemos dizer que são as mulheres negras e pobres que estão na última posição de subordinação da sociedade brasileira. Os traços de personalidade adquiridos pelas mulheres ao longo de todo o processo de socialização fazem com que todas acreditem, pelo menos em um primeiro momento, que não são capazes, pois foram ensinadas que a razão não lhes pertence, condicionando-as, via de regra, a não terem confianças em si mesmas, fato que as impede de lutar vigorosamente para mudar a sua condição de inferioridade (SAFFIOTI, 2015). Então, qualificadas como vítimas e sofredoras, em seu destino de mulher, só são merecedoras de aplausos por parte da sociedade quando aceitam tal condição. Em consequência, a cartilha da ideologia dominante interpreta aquelas que não seguem tais padrões como desonradas pelos seus comportamentos, e, por isso, merecedoras de repressão. Durante o processo de socialização, os homens são ensinados a competir permanentemente, seja por empregos ou pela atenção de mulheres, traço que constitui a personalidade masculina, junto ao componente básico da agressividade, o modelo de homem. Paralelamente, as mulheres são ensinadas a inibir qualquer tendência agressiva, já que os padrões sociais lhes imputam as características de docilidade e passividade, pois, caso sejam identificadas como agressivas, correrão o risco de serem estereotipadas como “mulher-macho” (SAFFIOTI, 1987), ou seja, a mulher que quer imitar o homem39. A ideologia patriarcal pretende enquadrar ambos os sexos em papéis pré-determinados e excludentes, independente das particularidades de cada ser humano. Dessa forma, a supremacia é garantida ao macho adulto. Assim é visto que “à medida que os filhos vão entrando na idade adulta, vai-se estabelecendo o domínio do irmão sobre a irmã, 39 Imbuídas da ideologia que dá cobertura ao patriarcado, mulheres desempenham, com maior ou menor frequência e com mais ou menos rudeza, as funções do patriarca, disciplinando filhos e outras crianças ou adolescentes segundo a lei do pai. Ainda que não sejam cúmplices desses sistemas, colaboram para alimentá-lo. CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 45 numa repetição de modelo parental” (SAFFIOTI, 1987, p. 39). Portanto, tem-se que a família não reúne condições suficientes de educar novas gerações para que ambos os sexos desfrutem do prazer (SAFFIOTI, 1987). Todas essas diferenças tornam a vida da mulher mais ou menos difícil, mas sempre lhe imputam a responsabilidade última pela casa e pelos filhos. As formas particulares em que ocorre o fenômeno de subordinação em cada ciclo vital, com suas normas, instituições, seus modos de vida e sua cultura, são reconhecidas como os cativeiros das mulheres40, e nem tudo é dor dentro deles – ao contrário, a ideia é que os cativeiros passem a adquirir texturas de felicidade, enunciadas na língua patriarcal como entrega e lealdade. A mulher está situada em determinado lugar no mundo, colocada para dentro de casa, o cuidado com os outros é concebido como causa de seus instintos sexuais e maternais, estando a subordinação alienada, portanto, ao poder, conteúdo do amor (LAGARDE, 2005). O complexo de fenômenos opressivos que articula inferiorização, discriminação, dependência e subordinação, define o papel das mulheres na sexualidade, nas atividades, no trabalho, nas relações sociais, nas formas de participação no mundo e na cultura, definindo os limites de suas possibilidades. O processo de subordinação não é de entrega ou apropriação, pois não permite autonomia; as mulheres estão conformadas como parte dos outros, imbuídas da ideia de que o impulso que dá sentido à sua existência é a dependência dos vínculos, é sua realização com esses vínculos. Esses processos sintetizam a vitória patriarcal: a sociedade 40 “A categoria cativeiro foi construída como sínteses dos fatos culturais que definem o estado das mulheres no mundo patriarcal. O cativeiro define politicamente as mulheres, se concretiza na relação especifica das mulheres com o poder, e se caracteriza pela privação de liberdade, pela opressão. O cativeiro caracteriza as mulheres por sua subordinação ao poder, por sua dependência vital, o governo e a ocupação de suas vidas pelas instituições e pelos particulares (os outros), e pela obrigação de cumprir com o dever feminino de seu grupo de sujeição, concretizado em vidas estereotipadas, sem alternativas. ” (LAGARDE, 2005, p.36). 46 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE disponibilizando mulheres para adorar e cuidar dos outros, trabalhar, purificar e mudar o mundo, tudo por desejo próprio41. Cada mulher se torna a expressão do que também não pôde ser, devido à divisão genérica e classista das sociedades, pois todos os compartimentos e as categorias sociais que constituem cada sexo, sua divisão genérica e classista, implica à mulher um futuro pré-definido (LAGARDE, 2005). Portanto, a opressão das mulheres constitui um conjunto articulado de características inscritas na situação de subordinação, no conjunto da sociedade e do Estado. A opressão se manifesta e se realiza na condição da mulher como objeto, fundada na desigualdade econômica, política, social e cultural, bem como concretada em um todo unitário e simultâneo dessas características, no grupo social das mulheres, e em cada mulher em particular. São diversas as determinantes para a situação de opressão das mulheres, as quais se expressam a partir da divisão sexual do trabalho e pelo conjunto do que é viver a partir de valores e classificações determinadas pelo sexo; pela divisão genérica dos espaços sociais: criação-procriação, público-privado, pessoal- político; pela existência de formas, relações, estruturas e instituições hierárquicas de poder e domínio autoritário, fundadas na exploração de alguns grupos por outros, que delimitam suas capacidades de decidir; por estarem as opressões baseadas em critérios de idade, de religião e de uma série de variantes que influenciam cada sociedade; também se expressam pela definição da mulher enquanto ser social em torno de uma sexualidade expropriada, procriadora ou erótica, de um corpo que serve aos outros (LAGARDE, 2005). 41 “As mulheres estão submetidas à opressão porque, para estabelecer vínculos e ser aceitas, com a nossa anuência ou contra nossa vontade, vivemos a reificação sexual de nossos corpos, pela negação da inteligência e a inferiorização dos afetos, ou seja, a coisificação de nossa subjetividade acesa [...] nossa cegueira se concretiza também na negação de nós mesmas, de nossas capacidades, dos saberes críticos que podemos possuir. ” (LAGARDE, 2005, p.17). CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 47 A opressão está fundadasobre o corpo cultural da mulher, sobre sua sexualidade, seus atributos e suas qualidades, normatizados e disciplinados para estarem à disposição da sociedade e do poder, sem que sejam avaliadas suas reais vontades42. O condicionamento da mulher exclusivamente ao espaço privado revela que todas estão à disposição dos outros e sob o domínio dos homens e de suas instituições patriarcais e classistas43. Cabe salientar o entendimento adotado neste trabalho de que as mulheres não constituem uma classe, mas estão presentes em todas, já que a teoria classista permite compreender os aspectos de suas vidas e as formas que ocorrem as opressões sociais; no entanto, a teoria não logrou explicar o motivo de a condição genérica estar intrinsicamente relacionada com suas opressões, o que depreende que mulheres são oprimidas por serem mulheres, e algumas também por sua classe (LAGARDE, 2005). Então, mesmo quando todas as mulheres estão submetidas à opressão por sua condição histórica44, existem diferenças entre elas devido à sua situação histórica, pois, como exemplo, a opressão das mulheres burguesas, responsáveis pela organização e 42 Mulheres em geral e, especialmente quando são vítimas de violência recebem tratamento de não- sujeito. Isto, todavia, é diferente de ser não-sujeito. Condição que refuta os estudos que defendem que as mulheres sejam cúmplices de seus agressores, julgadas pela dificuldade de sair definitivamente do relacionamento/violência. Pois, para que pudessem ser consideradas cúmplices, dar seu consentimento às agressões masculinas precisaria desfrutar de igual poder que os homens. No entanto, sendo detentoras de parcelas infinitamente menores de poder que os homens, as mulheres só podem ceder, não consentir. Trata-se de caso similar à relação patrão-empregado. Este último não consente com as condições do contrato, tampouco com o salário, mas cede, pois quase sempre é abundante a oferta de forca de trabalho e escassa oferta de postos de trabalho, particularmente em determinados contextos históricos (SAFFIOTI, 2015). 43 “É necessário precisar que as mulheres e os homens constituem grupos socioculturais genéricos. Que esses grupos emergem da divisão do mundo a partir da sexualidade; e que os fenômenos políticos globais e dominantes que caracterizam o patriarcado são: a opressão, genérica das mulheres. ” (LAGARDE, 2005, p.20). 44 “Na opressão, a dependência tem sido o eixe da condição histórica da mulher e da particular situação das mais diversas mulheres. A base do cativeiro das mulheres é a dependência desigual, na subalternidade. Trata-se de uma dependência vital escorada pelo domínio dos outros. Desde então, os cativeiros das mulheres se emolduram no âmbito do poder, e que o cativeiro seja, assim, uma categoria política, social e cultural conformada na história da opressão das mulheres. ” (LAGARDE, 2005, p. 110). 48 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE administração do trabalho doméstico, é diferente da opressão das mulheres assalariadas45. Evidencia-se, também por tudo que já foi exposto no presente trabalho, que a opressão tem sido uma característica inerente à condição de ser mulher no decorrer da história, sendo que a opressão patriarcal tem se desenvolvido a partir do surgimento de determinados feitos, processos concretos, como a civilização (LAGARDE, 2005). Um dos elementos nucleares do patriarcado reside exatamente no controle da sexualidade da mulher, a fim de assegurar a fidelidade da esposa ao seu marido (SAFFFIOTI, 2015). Assim, a dominação dos homens sobre as mulheres e o direito masculino ao acesso sexual a elas dá origem a uma história de sujeição, a história do contrato sexual46. Tal dominação está presente na relação social existente entre uma relação sexual, pois está construída na divisão entre o masculino-ativo e o feminino- passivo, configurando os desejos de ambos os sexos, “estando o desejo masculino expresso como necessidade de posse47 e o desejo feminino expresso na necessidade de ser dominada pelo masculino, como um reconhecimento erotizado do que trata o poder de dominação e o controle da sexualidade” (BOURDIEU, 2016, p. 38). Para a antropóloga Marcela Lagarde, 45 “[...] uma conta com uma equipe de empregos e com meios para levar a cabo suas funções materno-conjugais, e a outra não só não tem meios suficientes, mas ela mesma realiza todas as funções para além do trabalho assalariado que realiza. Sendo proprietárias e incluso exploradoras diretamente, as burguesas vivem subordinadas, dependentes e são discriminadas nas relações familiares e sociais, pelo único fato de serem mulheres, de maneira similar às assalariadas, que além da exploração de classe estão submetidas à opressão genérica. ” (LAGARDE, 2005, p. 109). 46 “[...] a liberdade civil não é universal – é um atributo masculino e depende do direito patriarcal. Os filhos subvertem o regime paterno não apenas para conquistar sua liberdade, mas também para assegurar as mulheres para si próprias. Seu sucesso nesse empreendimento é narrado na história do contrato sexual. O pacto original é tanto um contrato sexual quanto social: é social no sentido patriarcal- isto é, o contrato cria o direito político dos homens sobre as mulheres- e, também sexual no sentido do estabelecimento de um acesso sistemático dos homens ao corpo das mulheres” (PATEMAN, 2003, p.16). 47 “Para o poderoso macho importa, em primeiro lugar, seu próprio desejo. Comporta-se, pois, como sujeito desejante em busca de sua presa. Esta é o objeto de seu desejo. Para o macho não importa que a mulher objeto de seu desejo não seja sujeito desejante. Basta que ela consinta em ser usada enquanto objeto. ” (SAFFIOTI, 1987, p.18). CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 49 La vida de la mujer está organizada en torno a la vivencia de una sexualidad destinada para. Como ciudadana o como fiel, como hija o como esposa, como madre o como prostituta, el poder atraviesa el cuerpo de la mujer. En el lenguaje laico y estatal se controla su fecundidad, su fertilidad es un asunto de política demográfica; en el lenguaje domestico del amor y del poder se hace referencia a la fidelidad, a la castidad, la virginidad, o a la permanente disposición a la maternidad o al placer del otro. (LAGARDE, 2005, p. 167)48. Assim, entende-se a sexualidade como linguagem, símbolo, mito, pois é um espaço de sanção, tabu, obrigatoriedade e transgressão, estando qualquer espaço de poder, como a sociedade e o Estado, ligados ao controle, ordenamento e sanções quanto à sexualidade. A sexualidade está estruturada socialmente para reproduzir uma cultura sintetizada e organizada pelos privilégios patriarcais masculinos, centrando a masculinidade e a feminilidade no acesso aos bens reais e simbólicos, o acesso ao trabalho e a outras atividades criativas (LAGARDE, 2005). O controle da sexualidade exercido pelo poder patriarcal objetiva a manutenção da ordem econômica, pois o logro de manter a mulher no espaço privado e, ao mesmo tempo, encantada por cumprir papéis sociais estereotipados, reconhece nelas a ideia de que necessitam ser protegidas, já que são responsáveis pela existência humana e, então, dependentes de ações materiais e simbólicas realizadas por homens. É clara a atribuição da mulher ao espaço doméstico49. Seja uma mulher que trabalha em troca de salário ou não, todas são 48 Tradução: “A vida da mulher está organizada ao redor da vivência de uma sexualidade destinada para. Como cidadã ou como fiel, como filha ou como esposa, como mãe ou como prostituta, o poder atravessa o corpo da mulher. Na linguagemlaica e estatal se controla a sua fertilidade, que é um assunto de política demográfica; na linguagem doméstica do amor e do poder se faz referência à fidelidade, à castidade, à virgindade, ou à permanente disposição à maternidade ou ao prazer do outro. ” (LAGARDE, 2005, p.167, tradução nossa). 49 “No seio da família, a dominação masculina pode ser observada em praticamente todas as atitudes. Ainda que a mulher trabalhe fora de casa em troca de um salário, cabe-lhe realizar todas as tarefas domésticas. Como, de acordo com o modelo, os afazeres domésticos são considerados "coisas de 50 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE socialmente responsáveis pela manutenção da ordem na residência e pela criação e educação de seus filhos. Assim, por maiores que sejam as diferenças de rendas existentes entre as mulheres, todas carregam uma identidade básica: a de cuidadora. O investimento da sociedade em manter esses padrões é alto; a naturalização desse processo faz com que a mulher se dedique aos afazeres domésticos, por serem naturalmente capazes de serem mães50, afirmando que o natural, portanto, é a mulher ocupar o espaço doméstico, para o cuidado dos filhos, deixando livre para o homem o espaço público51. Cabe a ressalva de que as opressões emergem a partir de qualquer condição de domínio e exploração, formando estruturas de poder de sexo, raça e classe. Não se pode confundir ou alterar conceitos, pois a exploração é um fenômeno cultural originado economicamente, sendo incorreto atribuir apenas ao capitalismo a causa da situação das mulheres e definir as explorações sexuais, uma vez que as análises devem considerar o Estado, a sociedade e a cultura atual não só como capitalistas, mas também patriarcais (LAGARDE, 2005). Dessa forma, o poder exercido é a essência da subordinação e está presente em todas as relações sociais, bem como na reprodução dos sujeitos sociais, no público e no privado. A instituição da família monogâmica alcança controlar a mulher no âmbito familiar, pois, através da forma de um contrato sexual, coloca em relevo a figura do marido, mostrando o caráter mulher", o homem raramente se dispõe a colaborar para tornar menos dura à vida de sua companheira. Não raro, ainda se faz servir, julgando-se no direito de estrilar se o jantar não sai a seu gosto ou se sua mulher não chega a tempo, trazendo-lhe os chinelos. ” (SAFFIOTI, 1987, p. 50). 50 “É próprio da espécie humana elaborar socialmente fenômenos naturais. Por esta razão é tão difícil, senão impossível, separar a natureza daquilo em que ela foi transformada pelos processos socioculturais. A natureza traz crescentemente a marca da intervenção humana, sobretudo nas sociedades de tecnologia altamente sofisticada. Há, portanto, ao longo da história, uma humanização da natureza, uma domesticação da natureza por parte do ser humano. ” (SAFFIOTI, 1987, p. 9-10). 51 “É de extrema importância compreender como a naturalização dos processos socioculturais de discriminação contra a mulher e outras categorias sociais constitui o caminho mais fácil e curto para legitimar a “superioridade” dos homens, assim como a dos brancos, a dos heterossexuais, a dos ricos. ” (SAFFIOTI, 1987, p. 11). CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 51 assimétrico do pacto, no qual se troca obediência por proteção (PATEMAN, 1993). Assim, nota-se que a exploração econômica da mulher se dá conjuntamente ao controle de sua sexualidade, o que se observa também nos códigos que limitaram as mulheres e as tutelaram como pertencentes ao homem, excluindo-as das possibilidades de trabalhar, a não ser com o aval do marido, fato exclusivo da socialização sofrida pelas mulheres (SAFFIOTI, 2015). Portanto, as violências que sofrem as mulheres são resultado de múltiplos fatores; o profundo sistema patriarcal agora se articula com o sistema capitalista e com o neoliberalismo, de forma que as mulheres estão duplamente dominadas e exploradas. Ainda, retoma-se o dito quanto ao obrigatório recorte de classes e de cor, se a busca for verdadeiramente por equidade, pois a mulher negra e pobre, além da sua condição de mulher e sua situação de classe, enfrenta a violência do preconceito quanto à sua cor. É através da criminologia que tais problemáticas são enfrentadas, pois ela investiga e demonstra a ineficácia do sistema de justiça criminal52, que seleciona os indivíduos para a criminalidade a partir do controle social. 52 “O direito penal, o processo penal e o sistema de justiça criminal constituem, no âmbito de um Estado de Direito, mecanismos normativos e institucionalizados para minimizar e controlar o poder punitivo estatal, de tal forma que o objetivo de proteção dos cidadãos contra o crime seja ponderado com o interesse de proteção dos direitos fundamentais do acusado. ” (ANDRADE, 1995, p.30). CAPÍTULO 2 UM OLHAR FEMINISTA À CRIMINOLOGIA Da mulher como vítima à mulher como sujeito. (Vera Regina Pereira de Andrade, 2005). 3.1 As faces do pensamento criminológico Ao longo da história, o pensamento criminológico contou com diferentes métodos para conformar quais comportamentos seriam considerados criminosos nas sociedades, uma vez que não se trata de uma única criminologia e de um único pensamento53, mas sim de uma construção paralela a tudo que se expôs no primeiro capítulo deste trabalho. A ideação das condutas desviantes é fundamentada na opressão histórica das mulheres, utilizada para definir suas situações e suas condutas de acordo com os papéis sociais a elas destinados, para serem incluídas e mantidas em determinadas estruturas e representações limitadas. Assim, pela necessidade, pretende-se neste capítulo um olhar às situações das mulheres nos registros históricos e significativos para o desenvolvimento do discurso criminológico. A criminologia é dotada de uma multiplicidade de ideias em virtude das quais foi possível a construção de conceitos que, a partir de distintos pontos de vista, descreveram, ao longo da história, o que é o crime, quem é o (a) criminoso(a), quem é a vítima, e como o sistema criminal e as formas de controle daí decorrentes atuam (BARBOSA; MENDES, 2015). Ou seja, a criminologia tem como objeto de estudo o delito e o delinquente, mas também a vítima e o controle social. Seu objeto foi modificado 53 “São identificadas diversas áreas dentro do campo da criminologia, como a Criminologia Clássica, Positivista, Garantista, entre tantas outras, que definem os conceitos de crime, criminoso, vítima, sistema criminal ou controle, de formas diferentes, então, da criminologia a que se filia é que se pode delimitar a compreensão sobre as funções tanto do sistema social como do sistema penal” (MENDES, 2014, p. 21). “Cabe somente precisarmos o seu conteúdo, que atualmente é o estudo da criminalidade e do controle, considerados como um só processo social surgido dentro dos mecanismos de definição e jurídicos de uma organização social determinada” (RAMÍREZ, 2015, p.44). 54 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE após a ampliação das investigações para além das criminologias tradicionais, que versaram exclusivamente sobre a pessoa do delinquente, excluindo a análise de motivos decisivos para a elaboração das condutas criminosas. Então, o deslocamento de interesses criminológicos permitiu uma nova compreensão da criminologia, particularmente do alcance de suas pesquisas e de sua inter-relação com as demais áreas de formação social, momento no qual passa a adotar uma leitura da pessoa do delinquente e do delito à vítimae à preservação do controle social (MENDES, 2014). No entanto, o ponto em que a criminologia passa a ser um estudo científico permanece uma incógnita e é motivo de divergência entre as pesquisadoras e os pesquisadores da área. Este trabalho adota como primeiro discurso criminológico científico o Martelo das Bruxas (ou das Feiticeiras),54 datado de 1487, mesmo que se saiba da existência de discursos que antecederam o livro, como tratados jurídicos que criminalizavam a bruxaria, já entre os anos 1397 e 1406 (MENDES, 2014). O Martelo das Bruxas estabeleceu uma relação direta entre a feitiçaria55 e as mulheres, caracterizando-as como potenciais bruxas e, por isso, deveriam ser observados critérios quanto ao grau de perversidade de cada uma, suas crenças, suas malícias e suas fraquezas físicas e mentais; por exemplo, o conteúdo do discurso versa que toda a 54Malleus Maleficarum é o título original do livro publicado em 1487 por Kraemer e Sprenger na Alemanha, tornando-se guia dos inquisidores pelo restante do século XV e seguintes. “O conteúdo inclui as mulheres como únicas possíveis da condição de bruxas, conectando os desvios sexuais femininos com a bruxaria. No mesmo sentido, registra que a feiticeira era considerada uma mulher de sexualidade desenfreada que, ao atacar as propriedades genitais do homem ao acasalar com demônios constituíam ameaças às leis naturais da procriação. O empreendimento ideológico do texto fez os ideais se perpetuarem até o século XIX, dada à eficácia do poder instituído na Idade Média” (MENDES, 2014, p.28). 55 A repressão da feitiçaria aparece como uma resposta ao medo social provocado pelo aumento da mendicidade e da pobreza no campo, consequência do nascimento do capitalismo agrário, que determinou a reorganização de terras incultas. As feiticeiras de Salem (1692-1693), em Massachusetts, foram vítimas de uma violenta disputa de poder entre o grupo de agricultores- proprietários de terras, que estavam a perder influência, e o dos mercadores do porto, cujo poder político e econômico começava a se impor na região (MENDES, 2014). CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 55 malícia é leve se comparada a de uma mulher e, também, que todas as mulheres são um mal necessário (MENDES, 2014). O discurso criminológico, portanto, se baseava na condição da mulher bruxa como um fato inquestionável. Acrescentava-se a essa condição a situação de inferioridade aplicada aos que delinquiam por serem estereotipados como minorias sexuais. Assim, chega-se à conclusão da crueldade das violências sofridas pelas mulheres em consequência da caça às bruxas, pois todas foram identificadas como uma ameaça à humanidade, argumento utilizado como justificativa para os atos brutais e de tortura aplicados pelas instituições de poder nas investigações de mulheres suspeitas feiticeiras. Os inimigos eram os que duvidavam do mal que ameaçava a sociedade, o que legitimava a violência contra a mulher e o poder punitivo, incluindo suas seletividades; o castigo era igualmente legitimado, já que o mal era o resultado apenas da vontade humana, excluindo possíveis causas físicas e mecânicas, o que evidencia o caráter persecutório do discurso vigente, pois simultaneamente reconhecia um declínio ao mal em pessoas consideradas biologicamente inferiores, representadas massivamente pelo sexo feminino (MENDES, 2014). Os manuais de inquisidores eram compilações de crenças que previam uma propensão exclusiva da mulher ao delito, o que moldou uma teoria do poder punitivista reforçada pelo poder burocrático e cruel legitimado às instituições, mantido pela influência de um judiciário moldado pelo androcentrismo, que avalizava sua aplicação para garantir a proteção das pessoas de bem. Assim, a caça às bruxas, ao tomar uma forma legal, obedecia a procedimentos nos julgamentos penais, fato que demonstra a influência do modo de operação dos sistemas judiciais europeus sobre o genocídio de mulheres. Historicamente, o processo inquisitorial, uma das faces do processo de perseguição e repressão das mulheres, que confirma que a vitimização, eliminação e o extermínio das mulheres se originaram de uma ação estatal politicamente coordenada de custódia (MENDES, 2014). 56 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE Os trâmites das condenações registradas são absurdos e foram denunciados pelas feministas como um dos tantos genocídios de mulheres, perpetrados pela seletividade do sistema inquisitorial. Cabe observar que a maioria dos réus do tribunal do Santo Ofício foram mulheres, mesmo que seu alvo tenha sido também os homens e que as bulas papais não apresentasse uma distinção exclusiva entre os sexos (MALEVAL, 2004). A ideologia medieval conduzida pelo Martelo das Bruxas ocultou as mulheres e produziu padrões desviantes construídos de forma seletiva para elas, que mantiveram um alto grau de determinismo biológico e social, ainda aplicado ao sistema criminal atual. Como se sabe, a Idade Média foi um período de terror, de tiranismo e arbitrariedade do Estado; suas condenações eram espetáculos públicos de castigos e desumanização. Os tribunais seculares e eclesiásticos da Europa adotaram o sistema inquisitorial para o sistema penal, o que facilitou, pelo aval jurídico, a instauração e o julgamento de todo fato que envolvesse feitiçarias, tornando fácil a identificação das mulheres cúmplices desses conhecimentos pelas confissões devidas ao tribunal inquisidor. O tribunal inquisidor, através da obrigatoriedade das confissões, foi o principal instrumento judicial do caça às bruxas, bem como instaurou a grande cruzada contra as mulheres no século XIV em diante, perpassando os julgamentos dos Tribunais do Santo Ofício (MENDES, 2014). Portanto, é no período medieval que as mulheres são afastadas da esfera pública, e em que, particularmente, se constrói o discurso que não só exclui e limita a participação das mulheres na esfera pública, como também as persegue e as encarcera por pertencerem a um grupo considerado perigoso. A aliança perigosa entre os discursos jurídico, médico e teológico em favor do encarceramento da mulher no recinto doméstico ou no convento56 torna a caça às bruxas um elemento 56 “Os conventos não foram somente instituições destinadas à expiação do pecado, mais que isso, eram verdadeiros espaços de reclusão seja para o cumprimento de penas por crimes cometidos por CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 57 histórico marcante enquanto prática de misoginia57 e perseguição (MENDES, 2014). A burguesia ocidental, em meados da segunda metade do século XVIII, fez emergir o iluminismo, que sistematizou um período humanitário para a criminologia58. O período tem como obra o livro Dos Delitos e das Penas (1764), de Cesar Beccaria. Para o autor, a essência e a medida do delito se justificavam no dano social, mostrando-se contra as penas de caráter cruel e desigual. Seu projeto buscava racionalizar o poder punitivo e garantir ao indivíduo proteção contra toda intervenção estatal arbitrária (BECCARIA, 2011). A iniciativa do contratualista de estudar a justiça penal foi fundamental, pois sintetizou novas bases para as normas, que foram deduzidas a partir de princípios fundamentais, como o da proporcionalidade das penas, mulheres contra a honra de suas famílias, seja pelo “risco” de que estas viessem a cometer crimes como o adultério, o infanticídio ou o homicídio de seus consortes. ” (MENDES, 2014, p.8). 57 Diferentemente do racismo, a misoginia não é percebida pelos homens como um preconceito,mas como algo quase inevitável. A misoginia tem sido parte do ‘senso comum’ da sociedade, pois foi um preconceito demasiado óbvio para ser percebido. Em diferentes civilizações considerou-se como perfeitamente normal, que os homens condenassem as mulheres ou expressassem diretamente desgosto por elas, simplesmente por serem mulheres. Todas as maiores religiões do mundo e os mais renomados filósofos mundiais olharam para as mulheres com desprezo. A misoginia é a repulsa, desprezo ou ódio contra as mulheres e seu antônimo, filoginia, representa o amor, o afeto, o apreço e o respeito pelo sexo feminino. (HIRATA, 2015). 58 “Beccaria teve como base de seu discurso a filosofia estrangeira de Montesquieu e Rousseau e, portanto, utilizou dos princípios do contrato social, do direito natural e do Iluminismo. O pensamento iluminista advém do reconhecimento de um estado natural ou originário, estado em que os homens gozam de liberdade e igualdade, no entanto, perdem tais diretos com o Contrato Social, mesmo que este possibilite a garantia da liberdade civil e do direito à propriedade. Traidor é aquele que descumpre o compromisso da organização, produto da liberdade originária, sendo expulso. Tal organização se converte em um Estado absoluto, um estado de coisas, centrado no poder para acumular e concentrar riqueza, o que destrói a liberdade e igualdade natural dos homens. Partindo da ideia do contrato social, constata como consequência necessária o princípio da legalidade das penas. Isso significa dizer, o seu surgimento só é explicável em virtude da organização social produzida pelo contrato. O objetivo social que surge do contrato é alcançar a felicidade dos homens, o legislador deve tentar evitar os crimes, do que punir [...] Dava-se por ênfase a tarefa da prevenção em lugar da repressão. Ou seja, admite-se que corrobora à prática do delito o fato de que o Estado e a estrutura social, favorecem a um determinado grupo de homens, a uma classe, e não aos homens como tais, e que, além disso, não se preocupa com a eliminação da ignorância entre eles. Logo, criminoso, crime e pena são produtos da sociedade organizada, cuja legitimidade do poder punitivo, se encontra, na essência do contrato social. Posteriormente, as correntes que deram a expressão ao Iluminismo se separam, em decorrência do surgimento do Estado liberal de direito, no século XIX. ” (RAMÍREZ, 2015, p.50-51). 58 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE determinando a formação de uma corrente científica que foi chamada de Escola Clássica59. O discurso criminológico clássico foca na ilegalidade do crime, classificando-o e determinando punições específicas para cada tipo de delito60. A mulher criminosa surge com algumas observações quanto à tipicidade do crime em si; por exemplo, o estigma de prostituta que recai sobre a mulher, que passa a representar a degenerada moral e criminosa (MARTINS, 2009). Entre o final da Idade Média e o início do século XIX, não há pensamento criminológico sobre a condição feminina; denota-se que uma parcela significativa da humanidade não foi atingida pelo discurso libertário e garantista da Escola Clássica61. Em consequência, “as contradições entre o discurso de liberdade e igualdade com a real condição das mulheres fez surgir movimentos 59 Em reação aos excessos medievais a escola se estabeleceu em três principais ideias: a razão e o limite do poder de punir do Estado; à ferocidade das penas; a reivindicação de garantias individuais na persecução penal e fora dela. Abandona-se a corrente realística para voltar sua atenção ao crime e a pena como entidade jurídica abstrata, isolada do homem delinquente e do ambiente em que está inserido. Compreendia que a conduta delituosa estava baseada no livre arbitro para a realização de fato típica, afastando a ciência social e a investigações dos motivos que levou o agente a descumprir determinada norma. Para os clássicos o problema criminológico surgia como uma necessidade tanto de elevação do conformismo do ser humano, quanto de elevação do conformismo da lei, que deveria vincular-se aos direitos naturais do homem, obviamente, que cabe alertar que a linguagem da escola clássica não é a mesma dos direitos humanos do pós-guerra e, sim, uma linguagem do indivíduo, da liberdade individual, dos direitos subjetivos ou das garantias individuais. (ANDRADE, 1995). 60“Em princípio, antes do século XVII não havia uma separação entre o não criminoso e o criminoso. Somente a partir do século XVIII, quando, pela ineficácia do modo de produção feudal e com a comercialização do campo, os camponeses e trabalhadores foram expulsos, fato que forçou sua chegada à cidade em época de incipiente mercantilização. No momento em que o campo deixa de incorporar as satisfações das necessidades dos pobres, essas se inserem na dependência econômica da comunidade, que denota uma mudança substancial, a qual se formaliza na promulgação das primeiras leis repressivas. Nesse momento, a rejeição social se fundamenta no caráter desordenado do pobre, do vagabundo, da prostituta, de modo que sua conduta é vista mais como falta de socialização correta do que como uma propensão inata. ” (RAMÍREZ, 2015, p.84). 61 Nem mesmo a Declaração francesa de 1789, sobre igualdade de direitos, serviu como ponto de partida para um pensar criminológico quanto à condição feminina. A adesão das mulheres ao estatuto igualitário aparece por longo período de forma relativa, existindo apenas como filha, esposa e mãe, ou seja, como figura secundária. No final do século XVIII nenhuma mulher gozava de igualdade política, uma vez que a Revolução Francesa não trouxe significantes mudanças para as mulheres, que logo dos primeiros momentos da revolução foram recolhidas ao espaço doméstico por ordem do revolucionário. (ARNAUD-DUC, 1990) CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 59 feministas, que compreendiam a liberdade e igualdade como um direito não somente destinado ao papel de esposa” (MENDES, 2014, p.32). A Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, em 1791, de Olympe de Gouges demonstra a insatisfação e ineficácia dos direitos prometidos na época, da mesma forma que Mary Wollstonecraft, em 1792, que questionou o papel da mulher na sociedade e a importância da educação para sua efetivação, discurso que impulsionou o movimento sufragista (ARNAUD-DUC, 1990). A Escola Clássica inicia seu declínio ao constatar que a criminalidade seguia aumentando; compreende que o elemento crime afastava o criminoso, que passa a ser o foco de atenção da Escola Positivista, na segunda metade do século XIX. O segundo momento da criminologia sofre forte influência do naturalismo e da doutrina positivista62, uma vez que o autor do crime passa a ser a peça fundamental do sistema penal. A renovação do pensamento criminológico é incitada pelo antropólogo Cesare Lombroso, que, em 1876, com a publicação do livro denominado O Homem Delinquente, formula a teoria do delinquente nato, atávico, degenerado e marcado por uma série de estigmas corporais identificáveis anatomicamente (RAMÍREZ, 2015). Instaura-se a ideologia fundada na possibilidade de salvar a sociedade e o delinquente, pois, para Lombroso, não são as instituições ou tradições que determinam a natureza criminal; ao contrário, ele entende que é a natureza criminal que determina o caráter das instituições e tradições, devendo-se investigar o delinquente e não o delito, uma vez que o crime é compreendido como manifestação de um estado perigoso, ou seja, da periculosidade de um indivíduo (LOMBROSO, 2001). 62 “A ciência positiva não é só descritiva, como também é casual-explicativa, uma vez que a lei dacausalidade resulta essencial para a explicação do mundo. Assim, a previsão baseia-se na noção de que todos os fatos da natureza estão subordinados a leis naturais imutáveis e que é justamente a observação que permite descobri-las. ” (RAMÍREZ, 2015, p. 55). 60 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE O surgimento da Escola Positivista, além de Lombroso, contou com o jurista Garofalo (1877) e com sociólogo Enrico Ferri (1878), que foi responsável por transpor a antropologia lombrosiana para uma visão sociológica, dando início ao estudo do crime como fato social63. Os adeptos da Escola compreendiam que a pena não é um castigo, mas um meio de defesa social que deve ser proporcional à periculosidade do criminoso, e não à gravidade objetiva da infração cometida. Ou seja, “todo (a) aquele (a) que pratica um crime é responsável e deve ser objeto de uma reação social em função de sua periculosidade” (MARTINS, 2009, p.111). Lombroso, ao escrever com Ferrero, em 1892, a obra A Dona Delinquente64, objetivou aplicar seus estudos anatômicos e antropológicos às mulheres. Reuniram os inovadores discursos jurídico, médico e moral (religioso) para alegar que o grave problema das mulheres era o fato de serem seres imorais, cujas características eram o motivo impulsionador para o cometimento de delitos de forma instintiva, não relacionada ao considerável padrão de uma mulher honesta, passando a ser suspeita (MENDES, 2014). Então, o pensamento criminológico positivista passou a estudar anatômica e biologicamente o sexo feminino, concluindo que a mulher honesta é pautada no estereótipo da maternidade e fidelidade, com a sexualidade condizente com a sua idade e estado 63 “Ferri considera a existência de três causas ligadas à etiologia do crime, as individuais (orgânicas e psíquicas), as físicas e as sociais, ampliando a noção lombrosiana centrada em causas de origem biológica. Sustentava que o crime não é decorrência do livre-arbítrio, mas o resultado previsível determinado por esta tríplice ordem de fatores que conformam a personalidade de uma minoria de indivíduos como ‘socialmente perigosa’. Fundamental ver o crime no criminoso, um sintoma revelador da personalidade mais ou menos perigosa de seu autor, o que leva ao surgimento da tese fundamental de que ser criminoso constitui uma propriedade da pessoa que a distingue por completo dos indivíduos normais” (ANDRADE, 1995, p. 25). 64 “Para Lombroso, a mulher seria fisiologicamente inerte e passiva, sendo mais adaptável e mais obediente à lei que o homem. Apresenta características comuns às criminosas, tais como a assimetria cranial e facial, a mandíbula acentuada, o estrabismo, os dentes irregulares. Em relação ao estigma prostituta, diz o autor que não seria apenas uma amostra do machismo persistente nas teorias positivistas, mas igualmente de uma profunda preocupação com a questão que adviria do higienismo do século XIX: a repressão da prostituição e a tarefa de evitar os contágios” (ANITUA, 2008, p.307). CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 61 civil, o que representa o oposto da mulher prostituta. Dessa forma, “a prostituta se torna o exemplo de delinquente feminina, e a situação seria decorrente de uma inevitável predisposição orgânica à loucura” (MENDES, 2014, p.43). Para os positivistas, a potencial periculosidade social se tornou o centro do direito penal65, de forma que a pena se justifica enquanto meio de defesa social, e sua utilidade seria a prevenção especial positiva, “assentada na ideia de recuperação do criminoso por meio da execução penal66, que impõe o princípio da individualização da pena e o caráter seletivo do sistema de justiça” (ANDRADE, 1995, p.25). O positivismo atualizou historicamente a inquisição moderna (BATISTA, 2005), sendo que no final do século XIX, após longo período de ocultamento da questão da mulher no discurso criminológico, surge, na Europa, um discurso baseado em teorias patológicas da criminalidade, adiante analisadas, cujo objetivo era classificar a humanidade entre bem/mal, normal/criminoso, uma vez que o homem delinquente passa a ser o objeto principal da criminologia (MIRALLES, 2015). No século XX emerge a Escola Crítica, desenvolvida com base no paradigma do controle/reação social, composto de uma 65 “A relação da criminologia com o direito penal pode ser enfocada como de dependência absoluta ou de autonomia, em maior ou menor grau. O problema consiste em determinar qual é a natureza da relação, já que esta resulta evidente, pois o direito penal e a criminologia aparecem assim como duas disciplinas que tendem ao mesmo fim com meios diversos. O direito penal parte do estudo das normas jurídico-penais. A criminologia parte do conhecimento da realidade. O direito penal não está em condições de circunscrever o conteúdo da criminologia, que atualmente dirige um estudo crítico ao direito penal enquanto forma de definição e controle da criminalidade [...] Contudo, o direito penal é indispensável para a criminologia, já que surge em razão dele, através de um mecanismo institucional e formal como é a norma penal, uma organização social determinada que fixa objetos de proteção e com isso determina que é o delito e quem cria o delinquente e ao mesmo tempo uma forma especial de reação social” (RAMÍREZ, 2015, p.44-45) 66 “Instaura-se, desta forma, o discurso do combate contra a criminalidade (o mal) em defesa da sociedade (bem) respaldado pela ciência [...] uma luta científica contra a criminalidade erigindo o criminoso em destinatário de uma política criminal. A um passado de periculosidade confere-se um futuro: a recuperação. A sequência lógica (determinismo, criminalidade ontológica, periculosidade, anormalidade, tratamento e ressocialização) forma um circuito fechado que constitui uma percepção da criminalidade que se encontra, há um século, profundamente enraizada nas agências do sistema penal e no senso comum. ” (ANDRADE, 1995, p.26). 62 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE série de perspectivas, como a do interacionismo simbólico67, que compreende que as relações sociais nas quais as pessoas estão inseridas as condicionam reciprocamente. A teoria do etiquetamento68 rompe com o paradigma etiológico: desloca-se o foco do delito e do infrator para a análise do sistema de controle social, “desmascarando a suposta legitimidade de todo o sistema de valores sustentado, a partir da constatação de que o crime não pode ser estudado como um dado, e sim como centro de uma teoria da criminalidade” (MENDES, 2014, p.52). O processo de criminalização efetivado na teoria corresponde a três níveis de averiguação: a investigação do processo de definição da conduta desviante (criminalização primária) e o estudo da distribuição do poder social dessa definição; a investigação do processo de atribuição do status criminal (processo de seleção ou criminalização secundária), que concede uma etiqueta de desviante à conduta ou ao indivíduo selecionado; e, por fim, a investigação do impacto da atribuição do status de criminoso para a identidade do desviante (ANDRADE, 67 Ligado ao positivismo, o funcionalismo, cujo um dos sucessores foi Durkheim, tem o mesmo objeto que o primeiro: dar ordem ao sistema capitalista. No século XX buscava criar um sistema próprio para as ciências sociais com caráter positivo, vendo a sociedade como um processo. A diretriz academicista do funcionalismo provocou críticas ao sistema, que levou a crise do funcionalismo nos anos sessenta, com o despertar das lutas jovens e raciais nos Estados Unidos e com a força da classe média junto à da nova burguesia. Juntam-seàs posições radicais o chamado interacionismo simbólico, que concebe o indivíduo como ativo frente ao ambiente e ao mesmo tempo compreende o ambiente moldável por ele. E vice-versa. O que importa não são os dados, senão como o sujeito o conhece, o modo como entra em contato com os outros. Nota-se que o interacionismo simbólico tende a desconhecer a existência de grupos sociais, de classes sociais, do processo de produção e poder (RAMÍREZ, 2015). 68 Os autores não são unânimes quanto à nomenclatura, ou melhor, designação para a corrente de pensamento. Podendo ser sinônimo de teoria da rotulação social, teoria do etiquetamento, teoria da reação social ou ainda teoria interacionista. Segundo Shecaira “A Teoria do Labeling surge após a 2ª Guerra Mundial, os Estados Unidos são catapultados à condição de grande potência mundial, estando em pleno desenvolvimento o Estado do Bem-Estar Social, o que acaba por mascarar as fissuras internas vividas na sociedade americana. A década de 60 é marcada no plano externo pela divisão mundial entre blocos: capitalista versus socialista, delimitando o cenário da chamada Guerra Fria. Já no plano interno, os norte-americanos se deparam com a luta das minorias negras por igualdade, a luta pelo fim da discriminação sexual, o engajamento dos movimentos estudantis na reivindicação pelos direitos civis (SHECAIRA, 2011, p. 370). CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 63 2003). Portanto, o status atribuído a determinados indivíduos se expressa, primeiramente, na seleção dos bens protegidos penalmente e nos comportamentos ofensivos aos bens descritos nos tipos penais e, em segundo lugar, na seleção dos indivíduos estigmatizados entre todos os que cometem infrações das mesmas normas penalmente sancionadas69 (MENDES, 2014). Desloca-se o interesse investigativo das causas do crime e do autor e seu meio, e mesmo do fato-crime, para a reação social da conduta desviada, em especial para o sistema penal70, o que “decorre da conclusão de que a criminalidade não tem natureza ontológica, mas social e definitorial” (ANDRADE, 2003, p.177). Contudo, a teoria recebeu críticas de que os teóricos do controle social não consideraram que a reação é provocada por um comportamento concreto de um autor, negando a realidade do desvio, negando toda estrutura (social, econômica e política) que influencia o comportamento desviante. As teorias conflituais pretenderam mostrar a relação do direito penal com interesses de grupos de poder, já que no processo de conflito grupos sociais buscavam a intervenção estatal para proteger os valores ameaçados por outros conflitos, e as sanções seriam forma de perpetuar o conflito e não o resolver (BERGALLI, 2015). Evidencia-se que a relação/influência da teoria do etiquetamento com a criminologia crítica é dada primeiro pela relação com uma criminologia liberal, cujo processo de 69 A partir do surgimento da intolerância, há uma espécie de estigmatização desse agente, pois a possibilidade de exclusão de um indivíduo da sociedade se dá pela soma dos processos de exclusão. Com isso, podemos concluir que o criminoso não é considerado como tal pelo ato que pratica, mas sim pela etiqueta que lhe é colocada, e tal rótulo poderá excluí-lo da sociedade, sendo ele estigmatizado e rejeitado. Temos, por exemplo, as cifras ocultas da criminalidade, a partir das quais alguns crimes nunca são punidos, ou sequer chegam ao conhecimento das instâncias de controle oficiais. Com isso, passa-se a punir somente uma classe de pessoas e tipos específicos de crimes, fazendo com que a punição e o direito penal não sigam o princípio da igualdade (GOFFMAN, 2004). 70 Como objeto desta abordagem, o sistema penal não se reduz ao complexo estático das normas penais, mas é concebido como um processo articulado e dinâmico da criminalização ao qual concorrem todas as agências do controle social formal, desde o legislador (criminalização primária), passando pela Polícia e a Justiça (criminalização secundária) até mesmo o sistema penitenciário e os mecanismos do controle social informal (ANDRADE, 2003, p. 177). 64 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE criminalização se revelou como um conflito entre detentores do poder e submetidos ao poder, momento em que as instâncias oficiais lhes atribuem o status de criminoso. Nesse sentido, a criminologia liberal aplica o enfoque da reação social às estruturas da sociedade, aos conflitos de interesse a às relações de poder entre grupos, como uma hipótese de que o controle social e o sistema penal pudessem ser integrados. Porém, demonstra-se adequada apenas para a mediação das contradições sociais entre sociedades que reproduziam relações de desigualdades, que se efetiva com a valorização de crimes contra a propriedade. (BARATTA, 2011). Ainda, do labeling à criminologia crítica encontra-se a fundamental construção de uma teoria materialista do desvio, dos comportamentos socialmente negativos da criminalização, como metodologia dialética para retomar o movimento social a partir de uma razão crítica (RAMÍREZ, 2015). O processo da criminologia crítica está na passagem da descrição para a interpretação da desigualdade extraída da contradição no direito penal entre a igualdade formal do sujeito jurídico, que oculta a desigualdade real de indivíduos concretos, em chances de criminalização (BARATTA, 2011). Assim, mesmo que o discurso criminológico crítico não apresente uma homogeneidade de teorias, todas consideram as relações de poder de ordem macro e microssocial, à estigmatização e aos etiquetamentos, bem como à reação social e à criminalização anterior ou posterior ao delito (MARTINS, 2009). Para a criminologia crítica, o processo de criminalização primária é um ato formal exercido pelas agências políticas do sistema penal, que estabelecem os critérios pragmáticos a serem executados pelas agências de criminalização secundária. Entretanto, esse programa só não é exercido em sua plenitude em razão da incapacidade operacional do sistema penal secundário, que gera uma atuação seletiva das agências. Então, estando o processo de criminalização condicionado pela posição de classe do autor e influenciado pela situação deste no mercado de trabalho CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 65 (ocupação, subocupação) e por defeitos de socialização (família, escola), concentraria as chances de criminalização no subproletariado e nos marginalizados sociais, em geral. Cumpriria, portanto, uma função de conservação e de reprodução social: a punição de determinados comportamentos e sujeitos contribuiria para manter a escala social vertical e serviria de cobertura ideológica a comportamentos e sujeitos socialmente imunizados. O cárcere, finalmente, nascido da necessidade de disciplina da força de trabalho para o consumo da fábrica, seria o momento culminante dos processos de marginalização, discriminação e estigmatização, que abrange da escola à assistência social (BARATTA, 2011). O processo de seleção opera não só sobre os criminalizados, mas também sobre os vitimizados. Tal como a seleção criminalizante, a seleção vitimizante resulta da dinâmica de poder das agências, em partes sucessivas. Assim, a criminologia crítica produz, num primeiro momento, o deslocamento das causas para os mecanismos da construção da realidade social (MENDES, 2014). A criminologia crítica insere “o desvio feminino dentro do controle social formal e informal, detentores de funções específicas e determinadas de acordo com o modelo de Estado e de sociedade, em razão da orientação político-econômica e dos interesses que dela derivam” (MIRALLES, 2015, p. 177). No entanto, antes de aprofundar os estudos sobre a criminologia crítica e os avanços dacriminologia feminista, se pretende uma breve exposição quanto à formação e atuação do controle social, sobretudo seus vínculos com a criminalidade feminina. 3.2 A criminalidade e as inter-relações com o discurso criminológico: o controle social (formal e informal) do papel da mulher No século XIX, a administração da justiça foi centralizada e racionalizada, os fenômenos sociais e criminais foram medidos e se 66 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE apresentou um menor volume de criminalidade feminina quando comparada à masculina. Como consequência, a criminalidade feminina passou a ser identificada como um tipo diferente de desvio, com forte interferência das teorias sociais e patológicas do século XX, que se sustentavam a singularidade e raridade do comportamento criminal dentro das características atribuídas ao sexo feminino (sua essência particular de âmbito pessoal biológico e psicológico). Na biologia criminal, a explicação da criminalidade da mulher é influenciada pelas características próprias que têm sido atribuídas a sua essência; para, a partir daí, fazer notar a “raridade feminina” no delito. Outra direção foi a de concentrar várias atividades criminosas da mulher nos processos biológicos do seu sexo. Assim, a criminalidade feminina tem sido sexualizada, ou seja, não escapa à atitude unidimensional que a moralidade, a sociedade e a religião têm exercido em relação à explicação de qualquer assunto relacionado à mulher [...]. (MIRALLES, 2015, p.180). Toda sociedade apresenta uma estrutura de poder, com grupos dominantes e dominados, com grupos próximos dos centros de decisão e grupos excluídos dele, que controlam socialmente a conduta dos homens e das mulheres (ZAFFARONI, 2003). Sendo assim, fato é que o domínio dos espaços e as novas formas de organização foram arquitetados para beneficiar o patriarca, portador do poder e, posteriormente, da propriedade, posto que ausentes as justificativas devidas pelo marxismo quanto ao domínio do espaço público e dos excedentes de produção terem se revertido à dominação masculina e não igualitária (LERNER, 1990). Por isto, para que os padrões sejam impostos e respeitados por uma maioria é fundamental a existência de uma gama de estruturas de apoio, que repreenda os questionamentos quanto aos papéis sociais com a atuação conjunta de dois tipos de controle: formal e informal. CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 67 Deduz-se pelo exposto que o controle social já estava presente antes da designação de seu termo, já que se deve ao reflexo das relações de poder existentes entre os grupos que conformam uma sociedade, concebida a partir de um sistema patriarcal, que traz consigo a necessidade de manter papéis sociais construídos e naturalizados em distintas épocas e que, de forma mais severa, atua para manter o papel destinado à mulher, interpretado como condição natural e, portanto, inquestionável. Relatou-se no capítulo anterior que desde os primórdios as civilizações são compostas por designações específicas de atividades, conectadas à construção do gênero, determinado pelo sexo biológico e pela cultura (androcêntrica) em que se está inserido/a. Desse modo, a compreensão dos tipos de controles requer a apresentação do conceito de controle social para a sociologia71, definido como o estudo do conjunto dos recursos materiais e simbólicos dos quais uma sociedade dispõe para assegurar a conformidade do comportamento de seus membros às 71 “Do mesmo modo que existe uma discussão em torno do início da Sociologia, há também quanto à criminologia e, o que põe em relevo suas estreitas conexões é, sobretudo, o caráter de ciência social que possui a criminologia, sendo que os dois pontos de referência da controvérsia são o Iluminismo e o positivismo. Colocar a tônica no Iluminismo ou no positivismo quanto à origem da sociologia ou da criminologia, tem uma significação diferente. Para o Iluminismo, o problema social e o criminológico são, antes de tudo, compreendidos como uma questão política, quer dizer, ligada à concepção de Estado, ou ao Estado que existia. Há, portanto, uma dependência a respeito da própria estrutura do Estado - e em especial de sua estrutura jurídico-político-institucional -, que é justamente a que origina os problemas sociais e criminológicos. Em contraponto, para o positivismo há um grupo social e um Estado a se consolidar. Os problemas sociais e criminológicos são consequentemente apenas dados dentro deste contexto e simplesmente tenta-se acomodá-los, buscando a eliminação dos fatores que o causam em cada caso [...] Trata-se da harmonização e coerência do corpo social em sua totalidade, e não de criticar senão de organizar e, assim, de deduzir toda a análise à busca daquilo que é útil para a consolidação do Estado, descartando, então, qualquer outra investigação ou crítica como irreal e metafísica. Em suma, quem concebe o mundo social como dado, absoluto e perfeito enquanto tal, em que a única coisa que cabe é somente sua organização e harmonização reacional; quer dizer, eliminar a desordem ou as falhas que nele se produzem, as quais têm sua origem em nossa defeituosa apreensão da realidade, colocará como origem da sociologia e da criminologia o positivismo [...] Ao contrário, quem concebe o mundo social como algo sujeito à transformação, em que não se trata simplesmente de corrigir as deficiências de funcionamento, senão, de mudar e repensar suas estruturas; em outras palavras, quem assume uma postura crítica, determinará como ponto de partida da sociologia e da criminologia o Iluminismo (RAMÍREZ, 2015, p.31-32). 68 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE regras e aos princípios prescritos e sancionados (BOUNDON; BOURRICAUD, 1993), e também como a capacidade que uma sociedade tem de autorregular-se, medida a partir da observação dos meios utilizados para a imposição de respeito aos seus próprios padrões (ZEDNER, 1996). Observa-se que os conceitos não são estáticos; a abrangência dos estudos é notável, o que dificulta precisar quais questões estariam envolvidas no controle social. A sociologia de Émile Durkheim (1858-1917) apresentou formulações sobre o problema da ordem social e da integração social e, também, investigou sobre os fenômenos que dizem respeito aos mecanismos empregados pela sociedade no momento da desobediência a normas sociais, como o crime e a pena72. O sociólogo pesquisa tanto os mecanismos gerais de manutenção da ordem social, quanto os fenômenos ou instituições específicas, que buscam fortalecer a integração e reafirmar a ordem social quando esta se encontra ameaçada (DURKHEIM, 1978). A teoria rejeita o princípio do bem e do mal, entende o desvio como fenômeno natural em determinados limites, funcional para o equilíbrio social e o reforço do sentimento coletivo, anormal apenas na hipótese de expansão em situações de anomia, caracterizada por desequilíbrios na distribuição de meios legítimos para realizar metas culturais de sucesso e bem-estar. Posteriormente, demonstrou-se a distribuição estrutural do acesso a tais meios legítimos, de forma que a realização de metas culturais em realidade compele minorias desfavorecidas para modelos de comportamento desviantes, difundidos por aprendizagem através das associações subculturais: a existência estratificada dos grupos sociais, com valores e normas específicos interiorizados, contextualizando comportamentos em sistemas 72 Se “o crime ofende certos sentimentos coletivos e dotados de uma energia e de uma clareza particulares, a pena é a reação coletiva que, embora aparentemente voltada para o criminoso, visa na realidadereforçar a solidariedade social entre os demais membros da sociedade e, consequentemente, garantir a integração social. ” (DURKHEIM, 1978, p.120). CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 69 concorrentes (oficial e subcultural). Então, o crime é explicado como uma atitude conforme a valores e normais subculturais e, não, propriamente, como atitude contrária aos valores e normais sociais, já institucionalizados. Os conceitos de anomia e subculturalismo, influenciados pela sociologia durkheimiana, foram aprofundados e originaram novas explicações, como as técnicas de neutralização dos vínculos normativos oficiais, igualmente refutadas (ANDRADE, 2012). A análise da teoria do etiquetamento supera a criminalidade como dado ontológico e pré-constituído, marcando a linguagem da criminologia contemporânea: o comportamento criminoso como comportamento rotulado como criminoso, o papel da estigmatização penal na produção do status criminoso, a relação dos desvios e a rejeição da função reeducativa da pena criminal, que consolida a identidade criminosa e introduz o condenado em uma carreira desviante (RAMÍREZ, 2015). Por esse motivo, a teoria se projeta sobre a criminalidade do colarinho branco, expressão que denota prestígio social do autor do crime e ausência de um estereótipo, visto que, nas relações entre poderosos, usa-se o prestígio social do autor para orientar a repressão; a teoria também se projeta sobre a cifra negra da criminalidade, com a distribuição social desigual da criminalidade pela seletividade dos órgãos oficiais e de opinião pública. Consequentemente, a teoria acentua outra interpretação das regras jurídicas, pois leis, e não só elas, mas também os mecanismos psíquicos atuantes, passam a ser utilizados para a interpretação do aplicador do direito como questão científica decisiva no processo de seletividade da pessoa criminoso/a; ou seja, há uma distribuição social desigual da criminalidade (BARATTA, 2011). Importante salientar que as teses de destaque no campo da patologia social foram as que estabeleceram uma estreita ligação entre a criminalidade da mulher, a sua infrassocialização e a adaptação aos valores da comunidade como causas de sua doença, estimando-se a necessidade de tratamento individual para a cura 70 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE (MIRALLES, 2015). Por exemplo, a teoria de Thomson (1967) foi uma que rompeu a conexão entre a explicação teórica e o controle do Estado, que são efetivados através de seus corpos hospitalares e do trabalho social. Afirmava que os instintos biológicos distintos no homem e na mulher e a falta de coesão familiar eram os aspectos fundamentais para o desvio73. Em relação à prostituição, afirmava ser uma prática decorrente de problemas na unidade familiar tradicional, que deveria ser interpretada numa situação microssociológica onde se desenrolam reações nervosas (RAMÍREZ, 2015). Outra teoria foi a obra revolucionária de Pollak (1961), que apresentou características comuns constatadas entre as mulheres criminosas, como a capacidade de conduzir o homem a tomar uma atitude bem definida do crime cometido pela mulher, no sentido de não chegar a entendê-lo e ser conduzido ao ato delituoso. Nota-se que a teoria de Pollack74 absteve-se de denunciar o crime; no entanto, permitiu a análise da primeira reação do homem frente ao 73 “Os estudos de Thomson tiveram implicações na política criminal, já que defendia a necessidade de trabalhar a área pré-criminosa, buscando substituir a família pelas diferentes agências estatais. Suas alegações foram criticadas por Smart (1976), que denunciou o autoritarismo da teoria, manifestado na necessidade de socialização na ordem existente, nas sentenças severas aos menores por atos criminosos e na supremacia do controle estatal através da imposição de valores da moral da classe média, calcados em preconceitos e crenças tradicionais sobre a mulher. Insuficiente para atender às condições de vida da classe trabalhadora e por ter desconsiderado a influência do duplo standard na moralidade, no sentido de que o valor social da mulher depende da percepção dos outros, de modo que ela deve ser símbolo de pureza e adoração, o que decorre da presença de preconceitos e crenças tradicionais sobre a mulher na obra do autor” (MIRALLES, 2015, p. 180-181). 74 “Para explicar a questão da criminalidade da mulher, Pollak começa precisar características encontradas na mulher criminosa, como: 1) a capacidade de instigação, pois as mulheres são quase sempre os cérebros organizadores do crime masculino, ou seja, realizam infrações por meio do homem e nunca são presas ou culpadas; 2) a habilidade de falsear e mentir que derivam de um elemento biológico, da passividade sexual, daí a atitude decorrente de estranhamento em relação “à verdade”; e 3) o sentimento de vingança que a mulher desenvolve frente ao homem como consequência da repressão sofrida. As afirmações do autor decorrem da construção do gênero feminino como dócil, que necessita de proteção. Logo, compreendia que o cavalheirismo masculino para com a mulher reafirma sua idealização em termos de doçura e pureza, vendo-a como um ser inofensivo, porém essa atitude muda quando a mulher comete um crime. Assim, ao afirmar que os homens não denunciam os delitos das mulheres é fortemente criticado, já que sustentava a mudança do comportamento masculino quando presente o conhecimento de que a mulher era delituosa (MIRALLES, 2015, p. 191). CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 71 crime feminino: “a imediata incredulidade e posterior amaldiçoamento, passando o homem desde uma atitude inicial de cortesia para uma atitude mais ofensiva, no momento em que toma conhecimento do delito cometido pela mulher” (MIRALLES, 2015, p. 190). Então, pela influência das teorias patológicas, os estudos psiquiátricos se mostram discriminantes por manipular as mesmas opressões patriarcais para construir os traços desviantes, que versam sobre os altos índices de sociopatia entre as mulheres sentenciadas, submetidas a questionários de personalidade que enfatizam a alta porcentagem de desvios como a neurose e a psicose, e o elevado grau de histeria nas mulheres, indícios formadores de psicopatias (ALVAREZ, 2004). O comportamento das mulheres é compreendido em função de uma dimensão de anormalidade, ou seja, tem-se uma percepção científica em relação à criminalidade do gênero feminino que segue a dicotomia bondade/maldade, pureza/pecado, passividade/agressividade, submissão/insurreição para elaborar o papel social mulher, pautando-se em crenças escritas por homens. Tais dicotomias estão reduzidas a uma característica fundamental: a essência feminina versus anormalidade/masculinidade em uma mulher, que integra seu comportamento ao conceito de transtorno de conduta e personalidade, fato que conduz as diferenças de comportamento a serem convertidas em questões clínicas (MIRALLES, 2015). A criminalização de condutas como prostituição e aborto representa o peso da moral do duplo standard sexual em uma cultura intolerante e moralizadora na consideração dos delitos da mulher para a determinação de questões em que está diretamente e privadamente envolvida75. Os delitos de sangue existem, mas 75 “Na realidade, são tipos legais pouco aplicados, ainda que criminalizem condutas amplamente praticadas, com grande visibilidade pública, especialmente a prostituição, e sempre com grande cumplicidade. Condutas que entram na categoria dos chamados “delitos sem vítimas”, que se caracterizam por obter um alto nível de consenso na adaptação social, que satisfazem desejos e 72 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERErecebem como medida de política criminal76 a internação em uma clínica especializada, que elimina a representação da mulher nas estatísticas carcerárias por um longo período (MIRALLES, 2015). Portanto, a abordagem clássica é fundamental para compreender a forma de controle social que incide sobre a mulher, que passa por uma concordância social e de atuação estatal, tornando a atitude valorativa em relação à mulher em um tipo de controle informal. Observa-se que a partir da segunda metade do século XX, o controle social prioriza as pesquisas empíricas sobre prisões, asilos, manicômios etc., ou seja, passa a investigar resultados das práticas de dominação e institucionalização, realizadas de maneira desigual. Há uma expectativa específica do Estado e da sociedade direcionada à mulher, uma realidade singular, cujos comportamentos são observados, selecionados e sancionados pelas estruturas de poder. Evidencia-se que o controle social atua em conformidade com a interpretação da criminalidade feminina, que acaba por conduzir as repressões que serão investidas à mulher nos meios formal e informal (MIRALLES, 2015). O controle social77, para o pensamento sociológico tradicional, corresponde a um conjunto de instituições, estratégias interesses totalmente privados sem resultar dele qualquer vítima senão a defesa da moral social tradicional (patriarcal), que por si mesmo não goza já de um consenso, por causa da ampla margem outorgada à liberdade individual pelas mudanças sociais, que permitem uma maior tolerância às questões privadas de cada indivíduo. Quanto à prostituição, observa que temos o exemplo mais contundente da aplicação do duplo standard sexual na prática penal e legislativa, já que uma mesma conduta ‘oferecer e solicitar relações sexuais mediante pagamento’ levou à incriminação do oferecimento da mulher e não da solicitação do homem. ” (MIRALLES, 2015, p. 224-225). 76 “A relação entre criminologia e política criminal resulta muito simples quando se concebe a criminologia costumeiramente como uma ciência exclusivamente empírica. No entanto, tornam-se difíceis os termos da relação quando se compreende a criminologia como uma ciência crítica, já que então ambas tendem a coincidir enquanto consideram a legislação do ponto de vista dos objetivos do Estado. Ademais, haveria a crítica quanto à reforma do direito penal em geral. A diferença residiria no fato de que a política criminal implica a estratégia adotada dentro do Estado, a respeito da criminalidade e do controle. Nesse sentido, a criminologia converter-se-ia em face da política criminal, em uma ciência de referência, para que esta, com base em seu material, pudesse configurar suas estratégias de atuação.” (RAMÍREZ, 2015, p.46). 77 Para o pensamento criminológico atual, o controle social corresponde a um conjunto de recursos concretos e simbólicos de que um grupo social dispõe para garantir a conformidade dos comportamentos dos seus integrantes a normas e preceitos pré-determinados. O controle social CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 73 e sanções sociais que pretendem promover e garantir referida subordinação do indivíduo aos modelos e às normas comunitários, para alcançar a conformidade ou a adaptação aos postulados normativos. Assim, “dispõe de instituições que condicionam o indivíduo através de um disciplinamento iniciado na família, que interioriza no indivíduo as pautas de conduta transmitidas e apreendidas no processo de socialização” (MIRALLES, 1982 p.126). Logo, o controle social utiliza desde meios difusos até os mais específicos, da mesma forma que utiliza o sistema penal, pelas instâncias formal e informal. O controle informal é representado pela família, escola, profissão etc., e o formal pelos agentes de poder, como a polícia, a justiça e a administração penitenciária (MIRALLES, 1982). Esses controles, mesmo que com distintas atuações, funcionam de maneira conjunta e constituem um fenômeno de largo desempenho e complexidade, que, conforme se estabelecem, permitem conhecer se se trata de uma sociedade menos autoritária ou mais democrática. Então, para avaliar o controle social é imprescindível observar, para além do sistema penal, quais as estruturas atuantes do controle informal (ZAFFARONI, 2003). O controle social informal abrange diversos modos de opressão à mulher, em diferentes dimensões. Sabe-se que os interesses do Estado no sistema capitalista de produção, vinculados ao papel da mulher, incluem a família, a escola, o trabalho e a medicina como meios condicionantes e mantenedores do papel social atribuído à mulher. Portanto, a base do controle informal é a família, que condiciona ao homem o papel de produção de bens e à mulher o de reprodução, o que se expressa na função disciplinadora do papel autoritário do homem, como pai e como marido, estando as mulheres condicionadas ao papel de mães, dispõe de inúmeros meios ou sistemas normativos (a religião, o costume, o direito etc.), de diversos órgãos ou portadores (a família, a igreja, os partidos, as organizações etc.), de distintas estratégias ou respostas (prevenção, repressão, socialização etc.), de diferentes modalidades de sanções (MIRALLES, 1972). 74 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE devendo destinar sua vida social e sexual ao cuidado dos filhos e do marido. A família perpetua, a partir do controle da sua sexualidade, a sujeição da mulher, que deve ser responsável por assegurar a monogamia e a moral da família, naturalizando a opressão da obrigação de ter que se dedicar à felicidade dos que formam seu ambiente familiar, local no qual a mulher “ensina às suas filhas táticas de socialização peculiares ao seu gênero: ser mais controlada, passiva e caseira” (MIRALLES, 2015, p. 196), uma vez que “a mulher só é realmente considerada mulher quando apresenta um comportamento feminino” (MIRALLES, 2015, p. 196). A necessidade constante de se colocar em uma posição subordinada e de atuar em concordância com as atribuições do gênero, decorre dos ensinamentos da educação infantil, através de jogos psicológicos, do amor, do afeto e do sentimento de culpa. A culpa é compreendida como o primeiro controle feminino, pois a família, ou a própria mulher, se coloca em funcionamento quando há recusa do papel moral efetivo feminino. Assevera Teresa Miralles, que: [...] socialmente, o papel da mulher é hipertrofiado, pois há dependência sexual. Nesta tarefa colaboram as formas de linguagem, a mídia (pensamos nos anúncios e comerciais direcionados à mulher) e a proteção penal de certas instituições. Existe uma sexualização da atuação da mulher e assim do comportamento do delinquente [...] o desvio da mulher de seu papel sexual implica, imediatamente, uma criminalização de sua conduta, Ainda, que, a mesma ação do homem não seja punida. (MIRALLES, 2015, p. 197). As funções destinadas às mulheres estão ligadas ao jogo de afeto, à culpa e à dependência sexual. Elas estão condicionadas a cumprir um papel social desvalorizado, relevante no seio da família e nas escassas derivações deste ambiente: grupo de amigos em comum do casal ou amigos de negócios do marido, onde acaba CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 75 perpetuando seu único e secundário papel. A invisibilidade pública da mulher conduz à individualização e à privatização dos seus direitos, deveres e crises, pois, na esfera doméstica, as normas, os conflitos e os mecanismos de controle são personalizados (ANDRADE, 2012). Reconhece-se a conquista da mulher ao direitode trabalhar fora de casa, momento em que passa a ter acesso ao espaço público e, consequentemente, às representações de poder. Isso levou a significativas mudanças, que ainda estão acontecendo, em razão da resistência das mulheres ao patriarcado e ao capitalismo. Ainda, antes de se pensar nas consequências dessa nova perspectiva, é necessário observar que a transformação objetiva de valores que o acesso da mulher ao trabalho significa foi absorvida como causa do aumento da criminalidade feminina, bem como a emancipação da mulher e o movimento feminista entre os aos 60 e 7078 do século XX (MIRALLES, 2015). No entanto, o movimento feminista atestou que o aumento da criminalidade feminina é uma consequência do aumento do consumo em todas as classes, especialmente a do trabalhador79. O 78 “A criminalidade feminina é uma resposta dada pelas mulheres para um determinado número de situações que sofreram mudanças nos últimos 40 ou 45 anos [...] a influência da emancipação da mulher é extremamente complexa e entre outras coisas, também afeta o avanço da justiça social, pela extensão de direitos humanos, reivindicar oportunidades sócio econômicas, de forma que as mudanças no comportamento da mulher não podem se relacionar diretamente com o movimento feminista, porque enquanto movimento social mostra-se coma manifestação de diversas mudanças na ordem econômica e social.” (SMART, 1970, p. 73-74). 79 A variação da participação da mulher no mercado de trabalho está condicionada às necessidades de produção do modelo capitalista, pois durante os períodos de crise a mulher é obrigada a voltar para o lar, é a primeira força de trabalho que fica desempregada. A mulher opera como o exército de reserva mais amplo do mundo capitalista. Portanto, é uma força de trabalho de segunda ordem, na medida em que seu trabalho é visto como temporário e considerado como uma atividade não essencial se comparada à atividade doméstica. Há uma divisão laboral em termos econômicos e especialmente sexuais: o primeiro modo de vida do homem é o contrato laboral, e o da mulher é o casamento como contrato matrimonial. A igualdade laboral entre os sexos é uma formalidade constitucional, não refletida nos sindicatos, na comunidade e nas organizações sociais (SAFFIOTI, 1987). O único tipo de trabalho aceito para a mulher é o realizado pela sua dedicação aos filhos, mesmo que eles já tenham se emancipado. Entende-se que o trabalho aceitável é aquele que cumpre uma função terapêutica. Paralelamente, foi informado que o declínio da maternidade tem produzido uma falta de interesse da mulher no que tange ao trabalho doméstico, deixando-a migrar para os interesses público-sociais (SAFFIOTI, 2015). 76 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE ingresso da mulher no mercado de trabalho é visto como libertador; porém, não se pode ocultar que é igualmente fonte de frustrações, que marginaliza a mulher no mundo da produção através da desigualdade laboral, expressa na cultura de que a mulher não trabalha para sua realização e seu desenvolvimento humano, mas como subordinação à família e pela necessidade de compensar a crise econômica familiar, pois a realização verdadeira se daria só mediante a maternidade, reforçando a ideia de feminilidade (SAFFIOTI, 1976). A reação médica quanto ao fato da mulher trabalhar fora do espaço doméstico foi muito influente neste aspecto, pois defendeu que isso seria um ato de contribuição direta para a corrupção dos costumes e destruição da família, de modo que trabalhar fora de casa não era compatível com o papel de esposa. Ainda, atestou-se a possibilidade da formação de um terceiro sexo, cujo instinto exacerbado e a perda do instinto maternal estariam relacionados com o trabalho externo, imediatamente sexualizado, que termina por condenar a mulher trabalhadora como uma imoral que vive o jogo sexual e é incompleta por se afastar do natural instinto maternal da mulher normal (MIRALLES, 2015). Nota-se que o controle interno na esfera privada realizado pela família é mais agressivo à mulher, que desenvolve também mecanismos de autocontrole para enfrentar seus problemas, como a dependência de sedativos, a atividade doméstica compulsiva, a dependência ao álcool, a auto- hospitalização e a alta demanda por consultas psiquiátricas. Ocorre que a mulher é ensinada/socializada a internalizar seus problemas e emoções, e quando se recusa ao confinamento doméstico tem como reação familiar imediata a contenção de seus atos de rebeldia, justificando a sua internação em uma clínica, com a distribuição em massa de medicamentos e sedativos; e como reação mediata, a responsabilização por sua evolução particular, por não cumprir o papel que lhe cabe (MIRALLES, 2015). CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 77 A hospitalização pela família ocorre quando se torna insuportável o estresse da mulher, que alcança o limite considerado suportável pelas famílias. No entanto, a clínica (controle formal), que aparentemente tem uma função assistencial e curativa, é mais uma prisão branca com tortura branca. Lá, as horas de terapia são muito escassas, uma vez que os conflitos são resolvidos principalmente com a medicalização, lobotomia, eletrochoques ou coma por insulina, entre outros meios (GOFFMAN, 2004). Quando a mulher se adapta às prescrições médicas e colabora em tudo, é considerada uma boa paciente. Assim, alcança-se uma desintegração pessoal, a doença é esquecida e só interessa a adaptação da mulher ao meio clínico, enfatizando- se o que importa para a família80: preparar novamente a mulher para a submissão implicada ao seu papel social (MIRALES, 2015). Assim, demonstra-se que ao falhar o controle informal, o controle formal passa a atuar, elaborando o status de criminosa a partir da influência das teorias patológicas, submetendo a mulher ao tratamento clínico a fim de protegê-la. Então, caso o controle social informal falhe na socialização da mulher, inicia-se a atuação dos meios formais de controle, coercitivos e sancionadores, em que atua o sistema penal como parte do controle social institucionalizado81, o que inclui ações controladoras e repressoras que aparentemente nada tem a ver com o sistema penal82 80 A família é foco e centro de problemas mentais nas jovens, pois a dependência da mulher de afeto da vida endógena é a característica mais marcante de seus problemas. Assim, a moça jovem se esfacelará a qualquer momento para obter a sua independência, mesmo sem consegui-la; a mulher recém-casada viverá a sua sexualidade como um fracasso pessoal e como algo que lhe foi roubado; a mulher adulta, em seus quarenta anos, culpar-se-á, patologicamente, por suas fantasias amorosas, símbolo de uma rejeição de vida; a mulher madura viverá a saída de suas crianças como um abandono, uma mutilação em seu próprio corpo, na simbologia família-corpo (MIRALLES, 2015). 81 “O controle social penal é um subsistema dentro do sistema global do controle social, diferindo por seus fins de prevenção ou repressão do delito, através de penas ou medidas de segurança e qual o grau de formalização que exige” (MIRALLES, 1982, p.127). 82 O sistema penal não se reduz ao conjunto de normas penais, mas é concebido como um processo articulado ao qual concorrem todas as agências do controle social formal, desde o Legislador, por meio do mecanismo de produção das normas (criminalização primária), passando pela Polícia, a Justiça e o Ministério Público, ou seja, o processo penal e os mecanismos de produção das normas 78 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE (ZAFFARONI, 2003). Dessa forma, o âmbito reduzido de atuação da mulher está submetido ao controle formal,que nas palavras de Miralles, [...] trata-se das condutas que ultrapassam o marco das desordens e conflitos morais e religiosos originados nas relações privadas e passam a afetar diretamente a ordem social e moral de interesse público, ofendendo bens juridicamente protegidos e permitindo a atuação das instâncias policial, judicial e executivo- penitenciária. (MIRALLES, 2015, p. 219). Há duas instituições de controle penal para a execução das penas privativas de liberdade: a prisão ou a clínica. Assim, quanto mais avançado é um país econômica e tecnológica-cientificamente, e quanto mais anos de experiência democrática viveu, maiores inovações de corte liberal terão introduzido no seu sistema de controle formal, cujas formas recobrem os objetivos científico e político criminais de reabilitação (RAMÍREZ, 2015). Em regra, os aspectos de interesse do estudo do controle formal da mulher são: o perfil da delinquência da mulher, que mostra os tipos de desvios que são criminalizados na mulher; a aplicação da medida terapêutica, principalmente em estabelecimentos e clínicas especializadas; as prisões para mulheres, ou seja, a atuação do sistema disciplinar. Salienta-se que o controle formal é um depositário da moral patriarcal, e “está interessado em quebrar desde seu início a vivacidade, o interesse e a participação igualitária da mulher em um estilo de vida alternativo” (MIRALLES, 2015, p.228). (criminalização secundária), culminando com o sistema penitenciário. O sistema penal das sociedades modernas está previsto como conjunto de meios e instrumentos para levar a cabo um efetivo controle social formalizado da criminalidade que se manifesta nas sociedades. Portanto, descrevendo e analisando o funcionamento real das instâncias que o conformam, é possível entender que tipo de estratégia de controle social se pretende desenhar desde o Estado (ANDRADE, 2003). CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 79 Portanto, quando o desvio não for absorvido pelo controle informal, restará a prisão83 como limite final para o resíduo da mulher, que se expressa na institucionalização, no castigo, e que não funciona em termos de proteção, mas em termos de disciplina e punição, de contenção e de exclusão. Algumas teorias alegaram ser possível identificar métodos de proteção da mulher quando da atuação do controle formal; contudo, foram consideradas insustentáveis a partir das seguintes situações objetivas: (a) a lei penal criminaliza condutas que se referem ao âmbito masculino e feminino, mas que são enfrentadas de modo diferente por homens e mulheres, devido à distinta pressão de controle – por exemplo, a maioria dos tipos penais se refere à proteção do ambiente público destinado ao frequento masculino; (b) em condutas de âmbito público e de índole pública moral, a mulher é condenada com maior frequência que o homem, especialmente em questões que envolvem sua sexualidade; (c) as categorias de delito que criminalizam a mulher formam parte do chamado delito de status, que implica um ataque da mulher ao seu papel social, são condutas como fugas e vagabundagem, infrações a normas de decência e sujeição familiar, exigidas da mulher desde sua infância; (d) as mulheres são detidas e condenadas por infrações de gravidade muito baixa, pelas quais homens não seriam nem detidos; (e) a mulher primária é submetida à prisão com mais frequência do que homens de mesma situação, que são ou absolvidos ou colocados em liberdade condicional; (f) a atitude da mulher como 83 “As instalações físicas da prisão são deploráveis, a desorientação jurídica, o desamparo, levam a viver em um mundo estreito, reiterativo e circular, no qual é sempre forçada a estar em um aglomerado humano, e é impossível a intimidade. Novamente, a mulher se adapta a este mundo que se lhe impõe; inclusive as mulheres que romperam com as pressões conformistas de seu mundo, que são rebeldes às expectativas sociais com condutas que negaram tudo que se espera de uma mulher. Uma vez “agarrada”, se adapta ao encarceramento com uma conduta que reencontra as bases psicológicas negativas de sua educação, quando a mulher é considerada como um ser sem decisão, superficial, sem responsabilidade, como uma criança que joga toda a sua vida. Parece, pois, que se fazem patentes às pressões negativas da educação quando a mulher se encontra diante da incerteza de uma datação física e psicológica a um mundo estranho, alheio e imposto. ” (MIRALLES, 2015, p. 260). 80 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE delinquente é interpretada na sociedade como um delito muito mais sério, o que recomenda um tratamento mais duro (MIRALLES, 2015). Nesse sentido, é indispensável o recorte de que o tratamento judicial também é discriminante em favor da mulher de classe média e branca, vendo-a como não culpável, enquanto persegue rigorosamente mulheres de classe baixa, por entendê-las como perigosas. Para Miralles, Quando falamos de classe social baixa e classe marginalizada tratamos de dois tipos de zona social, ambas penalizadas como expressão de uma ação de poder máxima, justamente para perpetuar nelas a condição de marginalização e de falta total de acesso às zonas de poder social e político: as zonas pobres e de miséria e as zonas da juventude mais marcadas; nestas, mulheres se reencontram: as mulheres mais jovens e pobres. Esta é, em última análise, a variável que atua como constante para dirigir a atuação das instâncias de controle formal por meio do filtro que sua atuação admite, para assegurar que o máximo de poder do Estado seja exercido sobre as zonas que têm um mínimo de poder (MIRALLES, 2015, p. 230). É evidente a ampla atuação do controle informal em conflitos que se consumam no âmbito privado, bem como em controles que dele se desdobram e recaem sobre a psique da mulher. Por exemplo, a problemática psicológica do afeto e da culpabilidade que define o mundo afetuoso da mulher como endógeno, por conter suas aflições e suas rebeliões em seu psicológico, imputando-lhe a culpa caso negue seu significado social e sua definição histórica, ou seja, naturalizando a opressão. Logo, por serem sistemas que atuam conjuntamente, evidencia-se que o raciocínio do controle formal é o mesmo. Nesse sentido, a psiquiatria assegura a imposição disciplinar através da autoridade e repressão com a força da moral, a culpabilidade e a negação de toda a capacidade de decisão das mulheres (MIRALLES, 2015). Os controles se interconectam de forma especial ao justificar a CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 81 necessidade da terapia (informal) ou da clínica (formal), o que decorre de uma série de atuações do controle social. Houve a concordância no aspecto social e na atuação estatal no sentido de que a atitude valorativa para com a mulher nutra um tipo de controle informal, pela avalição médica e psiquiátrica, com dimensão teórico-científica, que acaba por influenciar o controle formal. O novo enfoque da escola crítica é centrado no Estado como representante do controle formal, eficaz para manter o controle informal, ou seja, para que se respeite o papel imposto socialmente às mulheres (ANDRADE, 2005). A mudança radical no controle social passa a compreender como essencial a terapia social, contudo, banalizou-a quando o campo de execução penal condicionou tratamentos de terapia social em clínicas fechadas, chamadas de estabelecimentos- sócio-terapêuticos. A terapia social então foi criticada e compreendida como um produto direto da ideologia de tratamento, que amplia o conceito de doença e atribui necessidadede tratamento e institucionalização de forma desproporcional, que passa a ser aplicada de maneira dominante a todo tipo de criminalidade. A perda do sentido da terapia social ocorre quando a medida passa a ser forçada e executada em clínicas fechadas, o que transforma a imposição terapêutica à mulher, antes efetuada pela família no âmbito informal, em uma imposição do controle formal, sob a crença de uma desordem mental subjacente à sua problemática delitiva (MIRALLES, 2015). Com efeito, as conexões entre a criminalidade e a psicose identificaram doenças comuns entre os delinquentes, sustentando que certas desordens sociais levam a marcado desvio ou a um determinado ato delitivo, convertidas em desordem mental, um dos motivos que converte as prisões em estabelecimentos psicoterapêuticos84, já institucionalizados pelo controle formal. 84 “Tomemos um exemplo de importância: a classificação do desvio da mulher no estabelecimento clínico de Holloway em Londres (Inglaterra), a antiga maior prisão da Inglaterra para mulheres, hoje convertida em centro clínico psiquiátrico. A instituição abrigou mulheres que eram consideradas 82 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE Entende-se que o “impacto da terapia social como controle formal deve ser concentrado em termos mais qualitativos que quantitativos, pois quantitativamente o número de mulheres submetidas à terapia continua sendo brutal se comparado ao número de homens.” (MIRALLES, 2015, p. 231). A clínica social terapêutica suplantou o cárcere em alguns países, sendo até utilizada como única medida de controle para certos tipos de delito, o que reflete a receptividade do controle formal ao impacto da psiquitrização da sociedade, “efetiva no controle da mulher pela força e que têm as concepções de índole biológica e psicológica na explicação do desvio da mulher” (MIRALLES, 2015, p. 231). Foi no século XIX que as concepções psicológicas passaram a operar no campo prático e a tomar um lugar de destaque no sistema institucionalizado, um espaço médico e psicológico85, já que à medida que o positivismo foi se impondo, as práticas da psicologia e da psiquiatria de tipo moral tornavam-se obscuras. Posteriormente, as mesmas práticas são revestidas de razão e formam a teoria das ciências psicológicas, o que permite entender que, junto aos conceitos de origem biológica e somática, justapõe- se, hoje, uma prática psicanalítica moral, com base na culpabilidade e nos conceitos biológicos (MIRALLES, 2015) A criminologia passou a considerar a personalidade do indivíduo como fator determinante do desvio, quando no campo da psicologia passou-se a entender que os comportamentos e suas atitudes do ser humano dependiam do desempenho de sua anormais mentalmente, implicando a imposição deste termo a desvios de tipo social e psicológico cometidos por mulheres. O conceito de mentalmente anormal desempenhou três categorias: diagnóstico psiquiátrico, com ênfase na esquizofrenia; amplo diagnóstico de personalidade desordenada, e diagnóstico de psicopatia, tratado por métodos médicos psicológicos ou por terapia social” (MIRALLES, 2015, p. 236). 85 “Cabe frisar que é na análise do método de castigo que a psicologia encontra sua própria essência, e onde se desdobra especificamente não só sua técnica, como também o âmbito em que se situa, no qual se caracteriza a singularidade da figura médica e o diálogo autoritário que estabelece com o paciente. Com o método próprio da psicologia, o tratamento ganha um espaço institucional porque há novos contatos entre o paciente e os métodos psicológicos, contatos baseados nas novas concepções alienantes” (MIRALLES, 2015, p. 111). CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 83 personalidade individual. Traços de personalidade começaram a ser identificados, como a neurose na teoria freudiana, também analisado no campo das relações sexuais para a aferição da criminalidade. A abordagem psicopatológica tem-se demonstrado, desde 1950, como protagonista no desenvolvimento da prática clínica nos programas de prevenção e reabilitação, sendo que a partir das diferentes disciplinas clínicas – a psiquiatria, a psicologia e a psicanálise-, é possível um diagnóstico e um tratamento específico para cada indivíduo criminoso/a (MIRALLES, 2015). No entanto, a mudança da valorização do objeto do controle social ao longo do século XX não permitiu uma alteração de paradigma, nem um novo enfoque para debate, permanecendo dependente aos fundamentos da sociologia durkheimiana, que consiste em pensar as instituições sociais a partir de uma concepção relativamente unificada da sociedade, ou seja, tendo ainda como pano de fundo a questão da integração social (RAMÍREZ, 2015). Desde o início dos anos 60 do século XX, os estudos de Foucault quanto ao controle social se demonstraram complexos, ao pensar que as práticas de poder não se reduzem às formas instrumentais e funcionais de controle social como produtoras de comportamentos, mas que as práticas e instituições sociais configuraram novos espaços de exclusão ou de normalização de determinadas formas de comportamento e de subjetividade. Compreende-se que as punições são aplicáveis não apenas no interior do sistema penal, mas igualmente em contextos mais diversos: tanto em instituições especializadas (penitenciárias, escolas, hospitais) quanto em instituições de "socialização" (como a família). Assim, a partir de uma série de processos históricos, principalmente do século XVIII em diante, demonstra-se que o poder disciplinar não é mero reflexo desses processos, como também é a partir de sua caracterização que é possível perceber certa coerência nas muitas transformações que ocorreram no período (ALVAREZ, 2004). 84 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE Evidencia-se que as críticas às práticas prisionais modernas são contemporâneas de sua própria ascensão, mas nunca colocam em causa a própria existência da prisão como a pena por excelência. O fato de a prisão permanecer existindo, mesmo com críticas seculares, comprova que ainda desempenha funções importantes na manutenção das relações de poder na sociedade moderna – na verdade, a principal função desempenhada pela prisão é que ela permite gerir as ilegalidades das classes dominadas, criando um meio delinquente fechado, separado e útil em termos políticos (FOUCAULT, 2014). Quanto ao poder, afirma que não é algo que se adquira ou detenha, mas algo exercido em contextos sempre cambiantes e ao mesmo tempo intencionais, as relações de poder não são subjetivas, ou seja, embora o poder se exerça por meio de uma série de miras e objetivos, não resulta da escolha de um sujeito individual ou coletivo (FOUCAULT, 2014). Essa mudança de perspectiva é necessária, pois as formas de poder e controle social da modernidade são efetivamente muito mais produtivas, multidimensionais e complexas que as formas anteriores. Longe do modelo da lei soberana, que se baseava no direito de morte ou de deixar viver, as práticas de poder na modernidade caminham na direção de formas de poder que buscam gerir a vida, "um poder destinado a produzir forças, a fazê- las crescer e a ordená-las mais do que a barrá-las, dobrá-las ou destruí-las" (FOUCAULT, 1999, p. 87). As reflexões e pesquisas empreendidas por Foucault podem fornecer saídas aos impasses anteriormente diagnosticados no campo de estudos recoberto pela noção de controle social, mas o futuro das pesquisas neste campo de estudos depende da reavaliação dos trabalhos deste autor e de uma série de outros que atualmente trilham os caminhos abertos pelos debates até aquirecuperados. Permanece, deste modo, presente a discussão sobre os mecanismos mais gerais de regulação e controle dos comportamentos na sociedade contemporânea (ALVAREZ, 2004). CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 85 Por exemplo, Gilles Deleuze apontava para uma ruptura dos mecanismos de regulação dos comportamentos na atualidade, ao considerar que as sociedades contemporâneas não seriam mais "sociedades disciplinares", tal como pensadas por Foucault, mas sim "sociedades de controle", nas quais os mecanismos de confinamento estariam sendo substituídos por novas tecnologias eletrônicas e informacionais de supervisão e controle dos indivíduos e das populações (DELEUZE, 1988). Algumas discussões ensaiam mesmo explicar a própria crise da noção de controle social a partir das transformações nas formas de regulação social ocorridas entre o final do século XX e início do XXI. O próprio controle social, como conjunto de dispositivos assistenciais voltados para restabelecer uma certa solidariedade entre os diferentes grupos da sociedade moderna é posto em crise. A mudança de valorização pela qual passou a noção de controle social no final do século XX – do papel positivo em termos de integração social para o papel negativo em termos de dominação – mostra justamente a avaliação crítica crescente dos custos estatais (ALVAREZ, 2004). Autores contemporâneos têm seguido, por caminhos diversos, a direção dessas reflexões ao discutirem, mais especificamente, as mudanças nas políticas criminais e de segurança na modernidade tardia, na qual estaria ocorrendo a substituição do projeto de um Estado Social pelo projeto de um Estado Penal (ANDRADE, 2003). Portanto, o sistema de justiça criminal está inserido na mecânica global do controle social, de tal modo que não se reduz ao complexo estático da normatividade nem da institucionalidade, mas é concebido por um processo articulado e dinâmico de criminalização, ao qual concorrem não apenas as instituições de controle formal, mas o conjunto de mecanismos do controle informal. Ou seja, “um microssistema penal formal, composto pelas instituições oficiais de controle e circundado pelas informais, em que as pessoas interagem e participam da mecânica de controle, como senso comum ou opinião pública” (ANDRADE, 2012, p. 165). 86 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE 3.3 Da criminologia crítica à criminologia feminista Muitas contribuições científicas e militantes em criminologia tiveram como ponto de partida a mudança do paradigma do labeling approach, que deslocou a abordagem da criminalidade (fato pré-constituído ou preexistente) para a criminalização (produto de construção social) como uma condição necessária. Entretanto, a teoria foi considerada insuficiente para o desenvolvimento da Criminologia Crítica, que “se apresenta como uma teoria materialista do desvio dos comportamentos socialmente negativos e da criminalização, opondo-se às ideologias conservadoras e de legitimação do status quo” (ANDRADE, 2012, p. 10). Salienta-se que as teorias criminológicas se orientam e se reproduzem sempre como consequência das mudanças e mutações ocorridas nos diferentes contextos histórico-culturais. Assim sendo, a erupção das propostas críticas, em especial nos anos sessenta e setenta do século XX, se conecta com os movimentos sociais que, “a parte de reivindicarem direitos para os grupos ou minorias marginais, coloca em crise a estrutura social inteira, produzindo uma ruptura definitiva com a velha criminologia, legitimadora da ordem legal constituída” (BERGALLI, 2015, p. 268). Observa-se que o movimento da criminologia crítica não considera o que é homogêneo do pensamento criminológico contemporâneo, uma vez que pretende ser uma teoria materialista, que, obviamente, considera o instrumento conceitual e as hipóteses elaboradas no âmbito do marxismo, mas não se esgota nele. Consciente da problemática que subsiste entre criminologia e marxismo, a criminologia crítica se posiciona no sentido de que uma construção teórica não pode se basear só na interpretação de textos marxistas, mas considera o trabalho de observação empírica existente pela grandeza dos dados adquiridos no contexto marxista. Ainda, os estudos marxistas que se inserem em um terreno de pesquisa de doutrinas desenvolvidas nos últimos CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 87 decênios, no âmbito da sociologia liberal contemporânea, prepararam o terreno para a criminologia crítica (BARATTA, 2011). Então, a força das ideias marxistas originais, combinada aos pontos de vista da psicanálise e psicologia, construiu a denominada criminologia crítica, formulada ultimamente no campo de estudo do desvio e de seu controle social. Contudo, apesar de suas influências, suas interpretações se formulam de reflexões sobre diferentes critérios de abordagem da questão criminal, que originam os distintos enfoques para corrigir a orientação tradicional da criminologia (BERGALLI, 2015). A plataforma teórica alcançada pela criminologia crítica e preparada pelas correntes mais avançadas da sociologia criminal liberal pode ser sintetizada em uma dupla contraposição à velha criminologia positivista, que usava o enfoque biopsicológico. Duas são as etapas principais deste caminho, o deslocamento do enfoque teórico do autor para as condições subjetivas, estruturais e funcionais, que estão na origem dos fenômenos do desvio; e o deslocamento do interesse cognoscitivo das causas do desvio criminal para os mecanismos sociais e institucionais, através dos quais é construída a “realidade social” do desvio. Portanto, historiciza a realidade comportamental do desvio e ilumina a relação funcional ou disfuncional com as estruturas sociais, com o desenvolvimento das relações de produção e distribuição86 (BARATTA, 2011). A criminologia crítica nasce como um projeto de emancipação humana, que foi concebido como um programa de defesa dos direitos humanos. Então, nessa perspectiva a “criminalidade não é mais uma qualidade ontológica de determinados comportamentos e de determinados indivíduos, mas se revela como um status atribuído a determinados indivíduos, 86 “A seleção legal de bens e comportamentos lesivos instruiria desigualdades simétricas: de um lado, garante privilégios das classes superiores com a proteção de seus interesses e imunização de seus comportamentos lesivos, ligados à acumulação capitalista; de outro, promove a criminalização das classes inferiores, selecionando comportamentos próprios desses seguimentos sociais em tipos penais” (BARATTA, 2011, p. 15). 88 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE mediante uma dupla seleção” (ANDRADE, 2012, p. 10). Os críticos demonstram que a seletividade e a ineficácia do sistema penal são causadoras de erros; assim, o delito e o seu controle se apresentam de uma forma que ultrapassa os limites de compreensão da criminologia tradicional. Para a criminologia crítica, o sistema penal nasce de uma contradição, “pois de um lado afirma a igualdade formal entre os sujeitos de direito, e, de outro, convive com a desigualdade substancial entre os indivíduos, que determina as chances de alguém ser etiquetado como criminoso” (MENDES, 2014, p. 61). Logo, a teoria crítica da sociedade, do Estado e do Direito, de raiz histórica, filosófica e sociológica, confronta-se como uma teoria da criminalidade e do controle sociopenal, para, rediscutindo-a, reunificar o que foi artificialmente separado pela violência da modernidade, no próprio conceito do ser humano (BARATTA, 2011). Assim, o valor da criminologia crítica é restitutivo, um percurso de regresso à violência constitutiva de um pacto de exclusão, resgate radical da condição e da dignidadehumanas; resgate que passa pelo enfrentamento de todas as formas de violência, sejam estas decorrente de estruturas (desigualdade de classe e exclusão social, desigualdade de gênero), culturas (discriminação racial, etária), instituições (violência do sistema penal), indivíduos (violência individual) e quaisquer outras formas de violência. Tal resgate também passa pelo reencontro da ciência com a sabedoria popular (ANDRADE, 2012). Em razão da crítica criminológica, o próprio sistema de punitividade passa a ser o objeto de investigação, sobretudo os mecanismos seletivos de definição das condutas puníveis (criminalização primária), os critérios desiguais de incidência das agências de controle sobre as populações vulneráveis (criminalização secundária) e os instrumentos perversos que transformam a execução das penas em fontes de reprodução de estigmas. A partir do diagnóstico da seletividade intrínseca ao sistema penal, as distintas correntes que se identificam com o CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 89 rótulo da criminologia crítica projetaram inúmeras mudanças no campo político, em grande maioria voltadas à constrição de hipóteses de criminalização e superação da forma carcerária das penas (ANDRADE, 2012). É por meio do processo de criminalização que são identificados os maiores nós teóricos e práticos de desigualdade, próprios da sociedade capitalista, que tem como um dos objetivos principais estender ao campo do direito penal a crítica do direito desigual. Assim, uma das principais tarefas da criminologia crítica é criar uma política criminal alternativa, visto que partem de um enfoque materialista, de modo que só uma análise radical dos mecanismos e das funções reais do sistema, na sociedade capitalista, pode permitir alternativas ao controle social (BARRATA, 2011). No momento em que o enfoque macrossociológico se desloca para os mecanismos de controle social, a criminologia crítica alcança o ponto de maior reflexão, visto que o direito penal passa a ser considerado mais do que um sistema estático de normas, mas como um sistema dinâmico de funções, em que se distinguem os processos de conformação da criminalidade. O aprofundamento da relação entre direito penal e desigualdade conduz ao entendimento que não só as normas de direito penal se formam e se aplicam seletivamente, refletindo as relações de desigualdade existentes, mas o direito penal exerce, também, uma função ativa de reprodução e produção ao aplicar de forma seletiva as sanções penais estigmatizantes, para que seja mantida a escala vertical da sociedade (BARATTA, 2011). O discurso científico que assume a função de controle externo do sistema de justiça criminal não apresenta um objeto homogêneo, como no controle interno. As situações administradas pelo sistema de justiça criminal constituem um conjunto de eventos diversos e com limites instáveis cujo único elemento comum é o de estarem previstos como objetos de intervenção no sistema. No entanto, a exclusividade ou a propriedade de um sistema de intervenção em comparação com outros “não pode ser 90 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE deduzida como uma indicação necessária da natureza das diversas ações problemáticas, onde se insere a criminalidade feminina, que não encontra resposta em situações internamente emergentes” (MENDES, 2014. p. 71). Dessa forma, a questão apresentada é a de que o atual sistema de justiça criminal não permite uma definição científica e útil do universo de situações e comportamentos criminais, pois a finalidade única de avaliar políticas já existentes ou de criar novas a partir dos mesmos pontos não permite a quebra paradigmática87 (BARATTA, 2006). O caminho percorrido pela criminologia crítica pode ser identificado por três momentos: primeiro, na década de 1960, que consolida a passagem de um paradigma centrado no crime e no criminoso (violência individual), de cunho positivista, para um centrado na investigação do controle social e penal (violência institucional), que origina a criminologia da reação social; segundo, na década de 1970, que sofre forte intervenção do desenvolvimento materialista, marcando o surgimento de uma séria de criminologias, como a radical, a crítica, a dialética, que dão ao sistema penal uma interpretação macrossociológica, no marco das categorias do capitalismo e das classes sociais (violência estrutural); e, muito próximo, o terceiro, que é o desenvolvimento do paradigma feminista , cuja interpretação macrossociológica se dá no marco das categorias de patriarcado e gênero88 (ANDRADE, 2012). 87 “Esta crise se manifesta quando a partir da dimensão da definição, passamos a considerar a dimensão comportamental. No primeiro caso, o objeto de seu discurso é o sistema de justiça criminal. No rol de uma teoria e sociologia de direito penal, a criminologia concorre, na dimensão da definição, na realização do modelo integrado de ciência jurídico-penal entendida em sua função de controle “interno” do sistema de justiça criminal. Em sua dimensão comportamental, por outro lado, o objeto do discurso da criminologia crítica é o referente material das definições da criminalidade, atuais ou potenciais, mas em geral, as situações problemáticas relacionadas com o comportamento dos sujeitos individuais” (BARATTA, 2006, p. 148). 88 “Signo que se tornou teórica e politicamente relevante desde os anos 70, quando o movimento feminista, sob o influxo da revolução dos paradigmas sociais, estendeu seu significado original de uma classe de algo ou de seres, para designar uma classe de seres humanos, configurando-se atualmente como um conceito para a compreensão da identidade, dos papéis sociais e das relações entre homens e mulheres na modernidade” (ANDRADE, 2012, p.128). “É a construção social do CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 91 As tendências críticas apresentaram, ao longo das décadas de 80 e 90, uma série de propostas político-criminais (alternativas) que abrange desde a reforma e a humanização dos sistemas penais à sua abolição (CAMPOS; CARVALHO, 2011). Então, o desenvolvimento “feminista da criminologia crítica marca a passagem para uma nova criminologia, no âmbito da qual o sistema de justiça criminal passa a ser interpretado por um viés macrossociológico, mas nos termos das categorias de patriarcado e gênero” (MENDES, 2014, p. 62). O poder punitivo assegura o patriarcado, uma vez que forma e criminaliza padrões de mulheres, encaixando-as em um processo de transmissão cultural que legitima o poder punitivo e o saber dominante. Há uma permissão social, um controle social formal e informal sobre os corpos, a sexualidade e as mentes femininas, que pretendem manter a mulher em uma posição de submissão através da violência de gênero socialmente autorizada. Para Vera Regina P. de Andrade, [é] evidente que o funcionamento interno do sistema penal somente adquire seu significado pleno quando reconduzido ao sistema social (à dimensão macrossociológica) e inserido nas estruturas profundas sem ação que o condiciona, a saber, o capitalismo e o patriarcado que ele expressa e contribui para reproduzir e legitimar, aparecendo desde a sua gênese como exercício de poder e controle seletivo classista e sexista (além de racista), no qual a estrutura e o simbolismo de gênero operam nas entranhas de sua estrutura conceitual: eis o sentido da seletividade. Ora, nisso, o sistema penal replica a lógica e a função real de todo o mecanismo de controle social, que, se em nível micro implica um exercício de poder e de produção de subjetividades (a seleção binária entre o bem e o mal, o masculino e o feminino), em nível macro implica um exercício degênero, e não a diferença biológica do sexo, o ponto de partida para análise crítica da divisão social de trabalho entre homens e mulheres na sociedade moderna, vale dizer, da atribuição aos gêneros de papéis diferenciados nas esferas de produção, da reprodução e da política, através da separação entre o público e o privado” (BARATTA, 1999, p. 21). 92 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE poder (de homens e mulheres), reprodutor de estruturas, instituições e simbolismos. O sistema penal ocupa, assim, um importantíssimo lugar na manutenção do status quo social. (ANDRADE, 2012, p. 140). As relações de gênero perpassam a sociedade, seus fenômenos e instituições, sendo o Direito Penal uma das instituições basilares do estado capitalista. A mulher no Brasil está submetida a inúmeras discriminações, sendo o direito penal o meio para punir o feminismo através do machismo, seja definindo tipos de mulheres como criminosas, seja omitindo-se da proteção aos atos violentos. O direito penal para as mulheres é uma via de repressão, uma última instância para limitar os papéis sociais definidos para o ser feminino pelo patriarcado. Assim, para a mulher que foge dos padrões de normalidade entendidos como o da mãe ou esposa, há um contraponto social, a criminalização de suas condutas (BORGES; NETTO, 2013). Dessa forma, conforme exposto, é a partir da década de 80 que as críticas do feminismo objetivam lograr um modelo no qual os atributos do feminino e do masculino deixem de ser meras emanações de uma relação de poder. Assim, a atual transformação do pensamento criminológico engloba as críticas dos estudos epistêmico-metodológicos feministas, que possuem a mesma crítica à ciência tradicional, porém, não são um bloco único, mas campos do empirismo feminista, o chamado ponto de vista (standpoint) feminista (MENDES, 2014). A criminologia feminista, porta-voz do movimento feminista no campo de investigação sobre o sistema penal, permitiu ao malestream criminológico compreender a lógica androcêntrica que define o funcionamento das estruturas de controle punitivo. Ao trazer a perspectiva das mulheres para o centro dos estudos criminológicos, a criminologia feminista denunciou as violências produzidas pela androcêntrica interpretação e aplicação do direito penal. O sistema penal androcêntrico invariavelmente produziu o que a criminologia CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 93 feminista identificou como dupla violência contra a mulher (CAMPOS; CARVALHO, 2011). A criminologia feminista indaga, portanto, como o sistema penal trata a mulher como vítima, resultando em uma consequente vitimologia crítica. Salienta-se a importância do feminismo como outro sujeito coletivo monumental que, fazendo a mediação entre a história de um saber masculino onipresente e a história de um sujeito ausente – o feminino e sua dor –, e ressignificando a relação entre ambas, aparece como fonte de um novo poder e de um novo saber de gênero, cujo impacto (científico e político) foi profundo no campo da criminologia, com seu universo até então completamente tão prisioneiro do androcentrismo (ANDRADE, 2012). Portanto, resistir a esses pensamentos e determinismos significa emergir a figura feminina emancipada, livre e não submissa ao poder patriarcal. Significa, também, questionar valores fortemente cristalizados a respeito de casamento, procriação, sexualidade etc.; significa, ainda, ter que se aliar a novas formas de saber para estabelecer rupturas, e ter que desorganizar formas seculares de concepções simbólico/ideológicas sobre a mulher (SILVA, 1994). A criminalização dos comportamentos considerados antissociais atinge apenas uma parcela da população, rotulada, estigmatizada e etiquetada como candidata à delinquência, de forma que a principal crítica feminista contra a criminologia crítica consiste no fato de que esta, ao relacionar as instituições de controle social, não destacou o patriarcado como mantenedor da desigualdade de gênero (MENDES, 2014). Este discurso – que, como na criminologia crítica, também se caracteriza como um movimento social – postula a não- estigmatização tanto do criminoso(a) nato(a) com tendências perigosas, quanto da vítima em sua honestidade. Isto porque, da mesma forma que apenas alguns grupos são criminalizados, apenas algumas mulheres que correspondem à figura da mulher honesta são consideradas vítimas. A seletividade ocorre para os 94 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE dois lados e o discurso criminológico feminista propõe-se a desconstruir ambos (MARTINS, 2011). A ausência secular da mulher, seja como objeto, seja como sujeito da criminologia e do próprio sistema penal, é que permite uma série de questionamentos do movimento feminista. Trata-se de um conhecimento focado na figura da vítima e na relação entre autor e vítima, na relação entre criminalização e vitimização pelo sistema penal – aspecto pouco explorado na criminologia crítica –, e na posição da mulher e do feminino no sistema penal e sua relação com o patriarcado – explorado na criminologia feminista, mas com escassa integração com o acúmulo teórico da criminologia crítica (ANDRADE, 2012). Dessa forma, a criminologia feminista pretende, “além de localizar a mulher no discurso criminológico, enfrentar a necessidade de construir um referencial criminológico no qual as mulheres não sejam um objeto ou um elemento incorporado” (MENDES, 2014, p.73), mas situar a teoria crítica feminista como responsável por um novo paradigma também aplicável ao campo da criminologia. Então, o ponto de vista (standpoint) feminista não se configura apenas como perspectiva, mas como posição e vinculação de luta política, que tem a pretensão de deslegitimar a visão androcêntrica estabelecida na realidade social. A mulher como um novo sujeito histórico, que traz a capacidade de agregar novas formas de entender a natureza e a vida social. A condição de mulher, o resultado histórico que a define como ser social e cultural e a reveste de circunstâncias, qualidades e características essenciais peculiares (MENDES, 2014). Apresentou-se, nos capítulos anteriores, que a experiência das mulheres foi desvalorizada e ocultada na investigação científica, o que é refletido na sua visão alheia à ordem social, já que não contribuíram para a formação dela. Esse é o motivo pelo qual as mulheres têm mais interesse em criticar a ordem estabelecida, distanciando-se e aprofundando a desconstrução do androcentrismo como ciência, protagonizando uma luta política CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 95 contra a dominação masculina. O método, a quebra de paradigma, é conduzido a partir da vida das mulheres, identificando em que condições, dentro das relações, se necessita de investigação, ou seja, formular e investigar a partir e pela vida das mulheres. Os discursos criminológicos construídos foram competentes89, no entanto, foram inspirados numa parcial realidade dos fatos e na suposta eficácia dos meios de ação. A criminologia nasceu como discurso de homens, para homens, sobre mulheres. E, ao longo dos tempos, se transformou em um “discurso de homens, para homens e sobre homens, visto que se entendeu que estudar mulheres não era politicamente relevante, muito menos considerar as experiências destas enquanto categoria sociológica e filosófica” (MENDES, 2014, p.157). Assim, não é por acaso que a mulher surge no decorrer do pensamento criminológico apenas em alguns momentos, sobretudo como uma variável e não como sujeito (ANDRADE, 2005). Dessa forma, o ponto de partida passa a ser compreendido a partir de um paradigma feminista, como teoria crítica para a construção de novos projetos teóricos, que não repitam os compassos das teorias patriarcais e que não almejemapenas releituras de temas. A experiência das mulheres não deve constituir-se como um critério homogêneo e estereotipado, mas como a definição das condições teóricas para novas alternativas. O paradigma feminista significa, portanto, uma subversão da forma de produzir conhecimento, até então, dado sob parâmetros epistemológicos distanciados das experiências das mulheres, e da compreensão do sistema sexo-gênero. Então, o paradigma feminista implica uma mudança radical e completa nas 89 “Discurso competente é aquele que pode ser proferido, ouvido e aceito como verdadeiro e autorizado. É o discurso instituído que se confunde com a linguagem institucionalmente permitida ou autorizada, ou seja, como um discurso no qual os interlocutores já foram previamente reconhecidos como tendo direito de falar e ouvir. No qual os lugares e as circunstâncias já foram predeterminados para que seja permitido falar e ouvir. E, enfim, no qual o conteúdo e a forma já foram autorizados, segundo os cânones de sua própria competência. ” (CHAUÍ, 2007, p. 23). 96 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE perspectivas de gênero, um transformar real, não apenas adicionando novas análises ao sistema falho. Assim, “adotar o ponto de vista feminista significa um giro epistemológico, que exige partir da realidade vivida pelas mulheres [...] dentro e fora do sistema de justiça criminal. ” (MENDES, 2014, p. 158). Todo o discurso criminológico, quando ignora mudanças paradigmáticas, que já são propostas na atualidade, é discriminatório e hierarquizante, e sua construção é dada por uma lógica sexista. Ou seja, toda a base do pensamento criminológico privilegia o homem, em todas as esferas que o campo alcança, com um discurso que, por mais que seja competente, oculta a mulher. A criminologia crítica adota o ponto de vista das classes marginalizadas, mas terminam por focar no ponto de vista dos homens das classes marginalizadas (FACIO, 1995). Todo o controle social, principalmente o informal, que é dirigido exclusivamente à mulher, repercute as repressões em todas as instâncias, a todos os níveis, incluindo os da vida sexual e afetiva. Logo, “a denúncia de que a criminologia, bem como o sistema de justiça criminal, são androcêntricos, postula uma tentativa de persuasão dos/as criminólogos/as de que o conhecimento será objetivo se pautado em uma epistemologia feminista” (MENDES, 2014, p. 163). Baratta expressou a necessidade da aplicação de um paradigma de gênero à criminologia como condição necessária para o sucesso da luta emancipatória da mulher; no entanto, tende a defender que só será possível a existência de uma criminologia feminista se esta estiver inserida na perspectiva da criminologia crítica (BARATTA, 1993). No entanto, as feministas defendem, como citado anteriormente, que a existência da possibilidade de buscar o conhecimento, de ser atualmente palpável uma nova história a partir da escuta das experiências das mulheres, afasta a possibilidade de inserir a criminologia feminista em outra existente, já construída com base em paradigmas extraídos do mundo masculino das ciências sociais, que redundam na negação da humanidade da mulher (MENDES, 2014). Salienta-se que a CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 97 criminologia feminista não busca descartar toda a construção teórica da criminologia crítica, mas sim criar novos modelos, parâmetros e paradigmas que respondam a uma concepção de mundo que considere o papel da mulher interpretado por ela mesma. Portanto, a reformulação do sistema de justiça criminal é necessária e urgente, abrangendo não só o direito penal e a criminologia, mas o controle social formal e informal. A criminologia feminista pretende uma renovação, uma reforma do sistema, sem desconsiderar os fundamentos da criminologia crítica e, consequentemente, materialista, porém considerando-os como pontos dentro de uma nova ordem, e não como pontos de partida. Será possível compreender, no próximo capítulo, as interferências do sistema androcêntrico na vida das mulheres, sistema este que é falho e discriminatório, que encarcera mulheres sem considerar as suas condições e suas situações particulares. CAPÍTULO 3 EL EXTREMO DEL ENCIERRO CAUTIVO DETENTAS A vida dá muitas voltas; Vida vazia sem sentido. Essa é a vida que vivemos. Não há vida na cadeia; há frio, mente vazia e aberta para o crime. Cadeia não regenera, apenas magoa no fundo da alma de uma detenta. Cadeia imunda, lugar que parece o inferno: habitado e azedo, lugar imundo. Assessoria das presas são ratos e baratas. Não temos direito de reclamar, pois somos detentas; nas noites frias estamos esquecidas pela sociedade. Lembra de nós senhor juiz! À noite, rezamos. Parece que Deus não pode passar pelas grades, pois aqui é um lugar de maldade. Não existe compaixão. Só há maldade. Só sobrevivem os fortes. Lembra de nós senhor juiz! Dá uma chance para nós detentas. Lembra de nós senhor juiz! Somos mães e vovós só mais uma chance. Só mais uma chance, senhor juiz! (L.J.W, 2015). 4.1 A presa e a presidiária A sociedade patriarcal das relativas liberdades masculinas e da natural capacidade dos homens e das instituições, tanto para obrigar como para proibir as mulheres, conforma-as como presas, mesmo sem elas terem cometido delitos. A prisão, diferente de outras instituições de poder, exclui, cerca e isola os sujeitos que não internalizam o consenso de acordo com seu lugar na sociedade e na cultura, aos que atuam fora da norma. As mulheres estão presas, e diversas são suas prisões na sociedade e na cultura: apenas pelo fato de serem mulheres no mundo patriarcal, todas compartem da prisão de sua condição genérica. A prisão do sujeito consiste na impossibilidade de realizar seu desejo; é contradizer-se 100 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE em seu próprio ser, de modo que a prisão de cada sujeito atende sua definição de poder, sendo que as mulheres vivem sua prisão pela opressão genérica combinada com outras determinações sociais e culturais que lhe dão vida (LAGARDE, 2005). A instituição dedicada à execução da pena de privação de liberdade é a última instância dos órgãos de controle, dentro dos aparatos do Estado, que sempre terão um caráter político, com as mesmas premissas ideológicas que revestem as instâncias formais e informais. A conformidade às normas sociais, ensinada pelas instâncias informais e reforçada pelos meios de comunicação, localiza-se no centro da prática da prisão, e a ela estão subordinados os demais objetivos da privação de liberdade. Ao se afirmar que a prisão significa falta de atuação das instâncias informais, está sendo feita uma especial referência ao fracasso da autoridade como figura atraente e valorativa. Logo, “a pessoa submetida ao cárcere é considerada como rebelde, indisciplinada e “perigosa” para a ordem social mantida por uma sociedade disciplinada” (BERGALLI, 2015, p. 138). As prisioneiras representam o grupo estereotipado; são elas que concretizam, social e individualmente, as prisões de todas. As prisioneiras vivem real e simbolicamente a realização do extremo cativeiro, desde as muralhas até as normas de cada prisão. Os delitos que conduzem à prisão, por mais diferentes que sejam, sintetizam a transgressão das normas gerais do mundo patriarcal e classista. Assim, as mulheres estão presas ao conteúdo essencial de suas vidas como esposas, mães, como putas, como santas, sempre dependentes vitais dos outros e de seu lugar específico nos sistemas e nas esferas da vida. A situação de cárcere submete a mulher a poderes que compulsoriamente organizam suas vidas para outros, apropriadas pela sociedade e pelacultura, pela mediação dos outros, do seu corpo e de sua subjetividade, de sua autonomia (LAGARDE, 2005). Dessa forma, as mulheres presas estão submetidas à prisão de maneira ampla. São mulheres cujas vidas, independentemente CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 101 das suas posições, são definidas por seus delitos. Ocorre que a definição do delito é feita por instituições de poder (estatais e sociais) e por indivíduos envolvidos no delito e na coerção. Enfim, são as instituições que produzem o delito e, ao nomeá-lo, já segregam e selecionam, para identificar e sancionar. As mulheres, identificadas como executoras do delito ou como vítimas do delito formam parte de uma unidade política determinada pela relação entre gênero e delito, afastando a concepção de que existe uma determinação entre sexo e delito, visto que o delito não deriva da biologia e, sim, da sociedade e da cultura. Ou seja, as estatísticas de que as mulheres delinquem menos que os homens não é um fato relacionado especificamente à causalidade sexual, mas sim ao modo de vida doméstico, privado90, em que as relações vitais e o conjunto de compulsões as obrigam a ser boas e obedientes (LAGARDE, 2005). A subalternidade, a desigualdade, a discriminação e a dependência das mulheres, quer dizer, sua opressão genérica, concorrem em dois sentidos no delito, e se concretizam da seguinte forma: pela condição genérica, as mulheres são vítimas de delitos cometidos contra elas, seus interesses, seus bens, por homens ou por mulheres. Já se são as mulheres as que cometem os delitos na posição de delinquentes, passam as condições desiguais frente ao discurso legal, por seu desconhecimento e por enfrentarem discriminação e desigualdade nas parições de justiça sexista. Ainda, por serem mulheres não são escutadas com serenidade, não são aceitas suas palavras, nem serão válidas suas razões, e muito menos suas provas são aceitas ou utilizadas a seu favor. Pela 90 “Ao contrário, a vida pública dos homens, suas relações de competição no mundo classista do trabalho e do dinheiro, reunido a seu caráter social de provedores dos outros, e à sua necessidade de acumular, de possuir e de apropriar-se, cerca-os ao âmbito do delito. A masculinidade patriarcal exige deles a agressividades, a força, e a violência, e conforma um contexto que favorece a realização do que nesta cultura se considera delito. A transgressão das normas confere aos homens um valor genérico, um êxito, um prestígio e uma categoria: virilidade. O grau de machismo se mede, em parte, pela capacidade de transgressão frente à norma, de tomar objetos de outros, e de vencer o medo da sanção e do castigo. ” (LAGARDE, 2005, p.645). 102 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE conformação histórica, social e cultural, como seres vulneráveis, as mulheres carecem de mecanismos e formas de comportamento adequados para defesa nas instituições públicas, pois as mulheres perdem como delinquentes, quando consideradas culpadas, e perdem como vítimas, quando não são assistidas pela justiça (LAGARDE, 2005) Pelo decorrer de exclusão histórica das mulheres, elas desenvolveram níveis elevados de tolerância à opressão, de obediência a normas positivas e ao poder, à dependência vital e à sujeição, à feminilidade dominante agressiva, que limita quais as agressões e as manifestações não são consideradas delitivas. Ainda, as concepções dominantes encontram a loucura como espaço e fator explicativo do delito e o definem como uma agressão do indivíduo contra a sociedade (e também contra si mesmo). No entanto, é a agressão incontrolável da mulher aos outros que se caracteriza como patologia91, e que as caracteriza como antissociais que não cumprem normas. No entanto, além da relação conhecida entre delito e classe social, estão comprovadas a existência de relações completas entre o gênero, o tipo de delito e o papel das mulheres no fato delitivo; o que permite e controla as mulheres delinquentes e as mulheres vítimas (LAGARDE, 2005). Estar presa consiste em estar inserida em um aparato de disciplinas exaustivo em vários sentidos, que “se ocupa de todos os aspectos do indivíduo, de sua educação física, sua aptidão para trabalhar, o seu comportamento diário, sua atitude moral e suas disposições. A prisão não tem exterior nem vazio” (FOUCAULT, 2014, p. 238). Salienta-se que a prisão é parte do sistema penal, cuja primeira dimensão e imagem é a lei e as instituições formais de 91 Cabe observar que a concepção patológica tem relevante peso, pois na ideologia dominante e, consequentemente, para o senso comum, a enfermidade explica todos os fenômenos: as transgressões, a dor e o sofrimento, as dificuldades para sobreviver e, inclusive, a agressividade e a destruição do outro, que são interpretados não apenas como incapacidades individuais para enfrentar a vida, mas também são interpretados e estudadas as origens e disfunções da saudade, que infelizmente podem ser banalizadas e ignorar o delito como feito social e não individual, ou seja, que o delito é um espaço social e culturalmente construído e não um erro (LAGARDE, 2005). CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 103 controle. O sistema percebe o sujeito como o outro. A lei e o saber, dotados da ideologia patriarcal e capitalista, municiam o sistema de um discurso que justifica e legitima a sua existência (ideologias legitimadoras), constituindo o senso comum punitivo reproduzido, por sua vez, pelo conjunto dos mecanismos de controle social. As funções oficialmente declaradas ou promessas legitimadoras do sistema penal são: a proteção de bens jurídicos que interessem igualmente a todos os cidadãos – o bem, para combater de forma eficaz a criminalidade, e o mal, a ser instrumentalizado pelas funções da penal (mito do direito igualitário). “O sistema penal não é funcional, caracteriza-se por uma eficácia meramente simbólica; o sistema cumpre, de modo latente92, outras funções declaradas por seu discurso oficial, que incidem negativamente na existência dos sujeitos e da sociedade” (ANDRADE, 2012, p. 135) A seletividade é a função real e a lógica estrutural do sistema penal, comum às sociedades patriarcais e capitalistas, e nada simboliza melhor a seletividade do sistema que o olhar à população carcerária. No entanto, existe, “sobretudo para controlar a hiperatividade do cara93 e manter a coisa no seu lugar (passivo) ” (ANDRADE, 2005, p. 86). A mesma lógica da seletividade é 92 “A eficácia invertida significa, então, que a função latente e real do sistema penal não é de combater (reduzir e eliminar) a criminalidade, protegendo bens jurídicos universais e gerando segurança pública e jurídica, mas, ao invés disso, de construí-la seletiva e estigmatizante, e neste processo reproduzir, material e ideologicamente, as desigualdades e assimetrias socais (de classe, de gênero, de raça). ” (ANDRADE, 2012, p.136). 93 “Existe uma expressão (absolutamente cara) na nossa cultura que é cotidianamente reproduzida e que emblematiza, magistralmente, a hiperatividade do sujeito masculino ou, como se queira, o machismo. O cara é aquele sujeito onipresente e onisciente do nosso imaginário, plantonista de 24 horas, a quem recorremos para todas as demandas. Se eu vou contar uma história ativa, ela começa com um cara. O que estraga em casa, da telha ao vaso sanitário, tem que chamar um cara para consertar; o que estraga ou se necessita na rua, do pneu furado às compras para carregar, tem que chamar um cara, e esse não é apenas um pedido masculino feito por mulheres, mas por mulheres e homens. Agora, o cara é também o vilãotemido no mesmo plantão: se alguém tiver que entrar em nossa casa para roubar, se alguém tiver que colocar uma escada para subir na janela ou no telhado, será um cara. Se alguém houver que nos assaltar na rua, será um cara. O cara é, a um só tempo, exaltado e temido, ação e reação. Qual é o contraponto do cara? O contraponto do cara é precisamente a coisa: aquilo que não age ou aquilo do que não nos lembramos: me diz uma coisa? como é mesmo o nome daquela coisa? será que a dona coisa não vem? Ah, que coisa! ” (ANDRADE, 2005, p. 86). 104 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE demonstrada nos crimes de violência sexual, quando os holofotes são voltados para as pessoas envolvidas, e não sobre o fato-crime cometido (ANDRADE, 2005) A relação entre a grande quantidade de mulheres envolvidas como vítimas em casos de violência é uma mostra da opressão genérica, da desigualdade de homens e mulheres em fatos violentos. Os abusos também decorrem devido à desproteção e vulnerabilidade das mulheres frente aos homens, que se acentua ainda pelo fato de as mulheres não estarem/serem preparadas física e emocionalmente para brigar (LAGARDE, 2005). A prisão,94 como parte do sistema penal, é também uma ação sobre o sujeito, porque representa espaço de vida. Assim, é o reflexo do campo criado pela sociedade para recluir as mulheres más com as suas semelhantes e separar o resto. O castigo da prisão não é desconhecido e alheio às mulheres, pois, genericamente cativas, tornam-se presas. A prisão concentra maldade, tem como fim converter boas mulheres em más mulheres, mediante o castigo e seu caráter violento. Os aspectos especificamente genéricos que são denunciados tornam o sistema mais opressivo para as mulheres, fato comprovado com a análise dos índices de homens e de mulheres no sistema carcerário, que intenciona preservar e defender a sociedade (pessoas do bem) do delinquente, principalmente dos danos possíveis de serem causados (LAGARDE, 2005). Quanto à definição jurídica da prisão como castigo corporal, é evidente que a privação da liberdade corporal implica a total privação da liberdade relativa do sujeito. Não há nenhuma ação, atividade, trabalho ou repouso, nada que se faça na prisão é similar ao feito correspondente realizado fora dela. Ainda, a 94 “A prisão como controle formal continua tratando a mulher a partir das expectativas sociais sobre seu papel tradicional e dos valores neles implícitos. Porém, ao mesmo tempo, fica claro que quando a mulher vai para a prisão, ali a espera um regime de disciplina tão duro como do homem. Isso quer dizer que a prisão funciona dentro do sistema ideológico que informa as demais instâncias e que, por ser o controle mais extremo, expressa de forma mais contundente a autoridade do estado, de modo que tanto mulheres como homens encarcerados sofrem uma mesma submissão à autoridade estatal, perdendo-se, pois, na prisão, a singularidade de seus papéis sociais.” (MIRALLES, 2015, p. 256). CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 105 privação da liberdade corporal impõe uma sequela de privações, como a ruptura física e a dificuldade de manter relações familiares; a exclusão do trabalho e das atividades prévias, assim como a ruptura com os círculos de relações e atividades que calcam a identidade de cada sujeito. A prisão não é apenas o castigo, está sempre acompanhada por outras penas, que, além de segregar fisicamente da sociedade, também segregam jurídica e politicamente (LAGARDE, 2005). Também as violências provêm da relação entre as mulheres em situação de cárcere, entre pares cativas e obrigadas a conviver de forma permanente, em reclusão. As mulheres se organizam hierarquicamente e consideram o poder advindo do prestígio delitivo de cada uma, passando pela capacidade econômica, tornando mais violenta ou mais invisível a prisão para determinadas mulheres. Toda a mulher espera em situação de cárcere, de forma diferente à que esperavam antes, mas esperam uma visita familiar ou conjugal em todas as oportunidades. As abandonadas transferem a espera ao conjunto administrativo, às companheiras, aos filhos. Reduzem seu mundo à prisão e continuam esperando, principalmente seus familiares, expressando a angústia de que os homens as deixem por outras. A ilusão de esperar sair e que o mundo seja igual (MIRALLES, 2015). Interessante apontar os dois delitos mais cometidos pela representação do cárcere feminino, que são o narcotráfico e o roubo. A imensa maioria das mulheres está em situação de cárcere pelo delito de tráfico, por serem esposas, mas, ainda mais frequente, amantes de traficantes. Sua relação conjugal, filial ou materna com os homens está na base da transgressão. São dois os tipos de mulheres ligadas às drogas: as que cometem o delito ao lado de seus homens e são detidas e apreendidas com eles e as mulheres pressionadas a cometer o delito pelo homem preso, amparadas principalmente pela visita conjugal, que representa uma das obrigações cumpridas aos presos. Nessa circunstância, as mulheres são corpo-objeto, cuja vagina serve de veículo para 106 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE introduzir na cadeia drogas requeridas pelos presos, que estão proibidos de usá-las. Ainda, as mulheres cônjuges são corpo-objeto destinado ao uso erótico, permitido e incentivado aos presos semanalmente (LAGARDE, 2005). O outro delito identificado como majoritário é o roubo, que está associado ao trabalho. São mulheres que subtraem objetos que carecem para seguir certo estilo, uma vez que poucos roubos são por necessidade, mas para possuir objetos ligados à feminilidade para satisfazer exigências e ordens culturais às quais estão submetidas todas as mulheres. A mulher não rouba, a mulher se apropria de objetos que devem lhe pertencer de acordo com os estereótipos culturais e dominantes exigidos de todas, sem distinções de classe. Nos roubos de dinheiro em escritórios, comércios e bancos, a maioria das mulheres atua de acordo às ordens do cônjuge, que em troca de amor e companhia exige como prova de entrega, a apropriação de algo (LAGARDE, 2005). Os crimes referidos estão inter-relacionados à proteção da família patriarcal/capitalista, visto que o sistema penal não protege, em absoluto, a liberdade sexual feminina, que, por si mesma, é pervertida: a mulher que diz não quer dizer talvez; a que diz talvez, quer dizer sim; e a que diz sim, não é, em absoluto, uma mulher. Logo, “a nível micro, a proteção da moral sexual dominante está relacionada à família e, em nível macro, a função do sistema é manter estruturas, instituições e simbolismos, razão pela qual não pode representar-se como um aliado no fortalecimento da autonomia feminina” (ANDRADE, 2012, p. 136). Portanto, a inferiorização das mulheres e sua relação de subalternidade com os poderes faz com que muitas sejam conservadoras e sintam medo de transgredir as normas de inviolabilidade dos bens que estão sob sua custódia. Apesar disso, outros poderes conjugais ou paternos podem lograr a transgressão, invocando fidelidade, obediência e amor, e pago. Fraudes em escritórios e roubos em empresas têm sido o meio de pagamento de algumas mulheres aos seus exigentes amantes, esposos, pais, ou CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 107 filhos, realizados pelo temor de perder o outro, por submissão e por obediência (LAGARDE, 2005). Na mesma perspectiva, a mídia contribui para a criação de sujeitos sociais ao difundir concepções de mundo e normas morais, que dão forma e configuram elementos importantes de identidade em cada particular. Junto a isso, soma-se a presença de uma vigilância policial assegurada pela visão de mundo difundida pela mídia. A imprensa contribui aorevelar e exaltar o oculto do delito que acusa e sanciona a partir da ética e da moral, expondo fatos através de uma dinâmica que, além de buscar naturalizar o ato, seja desejável. O padrão do conteúdo central de periódicos, muitos de grande circulação, vende grandes fotos de mulheres semidesnudas em poses eróticas, também de mortos com violência, violência policial e, geralmente, acontecimentos das aproximações. Ao associar todos os temas, desde crimes até a pornografia, é possível compreender o recorte criador de uma realidade que conforma receptores para determinada unidade psíquica, emocional. Em consequência, tem-se o erotismo expressado na ideia de que a mulher é objeto de possessão e domínio para o prazer do outro, com violência (LAGARDE, 2005). Portanto, nota-se que são vários os fatores que conformam as opressões das mulheres, e que constituem e identificam quais devem ser sujeitas ao cárcere. O patriarcado, como exposto, está inserido e remodelado pelo capitalismo, que utiliza a mídia e todas as formas para manter as opressões. Antes de escutar as vozes silenciadas das mulheres em situação de cárcere, apresenta-se a seguir dados da situação do cárcere feminino, a fim de oportunizar o encaixe de todo o exposto acerca da dominação e ineficácia do sistema de justiça penal. 4.2 A situação da mulher no cárcere Para melhor apresentar a ineficácia do sistema de justiça penal, soma-se ao dito anteriormente, quanto à condição 108 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE encarcerada de toda e qualquer mulher, e à situação de presidiária de uma parcela estigmatizada, índices e estatísticas de encarceramento no Brasil e no estado do Rio Grand do Sul. O aumento dos índices de encarceramento feminino chama a atenção, pois também é reflexo do acesso da mulher ao espaço público, ao mercado de trabalho. O Brasil, na mesma linha norte- americana, apresentou sequencialmente aumentos significativos da sua população carcerária durante as últimas décadas, e a consequente violação dos direitos humanos, fato que levou o país a ser denunciado, em 30 de dezembro de 2014, na Corte Interamericana de Direitos Humanos, tribunal vinculado à Organização dos Estados Americanos (OEA), que determinou uma série de medidas cautelares a serem aplicadas no Presídio Central de Porto Alegre. A publicação recente de documentos oficiais como o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (DEPEN, 2014), o Mapa do Encarceramento (Brasil, 2014) e o Mapa da Violência (Brasil, 2015) apontam as estimativas e os fatores impulsionadores do crescimento da população carcerária, principalmente de mulheres, que aumentou mais de 50% desde o ano 2000, conforme a fonte International Centre for Prison Studies (ICPS), que paralelamente aponta um aumento de 20% no mesmo período de homens inseridos à situação de cárcere. Quanto ao índice de mulheres em situação de prisão na América do Sul, o referido estudo aponta, a partir da taxa de reclusas por 100 mil habitantes, considerando a população nacional de cada país, valores estimados de 18.5% no Brasil, 18% no Chile, 17.1% na Colômbia e 16.4% na Bolívia. Nesse sentido, dados do Ministério de Justiça (2014) revelaram que, entre os anos 2000 e 2014, a população carcerária feminina brasileira subiu de 5.601 para 37.380 presas, ou seja, um crescimento de 567%, enquanto que a taxa de encarceramento masculino foi de 119%. Ao comparar a população de mulheres reclusas no Brasil e no estado do Rio Grande do Sul, tem-se que CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 109 1.716 mulheres estão reclusas a nível estadual, o que representa um total de 6% da população. Ainda, dados do mês de julho de 2015 do Departamento de Segurança e Execução Penal do Rio Grande do Sul (DESEP) mostram um total de 1.716 mulheres em situação de cárcere, representando uma maioria de reclusas jovens, 55,87% com 34 anos ou menos; com instrução escolar precária (analfabeta, alfabetizada ou ensino fundamental incompleto), totalizando 61,23%. Quanto ao motivo pelo qual estão presas, 96,95% são acusadas e/ou condenadas por distintos delitos relacionados ao tráfico de drogas, com alto índice de reincidência, 52,50%. A população carcerária estadual feminina foi objeto do Projeto de Pesquisa coordenado pela Profa. Dra. Renata Maria Dotta e apoiado pela FAPERGS (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul), de edital PPSUS 2013-2015. A partir de bases de dados do Ministério da Justiça e da Superintendência dos Serviços Penitenciários do Rio Grande do Sul, somaram-se as coletas realizadas em parceria com a Universidade Federal do Ceará e Ministério da Saúde, contando com apoio de 10 estados brasileiros para compor o Inquérito Nacional de Saúde na População Penitenciária Feminina. Esse documento ainda não foi publicado, de forma que os dados apresentados a seguir fazem parte do Relatório Técnico Parcial dos Itens 8, 9, 10 e 11 da referida pesquisa. Em relação ao apoio matricial, trata-se de uma ação que consiste em um novo método de pensar e produzir saúde, com a intervenção de um processo de construção entre equipes de saúde. Salienta-se que este trabalho de conclusão não pretende e também não dispõe de espaço para discorrer sobre os objetivos gerais e específicos do referido projeto, nem dos resultados e dos alcances do apoio matricial em sua totalidade e especificidades. Segundo o Relatório Técnico Parcial, a coleta de dados na PFMP ocorreu em novembro de 2014, incluindo entrevista semiestruturada com uma amostra de 72 mulheres presas, exames laboratoriais, exames físicos e exame odontológico. A Penitenciária 110 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE abriga, na atualidade, 13% da população reclusa de mulheres no Rio Grande do Sul, com capacidade para receber um total de 239 mulheres e com a função de custodiar presas provisórias e condenadas. A apreciação da coleta de dados permitiu a confecção de um Relatório Técnico, com as seguintes estatísticas: a maioria das reclusas é jovem (61,72% possui 34 anos ou menos), de nacionalidade brasileira (99,56%), de cor branca (63,91%), com instrução escolar precária (61,23% declarou ser analfabeta, alfabetizada ou possuir ensino fundamental incompleto), solteira (61,73%) e que está sendo acusada ou cumpre pena por tráfico de drogas (96,95%). Sendo que, entre as entrevistadas, a maioria (59,2%) afirmou ser reincidente e já ter passado por instituições prisionais, e 40,8% disseram se encontrar pela primeira vez em privação de liberdade (RELATÓRIO PARCIAL, 2016). Ainda, em aspectos relativos a visitas, 50% das mulheres mencionaram receber visitas na prisão. Ao serem questionadas sobre quem são as pessoas que as visitam, 26,4% mencionaram as mães, 15,3% irmão ou irmã, 8,3% filhos e 5,6% companheiro ou companheira. Outro dado que chama atenção é que apesar de serem garantidos os direitos sexuais de mulheres privadas de liberdade, nenhuma recebe visita íntima na PFMP. Sobre a prática de relações sexuais durante sua permanência na instituição prisional, a maioria (76,1%) mencionou não ter relações sexuais. Quanto ao uso de substâncias psicoativas consideradas ilícitas antes do encarceramento, 70% das participantes referem usar crack todos os dias, 85,4% afirmam usar maconha diariamente e 88,1% mencionam usar cocaína mais de uma vez por semana, números superiores ao uso de drogas feito pela população brasileira (RELATORIO PARCIAL, 2016). Os questionamentos sobre uso de tabaco, álcool e outras drogas apontam que 76,1% declararam ser tabagista; 46,5% disseram nunca ter ingerido bebida alcoólica; 26,8% responderam consumir álcool mais de duas vezes por semana; 94,3% e 88,7% disseram nunca ter feito uso de ecstasy e CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 111LSD; 83,3% mencionaram tomar algum medicamento psicotrópico antes, e 79,2% afirmaram continuar utilizando estas medicações após o encarceramento (RELATÓRIO PARCIAL, 2016). Sobre as experiências e ocupações laborais, 23,6% declararam não trabalhar antes de serem presas; 25% responderam trabalhar com serviços domésticos; 25% com prestação de serviços; 20,8% mencionaram ocupações mal especificadas/outra. Já em situação de cárcere, os dados que 18,3% das participantes afirmam exercer trabalho remunerado na prisão; 93,1% responderam não praticar nenhum exercício físico ou prática esportiva; 53% declararam assistir televisão mais de seis horas por dia, como principal recurso de lazer acessível (RELATÓRIO PARCIAL, 2016). A partir dos dados citados e retirados do Relatório Técnico, itens 8, 9, 10 e 11, do projeto coordenado pela Profa. Dra. Renata Dotta, quer-se também apresentar a pesquisa de campo realizada na Penitenciária Modulada de Ijuí durante a confecção deste trabalho, para que seja possível um olhar à situação de cárcere das mulheres, e das estreitas situações particulares de cada uma, independentemente do local em que são privadas de liberdade. A PMEI está situada na Rua Tobias Barreto, s/nº, Bairro Luiz Fogliatto, na região noroeste do Estado e é atualmente dirigida pelo Sr. Jelson Vidal Tapia, na função desde 2015. A capacidade de engenharia da Penitenciária é de 466 pessoas, contudo, até a data de 22 de julho de 2016 se encontravam 593 pessoas em situação de cárcere, entre 30 mulheres e 563 homens. Os módulos obedecem às normas estabelecidas pela Superintendência dos Serviços Penitenciários (SUSEPE), relacionada à arquitetura das penitenciárias estaduais, ou seja, todas as penitenciárias são edificações similares. Cabe ressaltar que a estrutura foi realizada para o encarceramento masculino, tornando-se uma penitenciária 112 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE adaptada95 a partir de 2010, quando se destinou parte (metade) das alas de dois módulos de vivência, que são oito no total, para as mulheres. As mulheres em situação de cárcere na PMEI encontram-se ainda mais privadas de circulação, pois devem ocupar apenas parte dos módulos de vivência das galerias 1A e 1B, que comportam 15 mulheres em cada galeria, com acesso ao pátio em dias e horários intercalados aos dos homens ali detidos, por aproximadamente duas horas diárias. Cada cela comporta, como regra geral, o total de quatro mulheres, e possuem dois beliches de concreto, com um colchão de espuma para cada cama. As celas possuem um cano para banho, uma pia adaptada e um vaso sanitário de chão, chamado de “boi”. A rotina da penitenciária é monótona e morosa, são poucos agentes e muitos detentos, as tardes são longas e silenciosas, há sempre movimentação de entrada e saída. São detentos transferidos de outras cidades para a PMEI. Quanto ao acesso das pessoas à penitenciária, há bastante rigor por parte da segurança, uma vez que é considerada uma penitenciária de segurança média, tendo critérios e todo um aparato diário de fiscalização a ser seguido. Todos/as devem ser devidamente identificados/as, os veículos autorizados passam por revistas todas as vezes que entram e saem; também há anotações de horários de circulação. Os dias de visita são divididos de acordo com os módulos e horários. Como citado anteriormente, cada módulo de vivência possui duas galerias, identificadas como módulo de vivência um, dois e módulo apoio. Em cada módulo há duas galerias, divididas em lado A e B, e em cada uma delas estão detidos aproximadamente cem presos. As galerias são representadas por um detento eleito pelos outros detentos da galeria, com a função de repassar as necessidades mais urgentes aos agentes de plantão, já 95 “Dentro deste sistema misto há de se ressaltar as pressões a que está submetida a mulher. Esta não pode pedir translado de andar, enquanto os homens podem, estando assim forçadas a conviver em um mesmo andar, a tolerar as intromissões das demais, ainda que não queiram. ” (MIRALLES, 2015, p. 254). CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 113 que o representante, conhecido pelos detentos como prefeito, tem a possibilidade de circular no corredor e perpassar pelas celas da galeria. No módulo restrito das mulheres, a rotina é a mesma, também possuem uma representante, que circula as informações, as necessidades e outras questões e fatores rotineiros. Os dias de visita são intercalados com as galerias A e B, pois há um critério de separação pela SUSEPE. Então, as galerias A recebem visitas alternadas com as galerias B; assim, nas quartas- feiras e sábados as visitas são destinadas às galerias A de todos os módulos, e nas quintas-feiras e domingos ficam com as galerias B. Nos dias de visitas, o acesso ao pátio e ao refeitório ficam liberados; ambos possuem câmera de monitoramento, é corriqueiro a presença de crianças e famílias. A visita íntima ocorre uma vez por semana e tem duração de meia hora ou mais, dependendo do fluxo de visitas de cada galeria; são destinadas quatro celas especiais em cada galeria. A PMEI possui assistência social, psicológica, de saúde e jurídica. Ainda não há trabalho para as detentas, além dos afazeres para manter a estrutura funcionando, como limpeza, alimentação etc. Para os/as que ainda não terminaram o ensino médio, com vagas limitadas, há o Núcleo Estadual de Educação de Jovens e Adultos Jair Forin (NEEJAJF), situado dentro da PMEI, com aulas às segundas, terças e sextas-feiras. O NEEJAJF oferece certificação via exames fracionados ou globalizados, correspondente ao Ensino Fundamental e ao Ensino Médio, em que o educando é avaliado de acordo com os componentes que necessita para concluir o nível. A organização curricular do Núcleo busca ampliar e distribuir de forma equitativa a carga horária das disciplinas, em cada área do conhecimento. A matriz curricular considera a distribuição do tempo de modo a garantir a oferta de formação geral e diversificada. O programa desenvolvido segue uma metodologia específica, atendendo os princípios norteadores do Projeto Político Pedagógico, organizando os tempos e espaços de acordo com as 114 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE possibilidades da instituição. É importante mencionar que a escola possui 82 alunos. Desses alunos, 14 são mulheres. As práticas delituosas variam muito: são alunos que cumprem pena por tráfico de drogas, homicídio, assaltos. No que se refere às mulheres, 12 estão presas por tráfico de drogas e duas por homicídio. A faixa etária dos alunos varia muito: de 20 a 50 anos de idade, em média. Na próxima seção, serão apresentadas as histórias de seis mulheres que se disponibilizaram a conversar, contar suas experiências e os motivos que as conduziram à situação de cárcere. O objetivo de escutar essas mulheres é apenas um: conhecê-las e escutá-las sem pré-conceitos ou prévio estudo sobre seus processos e sobre seus crimes, para que seja possível, a partir de todo o conteúdo já exposto, inter-relacionar a condição do ser mulher e as situações de cada uma ao extremo do encierre cautivo, que é o sistema carcerário. 4.3 Um eco das vozes silenciadas As mulheres em situação de cárcere ficam fechadas em suas celas e não têm o menor contato com funcionários, têm pouco contato entre elas e poucos tipos de distração. Neste regime, baseado nas premissas de contenção e disciplina de ferro, estão as mulheres, isoladas dentro de uma penitenciária construída para o público masculino e, posteriormente, adaptada, dando origem à ala feminina da Penitenciária Modulada Estadual Ijuí (PMEI). A mulher, quando autora de crimes, é punida rigorosamente, pois, quando realiza uma mesmaatividade criminosa que o homem, submete-se à condenação, à pena de reclusão, já que quando ambos são condenados, a mulher recebe uma pena de prisão maior, uma vez que a dissidência feminina supõe, acima de tudo, um ataque à moral da sociedade (MIRALLES, 2015). A explicação da criminalidade da mulher ocorre desde as concepções clássicas da criminologia até sua nova CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 115 abordagem, que investe no controle social, como exposto anteriormente. Dar a voz às detentas é necessário para conhecer a realidade do sistema judiciário criminal e, ao mesmo tempo, conhecer os sentimentos e as perdas que ali ocorrem, as resignações das vidas de cada uma, as formas como encaram seus dias cinzas, suas dores e suas pretensões. O objetivo desta seção é buscar uma reflexão acerca da situação da mulher no cárcere através de suas próprias percepções e de seus próprios motivos, ou seja, pretende-se expor as relações entre todo o disposto até o momento com as vozes de quem verdadeiramente está submetida à privação de liberdade, que, como já se ressaltou, trata-se de um eufemismo. A presente pesquisa não se determinou por dados quantitativos e qualitativos e, sim, pretendeu uma conversa com as detentas, com quantas fosse permitido, sem conhecer seus históricos ou suas fichas criminais previamente. A intensão era conhecer a outra não pelo olhar do sistema penitenciário e, sim, a partir de toda a construção exposta no presente trabalho. Entender a condição do ser mulher, entender o sistema como patriarcal, e, finalmente, compreender a estigmatização e a perseguição das mulheres postas em situação de cárcere, para então identificar nessas conversas quais as relações entre a construção da sociedade e a realidade da condição e situação de vida de cada uma dessas mulheres. As entrevistas foram realizadas na PMEI, no dia 22 de julho de 2016. Utilizou-se da técnica de pesquisa com entrevistas semiestruturadas, modelo mais espontâneo e que permite, a partir de um conjunto de questões pré-definidas, fazer novas interferências conforme o desenvolver da entrevista. Seis mulheres se disponibilizaram a falar, a contar um pouco de suas vidas, que, de maneira sigilosa, serão relatadas a seguir, com o intuito de identificar nos discursos de cada uma a abrangência do sistema patriarcal e as inter-relações com o discurso criminológico. 116 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE Os pontos que nortearam as entrevistas são os seguintes: 1) Especificidades: gênero, idade, cor e filhos; 2) Processo: possuem conhecimento da situação processual e do motivo exato que as levaram à situação de cárcere?; 3) Antes do fato, quais eram seus objetivos e, superando a situação atual, quais são as suas expectativas futuras de vida; 4) Relação com o trabalho antes do cárcere; 5) Ambiente familiar: formação do núcleo familiar, existência de violência entre membros da família, abuso sexual e psicológico, contato posterior ao encarceramento; 6) Maternidade e a convivência familiar; 7) Quais os estímulos relacionados com seu envolvimento no crime (homens?); 8) Quais as situações de violência que já enfrentaram (prostituição, estupro, violência doméstica, aborto, maternidade compulsória); 9) Situação de cárcere: condições psicológicas e físicas e 10) Condição de saúde antes e depois do ingresso ao cárcere, a relação com as drogas. Reitera-se que, por tratar-se de método semiestruturado, não houve uma sequência de perguntas nem de respostas, e que todos os nomes utilizados são fictícios. Ainda, cabe ressaltar que a presente pesquisa não pretendeu analisar os processos judiciais de cada uma, muito menos comparar os fatos contados nesses momentos de conversa com os fatos processuais, uma vez que a pretensão única é compreender o papel social da mulher, as situações particulares de cada uma e a inter-relação com seus discursos e o pensamento criminológico. Ana Ana é natural da cidade de Passo Fundo/RS, é branca e tem 42 anos. É mãe de seis filhos, entre homens e mulheres, advindos de distintos relacionamentos. Está condenada pelos crimes de tráfico de drogas e associação criminosa; diz serem uns dez anos de pena. É órfã de mãe desde os oitos anos e tem sete irmãos, entre homens e mulheres. Quando da morte da mãe, o pai entregou os CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 117 filhos/as para outras famílias, ficando apenas com a filha mais velha, que na época tinha 11 anos, sendo que três anos depois foi abusada pelo pai, que a engravidou. Ana denunciou o pai, que prometeu matá-la. Sempre esteve em famílias diferentes, buscava constantemente encontrar os irmãos e, por isso, não conseguia criar vínculos com as famílias adotivas. Ainda mantém contato com uma das irmãs, que vive em Passo Fundo; os demais foram adotados por famílias diversas. Comenta que fez contato há um tempo, pelas redes sociais, com dois irmãos que vivem hoje na Itália. Aos 14 anos conheceu um dos pais de seus filhos em uma casa de prostituição, na cidade de Passo Fundo/RS, uma vez que ali trabalhava todas as noites. Era como uma boate e ela recebia a comissão das bebidas dos seus clientes. Era permitido que as mulheres dormissem lá, fato que a condicionou a permanecer mais tempo na situação de prostituição, pois já não tinha quem a acolhesse. Dois anos depois, engravidou da primeira filha, que hoje também está presa por tráfico de drogas. Na época, o proprietário da boate solicitou que ela fosse embora, pois não servia mais para a prostituição. Assim, Ana foi morar com uma amiga que conheceu na mesma boate e, depois que teve a filha, voltou a trabalhar lá por um tempo. Em meados de 1993 foi morar em Cruz Alta/RS e não encontrou emprego. O pai da sua filha desapareceu e ela necessitava com urgência um local para morar. Dessa forma, foi indicada a uma casa de prostituição, que permitia apenas que ela ficasse lá, não a filha, que ficava com uma cuidadora durante os dias de semana; nos fins de semana, Ana a buscava. Permaneceu nessa casa de prostituição por alguns anos, até o momento em que conheceu um médico da cidade, que frequentava o local e fazia uso da prostituição. Tinha 19 anos na época, e ele contava com 65 anos. Por inúmeras vezes foi à casa dele, que prometia novas oportunidades, pretendendo tirá-la da casa de prostituição. Contudo, em uma das noites nas quais estava 118 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE lá ele a levou a um quarto e abriu um grande armário, onde havia mais de 50 armas e, então, sob ameaça de morte, dizia para ela que era seu dono e se negava a usar preservativo. Posteriormente, assustada, deixou de vê-lo, mas, alguns meses depois, descobriu que estava grávida dele. Desse relacionamento nasceu seu segundo filho; após sete anos de tramites, conseguiu realizar o teste de DNA, obtendo o reconhecimento da paternidade e pagamento de pensão ao filho até os 21 anos, sendo que no momento ele se encontra preso, também por tráfico de drogas. Após três anos morando em Cruz Alta, mudou-se para a cidade de Ijuí/RS, fato que decorreu do início de um novo relacionamento e do nascimento de mais um filho. Sem encontrar trabalho, pois muitos requeriam experiência, acabou submetida novamente à prostituição por mais alguns anos. Logo depois, abriu um bar, que, na verdade, era uma casa de prostituição, que abria à tarde e fechava por volta da 1h. Ali estavam duas mulheres em situação de prostituição, que dividiam os lucros com Ana. Nessa época, deixava os filhos com uma amiga em um dos bairros da cidade, pegando-os todos os fins de semana. Engravidou novamente do mesmo homem e largou o bar, momento em que retomaram o relacionamento, que estava desgastado. Ana afirma que ele era muito agressivo e tambémera usuário de drogas e, por diversas vezes, prometeu que largaria as drogas e que trabalharia. Entre idas e vindas com o companheiro, engravidou do quinto filho e passou a trabalhar com lanches, mas seguiu se prostituindo quando era necessário, ou seja, quando o companheiro se envolvia com drogas e não a ajudava a suprir as necessidades das crianças, principalmente quando estavam doentes. Sobre o companheiro, diz que quando não estava sob efeito das drogas era trabalhador e ajudava nas despesas e na educação dos filhos, mas eram sempre períodos curtos, visto que terminava não resistindo às drogas. Seguiu nesse ciclo de violência por acreditar que ele mudaria e por amá-lo muito, era a única pessoa CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 119 que ela tinha. Incontáveis vezes ele chegava embriagado em casa, e também tinha contato com mulheres aidéticas, o que a levou a descobrir que estava com sífilis, realizando tratamentos no mesmo período em que iniciou seu envolvimento com a Igreja. Passado um tempo, retornou ao médico, que disse que ela inexplicavelmente estava curada; ela acredita que tenha sido um milagre da Igreja. Alguns anos depois, o companheiro novamente se envolveu com drogas, momento em que Ana não pensou duas vezes e vendeu o carro, que estava no nome dele. Era o único bem que possuíam, e ela já tinha seis filhos. Com medo de que o vendesse para comprar drogas, pegou o dinheiro da venda e investiu em máquinas de sorvete instantâneo e milk shake, alugando também uma peça no centro da cidade para comercializar os produtos que produzia e os lanches. Pouco tempo depois, após uma grande briga, o companheiro foi para o estado do Mato Grosso morar com um irmão; ocorre que lá foi baleado e teve o pulmão perfurado. Ana, ao ser informada do fato, foi até lá para cuidá-lo, sob todas as juras de amor e de mudança que ele tinha novamente feito; retornaram juntos à cidade de Ijuí. Pouco tempo depois, o companheiro voltou a usar drogas e se afastou da casa, ficava na rua em más companhias, o que desencadeou uma briga com um moto-táxi, pela qual ele terminou preso. Atualmente, está detido no Instituto Penitenciário de Ijuí, conhecido como albergue, local ao qual ela não quer ir, pois admitiu ter medo dele. Quando o companheiro já estava preso, Ana teve um problema com as máquinas de sorvete e necessitava consertá-las urgentemente, uma vez que morava sozinha com os filhos mais novos e era essa sua única fonte de renda. O valor do conserto era de R$ 150,00. Quando seu compadre ficou sabendo que necessitava de ajuda, ofereceu o valor aproximado para que ela fosse buscar crack na cidade de Passo Fundo. Ana pensou muito na oferta, não sabia como agir, mas era tão urgente e necessário que aceitou. Na primeira ida, trouxe aproximadamente 200/300g da droga e, posteriormente, o 120 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE compadre seguiu oferecendo o mesmo serviço; tentada, passou a aceitar. Com o passar do tempo e das idas e vindas, nas quais aproveitava para visitar a irmã, passou a pegar a mais do que o compadre solicitava e iniciou seu próprio comércio no bairro em que residia. Passados seis a oito meses, juntou aproximadamente onze mil reais e pretendia buscar para o próximo carnaval um quilo próprio da droga. Sequencialmente, foi a Passo Fundo e, ao retornar para a cidade de Ijuí, encontrou a polícia na porta de sua casa, que a aguardava. Ela acredita ter sido denunciada pela vizinha, também traficante. Ana toma remédios na prisão para o humor. Está detida no módulo de apoio da penitenciária, uma vez que trabalha na limpeza do módulo administrativo. Por estar no apoio, consegue cozinhar com mais facilidade, produzindo rapaduras para vender nos dias de visita, conseguindo juntar dinheiro e enviar para os filhos pelas mãos visitas das outras detentas que conhece, já que não costuma receber visitas. Quando foi presa, as pessoas se afastaram, ninguém leva os filhos dela para visitá-la. Há tempo não vê as crianças. Conta os dias para sair da prisão, afirmou muitas vezes que tem medo de ir para o albergue, mas que sonha em levar uma vida diferente quando sair, que quer estudar, fazer um curso de técnico em enfermagem, pois sabe que tem como fazer de graça e que também gosta de cuidar das pessoas. “Ah, eu era bem louca na época, não sabia muito da vida. Gostava muito dele, ele era tudo, sempre fui muito sozinha, então ele me ajudava”. “Eu nunca gostei do meu pai, ele era ruim para mim e para os meus irmãos, a gente tinha que se virar em tudo. Quando fiquei sabendo que ele engravidou a minha irmã não pensei duas vezes em ir à polícia, ela sofreu muito tendo que ficar lá com ele. Ele jurou me matar, mas não me preocupei com isso”. “Não conseguia ficar muito num lugar só, tinha saudade dos meus irmãos. Ficava um tempo na casa de uma família, mas assim que descobria onde eles estavam eu ia atrás. Era difícil, mas eu tive CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 121 oportunidades de estudar, mas não me preocupava com isso, só em encontrar eles”. “Teve uma professora em Passo Fundo, ela foi muito boa para mim. Quando eu ia para Passo Fundo eu a visitava, sempre me recebeu bem, acho que foi o mais próximo que tive de uma família”. “Ah, eu fui atrás dele, o irmão me ligou, ele também falou comigo, pensei que depois do tiro ele ia mudar, estava assustado. Mas, não, sabe como é, a gente que é mulher pensa que vão mudar. Não sei, hoje já não faria mais”. “Pobre do mais novo, olho para ele e penso quando cogitei abortar, sei não, que teria sido melhor. Mas, a gente é mãe tem que cuidar e amar os filhos”. “Assim que eu vi que ele andava alterado, usando droga, peguei o carro e vendi, ele ficou muito brabo, mas era a única coisa que nós tínhamos, não pensei duas vezes”. “Teve vezes que me prostitui grávida sim, precisava comprar as coisas, dar de comer para os outros, não era fácil não, nunca foi”. “Eu estava desesperada, ele estava preso, eu estava sem dinheiro, a máquina estragada. Estava fazendo lanche para vender fora de casa, mas não alcançava, uma das crianças estava doente, não tinha o que fazer. No momento que ele me ofereceu eu não aceitei, pensei muito, mas ver as crianças ali, eu acabei indo”. “Com o quilo eu ia mudar de vida, fazer um dinheiro bom, guardei tudo que podia pelo menos esse quilo está pago, caso contrário não sei que seria dos meus que estão fora daqui”. “Tempo aqui demora muito para passar, mas eu vou sair sim, vou conseguir alguma coisa quando sair daqui para estudar”. Bruna Bruna é natural de Ijuí/RS, é branca e tem 19 anos, mãe de uma menina de 1 ano e 5 meses. Atualmente, está separada e a filha está com a avó paterna, tem visita assistida uma vez ao mês. 122 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE Está aguardando o julgamento por feminicídio, é acusada de matar a mãe e o irmão junto com o seu ex-companheiro. Introvertida, não falou praticamente nada, afirma ter uma relação difícil com as detentas, razão pela qual é submetida a tratamento psiquiátrico, com altas doses de medicação. É mantida em cela especial, com seguro de vida. Não sabe os nomes dos medicamentos. Quanto ao crime, realizado na época com o companheiro, não respondeu às perguntas e também não deu abertura para conversas, no entanto, em nenhum momento afirmou ter sido induzida pelo companheiro, mas também não assume a ideia como sua. Em setembro de 2015 o casal procurou a polícia e confessou o crime, que foi o homicídio da mãe de Bruna, de 43 anos, e de seu irmão, de dez anos. O crime ocorreu na casa da vítima, que estava sozinha com o filho. Os pais estavam separados há um tempo, sendo que não tinha muito contato com a família. O companheiro foi ofendido pela sogra e por isso, se descontroloue atingiu-a com uma faca e, logo depois, atingiu o irmão da vítima, que gritava pela morte da mãe. Bruna não buscou socorro, afirmou ter ficado em estado de choque e sem reação frente à situação. Antes do ocorrido estava procurando emprego, já tinha saído de casa e vivia com o companheiro, tinham uma boa relação e no momento da gravidez não pensou em abortar, também teve apoio dos pais. Não está mais com o companheiro, se afastaram e ele também foi preso, não conversaram mais. “Eu até sei o motivo, mas eu nunca vou falar para ninguém”. “A gente estava junto há um tempo sim, quando eu engravidei a família apoiou, não tinha muito que fazer, já estávamos morando juntos”. “Eles (os pais) me controlavam bastante sim e discutiam muito”. “Sinto falta da minha filha, agora está com a avó, mas queria estar perto dela”. “Gostava dele sim”. CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 123 “Eu queria trabalhar, estava procurando emprego, agora aqui vou estudar, diz que temos esse direito”. “Eu estou sozinha numa cela, não posso conviver com as outras, elas já sabem porque estou aqui e não aceitam, mas prefiro estar sozinha”. Carla Carla é natural de Santo Ângelo/RS, é branca, tem 40 anos, mãe de cinco filhos. Está condenada por tráfico de drogas e associação criminosa. Teve dois casamentos. No primeiro, que durou 14 anos, teve três filhos e o marido a aliciava para prostituição. Contou que se prostituía pois ele dizia que era uma forma de ganhar dinheiro para eles, mas que era ele que ficava com os ganhos dela. Já no segundo casamento, afirmou que foi feliz, que ficaram como dez/doze anos juntos, que ele tinha condições de ajudá-la, tiveram dois filhos, era bom pai. Ocorre que foi preso em 2012, quando gastaram todo o dinheiro que tinham, o que a levou novamente à situação de prostituição para manter os filhos, e que o marido nem sonhava com isso, mas que ela não tinha vergonha e precisava comprar comida. Três dos seus filhos estão no lar e dois com a família dela. O marido foi preso por homicídio, se envolveu numa briga no bairro, quis ajudar uma vizinha e a filha – se envolveu demais segundo Carla. Ela foi detida quando estava na fila para fazer a visita, em um sábado, em abril deste ano. O marido foi para o albergue e lá foi morto com um tiro, diz sentir muito a morte dele, que foi muito injusta e que ninguém fez nada. Também diz que não quer ir para o albergue. Carla não costumava fazer visitas aos sábados, no entanto, tinha ganhado sua última filha há dez dias e queria levá-la para conhecer o pai. Antes da ida, uns dois dias antes, uma conhecida, também com o marido preso, soube que ela iria para a visita e pediu um favor, já que elas se ajudavam como esposas de presos. O 124 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE pedido foi para levar comida para o marido, que ela enviaria por motoboy; Carla aceitou. Ocorre que, no caminho da casa da conhecida até a casa de Carla a polícia abordou o motoboy, que disse que a droga era da entrega e não dele e entregou os endereços das mulheres e também foi processado, visto que o advogado dele a procurou para que ela dissesse que a droga era dela, tentou pressioná-la. No sábado, Carla foi ao presídio para visitar o marido. Fazia dez dias que estava de alta, tinha ganhado a filha de cesárea, sentia dor, afirmou ter se arrependido de ir, já que não costumava ir aos sábados. Na fila, com a criança no colo, foi dada voz de prisão para ela. Assustada, deixou a filha no bar em frente ao presídio, que é conhecido de todas as famílias que frequentam a penitenciária para visitas. Deixou lá criança com a dona e o número da irmã, que posteriormente foi buscá-la. Tanto Carla como a conhecida que pediu o favor estão presas pelo mesmo motivo. Pelas contas, ela acredita ter uns dez anos de pena, mas que não consegue muito acesso ao processo. Não recebe visitas. Tem os pais vivos, mas prefere que eles não a visitem. Não fala muito da família, apenas que o ambiente da penitenciária é horrível e com o tempo ninguém mais insistiu nas visitas, faz tempo que não vê os filhos, sento falta e fala muito de uma das filhas, estuprada aos treze anos pelo sobrinho do segundo marido, em um passeio. A filha nunca superou o fato, o sobrinho foi preso, mas ela nunca mais conseguiu levar a filha para a escola e diz que queria muito estar perto, que foi muito triste, ela não estava no passeio e sentia muita dor por isso. Conta os dias para sua saída, já que está lá de forma injusta. Diz que quer sair, voltar a trabalhar, qualquer coisa, mas quer estar perto dos filhos. O convívio é muito difícil, cada uma que está lá tem os seus problemas. Tem dias que nem vai ao pátio, prefere ficar só. Está cansada e sabe que tem tempo ainda para cumprir. Quando sair, vai correndo buscar os filhos, quer arrumar CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 125 trabalho, se ajeitar, vai sentir falta do marido, mas quando pensa nos filhos sabe que são dores possíveis de superar. “Eu não devia estar aqui não, isso é muito injusto. Aquela droga não era minha”. “Eu me senti muito mal, eu sentia dor, estava com a filha de dez dias no colo quando fui presa na fila da visita, não tinha aonde deixar ela, eles não pensam na gente”. “Eu nunca tive vergonha, se precisei me prostituir precisava do dinheiro, mas não é bom não, é dolorido, é por necessidade”. “Ela foi estuprada pelo sobrinho dele, a gente não sabia de nada, foi dolorido, meu marido ficou muito brabo, todos ficamos. O guri foi preso, mas ela ainda não se recuperou, queria estar perto dela”. “Quero sair daqui, cuidar meus filhos, trabalhar, eu se precisar catar papelão vou catar”. “Ele (último marido) era bom para mim, cuidava da família, quando aconteceu o estupro não acreditava, ele ficou muito triste, todos nós”. “Sinto falta dos meus filhos, não sei se esses processos estão certo, tem dias que é difícil conseguir alguma informação”. “Aqui é difícil”. Denise Denise é natural de Ibirubá/RS, tem 44 anos, é branca e não tem filhos, teve um aborto espontâneo. Licenciada em Artes, dava aula em uma escola do município e também no estado. Está condenada por tráfico de drogas e associação ao tráfico de entorpecentes; a pena é de 14 anos. Possui uma união consensual com J.P. há mais de quatro anos; ele também se encontra preso, na mesma penitenciária e pelos mesmos motivos. No final de setembro de 2014, Denise fez o que sempre consumava fazer: buscou seu companheiro na parada de ônibus, pois ele trabalhava como mestre de obras em outra cidade durante a semana. Ambos residiam em Ibirubá e passavam o fim de 126 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE semana juntos. J.P. tem um filho de um relacionamento anterior, que também costumava passar o final de semana com o casal, um menino de 15 ou 16 anos, usuário de drogas, que já tinha se envolvido com tráfico e que nos últimos meses estava morando com o casal. Nos finais de semana, a casa sempre estava movimentada, muitas pessoas entrando e saindo, eram conhecidos do menino e de J.P. Quando isso ocorria, ela costumava esconder- se, alegando ficar com medo. Mas, na ocasião citada anteriormente, Denise não foi sozinha buscar J.P, pediu a um amigo para acompanhá-la, já que não possuía carteira de habilitação e não queria deixar o carro sozinho. Porém, ao chegarem em casa foram surpreendidos com a presença da polícia. Denise ficou muito assustada, não sabia o que acontecia, desconfiava que estivessem metidos com drogas. Já em outra ocasião o filho de J.P fora levado à FASE-Passo Fundo/RS para cumprir medida e afirmava ter sido por drogas. Desde aí, Denise havia ficado mais cuidadosa e falado com J.P. para ele não se meter nisso. Logo que chegou, encontrou a delegada, que conhecia da escola,pois eram típicas nas escolas as palestras e conversas sobre drogas e violência. Sentiu-se envergonhada. Logo que chegou pediu para ir ao banheiro, pois recém chegava de uma espera na rua. Ao entrar, uma das agentes da polícia solicitou que abrisse a porta e ela imediatamente o fez, mas, ao puxar a descarga, um pacote de drogas caiu no vaso sanitário. Denise acredita que estava escondido, mas a policial afirmou que ela carregava na vagina o pacote de cocaína. No entanto, afirma reiteradamente que isso não é verdade, que nem exames fizeram, só pediram que fizesse agachamentos, que ela estava machucada, mas nada adiantou e a levaram. Ela acredita ter sido denúncia dos vizinhos. Quando ela saiu do banheiro, o filho de J.P assumiu que a droga era dele, que tinha escondido, e foi levado à FASE, mas já está solto. No momento foi tudo conturbado, ela não sabia como agir, não acreditava que estava acontecendo. Sente falta da escola e da rotina, a família visita pouco, é como se não tivesse CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 127 relacionamentos e amizades antes da cadeia, ninguém aparece e isso é comum com todas. Gostava de J.P, antes de conhecê-lo vivia sozinha, mas não imaginou que terminaria assim. Estão na mesma penitenciária e se visitam, acredita que não adianta mais brigar e sim estarem unidos, que ela como mulher tem que apaziguar as coisas. Tem acesso a informações processuais, mas continua com algumas dúvidas. A convivência com as mulheres é difícil, não tem trabalho e ela não pode estudar, por já ser graduada. Reclama da ociosidade, quer atividades para a remissão. Afirma que toma medicamentos, que é bem tratada dentro daquela realidade, que quer sair de lá, e que não sabe como vai ser para voltar a dar aulas. “Olha nego se te pegarem vão me levar junto, tu tem que cuidar o que faz”. “Não tem como ficar de mal com ele né, a gente está aqui, na mesma situação, que eu vou fazer, pelo menos vejo ele”. “Eu era bem sozinha até conhecer o nego, a gente se dava bem”. “Eu não pude falar, não me deixaram, aquela droga não estava em mim, nem deixaram fazer exame”. “Eu desconfiava e depois até sabia, mas sempre conversava, pedia para parar, ele ia parar, mas aconteceu tudo isso antes”. “Ah, tem dias que sente culpa por eu estar aqui, mas falo para ele que de nada adianta, estamos juntos aqui, um dia termina”. “É difícil, não tem trabalho, eu não posso estudar, já sou graduada, mas queria ir à escola, qualquer coisa”. “Vou ao pátio tomar um sol, tomar um mate com as outras mulheres, tem dias que dá umas discussões, todas são sofridas”. Érica Érica é natural de Ijuí/RS, tem 73 anos, é branca e mãe de dois filhos. É viúva há 18 anos e acredita estar presa por causa dos filhos. Estudou até a 4a série do ensino fundamental, pois moraram muitos anos no interior, na colônia, e trabalhava arduamente com 128 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE a lida do campo. Veio para a cidade quando o filho mais velho tinha sete anos. Atualmente, ele está com 44 anos e o segundo com 41 anos. Está condenada por tráfico de drogas e associação criminosa, cumpre pena de 13 anos. No bairro onde moravam tinham uma venda, uma oficina e duas casas, uma coisa ao lado da outra, todos os imóveis eram de propriedade deles. Érica confessa que o filho mais novo era usuário de drogas desde os 12 anos e que nos últimos meses estava fumando pedra. Todo o dinheiro que ganhava na venda tinha que esconder, algumas vezes ao deitar-se escondia nas suas roupas íntimas junto a seu corpo, com medo que o filho achasse e levasse todo dinheiro, como já havia feito em outras ocasiões. Estava falindo, mal conseguia manter a venda, o filho pegava o que conseguia de dinheiro e as mercadorias. O filho mais velho a ajudava. O outro filho morava na casa ao lado com sua família. Tem um neto de oito anos, trabalhavam na oficina e afirma que via os negócios prosperarem. Érica e os filhos estão presos na mesma penitenciária. Ela acredita que a polícia chegou aos estabelecimentos através de denúncias devido à movimentação, culpa do filho mais novo e usuário, que juntava muitos amigos e ficava pela rua. Lamenta a situação á qual chegaram, diz que acredita que as investigações começaram pelos abusos do mais novo, foram feitas interceptações telefônicas e chegaram ao conhecimento do que ocorria na oficina. No dia em que a polícia foi à oficina, não acreditava no que estava acontecendo. Relata tudo chorando, diz que está velha e cansada, que queria estar com o neto em casa, mas que perderam tudo. Afirma que cansou de pedir que o filho parasse de usar drogas, que foi internado e não adiantou. Na PMEI, trabalha como auxiliar de limpeza e não se queixa do tratamento. Também tem como ver os filhos. Atualmente, está no módulo de apoio. Comenta que ao chegar se deparou com mulheres conhecidas do bairro e diz CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 129 que a maioria se envolve com drogas por causa de seus companheiros. “Eu sinto uma dor muito grande por estar aqui, eu sou velha, eu estou cansada”. “Sou bem tratada, auxilio na limpeza e isso ajuda para diminuir a pena, mas queria mesmo terminar a vida fora daqui, não sei se tenho forças”. “Capaz, na venda já não tinha lucro, o mais novo pegava tudo, era uma tristeza, andava com más companhias, eu pedia tanto, pedia pelo menos que ele não usasse na frente do meu neto, filho do mais velho e que morava na casa de trás”. “Eu disse que eles me colocaram aqui, não adianta, a gente perdeu tudo agora, eu sou capaz de nem sair daqui”. “Sinto falta da minha rotina, de estar com as minhas conhecidas, algumas até me deparei aqui, nem imaginava, acho que elas também não, elas sofrem por causa dos maridos”. “Fiquei conhecida como vovó do tráfico”. “É triste ver a tua família aqui dentro, eu trabalhei tanto com o falecido, a gente construiu tudo sozinho, na honestidade, não sei em que ponto as coisas se perderam”. Fernanda Fernanda é natural de Santa Bárbara do Sul, é negra e tem 22 anos. É mãe de uma filha de cinco anos que atualmente vive no Rio de Janeiro com a avó paterna. Faz tempo que não sabe da filha, sente muita falta. Está presa e condenada pelo homicídio de seu companheiro desde 2013; a pena é de 12 anos. Ao narrar sua trajetória, não leva somente um passado trágico, mas uma história recente que parece não ter fim. Junto com Fernanda, encontram-se na mesma penitenciária, associados ao mesmo crime, sua mãe e seu padrasto. Estava junto com o pai de sua filha desde seus 15 anos. Ele era um homem possessivo e muito agressivo, não a deixava sair de 130 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE casa. Ela gostava de estudar e queria trabalhar, mas acabou engravidando. Foi então que ele a proibiu de tudo, praticamente mantinha-a em cárcere privado, não podia nem fazer faxinas para juntar um dinheiro. Quando a filha nasceu, ele queria matar Fernanda, fez várias ameaças. Ele há dois/três anos já morava na casa delas. Foi inúmeras vezes agredida por ele, ficou trancada em casa, resistiu o quanto pôde e sofreu tantas agressões que teve que sair da casa da mãe, indo morar sozinha com o companheiro. Afirma que após irem morar juntos as coisas pioraram, ele tomou conta, era muito violento. Houve um dia que conseguiu escapar e ir até a casa da mãe, mas logo ele foi atrás dela e acabou não só a agredindo, mas também agredindo a mãe dela. O convívio familiar era restrito, pois a mãe de Fernanda tinha uma boate, que na verdade se tratava de uma casa de prostituição, e ela não queria que a criança ficasse nesse movimento. Algumas vezes ela saiu de casa, chegou a fazer boletim de ocorrência contra seu companheiro-agressor. Porém, ele acabava indo buscá-la e ela, não tendo a quem recorrer, cediana esperança de achar outra saída. No entanto, o padrasto ficou sabendo do ocorrido depois que a mãe também foi agredida, momento em que se afastou da Igreja e prometeu que a ajudaria. Tempos antes do crime chegou a se separar, ficou mais ou menos dois meses sozinha, voltou a estudar e estava se recuperando. Contudo, ele a perseguia muito, e por mais que ela tivesse registrado as ameaças, nada acontecia. Logo, acabaram reatando o relacionamento e ela teve que largar tudo, voltou a ficar somente em casa. Conta que se desleixou e ele a agredia verbalmente, além de fisicamente, todos os dias. Ela procurou o padrasto depois que ele ofereceu ajuda, para dizer que queria sair de casa, e ele também foi ameaçado de morte pelo agressor quando se aproximou de Fernanda. As coisas aconteceram. Ela deixou a porta aberta, confessa, alguns homens entraram no meio da noite em casa e o assassinaram. Fernanda afirma que a mãe não estave envolvida, CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 131 por mais que esteja presa como mentora do crime. Na madrugada do fato, foram todos para a delegacia. Conta que lá foi muito maltratada, que um dos agentes agrediu sua mãe, que estava em pânico. Também não deixaram elas chamarem um advogado, nada. Sofre muito no cárcere, ainda mais sem as visitas, sem ninguém, sem amigas, sem poder saber da filha. Atualmente, toma medicamento, pois conta que foi diagnosticada com bipolaridade. Ela relata que tenta se relacionar bem com as outras mulheres, respeitar o espaço de cada uma, mas que há dias e dias na vida de cada uma. Costuma brigar com a mãe, mas sabe que o tempo vai passar e que ela não vai sair tão velha da penitenciária, mas que vai encontrar muito preconceito. “Eu sempre gostei de estudar, ia bem, pensava em ser policial civil, mas aí o conheci, acabei me envolvendo e engravidando”. “No julgamento, a mãe foi presa porque tinha uma casa de prostituição, as pessoas não gostam, mas ela nunca me quis lá não, pagava meus estudos”. “Ah, é difícil viu, não tem trabalho, não tem muito que fazer, ficamos todas o dia aí, sem nada”. “Tem vezes que brigo bastante com a mãe, estamos na mesma cela, mas ao mesmo tempo sei que nos protegemos”. “Sinto falta da minha liberdade, de sair na rua”. “Ele me batia muito, eu apanhei muito, não conseguia sair daquela situação, ele me ameaçava, ameaçava minha filha caso eu saísse de casa, eu tenho marcas de queimadura de cigarro por todo o corpo”. “Sempre pensei na minha independência”. “Vou sair daqui ainda vou poder fazer uma vida, quero mudar, quero conseguir um emprego, mas é difícil ex-presidiária conseguir emprego, né?”. São perceptíveis as violências compartilhadas nas vidas dessas mulheres ao escutar suas histórias, bem como as gritantes as características e similitudes entre as situações particulares de cada detenta na PMEI e cada detenta na PFMP, pois é fato 132 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE consolidado que o sistema de justiça penal é persecutório e misógino. A privação de liberdade é um eufemismo, é o extremo da violência contra a mulher, representa uma instituição moldada e arquitetada pelo patriarcado para silenciar mulheres, que desde muito já sofrem violações, seja pela condição de mulher, seja por situações particulares da vida de cada uma. Os dados e os relatos expressam as consequências da socialização, da conformação do papel social através da construção impetuosa de gênero e de inferioridade e possibilidade de controle de suas sexualidades. CONSIDERAÇÕES FINAIS PARA QUE(M) SERVE SEU CONHECIMENTO? Solo le pido a Dios Que el dolor no me sea indiferente Que la reseca Muerta no me encuentre Vacio y solo sin haber hecho lo suficiente (Mercedes Sosa) Atualmente, o feminismo está inserido em diversos espaços. O ano de 2016 foi reconhecido e intitulado como primavera feminista. Há muito tempo esse movimento se posiciona e se organiza para o reconhecimento dos direitos das mulheres, pautando um mundo equitativo e sempre pretendendo resoluções coletivas. Progressivamente, as pautas feministas conquistaram mudanças, ou ao menos permitiram um câmbio de pensamento e o alcance do conhecimento de registros históricos e da perspectiva das mulheres sobre suas experiências, o que pretendem e o que compreendem sobre Estado e controle. A construção do patriarcado demonstra uma perseguição histórica da mulher, bem como um atual aumento da violência mundo afora, que tem obtido como resposta a resistência diária de cada mulher contra a opressão. A memória e os registros são os meios que permitem a preservação do mundo e dos papéis sociais, que são maiores do que uma só pessoa e do que o isolamento da natureza e das outras pessoas, tão pretendidos pelo capitalismo. Nesse sentido, a exposição realizada no primeiro capítulo foi a de demonstrar que antes do futuro, do progresso e do desenvolvimento, há história, e que essa história é contada por homens para homens, o que influencia todo o sistema, inclusive o sistema de justiça penal. É necessário conectar-se ao passado, recuperar o sentimento de pertencimento, ao lugar, ao terreno e às pessoas que formam parte da rotina e da convivência, seja no trabalho, seja no ambiente doméstico. A perspectiva feminista fez com que mulheres 134 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE se organizassem para travar batalhas contra o controle de seus corpos, para liberar o aborto e ter condições de cuidar de seus filhos sem limitar suas próprias vidas. O patriarcado torna mulheres presas de suas vontades pelas violências impostas aos seus corpos e às suas decisões, sendo o cárcere a representação do extremo das violências estruturais contra as mulheres. Por conseguinte, o objeto desta pesquisa demonstrou a relação entre o papel social da mulher e os fatores estruturantes da criminalidade feminina, com a análise da construção do pensamento criminológico crítico e das pretensões da atual criminologia feminista, para no fim relacionar quem são as mulheres privadas de liberdade, estigmatizadas e inseridas no extremo cativeiro. A virada criminológica representou uma ruptura no desenvolvimento do pensamento e a criação do paradigma da reação social; no entanto, agora surge a necessidade de uma nova virada, a feminista, visto que nenhuma das novas criminologias criadas desde o paradigma da reação social incluíram o patriarcado e o gênero. Ou seja, a mulher segue sem representação na criminologia e em tantos outros campos. Apresentou-se no segundo capítulo uma relação entre a teoria crítica e a feminista, para demonstrar que o déficit da representação da mulher reside no fato de que os problemas que as teorias se propuseram a resolver partiam, obviamente, de indagações masculinas, cujas respostas eram generalizadas para as mulheres, ou cujas explicações para a criminalidade feminina residiam em estereótipos de gênero. A análise desses temas pela perspectiva feminista constrói um paradigma dentro da criminologia, com o intuito de revolucionar o sistema patriarcal imposto às mulheres. Discorreu-se, de maneira breve, mas não menos importante, sobre as análises pós-modernas que atingiram a teoria feminista e afastaram questões cruciais para a mudança real de paradigma. O trabalho defende que, diferentemente do postulado pelo feminismo pós-moderno, sexo, maternidade e toda a reprodução CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 135 de papéis sociais explicam a opressão das mulheres, e que essas formulações não podem ser generalizadas culturalmente. Na criminologia, a unidade do delito, a criminalidade e o controle passam a ser questionados, restando ausentes explicações ou mesmo uma lógica para explicar a criminalidade, ou processos de etiquetamento sem inserira perspectiva feminista. A desconstrução de um sujeito essencial derrota assim o determinismo biológico, e passa a explicar a diferença entre papéis sociais destinados a homens e a mulheres, bem como os diferentes comportamentos desviantes. A desigualdade imposta pela tradição cultural, pelas estruturas de poder e pelos agentes envolvidos na trama de relações sociais comprova que a relação de gênero não é dada e sim construída. Assim, ambas as categorias de sexo comem, bebem e dormem nesta ordem patriarcal de gênero, calcada na subordinação devida ao homem pela mulher, ordem esta que é demasiadamente forte e atravessa todas as instituições de poder. Então, já que todas/os são socializadas/os para serem machistas, torna fácil o entendimento de que o processo é lento e gradual e consiste na luta feminista. Revelou-se que os operadores de direito e o sistema de justiça programam e inconscientemente desprezam suas vítimas, com tanto sexismo que conseguem torná-las bem piores. O controle formal e informal, analisado no segundo capítulo, permitiu a compressão de como o papel social da mulher se perpetua pelas próprias mulheres, e como ocorrem as inter- relações entre o feminismo e a criminologia, uma vez que existem fases de atração e repulsão entre as duas teorias críticas (criminologia e feminismo). As teorias do controle também não fugiram às explicações estereotipadas para a conformidade feminina e a rebeldia masculina, e induziram a recepção de uma forte crítica feminista. O trabalho apresentou que família é um dos controles mais violentos do papel social da mulher, que chega a responsabilizar mulheres-mães pela perpetuação do sistema do 136 | A MULHER EM SITUAÇÃO DE CÁRCERE qual reclamam, pois seriam as responsáveis pela primeira socialização das mulheres, e também dos filhos homens. Ou seja, além de colocar o ônus da socialização sobre as mulheres, o patriarcado tem como referência a família tradicional. Portanto, analisou-se a temporalidade e as origens das opressões para explicar a condição de ser mulher e as situações particulares de cada uma e como são determinadas as seletividades, que colocam as mulheres em extrema vulnerabilidade. Para tanto, o terceiro capítulo observou o extremo da violência estrutural contra a mulher a partir da apresentação dos dados do Relatório Técnico Parcial do Projeto de Pesquisa “A situação das mulheres privadas de liberdade e o Apoio Matricial em Saúde Mental a Equipes de Atenção Básica inseridas no Sistema Prisional”, e pela análise de conteúdo das entrevistas semiestruturadas realizadas na Penitenciária Modulada Estadual de Ijuí. A comparação dos dados comprovou que as características comuns entre as mulheres em situação de cárcere não são coincidências, apenas representam a perseguição instituída pelos controles informal e formal às mulheres que rompem com as expectativas da sociedade patriarcal. Dessa forma, observaram-se quais as pretensões da perspectiva feminista da criminologia, que aponta as opressões da mulher, e o gênero socialmente construído como a base da inferiorização e subordinação. Uma nova leitura dos chamados paradigmas criminológicos dá base para a discussão, ressignificação e construção de uma nova criminologia e também de um novo modelo de Estado e controle. A prisão como controle formal perpetua o tratamento da mulher a partir de papéis tradicionais e dos valores neles implícitos. Porém, conclui-se que quando a mulher vai para a prisão, ali a espera um regime de disciplina tão duro como do homem. Isso quer dizer que a prisão funciona dentro do sistema ideológico que informa as demais instâncias e que, por ser o controle mais extremo, expressa de forma mais contundente a CAMILA BELINASO DE OLIVEIRA | 137 autoridade do estado, de modo que tanto mulheres como homens encarcerados sofrem uma mesma submissão à autoridade estatal, mas sem perder a singularidade de seus papéis sociais. Pelo exposto, o trabalho pretendeu demonstrar a ineficácia do sistema de justiça penal, e o domínio e poder do patriarcado, que tem sido questionado pelo feminismo como teoria crítica e como movimento. A mulher em situação de cárcere é o limite da violência estrutural, é a privação máxima de direitos e representa, tanto da condição de ser mulher, como das situações de cada uma, inserindo aqui a cor e a classe social. Reitera-se a importância dos recortes para a análise das situações das mulheres em situação de cárcere, bem como a importância das redefinições dos papéis, da denúncia do sistema patriarcal e da violência do gênero construído socialmente, o que torna primordial uma nova leitura, uma nova criminologia sob a perspectiva feminista. REFERÊNCIAS ALIMENA, Carla Marrone. A Tentativa do (Im)Possível: Feminismos e Criminologias. Porto Alegre: Lumen Juris, 2010. ALVAREZ, Sônia. Feminismos latino-americanos. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, UFSC, v.6, n.2, p 265-284, 1998. 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