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Judaísmo, Cristianismo e Helenismo. Ensaios Acerca das Interações Culturais no Mediterrâneo Antigo. André L. Chevitarese e Gabriele Cornelli Apresentação de Ciro Flamarion Cardoso (1942-2013) Judaísmo, Cristianismo e Helenismo. Ensaios Acerca das Interações Culturais no Mediterrâneo Antigo. Edição Revista 2021 Kliné Editora ® Rua Maria Amália, 591, Tijuca, Rio de Janeiro - RJ - Brasil contato@klineeditora.com | www.klineeditora.com Coordenação Editorial Felinto Pessôa de Faria Neto Leonardo Gonçalves Martins Raphael Botelho de Moura Conselho Editorial Daniel Brasil Justi (UNIFESSPA) Marta Mega (UFRJ) Mônica Selvatici (UEL) Osvaldo Ribeiro (UNIDA) Diagramação e Capa Raphael Botelho de Moura C452 Chevitarese, André Leonardo; Cornelli Gabriele Judaísmo, cristianismo e helenismo: ensaios acerca das interações culturais no Mediterrâneo Antigo. / André Leonardo Chevitarese e Gabriele Cornelli. - Rio de Janeiro: Kliné, 2021. Edição revista. Formato: epub Modo de acesso: world wide web ISBN 978-85-7419-714-2 1. Cristianismo. 2. Judaísmo. 3. Helenismo. 4. Religião. 5. Interações Culturais. 6. Historiografia. I. Título. CDU 232 CDD 200.901 https://www.klineeditora.com/ Sobre os autores André Leonardo Chevitarese é Professor Titular do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atua no Programa de Pós- Graduação em História Comparada do Instituto de História e no Programa de Pós-Graduação em Arqueologia do Museu Nacional. Gabriele Cornelli é Professor Associado do Instituto de Ciências Humanas da Universidade de Brasília. É Diretor da Cátedra UNESCO Archai sobre as origens plurais do pensamento ocidental e atua no Programa de Pós- Graduação em Metafísica da mesma instituição. É Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo e Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo. Índice Sobre os autores Apresentação Abreviaturas Utilizadas I - Reflexões em torno de Daniel 9:1-19 II - Jesus era Judeu? Ou a Galiléia Esquecida III - Práticas Mágicas no Novo Testamento e para Além Dele IV - Convergências Apocalípticas nas Esquinas da Magia: o Sincretismo Religioso Helenístico dos Papiros Mágicos Gregos V - Amuletos, Salomão e Cultura Helenística VI - O Anel de Salomão: Magia e Apocalíptica no Testamento de Salomão VII - O Uso de um Esquema Imagético Politeísta entre os Primeiros Cristãos VIII - Sexualidade e Violência no Reino dos Céus: o Caso do Evangelho Secreto de Marcos e as tradições cristãs primitivas Bibliografia Catálogo Sumário das Imagens Utilizadas. Apresentação Nas universidades dos Estados Unidos e de países europeus, há muitas décadas atrás, as disciplinas voltadas para estudos da religião apresentavam um forte preconceito pró cristão. Numa disciplina como Religiões Comparadas, por exemplo, o cristianismo costumava ser tomado como paradigma indiscutível ao ser confrontado com outros credos. Elementos vistos por historiadores cristãos como “positivos” em religiões pré-cristãs como, por exemplo, a do antigo Egito freqüentemente seriam encarados não a partir da lógica intrínseca do pensamento religiosos em questão mas, sim, como algo que prefigurava ou antecipava aspectos do cristianismo − ou mais em geral do pensamento judaico-cristão − ainda por vir, numa perspectiva no mínimo fortemente anacrônica além de preconceituosa. Entretanto, uma disposição tão reducionista foi pouco a pouco abandonada por diversas razões. Uma delas percebe-se no contato crescente dos estudos religiosos, incluindo a História das Religiões, com disciplinas como a Antropologia, a Arqueologia, a Sociologia ou a Filosofia. Mais recentemente, fator poderoso em tal sentido foi o multiculturalismo pós-moderno vinculado, entre outras coisas, às consequências da descolonização para as relações entre povos no âmbito mundial. Tal multiculturalismo, diante de qualquer manifestação de um bias cristão, levaria a que se perguntasse: por que um setor de alguma cultura não-ocidental, como a sua religião, deveria ser julgado de fora, a partir dos parâmetros religiosos da cultura ocidental? Por estes e outros caminhos, cada vez mais viu-se como algo muito natural − mesmo de parte de pastores protestantes ou sacerdotes católicos − que também o trabalho crítico com os livros sagrados judaico-cristãos fosse feito de modo idêntico e com as mesmas exigências aplicáveis a quaisquer textos antigos. Assim, um padre ou pastor que seja ao mesmo tempo especialista em crítica veterotestamentária ou neotestamentária não manterá o mesmo discurso acerca dos textos para ele sagrados ao falar, por um lado, do púlpito de sua igreja ou, por outro, em reuniões científicas de sua área. O Brasil, entretanto, tem uma tradição ainda pobre na área de estudos universitários e científicos das religiões. Até mesmo no que concerne a tradução de trabalhos estrangeiros, é limitado aquilo de que se pode dispor em português em matéria de trabalhos atualizados. Neste país, o fato de estudos judaico-cristãos − numa perspectiva histórica informada por disciplinas “auxiliares” tradicionais como a Filologia, mas igualmente pela Antropologia e pelos estudos iconográficos de objetos descobertos arqueologicamente − tratarem os escritos que os cristãos consideram sagrados e divinamente inspirados com critérios aplicáveis do mesmo modo a quaisquer textos ainda pode chocar, sobretudo em épocas como a atual, marcada pelo avanço de posições religiosas fundamentalistas tanto entre protestantes quanto entre católicos. É salutar, portanto, que se desenvolvam entre nós os estudos religiosos de tipo acadêmico, apoiados em pesquisas sérias, até que os seus achados e debates se tornem, pelo menos nos ambientes acadêmicos, algo corriqueiro como já é nos Estados Unidos ou na Europa. Vejo a partir de tal perspectiva esta coleção de ensaios que André Leonardo Chevitarese e Gabriele Cornelli ora dão a público. Alguns destes artigos seus são voluntariamente polêmicos ou provocativos, é o que me parece. Defendem posições que podem − e devem − alimentar controvérsias e, mesmo, discussões acadêmicas acaloradas (debates acalorados emocionalmente derivados de preferências ou interpretações religiosas específicas são, pelo contrário, irrelevantes e improdutivos ao se tratar de textos oriundos de processos pesquisa, como estes). Os autores escolheram uma perspectiva teórico-metodológica de contornos claramente definidos e por eles expostos, que é a dos estudos culturais contemporâneos numa de suas vertentes − ilustrada, por exemplo, pelo antropólogo Marshall Sahlins em sua fase pós-evolucionista, na qual, em função de estudos na França, sofreu forte influência (nem sempre suficientemente percebida ou sublinhada) de uma pensadora búlgara que fez carreira em Paris, Julia Kristeva. Bem antes de Sahlins, esta semiotista mostrara que as práticas significativas verbais e não-verbais tanto podem reproduzir quanto transformar os códigos a partir dos quais se elaboram; e, quando os mudam, fazem-no um pouco à maneira da famosa boutade de Lampedusa em seu Gattopardo, ou seja, no sentido de que é preciso que tudo mude para que tudo fique como está. Espero que estes ensaios cumpram um papel de peso na ampliação e renovação, entre nós, dos estudos religiosos universitários. Ciro Flamarion Cardoso Professor Titular de História Antiga e Medieval Universidade Federal Fluminense Abreviaturas Utilizadas Ag, Ageu. AJ. Antiguidades Judaicas (Josefo). Ap. Apocalipse de João, o Visionário. At. Atos dos Apóstolos. Can. Livro dos Cânticos. CC. Contra Celso (Orígenes). CJA. Cneu Júlio Agrícola (Tácito). Dn. Daniel. Dt. Deuteronômio. Ecl. Eclesiástico. Ex. Êxodo. GJ. A Guerra dos Judeus contra os Romanos (Josefo). Gl. Epístola aos Gálatas. Jo. Evangelho de João. Jr. Jeremias. Lc. Evangelho de Lucas. Mc. Evangelho de Marcos. Mt. Evangelho de Mateus. Nm. Números. PMD. Papiros Mágicos Demóticos (Betz). PMG. Papiros Mágicos Gregos (Betz). Sb. Sabedoria. TA. Tradição Apostólica (Hipólito). TLevi. Testamento de Levi.TSol. Testamento de Salomão. 1En. Primeiro Livro de Enoque. 2Cr. Segundo Livro de Crônicas. 1Mc. Primeiro Livro de Macabeus. 2Mc. Segundo Livro de Macabeus. 1Rs. Primeiro Reis. 1Sm. Primeiro Samuel Introdução I. O público, em geral, e os estudiosos, em particular, que estejam interessados em ler trabalhos, em língua portuguesa, que abordem as várias oportunidades que judeus, cristãos e politeístas, inseridos no Mediterrâneo antigo, tiveram de se encontrar, veem-se completamente frustrados com a quase ausência de livros que abordam estes encontros. Podem ser apontadas duas obras, lançadas em português três décadas atrás, que enfocam o tema em questão, cada uma delas, porém, por um viés distinto: Cristianismo Primitivo e Paideia Grega, de Werner Jeager, originalmente publicado em inglês, em 1961, com uma tradução para o português de Portugal, em 1991. Este livro não apresenta índice, já que se trata de um conjunto de preleções feitas pelo autor no momento da sua saída da Universidade de Harvard. Jeager (1991: 13) deixa claro, logo no início, que o seu objeto é uma análise histórica do cristianismo e a sua relação com a cultura grega, demonstrando que o primeiro elemento da relação está completamente envolvido no segundo. Implica dizer, muito embora Jeager (1991: 17-18) reconheça o cristianismo como um movimento judaico, ele observa que a sua rápida disseminação, desde a sua primeira geração, era devido a dois aspectos centrais: os judeus achavam-se helenizados no tempo de Paulo, não só na diáspora judaica mas, num grau considerável, também na Palestina; e foi precisamente para esta fração helenizada do povo judeu que os missionários cristãos primeiro se dirigiram. Para Jeager, neste sentido, não é possível compreender o cristianismo fora do contexto helenístico1. Para reforçar ainda mais esta sua hipótese, ele (Jeager 1991: 17-26) dá vários exemplos, ao longo do seu discurso: (i) o cristianismo usou, desde o seu início, a língua grega; (ii) o nome da nova seita, christianoí, teve origem na cidade grega de Antioquia; (iii) o grego era falado em todas as sinagogas do Mediterrâneo (e do Egeu), o que implicou: o contato dos cristãos com um séquito de prosélitos politeístas presentes nas sinagogas; que toda a atividade de Paulo baseou-se neste fato; que as discussões com os judeus, a quem Paulo se dirigia nas suas viagens e a quem tentava levar o evangelho eram conduzidas em grego; (iv) tanto Paulo quanto os judeus citavam, via de regra, o Antigo Testamento da versão grega dos Setenta; (v) a presença marcante, nos autores cristãos, não só das formas literárias gregas da Epístola, segundo o modelo dos filósofos gregos, como, também, de inúmeros exemplos, contidos em seus trabalhos, extraídos de autores gregos. A análise feita por Jeager, ao longo do livro, compreende basicamente os quatro primeiros séculos da nossa era, buscando sempre reforçar a profunda dependência que a cultura helenística irá impor ao cristianismo. Os Limites da Helenização. Interação Cultural das Civilizações Grega, Céltica, Judaica e Persa, de Arnaldo Momigliano, escrita originalmente em inglês, em 1975, e traduzida para o português do Brasil em 1991. Esta obra está organizada a partir de duas premissas: (i) Antes das conquistas de Alexandre Magno, as várias civilizações desenvolviam-se em linhas paralelas, o que Momigliano (1991: 16) chamou de tempo axial (achsenzeit). Este argumento é derivado do livro de Karl Jasper de 1949, sem tradução para a língua portuguesa, denominado Vom Ursprund und Ziel der Geschichte. Momigliano (1991: 15), acompanhando de perto as ideias de Jasper, observa que a China de Confúcio e de Lao-Tsé, a Índia de Buda, o Irã de Zoroastro, a Palestina dos profetas e a Grécia dos filósofos, trágicos e historiadores apresentavam características comuns, como por exemplo: (i) dominavam a escrita; (ii) apresentavam uma complexa organização política que conjugava governo central e autoridades locais; (iii) um cuidadoso planejamento das cidades; (iv) uma avançada tecnologia do metal; (v) a prática da diplomacia internacional; (vi) uma profunda tensão entre as forças políticas e os movimentos intelectuais; e (vii) buscavam difundir uma maior pureza, maior justiça, maior perfeição e uma explicação mais universal das coisas. Convém observar, porém, que apesar de apresentarem elementos comuns, tais civilizações estavam inseridas no tempo axial, o que implica dizer: elas eram independentes umas das outras e se ignoravam. (ii) O período helenístico apresentava uma novidade sem precedente na História (Momigliano, 1991: 16): ele proporcionou a circulação internacional às ideias, embora reduzisse fortemente o seu impacto revolucionário. Conforme observa ainda Momigliano (1991: 16), comparada ao tempo axial, a época helenística é dócil e conservadora. O marco para este encontro das civilizações foram os resultados trazidos pelas conquistas de Alexandre Magno, quando os gregos (e macedônios) descobriram os romanos, os celtas, os judeus, os persas. Assim, nas palavras de Momigliano (1991: 10), a era helenística assistiu a um acontecimento intelectual de primeira categoria: a confrontação dos gregos (e macedônios) com quatro outras civilizações, três das quais antes lhes tinham sido praticamente desconhecidas e uma que fora conhecida sob condições muito diferentes. Não deve ser perdido de vista, porém, que da mesma forma que Jeager, Momigliano (1991: 13) também afirma que a civilização helenística permaneceu grega na língua, nos costumes e (sobretudo) na consciência de si mesma. II. Com relação aos dois trabalhos apresentados acima, é importante considerar o seguinte: (i) os seus autores estão entre os mais destacados pesquisadores do mundo antigo do século passado; (ii) os dois livros, apesar de já terem sido publicados nas décadas de 1960 e 1970 respectivamente, ainda trazem questões extremamente oportunas; e (iii) estas duas obras são consideradas clássicas no campo historiográfico, na medida em que muitas das atuais pesquisas ainda são tocadas pelas ideias trazidas pelos seus autores. Apesar disto, porém, estes dois livros apresentam problemas que não estão contidos neles mesmos, mas que lhes são exteriores. Estas questões passam pela formação acadêmica de seus respectivos autores, aliás, diga-se de passagem, que ainda predomina fortemente nos dias atuais. Os problemas podem ser assim agrupados: (i) Ambos os autores fazem parte de uma geração de pesquisadores que praticamente ignorava os resultados obtidos pelas pesquisas arqueológicas, em especial àquelas desenvolvidas na região do Mediterrâneo. A bem da verdade, para sermos honestos, Momigliano (1991: 72) até que utilizou alguns dados advindos da Arqueologia, mas estas informações só entraram no seu discurso para confirmar – nunca para contestar ou refutar – uma dada posição assumida pelos autores antigos (gregos, romanos, latinos, judeus e cristãos). (ii) Da mesma forma, os dados antropológicos também ficaram submetidos a um segundo plano, interferindo praticamente muito pouco nas duas respectivas obras. Não deve ser perdido de vista, porém, que o tema desenvolvido por ambos os pesquisadores – encontros entre diferentes culturas – é muito mais antropológico do que histórico ou filosófico2. (iii) Verifica-se também um baixíssimo aproveitamento dos textos denominados canônicos, deuterocanônicos e apócrifos produzidos por judeus e cristãos, nas obras de Jeager e Momigliano. O primeiro pesquisador, mais interessado nas interações entre cristianismo e helenismo, priorizou basicamente, na sua narrativa, a literatura patrística, enquanto que o segundo autor, ao discutir os contatos entre gregos e judeus, limitou-se às referências básicas (poderíamos dizer, os lugares comuns) de textos judaicos. Ambos os autores deixaram de fora, talvez por causa das dificuldades e/ou dos receios sentidos pelos cientistas sociais em lidar com a Torá ou a Bíblia cristã. Todos os pesquisadores da antiguidade esmiúçam os inúmeros textos literários e epigráficos antigos produzidospor gregos e romanos que chegaram até os dias atuais, os tratam como documentos que ajudam a reconstruir a História de um dado período, mas ainda são poucos aqueles pesquisadores3 – pelo menos aqui no Brasil – que olham os textos sagrados judaicos e cristãos como documentos literários4. (iv) O inevitável impacto que o tempo produz em qualquer obra, inclusive nas de Jeager e Momigliano. Novos trabalhos têm sido publicados5 no exterior, na forma de livros, e no Brasil, através de Dissertações e de Teses dos Programas de Pós-Graduações. Eles têm ampliando consideravelmente o horizonte das pesquisas nas áreas relacionadas aos encontros culturais promovidos, a partir das conquistas alexandrinas, nas últimas décadas do século IV a.C. em diante. III. Marshall Sahlins publicou, em 1985, uma obra denominada Islands of History. Este trabalho, lançado posteriormente no Brasil, em 1990, recebeu o título Ilhas de História. O seu tema central diz respeito ao encontro entre ingleses e havaianos, ocorrido no final do século XVIII. Esse livro proporcionou uma série de questões extremamente pertinentes aos temas desenvolvidos pelos autores deste livro. São elas: (i) Cultura é historicamente reproduzida e alterada na ação (Sahlins, 1990: 7). Esta definição adquire aqui um peso muito importante, na medida em que os oito capítulos abordam os vários encontros ocorridos entre as culturas monoteísta e politeístas. No momento em que as culturas grega e judaica se encontraram, de forma mais duradoura, a partir das conquistas de Alexandre Magno6, na Judeia e na Galileia, por exemplo, pode-se admitir que os agentes envolvidos diretamente nesses encontros nunca mais foram os mesmos. Esta afirmação baseia-se na premissa feita por Sahlins (1991: 7), segundo a qual a cultura se reproduz e se altera na História. Implica dizer, ela está sempre em constante movimento, sendo síntese de estabilidade e de mudança. É de se esperar, portanto, que esse movimento produza uma “transformação estrutural”, pois a alteração de alguns sentidos muda a relação de posição entre as categorias culturais, havendo assim uma “mudança sistêmica”. (ii) Sahlins (1991: 8) observa uma proposição comumente feita entre os teóricos do sistema mundial: “[...] dado que as sociedades tradicionais que os antropólogos habitualmente estudam são submetidas a mudanças radicais, impostas externamente pela expansão capitalista ocidental, não é possível manter a premissa de que o funcionamento dessas sociedades está baseado em uma lógica cultural autônoma”. À luz desta proposição, o autor (Sahlins, 1990: 8) estabelece quatro críticas básicas. Na medida em que cada uma delas é extremamente relevante para este livro7, elas serão inseridas nos contextos históricos aqui trabalhados. 1ª. Há uma certa confusão, entre os teóricos do sistema mundial, entre sistema aberto e a total ausência de sistema (Sahlins, 1990: 8). Esta crítica nos é extremamente cara, na medida em que as três culturas por nós discutidas8 – judaica, cristã e grega – interagiram-se culturalmente. No momento em que elas interagiam, elas caracterizavam-se por sistemas abertos, estabelecendo negociações, admitindo trocas até um certo limite. Isto implica dizer que, ao longo deste livro, não há espaços para noções de influências de uma cultura sobre a outra9. Portanto, priorizar-se-á a idéia de negociação, de interação cultural. 2ª. A própria teoria do sistema mundial faz concessões à preservação das culturas satélites enquanto meios de reprodução de capital na ordem dominante europeia (Sahlins, 1990: 8). Esta crítica feita aos teóricos mundiais é bastante pertinente com os períodos helenístico (séculos III-I a.C.) e romano (II a.C. – IV d.C.). Tanto as monarquias helenísticas (selêucida e ptolomaica), quanto os governos republicano e principado romanos admitiram concessões às diversas culturas submetidas aos seus domínios políticos e militares. Basta lembrar que os monarcas selêucidas10 e ptolomaicos, bem como o Senado e os “príncipes” romanos não interferiram nas formas como as riquezas eram produzidas no interior dos seus respectivos territórios, bem como não intervieram nas múltiplas formas de manifestações religiosas existentes entre as diferentes culturas inseridas nas fronteiras dos seus impérios. A riqueza dos impérios selêucida, ptolomaico e romano estava atrelada à reprodução e até mesmo à transformação criativa da ordem cultural desses povos (ponto de vista dos chamados povos dominados); 3ª. O sistema é, no tempo, a síntese da reprodução e da variação (Sahlins, 1990: 9). Sob o ponto de vista temporal e espacial, os ensaios deste livro inserem- se basicamente em dois grandes impérios antigos: o selêucida e o romano. Muitas vezes, porém, ao se discutir os grandes impérios antigos do Mediterrâneo e do Egeu, incluindo os dois citados, constata-se uma idéia implícita nessas discussões: eles aparecem como estruturas político- administrativas estáticas, não sujeitos às variações externas ou internas ao longo do tempo e do espaço. Buscamos enfatizar nestes Ensaios, a partir desta questão levantada por Sahlins, uma visão exatamente oposta àquela comumente aceita: os impérios selêucida e romano, em contato com as diferentes culturas inseridas nos seus domínios territoriais, reproduziam-se de maneira distinta nas suas inúmeras partes, já que os processos de interações culturais ocorridos no interior dos seus domínios devem ser entendidos como uma via de mão dupla. Implica dizer, a dinâmica reprodutiva dos impérios selêucida e romano era também responsável pelas variações que eles conheceram ao longo do tempo e do espaço. 4ª. A transformação de uma (dada) cultura também é um modo de sua reprodução (Sahlins, 1990: 174). Esta última questão colocada por Sahlins também irá aparecer ao longo das várias discussões travadas nas páginas que se seguem. Trabalharemos com a noção de judaísmos e cristianismos. Esta opção deve-se basicamente às inúmeras oportunidades de contato envolvendo as comunidades judaicas (e/ou cristãs) e politeístas disseminadas na bacia mediterrânea, por exemplo, proporcionando, em níveis locais, especificidades no ver, no sentir, no praticar essas experiências religiosas no interior dessas mesmas comunidades. Na medida em que reconhecemos esses encontros (deve-se incluir também neste raciocínio a própria cidade de Jerusalém), admitimos também uma transformação local nas experiências vividas pelas comunidades judaicas, cristãs e politeístas, proporcionando reproduções locais diferentes (por menor que possam parecer essas mudanças). Foram essas possibilidades de transformação, bem como, a própria capacidade diária de reprodução de judeus e cristãos em áreas majoritariamente ocupadas por outras comunidades culturais, que lhes permitiram a sobrevivência e a continuidade das suas práticas religiosas, incluindo aí a possibilidade de aproximação ou afastamento dos indivíduos às suas crenças. Foram estas transformações locais que possibilitaram o desenvolvimento de diferentes culturas judaicas, cristãs e politeístas – sob o ponto de vista sincrônico e diacrônico – com historicidades diferentes (Sahlins, 1990: 11). Estas quatro questões são consideradas chaves para compreender a própria dinâmica deste livro. Elas nos levam, porém, para duas definições, propostas por Sahlins, de cultura que se complementam e que estarão presentes nas páginas que se seguem: 1ª. a cultura é justamente a organização da situação atual em termos do passado (Sahlins, 1990: 192). Ao nos referirmos, ao longo dos capítulos, às culturas judaica, cristã e politeísta, estamos admitindo o uso de um conceito que estabelece a todo momento, em termos individuais ou coletivos, um diálogo constante entre o presente e o passado. Este passado não deve ser visto como um elemento estático, mas em constante mudança, conforme observou Sahlins (1990: 10), parafraseando Marc Bloch, “[...] os nomes antigos, que estão na boca de todos, adquirem novas conotações, muito distantes de seus sentidos originais”. 2ª. a culturafunciona com uma síntese de estabilidade e mudança, de passado e presente, de diacronia e sincronia (Sahlins, 1990: 180). Esta outra definição pode ser explicada através das próprias palavras de Sahlins (1990: 181), ao verificar o contato entre ingleses e havaianos (do nosso lado, porém, entre judeus e politeístas, cristãos e politeístas, judeus e cristãos): “No final, quanto mais as coisas permaneciam iguais, mais elas mudavam, uma vez que tal reprodução de categorias não é igual. Toda reprodução da cultura é uma alteração [...]”. IV. A relevância destes Ensaios para o leitor brasileiro assume uma conotação toda especial quando se presta atenção à profunda convergência de formas e conteúdos entre esta história dos encontros culturais no mundo helenístico e a definição de conceitos como interação cultural, sincretismo, imbricação, tão caros à historiografia brasileira. A questão mais premente, do ponto de vista historiográfico, é exatamente aquela de conseguir compreender o “produto final” das diversas interações entre culturas diferentes para originarem este estágio cultural específico. Tanto para a “grande praça” do helenismo antigo como para o Brasil colonial, um termo muito usado é “sincretismo”. Uma indicação de percurso se faz aqui necessária: estes Ensaios não devem ser lidos a partir de uma visão culturalista do sincretismo, na linha clássica de Artur Ramos de Araújo Pereira (1945; cf. tb., neste sentido, a avaliação de Sanchis, 1994: 4-11). O sincretismo pode ser pensado como uma estratégia de contraposição dos valores da cultura dominante sobre a cultura dominada, no sentido, por exemplo, de grande parte do que compreendermos em nossos dias com o termo “globalização”. Estas páginas a seguir, de fato, querem ser lidas a partir de uma compreensão mais processual e plural dos processos sincréticos, como acontecem de maneira especial no interior do imaginário cultural-religioso: isto é, como uma forma de reinterpretação dos elementos culturais adquiridos no processo de troca. Desta forma, categorias que surgem, a partir dos estudos antropológicos e históricos brasileiros, podem vir a desenhar mais precisamente os caminhos teóricos para a compreensão dos “produtos finais” analisados nos Ensaios a seguir. O conceito de interpenetração das civilizações de Bastide, por exemplo, pensado como um processo aberto de relações aculturadoras parece esclarecer melhor o risco de se utilizar uma concepção das interações culturais, quanto compreendida no sentido de uma síntese estática de culturas diferentes. Assim o mesmo Bastide (1973: 187, nota 46): “Nas modernas concepções de aculturação e transculturação (...) tende-se cada vez mais a considerar que o elemento tomado de empréstimo é ‘digerido’, por assim dizer, pela cultura assimiladora, que se adapta ao novo complexo cultural ou paideuma. (...) A antiga concepção de aculturação esquece que existem elementos não-digeridos (e que, às vezes, fazem explodir a antiga cultura) e que, para empregar a linguagem dos sociólogos brasileiros, não existe um centro de gravitação: toda cultura é ‘polinuclear”. Exemplos deste sincretismo aberto, no interior dos estudos históricos brasileiros, não faltam. Estudos como os de Vainfas (1999) e de Mello e Souza (1987) podem ser pensados como “espelhos” metodológicos contemporâneos para a compreensão do helenismo antigo. A Santidade de Jaguaripe, por exemplo, sabá indígena do Recôncavo Baiano, estudada pelo Vainfas, é um espelho de um processo de aculturação aberto, onde o ritual extático indígena tanto exerce uma sedução irresistível sobre o colonizador como se modifica, aproximando símbolos e formas ao encontro da estrutura do mundo cultural do mesmo colonizador. Um outro autor, muito lido e apreciado entre os historiadores brasileiros, Carlo Ginzburg, pode ser considerado mais um interlocutor destes Ensaios. Tanto pela abordagem metodológica que procede a partir da microanálise de casos bem delimitados (mas cujo estudo revela problemas de ordem bem mais geral), como pela célebre categoria da circularidade cultural, que o mesmo autor (Ginzburg, 1987: 13) define como “[...] um relacionamento circular feito de influências recíprocas, que se movia de baixo para cima, bem como de cima para baixo [...]”. Desta forma, a teoria da circularidade permite superar a relação passiva e unidirecional entre centro/periferia ou erudito/popular: um esquematismo maniqueísta que acaba por focalizar metodologicamente mais as proibições e os limites, os critérios de exclusão sobre os quais a cultura foi construída, do que os excluídos em si e seus referenciais culturais alternativos. Mais uma contribuição metodológica para a compreensão das interações culturais que originam novas culturas. A partir destas convergências teórico-metodológicas, os Ensaios a seguir convidam o leitor a superar uma concepção clássica da cultura, e desta forma da cultura no mundo antigo, pensada como algo unívoco e monolítico. “O” judaísmo, “o” cristianismo, “o” politeísmo grego nunca existiram, enquanto formas culturais autônomas e independentes, fora das simplificações manualísticas ou das identificações ideológicas posteriores. A esta visão, impõe-se a necessidade de substituir uma teoria mais flexível, que possa explicar interações que se deem em níveis culturais diferentes. Uma ocupação militar ou uma dominação do espaço econômico- financeiro não esgotam a possibilidade de uma autonomia relativa de outros espaços culturais. É o caso, por exemplo, do mundo do imaginário religioso, com toda a carga de seus mitos e rituais. Nestes casos pode-se revelar um fenômeno complexo, o de uma aculturação de retorno, na qual a cultura dos dominados entra numa troca aberta, circularmente (na linha do Ginzburg acima) ou dialogicamente (na linha bakhtiniana), com a da cultura dominadora, em certos níveis e a partir de definidos espaços de autonomia. Uma complexa interação multidirecional e polinuclear à qual demos o nome de sincretismo aberto. É com esta bagagem metodológica e hermenêutica que os autores dos Ensaios a seguir se propuseram uma releitura de alguns testemunhos desta “grande praça” que foi o mundo helenístico. A história da cultura ocidental procura nos tempos atuais rever suas formas e conteúdos num diálogo difícil, mas rico, com culturas e sabedorias “outras”, de várias formas distantes: desde o mundo oriental, por exemplo, até visões originárias indígenas de diferentes origens. Por outro lado, uma complementar revisão profunda de sua tradição, uma “faxina” em suas origens (e o que é mais uma tradição senão o lugar onde nos sentimos “em casa”?) pode fazê-la redescobrir riquezas esquecidas, numa interação de culturas e de visões do mundo mais amplas do que aquelas a que os modernos manuais nos acostumaram. Esta, talvez, a afirmação do desejo mais profundo, do compromisso ético destes Ensaios: convidar a reencontrar o “outro”, aparentemente tão distante, no âmago da própria história cultural. André L. Chevitarese e Gabriele Cornelli 1 Jeager (1991: 17, nota 6) demonstra que o termo “helenismo” sofreu um processo de interpretações variadas na antiguidade. De imediato, com Teofrasto, no século IV a.C., esta palavra adquire o sentido do uso gramaticalmente correto da língua grega, o grego livre de barbarismos e solecismos. Posteriormente, porém, helenismo vai caracterizar a adoção das maneiras gregas, do modo de vida grego, em especial fora da Hélade, onde a cultura grega tornara-se moda. Levine (1998: 16-17), mais recentemente, buscou estabelecer uma definição mais clara, pelo menos no entender dos autores destes Ensaios, de dois termos que aparecem imbricados na análise de Jeager: ele define helenismo como o meio cultural, largamente grego, dos períodos helenístico, romano e uma extensão mais limitada do bizantino, enquanto que, por helenização, Levine chama o processo de adoção e adaptação desta cultura em um nível local. Implica dizer que a helenização não deve ser vista como um processo homogêneo, como parece sugerir a definição de Jeager,mas repleto de especificidades locais, resultado do encontro da cultura grega com as múltiplas e variadas culturais locais dispostas no Mediterrâneo, no Egeu e para além desses dois mares. 2 Esta constatação não quer sugerir que historiadores, filósofos ou teólogos não possam discuti-lo. 3 Referimo-nos especificamente aos historiadores, filósofos e antropólogos da antiguidade. 4 Aliás, tão literários quanto a Ilíada e a Odisseia de Homero, a Eneida de Virgílio, a História de Heródoto, As Histórias de Políbio, as poesias cômicas e trágicas dos poetas gregos e latinos. 5 Uma rápida olhada na bibliografia apresentada no fim deste livro colocará o leitor a par destas publicações. 6 Para uma discussão envolvendo as várias possibilidades de contato, antes do final século IV a.C., ver: Chevitarese, 2004: 69-82. 7 Convém observar, como salientou Momigliano (1991: 9-26), que o período helenístico se caracterizou pelo encontro de inúmeras culturas disseminadas na bacia mediterrânea e para além dela, sob a égide do helenismo. 8 Particularmente as duas primeiras culturas compostas basicamente, mas não exclusivamente, por pequenas comunidades espalhadas em contextos helenísticos. 9 Deve-se entender aqui, por inserção e contato das comunidades judaicas com os de fora (pode-se generalizar também para cristãos e os de fora das suas comunidades), não um processo de assimilação de hábitos, costumes e valores externos às respectivas comunidades – o que implicaria em uma forma de descaracterização das mesmas –, mas, o que Rutgers (2000:67,91-95) chamou de interação entre judeus e não-judeus (ou entre cristãos e não-cristãos). Trata-se de um processo onde a apropriação, por um lado, era equiparada pela afirmação da identidade judaica (ou cristã), por outro. 10 Para uma posição mais nuançada do papel de Antíoco IV Epífanes em relação aos judeus, ver: Scurlock, 2000:125-161. I Reflexões em torno de Daniel 9:1-19 Não é uma tarefa fácil, para um helenista familiarizado com os períodos arcaico e clássico gregos, analisar um material literário produzido nas regiões sob a influência do império selêucida. Esta empreitada torna-se ainda mais complicada quando se considera que esse material não foi produzido por um autor grego, nem originalmente escrito em grego. Em se tratando de Daniel, as dificuldades só tendem a aumentar, já que o seu livro apresenta uma série de “armadilhas” históricas, capazes de confundir até mesmo o especialista no assunto1. Não é sem propósito, neste sentido, que o título do referido trabalho traga a idéia de reflexão, já que ele busca compartilhar com o leitor algumas observações acerca da passagem Dn 9:1- 19. I. Como ponto de partida, há um aspecto que perpassa a referida obra: as imprecisões históricas. Elas parecem sugerir um desconhecimento do autor, principalmente na primeira parte do livro, do próprio contexto histórico onde a ação se desenrola. Quanto mais distante temporalmente a narrativa se situa do período de Antíoco IV Epífanes, onde o autor do texto demonstra possuir não apenas um bom conhecimento, mas, também, um enorme interesse, maiores são as possibilidades de acontecerem estas imprecisões. Assim, por exemplo, para o período babilônico, elas ocorrem logo no início das primeiras linhas da narrativa2. O autor observa (Dn 1:1) que o rei Nabucodonosor participou diretamente do cerco de Jerusalém. Esta afirmação apresenta os seguintes problemas: de imediato, Nabucodonosor, naquele momento, não era rei, já que o seu pai, Nabopalasar, ainda estava vivo; segundo problema: ele não participou do cerco de Jerusalém. Imediatamente após a batalha de Karkemís, em 605 a.C.3, ele retornou a Babilônia, já que o seu pai estava muito enfermo, tornando-se rei em 604 a.C.. Com relação ao período persa, em que pese o fato de existirem pouquíssimas informações sobre esta época ao longo da narrativa, o autor afirma (Dn 5:30-31) que Dario, o medo, conquistou a Babilônia com a morte de Baltazar4. Ocorre, porém, que não há nenhum registro histórico que comprove a existência deste Dario. Ao contrário, os documentos assinalam Ciro, o persa, como conquistador da Babilônia. Situando-se ainda no ponto de partida, a leitura do livro de Daniel, apesar de apresentar uma unidade obtida graças à ação direta de um “compilador” ou de um “editor” (Momigliano, 1984: 264, 282), foi dividida em duas partes, de acordo com a aproximação ou o afastamento da narrativa em torno de Antíoco IV Epífanes5: os capítulos 1 a 6 – que tratam das histórias de Daniel e seus três companheiros – constituem a primeira parte; já os capítulos 7 a 12 – relacionados com as visões apocalípticas – compõem a última parte da narrativa. Henze (2001: 6) levanta dois outros pontos que ajudam a reforçar esta proposta de divisão do livro: (i) constata- se, na primeira parte da obra (capítulos 1-6), o autor referindo-se a Daniel na terceira pessoa do singular, enquanto, na segunda parte da obra (capítulos 7-12), há uma mudança da terceira para a primeira pessoa do singular, passando o próprio Daniel a descrever as visões; e (ii) a primeira parte do livro está totalmente desprovida de elementos apocalípticos, o que contrasta marcadamente com a segunda, já que ela está pesadamente dependente desses elementos. Esta divisão não deve ser tomada de forma absoluta, já que, como será visto posteriormente, é possível identificar referências ao referido rei selêucida no cântico de Azarias na fornalha. Ela permite datar com maior segurança, no entanto, as duas partes de Dn, apesar da objeção feita por Henze (2001: 7, nota 5), cujos argumentos parecem repousar em bases não convincentes: a primeira delas pode ser datada a partir da referência no texto (Dn 2:43) ao casamento entre Antíoco II e Berenice, filha de Ptolomeu II, consumado no ano 250 a.C.. Como observou Momigliano (1984: 260, 283-284), este acontecimento é conclusivo e não poderia ser compreendido para um texto escrito não muito depois desta data. Neste caso, os capítulos 1 a 6 poderiam ser situados entre os anos 250-230 a.C.6. A segunda parte de Dn não traz em si grandes problemas de datação, já que o autor parece desconhecer por completo a morte de Antíoco IV ocorrida em torno de novembro de ١٦٤ a.C. (Momigliano, 1984: 259, 284). Neste caso, os capítulos 7 a 12 podem ser datados entre 167-164 a.C. II. O contexto histórico, em que se insere Dn, é bastante instável, com as posições políticas dos reis e das facções envolvidas variando consideravelmente de lugares. As duas datas propostas mais acima, 250 a.C. e 167-164 a.C., apontam a existência de pelo menos dois autores situados temporalmente entre o intervalo de duas gerações. Ambos sentem as fortes pressões externas sobre Jerusalém, já que a todo o momento são mencionados, direta ou indiretamente, em suas narrativas, soberanos estrangeiros intervindo na vida dos habitantes da cidade santa. Um pequeno e rápido esboço do contexto histórico da Judéia será importante, neste sentido, para situar o referido livro. Esta região foi palco de violentas tensões entre facções judaicas rivais. Estes enfrentamentos podem ser vistos como resultados de ações externas que se ramificaram internamente. Estas ações externas se inserem no campo da política internacional, já que Coele-Síria foi objeto de intensa disputa militar entre os impérios selêucida e ptolomaico ao longo do terceiro século. Estas disputas estão materializadas nas várias guerras sírias (Hengel, 1980: 21-41). Esta intensa movimentação internacional ajuda a explicar as tensões internas, em que as famílias judaicas dominantes e poderosas (Tobíades, Oníades, Simônides e Hasmoneus) se organizam em facções pró-selêucidas e pró-ptolomaicas (2Mac 3:1-40; Hayes e Mandell, 1998: 48-49; Bickerman, 1997: 119-122). Elas buscam, em termos palpáveis, o controle político e econômico. No campo político, elas brigam pela liderança e autoridade sobre a comunidade; no campo econômico, elas lutam pelo controle das finanças e da coleta de impostos, com forte ênfase nos ganhos econômicos e nos privilégios. III.A passagem conhecida em algumas bíblias brasileiras como a oração de Daniel parece destoar significativamente do restante da obra do referido profeta, principalmente no que se refere às responsabilidades pelas proibições das práticas religiosas, seguidas de perseguições e mortes em Jerusalém a todos aqueles que ousassem desrespeitá-las. A elaboração de duas tabelas permitirá visualizar as posições antagônicas. Ao observar a Tabela 1, fica evidente, pelos atributos que o autor destina a Antíoco IV Epífanes, uma quase associação do soberano selêucida com o anticristo. Tabela 1. Atributos relacionados com Antíoco IV Epífanes em Dn. Atributos Dn Injusto 3:32 O mais malvado 3:32 Aquele que profere insultos contra o Altíssimo 7:25, 8:9, 8:25, 11:36 Tramador de coisas inauditas 8:24 Arruinador dos poderosos e do povo santo 8,24 Aquele que age com perfídia 8:25, 11:23 Miserável 11:21 Sorrateiro 11:21, 11:24 Tem o coração voltado para o mal 11:27 Mentiroso 11:27 Profanador 11:31 Coloca-se acima dos deuses 11:36-37 Não tem consideração 11:37 Ele é apresentado como um rei injusto, malvado, arrogante, miserável, pérfido, sorrateiro, que se arvora deus, ou melhor, que se coloca acima do próprio Deus de Israel, o verdadeiro Senhor! Todos estes qualificativos extremamente negativos que o autor de Dn atribui a Antíoco IV, devem-se, sem sombra de dúvida, às reformas que serão introduzidas em Jerusalém pelos judeus helenizados, por um lado, e pelo próprio soberano selêucida, por outro. O interessante, ao longo da narrativa, no entanto, é que o primeiro grupo aparece apenas de forma esporádica, sem um maior detalhamento por parte do autor (Dn 9:27; 11:30; 11:32; 11:39). O mesmo não pode ser dito com relação a Antíoco IV Epífanes. Ele é identificado como a origem do mal que se abate sobre Israel, ele é o inimigo que precisa ser derrotado através de uma guerra santa, uma guerra que já estava prevista desde o início dos tempos, da mesma forma que o seu vencedor, o Senhor Deus de Israel (Dn 8:24). Não há dúvida, o rei selêucida é a fonte do mal que se abate sobre Jerusalém, ou melhor, é o próprio mal “encarnado”, já que por decisão sua as tropas profanaram o Templo, o santuário que abriga o Santo dos Santos, abolindo o sacrifício perpétuo e, em seu lugar, introduziu-se a abominação da desolação. Da mesma forma que a Tabela 1 oferece uma quantidade de atributos negativos a Antíoco IV Epífanes, a Tabela 2 apresenta uma longa lista de predicados nada favoráveis aos judeus. Tabela 2. Atributos associados aos Judeus na Oração de Daniel. Atributos Dn Pecadores 9:5, 9:8, 9:15- 16 Iníquos 9:5 Ímpios 9:5 Aqueles que se rebelam com Deus 9,5, 9,9 Aqueles que se afastam dos mandamentos e normas de Deus 9:5 Não ouvem os profetas 9:6 Infiéis 9:7 Transgressores da Lei 9:11 Estão sob o efeito da maldição e da imprecação inscritas na Lei 9:11 Aqueles que não têm atendido à voz de Deus 9:10-11, 9:14 Maus 9:15 Eles são apresentados como pecadores, iníquos, ímpios, infiéis, transgressores, aqueles que se rebelam contra o Deus dos seus pais, os que não querem ouvir a voz do Senhor e os que não prestam mais atenção às palavras dos profetas. Diferentemente da Tabela 1, contudo, o que se observa aqui é uma crítica interna muito dura, em que o autor procura olhar para dentro da sua casa, para o interior do seu povo e pede perdão a Deus pelo fato dos judeus, inclusive ele próprio, serem pecadores. Não deve ser perdido de vista, e este é um aspecto interessante, o fato do contexto histórico vivido pela Judéia praticamente inexistir ao longo da oração. O atual momento deve-se exclusivamente a um problema de ordem interna. Se Jerusalém está desolada, se o Santuário está devastado, se o sacrifício perpétuo está interrompido, se os judeus são motivo de escárnio pelos seus vizinhos, tudo isto se deve, no entender do autor, ao afastamento do próprio povo judaico de Deus. O contexto histórico, neste momento, é peça descartável. Trata-se aqui de uma questão de ordem teológica, não histórica! Esta oração, se não for contemporânea ao início da resistência, provavelmente antecede por muito pouco à revolta macabeia, na medida em que o autor ainda lamenta o Santuário devastado e a cidade desolada, sobre a qual o nome do Senhor é invocado. Tal oração deveria ser bem conhecida de todos os judeus opositores das reformas “helenizantes” ocorridas na cidade santa, já que ela critica o afastamento do próprio povo das leis de Deus, como pode ser lido: “[...] todo Israel transgrediu a tua lei e desviou-se para não escutar a tua voz” (Dn 9:11). Será interessante para as discussões que se seguirão, recapitular, mesmo que rapidamente, os principais pontos destas reformas. Elas estão centradas em torno de Joshua ou Jasão, como ele queria ser chamado, irmão de Onías III, ambos sumo-sacerdotes (Joshua, como sumo- sacerdote, ver: 2Mac 4:7-10; com relação ao cargo ocupado por Onías III, ver: 2Mac 3:1, 15:12). Jasão estabeleceu um conjunto de obras e ações, de caráter marcadamente helenizante, em Jerusalém: o ginásio, que parece ter substituído o papel catalisador do Templo (1Mac 1:13; 2Mac 4:12-15); o ephebeîon, utilizado para educar os jovens nos princípios helênicos; o alistamento de homens de Jerusalém como cidadãos de uma pólis, de tipo helenístico, possivelmente “Jerusalém de Antioquia” (2Mac 4:9)7. Caberia a Jasão e aos seus apoiadores diretos a autoridade para determinar quais seriam os habitantes de Jerusalém que obteriam direitos e privilégios como cidadãos da nova pólis. Como pode ser observado, porém, os dois principais textos para entender, mesmo que parcialmente as reformas helenizantes em Jerusalém são o 1Mc e 2Mc e não Dn. Os três textos apresentam pontos de contato, embora eles sejam poucos, no que diz respeito à participação dos judeus nas reformas helenizantes propostas. Estes pontos se resumem há dois aspectos: (i) a aliança feita entre Antíoco IV e uma parcela considerável dos judeus de Jerusalém (Dn 9:27,11:30,32; 1Mac 1:11-12,15,43,52), particularmente os habitantes citadinos; não apenas habitantes citadinos, como, também, da população rural, conforme demonstrou convincentemente Scurlock (2000: 153-159); e (ii) o fato de os judeus terem sido reduzidos a bem poucos entre todos os povos (Dn 3:37). Provavelmente esta afirmação não está relacionada com um decréscimo da população judaica provocado pela baixa taxa de natalidade, mas ao fato de as ações de Antíoco (1Mac 1:21-24,37,46- 47,50,56,60-61) terem provocado morte e fuga de muitos judeus que se lhes opunham, tornando Jerusalém estranha a sua progênie (1Mac 1:38,53). Convém apontar algumas questões acerca dos dois aspectos citados: 1º. Muito embora os autores dos livros de Daniel e de Primeiro Macabeus levem os seus leitores a deduzir que os responsáveis pela aliança com Antíoco IV Epífanes fossem somente os cidadãos citadinos de Jerusalém, Scurlock (2000: 153-159) levantou uma interessante (e convincente) hipótese de que a população rural também apoiou este acordo. O seu argumento baseia-se nas ações do rei selêucida de retornar a adoração de Yawhew à sua forma original, antes da reforma de Ezequias (Dt 12:2; 2Rs 18:4; 2Cr 31:1), nos lugares altos; 2º. Segundo outros autores (Scurlock, 2000: 128-129; Chevitarese, 2004: 80), as iniciativas que culminaram nas reformas helenizantes foram propostas pela própria comunidade judaica. Não há nenhuma referência nos textos antigos, alguns deles escritos por autores extremamente duros em suas críticas a Jasão, que venha a sugerir ou indicar uma oposição às ações deste sumo-sacerdote. Nenhum dos autores acusa Jasão de violar ou alterar o culto praticado no Templo de Jerusalém ou de ter proibido as práticas normais do judaísmo. Por fim, mesmo diante de textos violentamente contrários a Antíoco IV Epífanes, não se observa nenhuma ação contrária a Jasão ou ao soberano selêucida, quando este último visitou Jerusalém. Ao contrário, o rei foi magnificamente acolhido pela cidade, nela foi introduzido à luz de tochase ao som de aclamações (2Mac 4:22). Constata-se, portanto, que a comunidade judaica, principalmente aquela localizada em Jerusalém, já estava plenamente mergulhada no processo de helenização, e a cidade santa era uma das mais helenizadas no Mediterrâneo oriental. Havia pouquíssimas áreas e povos, ao longo do terceiro e segundo séculos, imunes ao processo de helenização. Este, porém, não era o caso das populações citadinas da Judéia. Como bem observaram Hayes e Mandell (1998: 21), Alexandre não introduziu a cultura grega na Palestina, ele a encontrou lá (para um maior aprofundamento da questão, ver: Chevitarese, 2004). Por outro lado, o fato de um autor bíblico escrever em hebraico ou aramaico não é garantia de que ele esteja mais imune ao helenismo do que aquele que optou por escrever em grego. Como é sabido de todos, os autores dos livros de Macabeus escreveram em grego. Muito mais do que sugerir uma adesão ao helenismo por ambos os autores, tal fato deixa transparecer dois fortes indícios: (i) um intenso processo de interação cultural – sob o ponto de vista das ideias e dos conceitos presentes no helenismo – envolvendo muitos judeus situados não apenas na Palestina, como, também em toda a bacia mediterrânea8; e (ii) a própria incapacidade de muitos judeus de lerem os textos sagrados em hebraico, por já não conhecerem mais esta língua9. Dn10 não sugere, de imediato, que os seus leitores não soubessem o grego ou estivessem imunes ao helenismo. Como foi bem observado por Momigliano (١٩٨٤: 258-60, 284-85), o autor do capítulo dois de Daniel, que opta por escrevê-lo em aramaico, já que esta língua estava bastante difundida no território propriamente judaico (Levine, 1998: 80-83), lança mão da teoria da sucessão dos impérios que é genuinamente uma idéia grega. Para que a narrativa sobre o sonho de Nabucodonosor, relativo à estátua compósita, pudesse ser plenamente entendida, o leitor deveria ter o mínimo de conhecimento desta idéia e dos conceitos gregos nela envolvidos. Retornando, agora, à oração de Daniel (9:1-19), ela pode ser entendida no interior do contexto de críticas às ideias helenizantes que estavam perpassando toda a sociedade judaica, particularmente, mas não exclusivamente, a de Jerusalém. Esta oração, como já foi observado, insere- se no início das lutas ou provavelmente no período que antecede a revolta macabéia. Ela pode ser pensada como uma tomada de consciência de uma parcela significativamente grande daqueles judeus que haviam admitido inicialmente as reformas helenizantes propostas pelo sumo-sacerdote Jasão, consideradas por eles, no momento em que elas foram propostas, como boas e inevitáveis. Eles agora estavam juntos, com os demais judeus que tinham se oposto, desde o início, aos planos de Jasão – este parece ter sido o caso do autor desta oração que está sendo agora analisada –, lutando contra a profanação do Templo, as proibições dos holocaustos, dos sacrifícios, das festas, das práticas religiosas, do shabat, da devastação de Jerusalém. Esta oração busca aglutinar forças contra o inimigo comum, qual seja: Antíoco IV Epífanes, no particular, ou o império selêucida, no geral. IV. Em termos conclusivos, o emprego repetidamente da primeira pessoa do plural ao longo da oração, associando o nós aos pecadores, iníquos, ímpios, infiéis, transgressores da Lei, chama para uma proposta de reconciliação entre as partes da sociedade judaica. Elas precisam estar coesas, unidas em torno do objetivo comum, qual seja: libertar Israel da opressão religiosa. Neste caso, o autor da oração estaria enfatizando uma visão histórica mais particularista do que universalista (Levine, 1998: 100; as porções apocalípticas de Daniel estando repletas de sentimentos gentios, ver: Grant, 1997: 214). A questão, portanto, não estava em criticar abertamente as influências helenizantes da sociedade judaica (como foi salientado, este processo era inevitável), já que este procedimento não aglutinaria o todo, mas, ao contrário, o dividiria. Daí o fato que a presente oração, muito embora transpire todo um contexto histórico tenso, busque chamar Israel sob o argumento religioso e não histórico. 1 Parece existir um consenso na historiografia moderna de que este Daniel e suas histórias nunca existiram, ver: Bickerman, 1997: 24; Grant, 1997: 212-213; Collins, 1995: 413. 2 Para as demais passagens referentes à Babilônia, ver: Dn 4:25-30 (a zoantropia de Nabucodonosor), 5:2 (Baltasar como rei da Babilônia). 3 Quando as datas forem antes de Cristo, elas serão especificadas pela sigla “a.C.”. Para aquelas datas inseridas temporalmente como sendo depois de Cristo, não será utilizada a sigla “d.C.”. 4 Para uma outra passagem repleta de imprecisões históricas, ver: Dn 11:2. Nela, o autor observa que, após Ciro, existiram outros quatro reis persas, sendo que o último, possivelmente Xerxes, buscou invadir a Grécia. Alexandre Magno viria depois dele! 5 Bickerman (1997: 63) parece ser o único autor que afirma não haver nada nas histórias de Daniel que se refira ao rei selêucida e à sua perseguição à religião judaica. 6 Bickerman (1997: 60), lançando mão de outros argumentos, situa os capítulos 3, 4, 5 no final do século III a.C. 7 Sobre a dificuldade em se saber da sobrevivência ou não dessa pólis depois das reformas, ver: Scurlock, 2000: 136-137, especialmente nota 47. 8 Para o grego como língua regular entre os vários grupos judaicos, ver: Levine, 1998: 76-80; para um aprofundamento da questão, ver: Hengel, 1980: 110-126; para a falta de evidência do impacto da língua grega em Jerusalém, ver: Bickerman, 1997: 79. 9 O hebraico estava restrito aos círculos mais altos da sociedade, ver: Levine, 1998: 74-76. 10 Escrito em hebraico (Dn 1:1-2,4a, 8:1-12,13), aramaico (Dn 2:4b-7,28) e grego (partes “deuterocanônicas”, Dn 3:24-90,12-13). II Jesus era Judeu? Ou a Galiléia Esquecida. A Galiléia é uma região de enorme importância para a história do cristianismo e do judaísmo. Ali nasceu, viveu e iniciou a sua missão Jesus, o nazareno. Ali também, depois das duas destruições de Jerusalém (entre 66 e 70 e entre 132 e 135 – revolta de Bar Kokba), os judeus fugitivos e muitos rabinos fundaram academias e escolas, onde foram redigidas obras fundamentais do judaísmo formativo: primeiramente a Mixná e depois o Talmude de Jerusalém. Exatamente por causa da importância estratégica desta região, para as duas tradições religiosas, é necessário esboçar algumas questões historiográficas1. Os estudiosos adotam quase unanimemente um paradigma, que se tornou por isso dominante, que distingue, na Galiléia, de um lado um mundo judeu e do outro um mundo cristão, e antes, um mundo helenístico e um mundo judeu. O que parece esconder-se por trás dessa posição é o preconceito e a ignorância a respeito de quanto problemática deve ter sido uma suposta “judaização“ da Galiléia antes do ano 70. Pode-se dizer a mesma coisa a respeito da convicção segundo a qual as primeiras comunidades cristãs entendiam-se como cristãs versus judias. Simplesmente não existe nenhuma evidência histórica disso até o século IV. Pensar ainda a Galiléia como um campo de batalha entre judaísmo e helenismo esconde uma complexidade muito maior subjacente. Quem foi helenizado? Todo mundo ou só uma parte da população, umas classes, umas regiões? Pode-se, por exemplo, considerar as aldeias da Galiléia helenizadas ou judaizadas? É possível reconhecer neste esquema fechado ecos das ideias culturalistas americanas sobre os fenômenos de aculturação, assimilação e sincretismo entre diversas culturas. Um tipo de aproximação antropológica que já Roger Bastide chamava de círculo encantado do culturalismo2. Na realidade os fenômenos de encontros entre culturas nunca acontecem num ponto zero das civilizações. É preciso considerar a situação em que esse encontro acontece3. A Galiléia – como qualquer outro lugar cultural – não pode ser considerada simplesmente como um campo neutro, asséptico, onde se dá a interação entre helenismo e judaísmo (e entre judaísmo formativo e cristianismodepois). Isso equivale a se perguntar: como se dá a interpenetração de civilizações diferentes num mesmo território? Qual a relação entre Grande e Pequena Tradição, isto é entre a cultura dominante, global - diríamos hoje -, e as culturas periféricas, dominadas ou alternativas? O Galileu Jesus era judeu. Até pesquisa mais recente sobre o Jesus Histórico, a assim chamada Third Quest, terceira busca pelo Jesus histórico, não parece ter nenhuma dúvida sobre isso4. Mas a questão do judaísmo na Galiléia é mais complexa do que poderia parecer. Como pensar em uma religião monolítica, isto é, em um único judaísmo, quando inserimos na análise as categorias dialéticas da crítica histórica? Podemos talvez imaginar, por exemplo, que opressores e oprimidos partilhem da mesma expressão religiosa de fato? Ou devemos imaginar “tradições outras”, menores, orais, de resistência, dos camponeses galileus, provavelmente enraizadas nas antigas tradições israelitas? Resistência contra quem: somente contra o helenismo ou também contra o judaísmo oficial? E Jesus, como se insere neste contexto? Quais as dinâmicas de resistência religiosa que ele viveu e pregou? Parece, então, que as problemáticas acima evidenciadas encontram eco e confirmação num comentário do historiador do cristianismo primitivo Eduardo Hoornaert (1994), que – ao mesmo tempo – não perde a ocasião de uma boa puxada de orelhas a “certos” exegetas: “Os assim chamados estudos bíblicos não prestam muita atenção às religiões semitas em si. O que lhes interessa são as tradições religiosas do judaísmo. Paradoxalmente os próprios estudos bíblicos constituem, desta forma, um problema para a interpretação da história do cristianismo (...). As religiões do Oriente Médio não são estudadas em si nem por si, mas quase exclusivamente numa perspectiva bíblica. Existe por trás disso uma hierarquização de origem ideológica: a religião bíblica (ou revelada) no centro, as demais religiões semitas (os paganismos) na periferia. É importante que aqui, no nosso mundo colonizado, percebamos a redundância dessa postura preconceituosa para nosso modo de nos relacionar com nossos paganismos”. As palavras do Hoornaert resumem bem o ponto hermenêutico e o objetivo deste ensaio: resgatar um ponto de vista sobre a história da Galiléia no tempo de Jesus para melhor entendermos a tradição religiosa que constituiu o caldo de cultura da figura histórica de Jesus nos evangelhos sinóticos. A suspeita inicial é que a definição do Galileu Jesus como judeu é imprecisa e contribui para o esquecimento da complexa formação sociocultural da Galiléia. Ainda, à guisa de introdução, precisamos gastar duas palavras sobre documentação. Quais as fontes à nossa disposição para essa pesquisa sobre a Galiléia? Primeiramente Flávio Josefo. Josefo é, porém, uma fonte bastante problemática, enquanto envolvido pessoalmente na Galiléia, durante a grande revolta de 66-67, como general do governo revolucionário de Jerusalém. A sua posição política e os interesses ideológicos que emergem claramente nos seus textos o tornam uma testemunha nem sempre confiável, apesar de indispensável. Depois os Evangelhos Sinóticos, Marcos e a fonte Q de maneira especial, considerando-se, porém, que a intenção única dos textos não é a de fornecer um relato histórico5. O texto evangélico é literatura religiosa de uma comunidade, que lê o movimento de Jesus à luz das questões que a mesma comunidade estava vivendo no tempo dela. Os últimos estudos exegéticos apontaram, porém, uma proximidade muito grande dos relatos da fonte Q de maneira especial com a Galiléia (Vaage, 1994). De grande importância são também os escritos da literatura rabínica primitiva, da qual grande parte foi produzida exatamente na Galiléia. O problema que se põe, e no qual muitos caíram, veja-se, por exemplo, a interpretação do que é sinagoga, é que estes escritos na sua maioria se referem aos anos sucessivos aos acontecimentos relativos ao século I. A Arqueologia torna-se também uma fonte essencial, especialmente após as recentes escavações na Baixa Galiléia6. Deixamos com Josefo (GJ 3:41-42), profundo conhecedor da região, por causa de suas campanhas militares, a apresentação do lugar: “Há duas Galiléias, uma chama-se a alta e a outra a baixa; ambas são limitadas pela Fenícia e pela Síria. Do lado do ocidente estão a cidade de Tolemaida, todo o seu território e o monte Carmelo, que outrora pertencia aos galileus e agora é dos tírios, perto do qual está a cidade de Gamala, chamada a cidade dos cavaleiros, porque o rei Herodes para lá mandava os dispensados. Do lado do Sul tem, na fronteira, a Samaria e Citópolis, até o rio Jordão. Do lado do oriente os seus limites são Hipom, Gadaris e Galaunita, que são também os do reino de Agripa. E do lado do Norte confinam com Tiro e seus territórios”. Mais umas informações de Flávio Josefo sobre o povo galileu (GJ 3:41- 43): “Embora estas duas províncias estejam rodeadas de tantas e diversas nações, todavia elas sempre lhes resistiram em todas as suas guerras, porque, além de ser muito populosas, seus habitantes são muito valentes e instruídos, desde a infância, na arte da guerra. As terras são tão férteis e tão bem plantadas, com todas espécies de árvores, que sua abundância convida a cultivá-las mesmo aqueles que têm pouca inclinação para a lavoura e não há terras inutilizadas. Não somente há uma grande quantidade de aldeias e vilas, mas também um grande número de cidades, tão populosas que a menor delas tem mais de quinze mil habitantes”. A atitude de resistência da população da Galiléia7 contra as ocupações e as dominações estrangeiras, destacada por Flávio Josefo, tem muito a ver com a topografia e a grande produtividade da terra acima mencionadas. Fora as cidades – das quais falaremos mais adiante –, o povo vivia em pequenas aldeias construídas em montes e vales. Para a economia deste ensaio não será o caso de aprofundar a complexa história da Galiléia desde o fim da frágil monarquia israelita do Norte, em 722 a.C., quando a região havia sido tomada pelo rei assírio Tiglat-Pileser, entre 733 e 732 a.C.8. O que nos interessa é que, desde 733 a.C. até 104 a.C., a Galiléia ficou politicamente separada de Judá. Durante os impérios assírio, persa e babilônio, a Galiléia e a Samaria permaneceram separadas como entidades administrativas autônomas de Judá, dentro da grande satrapia Sob-o-rio. Mas enquanto os persas entregaram novamente o poder às velhas famílias reinantes que voltavam do exílio em Judá, o mesmo não aconteceu na Galiléia, que continuou sendo governada por oficiais imperiais desde Megiddo. Assim, enquanto os impérios helenísticos reconheceram os israelitas como ethnos, como povo, nação, e, pelo menos inicialmente, não empreenderam uma política de helenização agressiva da região, pelo contrário, na Galiléia, começaram logo a fundar muitas cidades helenísticas como Ptolemaida, Citópolis e as cidades da assim-chamada Decápolis no sul-oeste da região. Mas, como para os impérios precedentes, também os helenísticos não interferiam muito na organização de base e na cultura própria das aldeias, que se mantinha segundo ritmos e padrões antigos e tradicionais, como em grande parte das pequenas sociedades agrárias antigas A Galiléia e Jerusalém então, depois da monarquia davídica, continuaram separadas9. Surge, frente a esta separação, a pergunta sobre como foram cultivadas as tradições israelitas na Galiléia? Em que forma? Onde? Quais as relações com o judaísmo de Jerusalém? Para isso será necessário ver mais de perto o que aconteceu nos cem anos em que a Galiléia foi governada - depois de oito séculos - por Jerusalém. Os estudiosos que admitem a persistência de tradições judaicas na Galiléia durante os séculos de autonomia de Judá veem, na “reconquista asmoneia”, a reunião das duas regiões sob uma única matriz cúltica e cultural (Gottwald, 1998: 419). Outros autores, porém, pensando a “Galiléia das gentes” como totalmente “pagã”, consideram os cem anos de dominação de Judá sobre a Galiléiacomo um período de “conversão forçada” ao judaísmo, como também Flávio Josefo queria mostrar em sua visão um tanto nacionalista da história da Palestina deste período. Frente a este impasse, parece mais correta a posição de Horsley (1994: 40), que sustenta a tese segundo a qual o conceito de “conversão” da Galiléia, usado por alguns estudiosos, não seria adequado. A Galiléia, de fato, foi conquistada militarmente pelos vários impérios, e foi disputada entre eles até os asmoneus. O conceito de “conversão” depende de fato de uma hipótese de pesquisa que assume a religião como algo separado das várias implicações políticas e econômicas. E este pressuposto é metodologicamente inaceitável. A questão que se coloca é, de fato, e sob todos os pontos de vista: como se deu a relação entre a “pequena tradição” galileia e a “grande tradição” do Templo e da Torá de Jerusalém? Com relação ao templo, parece, por exemplo, que os galileus realizavam romarias periódicas até o Templo, em Jerusalém. Isso é aceito normalmente como uma prova da lealdade da Galiléia ao judaísmo (Freyne, 1996: 137)10. A bem ver, porém, estas romarias revelam um caráter bastante ambíguo, como destaca também Horsley (1994: 145)11. Ao mesmo tempo, testemunhos literários como os de 1En e do TLevi relatam, em tom apocalíptico, visões recebidas na região da Galiléia. Ambas as visões constituem também uma crítica (de idolatria) ao sacerdócio de Jerusalém. Juntando estes elementos nasce facilmente a suspeita de que certos ambientes galileus nutriam uma forte aversão (em bom estilo israelita do Norte) contra o templo de Jerusalém. Casos como o do profeta apocalíptico Jesus Ben Hanina, camponês do interior que veio a Jerusalém, profetizando a sua ruína e a destruição do templo, são sinais de uma certa desafeição das bases camponesas em relação ao templo de Jerusalém. E não podemos deixar de lembrar as profecias de Jesus de Nazaré sobre a destruição do templo (Mc 13:1-23, 14:58; Mt 26:61; Jo 2:19). A questão de uma pretensa devoção dos galileus para com o templo permanece, portanto, uma hipótese ainda muito obscura, e, de toda forma, bastante aberta. Pelo que diz respeito à Torá, não está claro se a célebre afirmação de Josefo de que a Galiléia ficou “sob a lei dos judeus” signifique que essa passou politicamente para a dominação dos asmoneus, ou se implique também uma conformação dos costumes tradicionais galileus aos dos judeus. Provavelmente as duas coisas juntas. Nada, portanto, leva a pensar que a cultura tradicional das aldeias da Galiléia sucumbiu “à grande tradição”. Sua força de resistência foi provada por séculos de dominação estrangeira. Um fato, porém, chama atenção: à diferença, por exemplo, de Judá (e também da Torá alternativa dos samaritanos, acima citada), a Galiléia foi sempre administrada por estrangeiros, mais interessados na cobrança de impostos dos trabalhadores das terras que nos seus costumes e religiões. Não houve então uma aristocracia sacerdotal local na Galiléia que cultivasse uma tradição oficial em contraste com a tradição popular, e que lhe permitisse controlar também ideologicamente as massas camponesas. O controle do imaginário da tradição popular é a forma mais forte de dominação, em todos os tempos e lugares. Esta, pouco manipulada pelos interesses dominantes, devia ter por isso um espaço muito amplo e raízes muito fortes entre o povo. Neste – como também em outros aspectos acima evidenciados – concordamos com Freyne (1996: 231) quando afirma que a Galiléia do século I é o símbolo da periferia. Assim, enquanto periferia, a Galiléia deve ter se comportado com relação ao “centro” cultural e religioso do século I. Partindo do pressuposto da fácil conversibilidade dos valores religiosos e culturais nas sociedades tradicionais, das imbricações culturais de símbolos e expressões de diversas formas, e a compenetração entre vida religiosa e vida social devia ser uma característica fundamental do panorama religioso Galileu12. E isso, no século I, após quase mil anos de ocupação estrangeira, pode significar somente uma coisa: resistência. Especialmente dois fatores acentuam a força de resistência cultural do povo galileu: esta situação de perene colonização como constante ameaça, direta ou indireta, à sobrevivência física e ideológica do povo, e uma forma particular de resistência que marca o campesinato em geral, que Horsley (1987: 128) descreve desta forma: “Quando um povo colonizado é impedido de participar das decisões que definem a sua própria vida, ele pode se voltar com um ânimo redobrado para as suas tradições culturais13. Os ritos e as tradições religiosas passam a ter, então, uma importância especial, pois são os únicos aspectos de sua vida que permanecem sob o seu controle. Vendo nisso uma maneira de preservar um mínimo de dignidade, os povos colonizados tendem a se prender ainda mais às normas, tradições e rituais de sua religião, como um símbolo da liberdade e da independência que possuíam no passado. Isso faz com que sejam ainda mais sensíveis a qualquer violação destes símbolos”. Mas esta sensibilidade de resistência não encontrava necessariamente na revolta em arma sua expressão mais adequada e autêntica. Assim James Scott (Apud Crossan, 1994: 163-164): “As rebeliões camponesas são raras e acontecem apenas em grandes intervalos de tempo. A grande maioria é esmagada sem a menor cerimônia. Por isso creio ser mais importante estudar o que poderíamos chamar de formas de resistência cotidiana dos camponeses – a luta prosaica, mas constante, entre os camponeses e aqueles que procuram extrair-lhes trabalho, impostos, aluguel e juros.(...) Estas formas de luta de classe exigem pouco planejamento e organização. (...) Elas evitam qualquer confrontação direta ou simbólica com a autoridade”. É esta luta cotidiana, resistência prosaica de corpos e símbolos, da qual o povo camponês lança mão para sobreviver à constante opressão de sua vida e de suas instituições tradicionais, que parece ser a condição de vida do povo galileu. Considerando todos estes elementos, a “lei dos judeus” de Jerusalém deve ter encontrado muitos obstáculos para ser implantada nos vales da Galiléia. Pois uma outra lei, profundamente “vivida” pelos camponeses, estava “escrita nos corações” dos galileus. Podemos afirmar então, com um certo grau de probabilidade histórica, que os galileus, longe de considerar os asmoneus como libertadores dos impérios helenísticos e jurar a eles fidelidade, resistiram à “lei dos judeus”, seja enquanto “tradição de Jerusalém” (templo, sacerdócio e Torá) que os seus ancestrais israelitas rejeitaram, seja como “grande tradição”, lei e cultura dos mais fortes, opondo a ela as antigas tradições populares das aldeias, capazes de grandes resistência. Uma resistência cotidiana, silenciosa, que não precisava, em geral, de grandes atos de ruptura, mas que minava a partir de baixo o sistema ideológico dominante. Quanto aos galileus, eles não estão sozinhos nesta resistência: a mesma atitude é encontrada nos povos da Peréia e da Idumeia, e em outros grupos ligados à experiência do banditismo social, como também na comunidade de Qumran. Esta última, apesar de cultivar – à diferença dos galileus – a Torá da Judéia, baseava a sua vida sobre algo ligado fortemente às tradições israelitas do Norte: a aliança mosaica (Crossan, 1994: 157). Mas no I século uma outra ameaça já preocupava as aldeias galileus – os romanos. Os romanos desde o começo de sua conquista da Palestina, fiéis a sua estratégia de governar as nações indiretamente, por meio de uma elite dirigente local, confirmaram a dinastia asmoneia no poder. Isso significou concretamente, para os galileus, uma dupla tributação: pois além de terem de pagar os tributos para Hircano e seus descendentes, agora eram obrigados a entregar para Roma um quarto da colheita a cada dois anos. A situação era muito grave e uma erupção de banditismo social é sinal disso. A repressão dos romanos, que Tácito chamou de “salteadores do mundo, que revolvem o própriomar”, foi extremamente brutal14. Esta situação acabou enfraquecendo a dinastia asmoneia, já dizimada por anos de guerra civil. Os romanos apontaram assim Antipater, um ambicioso aristocrata idumeu, como “governador de toda Judá”, isto é da Palestina toda. Este último designou o seu filho, Herodes, como governador militar da Galiléia. Começa assim uma resistência do povo da Galiléia contra o governador estrangeiro (idumeu). Três anos difíceis, até Herodes, no ano de 37 a.C., ser proclamado “rei de Judá” pelos romanos, interessados em consolidar o controle da Síria e da Palestina, contra as recorrentes ameaças dos partas no norte. Herodes reprimiu duramente toda oposição. Aparentemente, Herodes, talvez para alcançar uma certa legitimidade, manteve as instituições judaicas, o sumo sacerdócio, o templo e a Torá intactas. Até se casou com a filha de Hircano II, Marianna, para dar a impressão de uma certa continuidade com a dinastia asmonéia. Mas de fato ele usou destas instituições para consolidar o seu poder e seus projetos pessoais. A reconstrução do templo, num estilo helenista-romano, era a edificação de um monumento de propaganda político-institucional, mais que um serviço à comunidade judaica. Herodes foi muito mais um imperador helenista do que um rei judeu. Prova disso é que, ao mesmo tempo, edificou um templo de mármore branco dedicado a César Augusto, bem perto da Galiléia, na região de Dã. Na Alta Galiléia fundou muitas fortalezas e, no interior de seu programa de reforma administrativa, tornou Séforis a principal capital de governo (e imposição fiscal) da região. E para o campesinato galileu a situação ficou ainda pior. A imposição, por parte dos romanos, de Herodes como rei-cliente, arrendatário, acrescentou às primeiras duas (de Roma e da aristocracia sacerdotal de Jerusalém) uma terceira camada de tributação. E devia ser bem pesada, vistas as obras propagandísticas que Herodes realizou. Estima-se em duzentos talentos (dourados) por ano somente a remessa que Herodes devia enviar, enquanto rei-arrendatário, para os romanos (Crossan, 1994: 257)15. Com um sistema tão pesado de tributação (tripla!) o campesinato da Galiléia entrava numa espiral de endividamento de onde saía muitas vezes sem-terra. O dinheiro coletado, de fato, não era investido pela aristocracia para melhorar a produção, mas para adquirir sempre mais terra e para formar capital para realizar empréstimos. Se a espiral do endividamento pode parecer algo estranho, considere-se que o empréstimo sempre foi algo proibido pelas leis israelitas e judaicas, por causa da proibição bíblica (Ex 22:25, 23:20) de cobrar juros. “Feita a lei, feito o engano” – já dizia um antigo provérbio mediterrâneo – e o problema foi circundado, por meio da seguinte escamoteação: “se o devedor pagava o empréstimo dentro do prazo, o credor não perdia nada e ganhava um amigo agradecido. Se o pagamento era feito depois do prazo, o que talvez era o que se esperava na maioria dos casos, a multa cobrada equivalia a 20% do valor do empréstimo” (Crossan, 1994: 257-258). Uma segunda dificuldade era a lei bíblica do jubileu (Dt 15), onde todas as dívidas deviam ser canceladas no sétimo ano. Isso implicava claramente uma dificuldade a cada dia maior de encontrar empréstimo à medida que o sétimo ano se aproximava. A solução, atribuída ao grande rabino Hillel, foi o prosbul, um documento que permitia ao tribunal cobrar dívidas não pagas, mesmo durante o sétimo ano. Pois a lei bíblica referia-se aos indivíduos, e não aos tribunais! Assim, como resultado de tudo isso, uma quantidade sempre maior de camponeses era empurrada para baixo da linha de subsistência, e até para a marginalidade. O fato talvez mais grave é que o empobrecimento progressivo do povo quebrava as estruturas de ajuda de tipo clânico que asseguravam a sobrevivência dos mais pobres nas aldeias da Galiléia. Nem é preciso recordar aqui o ideal tribalista do Israel pré-monárquico para entender como estas estruturas funcionavam. Trata-se de um fenômeno tipicamente rural, de comunidades de subsistência, anteriores ao modelo do mercado, e que até hoje sobrevivem (em sentido estreito) n os cantos mais remotos do mundo globalizado. Ontem como hoje a ruptura dos mecanismos sociais de assistência mútua desencadeia a espiral da miséria. Testemunha disso é, por exemplo, a massa de doentes que procuram Jesus nos evangelhos sinóticos, dando a impressão de uma sociedade à beira do colapso. Os relatos dos Evangelhos, especialmente as parábolas, estão cheios de personagens endividadas (Mt 18:23-26) e de sem-terra que viram lavradores assalariados e até diaristas (Mt 20:1-6); além disto, também, é mencionado um patrão que mora longe (na cidade?) e deixa tudo para o caseiro (Mt 21:33), o desespero dos pobres que acabam assaltando (Mt 21:34-39) ou explorando os outros (Mt 18:27- 30, 24:48-50), a insegurança das estradas por causa dos assaltos (Lc 10:30), funcionários corruptos (Lc 16:1-7), luxo que é uma verdadeira ofensa para os pobres (Lc 16:19-21), gritando vingança na frente de Deus. Nas capitais regionais como Séforis ou Tiberíades, os impostos eram avaliados e as dívidas registradas. E não nos surpreende que foram estas cidades os principais alvos das incursões dos bandidos e das revoltas dos desesperados. Houve uma na grande revolta que estourou logo após a morte do rei Herodes. Ela foi tão grave que Varo, o legado romano da Síria, precisou de mais de três legiões para reprimi-la. A repressão por sua vez foi tão dura que levou a duas mil crucificações. Por quê? Se pudéssemos ver essas cruzes, provavelmente enxergaríamos em algumas delas a inscrição “Rex Ivdeorvm” – como na de Jesus. Pois os movimentos como os de Judas, filho de Ezequias16, Simão da Peréia e Atronges tinham em comum um sonho de fundo: o do messias. Eram movimentos milenaristas messiânicos, que – depois da morte do rei estrangeiro Herodes – acreditavam tivesse chegado à hora de um messias, um novo Davi talvez, ou um outro homem de deus voltar a governar sobre Israel. Esse sonho era percebido claramente como uma ameaça direta pelos dominadores romanos. Uma figura extraordinária, que devia ter ficado impressa na memória do povo da aldeia de Nazaré, é a de Judas, filho de Ezequias, uma espécie de Robin Hood galileu, um bandido que assaltou o palácio real de Séforis (onde estavam guardados, além das riquezas, os documentos de empréstimo). Foi até proclamado rei e partiu para atacar as propriedades dos aristocráticos. Ele obteve com facilidade o apoio popular, por causa de suas pretensões de independência. A expectativa messiânica popular devia estar ainda bastante enraizada no povo simples das aldeias da Galiléia. Talvez mais um sinal de como as tradições israelitas permaneciam nos alicerces da estrutura ideológica do povo. Outros dois “messias”, dos quais temos notícias, foram Simão, um servo de Herodes, que “assumiu o diadema” – segundo nos diz Josefo – na Peréia, e Atronges, um simples pastor judeu. Comenta a respeito desse último o aristocrático Flávio Josefo (GJ 2:57-58,60-62): “um mero pastor tinha a temeridade de aspirar ao trono”. Mas se as origens de Atronges deixavam Josefo atônito, o imaginário popular judeu podia reconhecer facilmente em Davi o modelo do rei-pastor, base ideológica do messianismo popular, em particular da Judéia (Crossan, 1994: 238). Na mesma guerra (entre 66 e 70), dois líderes importantes foram pretendentes messiânicos: Menaé (filho de Judas, o galileu) e Simão Bargiora (filho de Gioras), que acabou se tornando o principal comandante político-militar da resistência de Jerusalém quando a cidade sagrada foi sitiada pelos romanos. Até a revolta que estourou em 132 recebeu o nome do seu líder, um tal de Simão bar Cosiba, que ganhou o apelido messiânico de Bar Kokba, concedido a ele pelo Rabbi Akiba, um dos principais rabinos da época. Endividamento, espiral de miséria, banditismo social e outras formas de revolta: esse é o cenário da Palestina no tempo de Jesus. Não entraremos no mérito do banditismo social
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