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586218741-Bobbio-Teoria-Do-Ordenamento-Juridico

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108 ediQao
Notberto Bo^
\
Norberto Bobbio e um dos
maiorts pcnsadores italianos da
alualidadc. Foi professor das
Universidades de Siena c Padua,
e desde 1948 e catedratico da
UniversidadedeTurim. Teoriado
onlenamenlo juridico 6 uma de
suas principals obras. ao lado de
A tevria das formas de govemo,
Diiviio e Kstado no pensamento de
Eiiidiniel Kant e Dicioiuirio de
paliiica, todas ja publicadas pela
Editora Universidade de Brasilia.
Norberto Bobbio
Teoria do ordcnamcnto
jundico
10" edigao
Tradugao
Maria Celeste Corderro Leite dos Santos
Revisao teaiica
Claudio De Cicco
Apresentagao
Tercio Sampaio Ferraz Junior
EDiTORA
UnB
Direitos exclusivos para esta edicao:
EDITORA UNIVERSIDADE DE BRASILIA
SCS g. 02 Bloco C N° 78 Ed. OK 2" andar
70300*500 Brasilia DF
Fax: (61) 3225-5611
Copyrighftg) 1982 by Editora G. Giappichelli
Titulo original: Teoria dell'ordinnmenfo giuridico
■^ndos OS direitos rcscrvados. Nenhuma parte desta publicacao podera ser
armazcnada ou reproduzida por qualquer meio sem a autorizacao por
escrito da Editora.
Impresso no BrasU
EDITOHACAO
EWANDRO MAGALHAES JUNIOR
FLAVIO GONCALVES DA ROCHA CASTRO
REGINA COELI ANDRADE MARQUES
REV1SAO DE TEXTO
ALBA ROSA DE FARIAS FALCAO
ELIDA MORAES DE OLfVEIRA FILHO
JOSE G. DE ARRUDA FILHO
CAPA
FRANCISCO REGIS
ISBB: 65-230-0276-6
Ficha catalografica claborada pcia
Sibliotcca Central da Univcrsidadc dc Brasilia
B663t
Bobbio, Norherto
Teoria do ordenamcnto juridico / Norberto Bobbio:
trad. Maria Ccieste C. J. Santos; vcr. Tec. Ciaudio Dc Cicco:
apres- Tcrcito Sampaio Fciraz Junior - Brasilia : Editora
Universidadc de Brasilia. iCP edicao. 1999 (Rcimpressao 20081.
184 p.
3-10.11
Sumario
Apresenta0o 7
capi'tulo 1 — Da norma juridica ao ordenamento ju-
ridico 19
1. Novidade do problema do ordenamento 19
2 , Ordenamento jun'dico e definigao do Direito 22
3 . A nossa defini(;ao de Direito 27
4. Pluralidade de normas 31
5 . Os problemas do ordenamento juridico 34
CAPfTULO 2 — A unidade do ordenamento juridico 37
1 . Fonces reconhecidas e fontes delegadas 37
2 , Tipos de fontes e forma^ao histdrica do orde
namento 41
3 . As fontes do Direito 45
4 . Construgao escalonada do ordenamento 48
5 . Limites materiais e limites formais 53
6. A norma fundamental 58
7 . Direito e for<;a 65
CAPfTULO 3 — A coerSncia do ordenamento juri
dico 71
I . O ordenamento juridico como sistema 71
2 . Tres significados de sistema 75
3 . As antinomias 81
4. Varios tipos de antinomias 86
5 . Criterios para a solu^ao das antinomias 91
6. Insuficiencia dos criterios 97
NORBERTO BOBBIO
7. Conflito dos criterios 105
8. O dever da coerencia 110
CAPITULO 4 — A completude do ordenamento juri-
dico 115
1 . O problema das lacunas 115
2. O dogma da completude 119
3 . A cn'tica da completude 122
4. O espa?o jundico vazio 127
5. A norma geral exclusiva 132
6. As lacunas ideologicas 139
7. Varies tipos de lacunas 143
8. Heterointegra^ao e auto-integragao 146
9. A analogia 150
I 0. Os prlncfpios gerais do Direito 156
CAPITULO 5 — As relagoes entre os ordenamentos ju-
n'dicos I6l
1 , A pluralidade dos ordenamentos I6l
2 . Varios tipos de rela<;ao entre ordenamentos . 165
3 . Estado e ordenamentos menores 169
4. Relagdes temporals 173
5 . Relagdes espaciais 178
6. Relagdes materials 180
APRESENTAgAO
O pensamento jurldico
de Norberto Bobbio
Norberto Bobbio pertence a uma corrente jusfilosb-
fica que se costuma chamar de "Escola Anah'tica" ou "Po-
sitivismo Analltico". Suas posi(;6es, no entanto, sao bas-
tante matizadas e nao e facil incluMo nessa corrente.
Desde a decada de 50, os escritos de Bobbio marcam
um nitido programa de reformula^ao dos esiudos do Di-
reito, apertados que estavam numa pol6mica tornada te-
diosa e infecunda entrejusnaturalismo e positivismo. Bob
bio e um dos primeiros a voltar-se para a metodologia da
Ciencia do Direito em termos de uma analise lingiii'stica.
Ao posicionar-se desse modo, Bobbio enfrentava uma
crise que pairava sobre a CiSncia Juridica, tentando, nas
pegadas de Kelsen, mas desvinculando-se dos pressupos-
tos neokantianos, reelaborar um conceito de Cifincia Juri
dica capaz de conferir-lhe um estatuto prbprio; dentro das
ciSncias empiricas (mesmo porque o conhecimento juri-
dico nao podia prescindir de recorrer aos fatos, ainda que
elaborasse proposi^oes sobre normas), o Direito parecia
encontrar um lugar que, no entanto, nao Ihe conferia o es
tatuto proprio procurado. Assim, a partir dos anos 50, Bob
bio se direcionou decididamente para uma concepcao de
ciSncia como "linguagem de rigor" e ai descobriu o cami-
nho que procurava. Seus estudos de Teoria Geral do Di
reito foram marcados por essa preocupa^ao e se desenvol-
veram no sentido de buscar respostas para problemas que,
entao, preocupavam particularmente a teoria juridica,
Os trabalhos de Bobbio sobre a tematica juridica sao
inumeros. Em todos eles, mostra-se acima de tudo um ana-
8 TERCIO SAMPAIO FERRAZ JR.
lista, E isso a ponto de, as vezes, influenciar o seu leilor
nao so pelo conteudo, mas pelo estilo de trabalho. Leito-
res de Bobbie, sentimo-nos, em muitas ocasioes, tentados
a proceder a analises que, como as suas, nao culminam ne-
cessariamenteem smteses, mas elucidam distin^oes capa-
zes de aclarar os problemas. Essa infiuSncia que a leitura
de Norbeno Bobbie exerce sobre o seu leltor e marcante,
haja vista a pleiade de juristas contemporaneos que, na Ualia
e em tantos outros pai'ses, seu pensamento produziu. E mui-
tos deles absorvendo, ̂ vezes, menos do conteudo e muito
mais do estilo.
Um estilo, contudo, dificil de ser executado, pois re-
quer finura de espirito, rigor de linguagem, discipiina de
pensamento e um formidavel acumulo de informagoes. E,
neste conjunto, Norberto Bobbie e, certamente, insuperavel.
Seus escritos, por isso, sao todos, individualmente, pe-
(;as que se encaixam sob a forma de reflexoes anali'ticas que
o nosso autor executa com maestria, conduzindo o leitor,
muitas vezes, nao a solugoes, mas a perpiexidades.
E o case de seu brilhante ensaio sobre as antlnomias
e que comega perguntando sobre qua! a diferen^a entre
o jurista e um chofer de caminhao quando respondem a
pergunta; "Entre duas normas opostas, qual prevalece?",
para terminar dizendo, em que pesem as sutis distingoes
do jurista, que ambos nao saem da resposta simples e di-
reta; "A mais justa!".
Na verdadc, Norberto Bobbio, mesmo no Smbito de
sua especialidade, jamais escreveu um tratado. Sequer for-
mulou, de forma acabada e abrangente, uma Teoria Geral
do Direito. A maior parte de seus livros sao coletaneas de
artigos ou mesmo compilagoes de curses. No entanto,
como aponta Alfonso Ruiz {Contribucidn a la teoria del
derecbo), justamente por isso seu pensamento guarda, a um
so tempo, a finura da analise, o rigor terminoldgico e uma
certa liberdade dos sistemas cerrados.
APRESENTAgAO 9
A maior parte de seus escritos sobre a problematica
da ciencificidade do Direico e sobre as mais importantes
questbes da Teoria Geral do Direito tern, certamente, um
cunho positivista, nos quadros da Escola Anali'tica Italiana
que e!e ajudou a construir. Contudo, como a estrutura
de seus^cextos e mais problematica e ate mais rapsbdlca^
do que sistematica, os resultados obtidos sao sempre cri-
ticos', no sentido de levar a reflexao adiante e nao de ter-
mina-la.
Nao podendo ocupar-me, nesta exposi?ao, do seu pen-
samento jurfdico na sua totalidade, gostaria, entao, de
apresenta-lo atraves de um tema relevante. Reporto-me, por
isso, a suas investigagoes sobre a sanfao, que, a meu ver,
podem servir como um dos pontos de orientagao para o
interprete, no sentido de organizar, didaticamente, o pen-
samento jun'dico de Norberto Bobbio. Nao que a sanfao
seja uma especie de pedra angular, mas, se a tomamos co
mo um probiema nuclear, a ordem das questbes se estru
tura e torna-se possi'vel concatenar as argumentagbes.
Em sua Teoria della norma giuridica, Norberto Bob
bio, ao enfrentar a questao da definigao do carater juridi-
co da norma, apbs enumerardiversos argumentos, assina-
la, no § 39, o que denomina de "um novo criterio: a res-
posta a violagao".
O criterio e de clara enunciagao: se uma norma pres-
creve o que deve set e se o que deve ser nao corresponde
ao que e necessariamente, quando a agao real nao corres
ponde a prevista, a norma e violada. Essa violagao, que pode
ser uma inobservancia ou uma inexecugao, exige uma res-
posta. Assim, a sangao e definida como um expediente atra
ves do qual se busca, num sistema normativo, salvaguar-
dar a lei da erosao das agbes contrarias. Ou, mais breve-
mente, a sangao e a resposta a violagao da norma, sendo
que a sangao "juridica" e a resposta externa e insti-
tucionaiizada.
10 TERCIO SAMPAIO FERRAZ JR.
E obvio que a sangao, nesta visao, aa referir-se a vio-
lagao da norma, nao diz respeito a sua validade, mas a sua
eficacia, pois e iim expediente, diz Bobbio, para conseguir
que as normas sejam menos vloladas ou que as conseqii^n-
cias da violagao sejam menos graves,
Ora, colocando-se a questao da sangao a m'vel da efi
cacia, surge, inevitavelmente, perante a reflexao, o proble-
ma da fungao da san<;ao cominada pela norma, e, em con-
seqiiSncia, a questao complexa da rela^ao entre ser e dever-
ser, mais particularmente, entre for(;a e direito. Preocupa-
do em aprofundar a questao, Bobbio procura um modo
que Ihe permita evitar a dicotomia rigida entre ser e dever-
ser, admitindo que o criterio da sangao externa e institu-
cionalizada esta referido nao a cada norma em particular,
mas ao ordenamento como um todo. Com isso, rechaga
ele a ideia kelseniana de que o Direito seja um mero regu-
lador da forga, que seria seu conteudo, admitindo-a como
um meio. Assumindo uma posigao analitica, Bobbio acei-
ta que, no escalonamento normative, a forga aparece ora
como "san<;ao" de um direito "ja estabelecido" e que "deve
ser aplicado", ora como "produgao" de "um direito a ser
criado". Tudo depende do ponto em que nos colocamos
na piramide juridica.
Numa certa fase de seu pensamento, a teoria de Bob
bio sobre a sanijao nos permite entender os limites em que
se delineia o seu projeto de uma Ciencia Juridica. Escolhe-
mos, de proposito, a nogao de sangao, porque ela e cen
tral para uma posi^ao positivista que a principio assumiu
alguns dos mais importantes pressupostos da teoria pura
do Direito de Kelsen. Com efeito, a reflexao sobre a san-
?ao nos mostra que, se de um lado e possivel manter, com
certa clareza, a teoria juridica dentro das fronteiras do nor
mative e das rela^oes de validade, uma vez que as normas
nao valem por causa da san<;ao, de outro lado, a no?ao de
sangao nos obriga a explicar o fenbmeno da forga e, em
APRESENTAgAO II
conseqiiencia, a enfrentar a questao da dimensao fatica den-
cro da teoria juridica.
Num texto escrito tempos depois, Norberto Bobbie,
comentando, alias, a posigao de Kelsen sobre a teoria da
Cifincia do Direito e referindo-se ao empenho daqueie au-
tor. ao constituir as linhas mestras de sua Teoria Pura, em
evitar que o pensamento juridico enveredasse pelas sen-
das da ideoiogia e da especulagao sobre os "fins" do Di
reito, observa, no entanto, com acuidade, que uma das no-
qdes que Kelsen nao consegue conceituar sem evitar uma
"definigao funcional" e justamente a de sangao, per sinal
basica para a Teoria Pura, pois "as sanqoes sao postas pe-
lo ordenamento juridico 'para obter' um dado comporta-
mento humane que o legislador considera desejave!" {Dalla
strutiura alia funzione, p. 71).
Em vista dessa observagao, Norberto Bobbie se»acha
em condigoes de aprofundar nao apenas o conceitd de san-
gao e de seu papel no Direito, nao apenas de examinar com
maior campo de visao a prdpria dimensao fatica, mas tam-
bem de apontar o destino da Ci^ncia jun'dica neste final
de seculo. E nisso Norberto Bobbie foi e continua sendo
um mestrc.
Com efeiio, se desde Kelsen e, antes dele, com Jhe-
ring, a teoria jun'dica sempre encarou a sanqao particular-
mente como uma forma repressiva, isso nao escondia a exis-
tencia das chamadas sanqoes positivas, que nao eram pu-
niqdes, mas recompensas. Isso sempre foi admitido na li-
teratura juridica e filosofica, mas, para o Direito, a relevancia
das sanqoes negativas obscurecia a importancia das outras.
Na verdade, como iria observar Bobbio em seus ulti-
mos escritos sobre o problema, a distinqao entre sangoes
negativas e positivas e o relative desconhecimento, para
0 Direito, das positivas, reproduzia, no fundo, uma con-
cepgao de sociedade tipica do seculo XIX. Com efeito, a
importancia conferida, no mundo juridico, a sangao nega-
12 TERCIO SAMPAIO FERRA2 JR.
tiva reproduzia (caso de Jhering) a distingao hegeliana en-
tre sociedade civil e Estado e a cisao entre a esfera de inte-
resses econSmicos e a de interesses poh'ticos, entre a con
di^Jo de burguSs e a de cidadao, ti'pica da sociedade in
dustrial do seculo passado. Em princi'pio, nessa concep-
(jao, o Estado assumia a fun^ao de custodiador da ordem
publica e o Direiio se resumia, pariicularmente, em nor-
mas negativas (de proibigao), com prevaiSncia 6bvia das
sangoes negativas,
Modernamente, no entanto, a prdpria transformagao
e o aumento de complexidade industrial vieram colocan-
do as coisas em outro rumo. Nao resta duvida de que, ho-
je, o Estado cresceu para alem de sua fun^ao protetora-
repressora, aparecendo ate muito mais como produtor de
servi<;os de consume social, regulamentador da econo-
mia e produtor de mercadorias. Com isso, foi sendo mon-
tado um complexo sistema normative que Ihe permi-
te, de um lado, organizar sua propria maquina de servigos,
de assistfincia e de produgao de mercadorias, e, de outro,
montar um imenso sistema de estimulos e subsidies. Ou
seja, o Estado, hoje, substitui, ainda que parcialmence, por
exemplo, o prdprio mercado na coordenagao da economia,
tornando-se o centre da distribuigao da renda, ao deter-
minar pregos, ao taxar, ao subsidiar.
Ora, nesse contexto, uma teoria juridica da sangao,
limitada ao papel das sangoes negativas e, pois, ignorando
o papel assistencial, regulador e empresarial do Estado, es-
taria destinada a fechar-se num limbo, entendendo mal,
porque entendendo limitadamente, a relagao entre o Di-
reito, o Estado e a sociedade.
Neste sentido, Bobbio promove nos seus ultimos es-
critos uma inflexao nova na concepgao formalista tradicio-
nal do Direito, redimensionando o que chama, entao, de
"fungao promocional" do ordenamento juridico, na qual
o aumento vertiginoso das chamadas normas de organiza-
APRESENTACAO 13
gao (aquelas com as quais o Estado regula sua prdpria ati-
vidade assistencial, fiscalizadora e produtora) confere ̂
"san^oes positivas" um outre relevo.
Como era inevitavel, a articuIa<;ao analltica em que e
tao habil Norberto Bobbio o conduz tambem, dentro des-
sa tematica, a importantes distingoes. Buscando a fungao
promocional do ordenamento posto a servigo do Estado
e da sociedade, ele come^a a falar em tecnicas de "enco-
rajamento" e "desencorajamento" no use das normas. Num
ordenamento marcadamente "repressive", em que se en-
cara o Estado particularmente em sua fun<pao de custodiar
a ordem publica, diz Bobbio, sao adotadas medidas dire-
cas, com o fito de obter a conformidade com as prescri-
goes normativas, mas tambem medidas "indiretas", no sen-
tido de dificultar comportamentos nao desejaveis. Ou se-
ja, com acuidade, Bobbio percebe que, mesmo num or
denamento basicamente repressive, tambem ha lugar pa
ra medidas nao necessariamente punitivas. Aqui se colo-
ca, no entanto, o passo seguinte de sua analise. Quando
o ordenamento de fungao repressiva e protetora procura
"provocar" certas condutas, atua sempre de uma forma
negativa: prevalece a tecnica do desencorajamento. Ja o
ordenamento promocional vai muito adiante, uma vez que,
neste caso, a tecnica tipica e "positiva", isto e, o encoraja-
mento de certas condutas que, para se produzirem, neces-
sitam das sangoes positivas tambem ditas premiais. No pri-
meiro caso, na visao tipica do seculo XIX, o ordenamento
sempre procuratornar certas a^des mais "penosas", tor-
nando outras vantajosas a contrario sensu . No segundo
caso, nos ordenamentos contemporaneos, observa-se.'po-
rem, o expediente da "facilitaijao" (per exemplo, uma sub-
vengao) e ate do premio (per exemplo, uma isen^ao fis
cal) para promover as agoes desejadas.
Note-se que, nesias alturas, a teoria da Ciencia do Di-
reito, necessariamente, deu um passo adiante, pois, em vez
H TERCIO SAMPAIO FERRAZ JR.
de limitar-se ao estudo e analise da sangao negativa e dos
conceitos daf decorrentes (obriga^ao, delito), e forgadaa
uma nova ordem de consideragoes. Em primeiro lugar, a
sangao nao sera mais apenas "ameaga", mas tambem
"promessa",
Em segundo iugar, sendo tambem promessa (de faci-
litar ou de premiar), inverte-se ate mesmo a relagao direi-
to/dever em novas configuragdes extremamente importan-
tes para a teoria juridica, uma vez que, se a sangao e "amea-
ga", a rela(;ao direito/dever vai do sancionador (direito)para
o sancionado (dever), mas, se e promessa, do sancionado
(direito) para o sancionador (dever de cumprir a promessa).
Os cextos de Norberto Bobbio a proposito dessas no
vas configura(;oes sao ainda ensaios que, ao contrario dos
anteriores sobre a sangao negativa, nao tern como pressu-
por uma ionga tradigao que, com vantagem, situa e escla-
rece os deralhes. Ha, pois, questdes abertas^ que nos pro-
pdem algumas dificuidades que so reflexdes posteriores po-
derao esclarecer, Assim, por exempio, Bobbio observa que^
no uso de san^des positivas, como se trara de comporia-
mentos "permitidos", o agente e "livre" para fazer, isto
€, e livre para valer-se de sua prdpria liberdade. A meu ver
isso cria a impressao de que, no uso das sangdes positivas,
o agente sancionador restringe sua prdpria forga, uma vez
que nao amea?a, mas encoraja;' "embora", ao que parece,
aqui se colocasse a importante questao de se saber se, no
caso das tecnicas de encorajamento, "a autonomia da von-
tade nao estaria sendo sutilmente escamoteada", implicando
0 reconhecimento de que o Estado com fungao promo-
cional desenvolve formas de poder ainda mais amplas que
o Estado protetor. Isto e, ao prometer, via subsidios, in
centives e isen^des, ele substitui, como disse, o merca-
do e a sociedade no modo de "controlar" (no sentido am
ple da paiavra) o comportamento.
A Norberto Bobbio, na verdade, isso nao passa des-
APRESENTAgAO 15
percebido, mesmo porque, caracterizando o Direito como
instrumento de controle social em termos de controle coa-
tivo, nos moldes tradicionais, observa, contudo, o apare-
cimento do controle persuasivo e premonitivo. Se no prl-
meiro (coativo) a enfase esta na repressao e na prevengao
de condutas, no segundo (persuasivo) a enfase esta no con-
dicionamento da agao desejada e no terceiro (premoniti
vo) ace mesmo no processo de evicar que conflitos pos-
sam sequer ocorrer, com o que, a meu ver, a questao da
liberdade se pde de forma radical, pois, neste ultimo caso,
o Estado ou a sociedade se antepoem ao uso da liberdade,
Na verdade, em escritos posteriores, Bobbio vai in
clusive observar que ao deslocamento produzido na teo-
ria da sangao pelo advento do Estado promocional devem
ser acrescentados o aumento e o aperfeigoamento dos
meios de socializagao e de condicionamentos coletivos nas
sociedades tecnocraticas, bem como o aumento de impor-
tancia das medidas preventivas sobre as repressivas e o da
distribuigao de recursos por parte do Estado. A conscien-
cia dessa nova situagao faz com que Bobbio reflita, com
sua costumeira acuidade, sobre o destine da Cienciajuri-
dica na prdpria sociedade em transformagao.
Sem aprofundar a questao nesta exposigao, desejaria,
no entanto, apontar algumas consequ6ncias dessas argu-
tas observagoes de Bobbio para a propria CiSncia Juridi-
ca. Embora o cientista do Direito nao seja um homem alheio
a sociedade em que vive, a percepgao da nova situagao nos
leva a considerar o seguinte:
a) na tradigao do Estado protetor e represser, o ju-
rista, encarando o Direito como um conjuntode regras da-
das com fungao sancionadora e negativ,a, lende a assumir
0 papel de conservador daquelas regras que ele, entao, "sis-
tematiza e interpreta";
b) ja na nova situagao do Estado promocional, o ju-
rista, encarando o Direito "tambem" como um conjunto
16 TERCIO SAMPAIO FERRAZ JR.
de regras, mas em vista de uma fun?ao implementadora
de comportamentos, tende a assumir um papel modifica-
dor e criador.
No primeiro case, prevalece, entao, aquilo que Bob-
bio chama de uma teoria "estrutural" do Direlto, em opo-
sigao a uma teoria "funcionalisca".
Nao se trata de duas teorias opostas, mas de enfoques
distintos, em que prevalece ora um, era outre dos aspec-
tos. No enfoque estrutural preponderam, assim, a interpre-
tafao do sentido das normas, as questoes formais da eli-
mina(;ao de antinomias, da integra^ao de lacunas, numa pa-
lavra, de sistematizagao global dos ordenamentos confor-
me a melhor tradifao dogmatica. No enfoque funcionalis-
ta. por sua vez, a problematica se volta muito mais para
a analise de situa^oes, analise e confronto de avalia?6es,
escolha de avaliagao e formula^ao de regras. Se nos fosse
permitido traduzir essas duas atitudes, diriamos que, no
enfoque estrutural, a relagao meio/fim no estudo do Di-
reito fica limitada a um pressuposto global e abstrato, que
quase nao interfere na analise do tipo, por exemplo; "O
Direito e uma ordem coativa que visa a obten<;ao da segu-
ranga coletiva", e isso basta, Ja no enfoque funcionalista,
a rela^ao meio/fim ganha outros relevos, passa mesmo a
constituir o cerne da analise, exigindo, do jurista, novas
modalizafoes do fendmeno normative.
O reconhecimento da importancla crescente desse en
foque funcionalista, contudo, nao vem sem dificuldades
teoricas relevantes. Para o filosofo da Ciencia Juridica que
c Norberto Bobbio, reaparece, agora de uma forma ainda
mais contundente, a velha questao da identidade episte-
moldgica da Ciencia Juridica, agora necessariamente vol-
tada para indagatjoes sociologicas, economicas e poiiticas.
Alem disso, sua proposta funcionalista abre espa^o para
indaga?6es de alta relevancia e que constituem, a meu ver,
problemas tedricos muito significativos. Assim, porexem-
APRESENTAgAO 17
plo, se num enfoque estrutural, que 6 o seu em escritos
mais amigos, pensar o Direito de forma racional e cienti-
fica exige pressupostos incontornaveis como a noijao de um
poder soberano, primeiro e superior, e exige, portanto, toda
a reflexao sobre a norma fundamental, pode-se perguntar,
a meu ver, se num enfoque funcionallsta a no^ao de sobe-
rania nao passa a segundo piano e a propria hipdtese da
norma fundamental nao perde relevo, abrindo espa^o pa
ra um pensar nao-sistematlco do Direito ou, pelo menos,
para um pensar sistematico com estruturas diversificadas
em que o escalonamento e uma das eventuais possibilida-
des. Pense-se, por exemplo, na sociedade plurifinalista de
nossos dias e na efetiva dispersao do poder soberano en-
tre multiplas fontes, como o poder do Estado, das multi-
nacionais, dos grupos de pressao, etc.
Mais do que tudo isso, porem, volta a questao, hoje
tao aguda no Brasil, do ensino do Direito, da prbpria for-
magao do jurista e, sobretudo, de seu papel social.
Um grande jurista italiano, que lecionou no Brasil du
rance algum tempo — Tulio Ascarelli —, disse uma vez que,
"na atual crise de valores, o mundo pede aos juristas ideias
novas, mais que sutis interpreta(;6es". Nao resta duvida de
que vivemos hoje uma situagao de crise, Uma crise, no en-
tanto, nos obriga a voltar as questoes mesmas e exige res-
postas, novas ou velhas, mas, de qualquer modo, julgamen-
tos diretos, Uma crise so se torna um desastre quando res-
pondemos a ela com juizos pre-formados, isto e, com pre-
conceitos. Uma atitude dessas nao apenas agu^a a crise, co
mo nos priva da experiencia da realidade e da oportuni-
dade que ela proporciona a reflexao {H. Arendt).
Norberto Bobbio, o jurista que aqui apresentamos,
e, antes de tudo, um homem que soube, sabee continua-
ra sabendo enfrentar uma crise sem preconceitos. No am-
bito da Cienciajuridica, mais do que muitos, Norberto Bob
bio soube entender que se, nos primeiros tres quartos deste
rs TERCIO SAMPAIO FERRA2 JR.
s^culo, a grande preocupa^ao foi eliminar jui'zos de valor
no Intento de Construir uma teorla cientifica do Dlreito n3o
sujeiia a implica?6es ideoldgicas, agora, em compensa^ao,
recupera-se em sua esfera de interesses a experiSncia so
cial e o juizo critico sobre si mesma, oferecendo i investi-
ga?ao jun'dica novas dimensoes.
Quando a sociedade atravessa uma fase de profundas
mudan<;as, admitiu Norberto Bobbio mais recentemente,
a CiSncia do Direito precisa estabelecer novos e chegados
contatos com as CiSncias Sociais, superando-se a forma-
(jao juridica departamentalizada, com sua organizatao, so
bre uma base corporativo-disciplinar, de compartimentos
estanques.
Pois bem: essa sensibilidade para a mudan^a, sem per-
der de vista as exigSncias da racionalidade, 6 uma das mais
importantes caracteristicas de Norberto Bobbio e a li<pao
mais profunda que podemos extrair de seu pensamento.
Tercio Sampaio Ferraz Junior
Textos citados:
Norberto Bobbio. Teoria delta norma giuridica, Turim, 1958.
. Datla struttura alia funzlone, Milio, 1977.
. ContHbucidn a la teoria del derecbo, edlcSo a cargo dc Alfonso Ruiz
Miguel, Valenfa, 1980.
CAPfTULO 1 -
■
Da norma jundica
ao ordenamento jundico
1. Novidade do problema do ordenamento
Esta obra se liga diretamente i anterior, intitulada Teo-
ria da norma juridica. Uma e outra formam em conjunto
uma completa Teoria do Direito, principalmente sob o as-
pecto formal. No primeiro livro estudamos a norma jurf-
dica, isoladamente considerada; neste, estudaremos aquele
conjunto ou complexo de normas que constituem o orde
namento jundico.
A exiggncia da nova pesquisa nasce do fato de que,
na realidade, as normas jun'dicas nunca existem isolada
mente, mas sempre em um contexto de normas com rela-
goes particulares entre si (e estas relagoes serao em grande
parte objeto de nossa anSlise). Esse contexto de normas
costumaser chamado de "ordenamento". E sera bom ob-
servarmos, desde ja, que a palavra "direito". entre seus va-
rios sentidos, tern tambem o de "ordenamento jun'dico",
por exemplo, nas expressoes "Direito romano", "Direito
candnico", "Direito italiano" ["Direito brasileiro"], etc.
Ainda que seja dbvia a constata<;ao de que as regras
jun'dicas constituem sempre uma totalidade, e que a pala
vra "direito" seja utilizada indiferentemente tanto para in-
dicar uma norma juridica particular como um determina-
do complexo de normas juridicas, ainda assim o estudo
aprofundado do ordenamento jun'dico e relativamente re-
cente, muito mais recente que o das normas particulares,
de resto bem antigo, Enquanto, ppr um lado, existem mui-
tos estudos especiais sobre a natureza da norma juridica,
20 NORBERTO BOBBIO
nao ha, ate hoje, se nao nos enganamos, nenhum tratado
completo e orgSnico sobre todos os problemas que a exis-
tfincia de um ordenamento jurldico levanta. Em outros ter-
mos, podemos dizer que os problemas gerals do Direito
foram tradicionalmente mais estudados do ponto de vista
da norma juridica, considerada como um todo que se bas-
ta a si mesmo, que do ponto de vista da norma jurfdica
considerada como parte de um todo mais vasto que a com-
preende. Ao dizer isto, queremos tambem chamar a aten-
?ao para a dificuldade da sistematizagao de uma mat^ria
que nao tern um passado de segura tradigao, e ainda para
0 carater experimental desta exposigao,
Uma rapida visao da historia do pensamento jun'dico
nos ultimos seculos nos da uma confirma^ao do que atd
aqui afirmamos: do famoso tratado De Legibus ac Deo Le-
gislatore, de Francisco Suarez (l6l2), aos tratados mais re-
centes de Thon e de Binding, de que falamos no livro pre-
cedente, fica claro desde os titulos que o objeto principal
da an^lise e o verdadeiro elemento primeiro da realidade
juridica e a norma em si. Com isso nao se quer dizer que
faltasse aquelas obras a anaiise de alguns problemas carac-
teristicos de uma teorla do ordenamento juridico, mas tais
problemas vinham misturados a outros e nao eram consi-
derados merecedores de uma anaiise separada e particu
lar, Repetimos que a norma juridica era a unica perspecti-
va atraves da qual o Direito era estudado, e que o ordena
mento jun'dico era no maximo um conjunto de normas,
mas nao um objeto autdnomo de estudo, com seus pro
blemas particulares e dlversos. Para nos exprimirmos com
uma metafora, considerava-se a arvore, mas nao a floresta.
Creio que os primeiros a chamar a atengao sobre a rea
lidade do ordenamento jurldico foram os tedricos da ins-
tituicao, de que nos ocupamos no livro precedente. Nao
foi por acaso que o livro merecidamente famoso de Santi
Romano foi intitulado 0 ordenamento juridico (1917) O
DA NORMAjURfDICA AO ORDENAMHNTOJURiDlCO ^ ' 21
que nos criiicamos na teoria da inscituiqao foi a forma em
que foi apresentada, em oposiqao a teoria normaciva, isto
e, como teoria destinada a suplantar a teoria precedente,
quando, segundo ja observamos. ela representa sua inte-
gragao e, portanto, sua continuagao. Consideramos opor-
tuno reproduzir aqui as palavras com que concluimos, no
livro anterior, o exame da teoria da instituiqao: "A nosso
ver, a teoria da institui^ao teve o grande merito de p6r em
relevo o fato de que se pode falar de Direito somente on-
de haja um complexo de normas formando um ordenamen-
to, e que, portanto,^^Direilb naoHnorma, masfcm.eoo^,.
jjunc^gq^MUlo de nortnasf sendo evldente que uma nor-
ma juridica nao se encontra jamais s6, mas esta ligada a ou-
tras normas com as quais forma um sistema normativo".
O isolamento dos problemas do ordenamento juridi-
co dos da norma juridica e o tratamento autoncmo dos pri-
meiros como parte de uma teoria geral do Direito foram
obra sobretudo de Hans Kelsen. Entre os meritos de Kel-
sen, e peios quais e justo considera-Io um dos mais autori-
zados juristas de nossa epoca, esta, certamente, o de ter
tido plena conscifincia da importSncia de problemas cone-
xos com a exist^ncia do ordenamento juridico, e de ter
dedicado a eles particular atengao. Tomando-se, por exem-
plo, sua obra mais completa e concludente, a Teoria ge
ral do Direito e do Estado, veremos que a analise da teoria
do Direito (aqui prescindimos da teoria do Estado) esta di-
vidida em duas panes, chamadas respectivamente Nomos-
tdtica e Nomodindmica.
A primeira considera os problemas relativos ̂ norma
juridica; a segunda, os relativos ao ordenamento juridico.
Reconheqo que a expressao "nomodinSmica" nao 6 mui-
to feliz, mas, deixando de lado a questao dos termos, o que
importa e que, talvez pela primeira vez, no sistema de Kel
sen, a teoria do ordenamento juridico constitui uma das
duas panes de uma completa teoria do Direito. Nao preci-
22 NORBERTO BOBBIO
SO acrescentar que meu livro esta ligado diretamente i pro-
blematica de Kelsen, da qual constitui era um comentl-
rio, ora um desenvolvimento.
2. Ordenamento juridico e defini<ido do Direito
Dissemos qu'e a tecria do ordenamento juridico cons
titui uma integra?ao da teoria da norma jurldica. Entretan-
to, devepos precisar de antemao que fomos levados ne-
cessariamente a essa irkegragal) pelos ifcsultados a que che-
gamos na busca de uma defirf^ao do Direito, realizada na I
obra anterior. Para resumir brevemente tais resultados, di-
gamos que nao foi possivel dar uma definigao do Direito
do ponto de vista da norma jurldica, considerada isolada-
mente, mas tivemos de alargar nosso horizonte para a con-
sideragao do modo pelo qual uma decerminada norma se
torna eficaz a partir de uma complexa organizagao que de-
termina a natureza e a entidade das san^oes, as pessoas que
devam exercS-las e a sua execugao. Essa organizagao com
plexa e o produto de um ordenamento juridico. Significa,
portanto, que uma definicao satisfatdria do Direito s6 6 pos-
slvel se nos colocarmos do ponto de vista do ordenamen
to. juridico.
Repensemos por ummomento as varias tentativas fei-
tas para definir o Direito atraves deste ou daquele elemen-
to da norma jurldica. Todas elas resultaram em serias difi-
culdades- Os criterios adotados, a cada vez, para encon-
trar uma definigao de Direito tomando como base a nor
ma jurldica ou foram tais que deles nao foi possivel obter
quaiquer elemento caracterlstico dessa norma com respeito
a outras categorias de norma {como as normas morais ou
sociais), conduzindo, portanto, a um clrculo vicioso, ou
entao reconduziam aquele fenbmeno mais complexo da
organizagao de um sistema de regras de conduta, no qual
DA NORMA JURlDICA AO ORDENAMENTO JURfOiCO 23
consiste justamente o ordenamento juridico, abrindo, as-
sim, para uma estrada que tinha como saida o reconheci-
mento da relev^ncia do ordenamento para a compreensao
do fendmeno juridico.
No conjunto das tentativas realizadas para caracteri-
zar 0 Direito atraves de algum elemento da norma jurfdi-
ca, considerariamos sobretudo quatro crit^rios; 1. criterio
formal; 2. criterio material; 3. criterio do sujeito que poe
a norma; 4. criterio do sujeito ao qual a norma se destina.
1) Por criterio formal entendemos aquele pelo qual
se acredita poder ser definido o que e o Direito atrav6s de
qualquer elemento estrutural das normas que se costuma
chamar de juridicas. Vimos que, com respeito a estrutura,
as normas podem distinguir-se em:
a) positivas ou negativas;
b) categdricas ou hipoteticas;
c) gerais (abstratas) ou individuais (concreias).
Pois bem, a primeira e a terceira distin^oes nao ofe-
recem nenhum elemento caracterizador do Direito porque
em qualquer sistema normativo encontramos tanto normas
positivas quanto negativas, tanto normas gerais (abstratas)
quanto individuais (concretas), Quanto i segunda distin-
fao, admitimos, lambdm, que num sistema normativo exis-
tem apenas normas hipoteticas, as quais podem assumir
estas duas formas:
a) se queres A, deves B, segundo a teoria da norma
tecnica (Rava) ou das regras finals (Brunetti);
b) sed A,deveserB,onde,segundoalguns, A6ofato
juridico e B a consequSncia juridica (teoria do Direito co
mo valorizaijao ou juizo de qualifica?ao), e segundo ou-
tros A e o ilicito e B 6 a san?ao (teoria da norma como jui
zo hipotetico de Kelsen).
24 NORBERTO BOBBIO
Em nenhuma dessas duas formula^oes a norma jurf-
dica assume uma forma caracterizante: a primeira formu-
lagao e propria de qualquer norma tecnica ("se voct quer
comprar selos, deve ir ao correio"); a segunda formulagao
e caracterfstica de qualquer norma condicionada ("se cho-
ve, voce deve pegar o guarda-chuva"),
2) For cricerio material entendemos aquele criterio
que se poderia extrair do conteudo das normas jun'dicas,
isto e, das a0es reguladas. Esse criterio e manifestamente
inconcludente. Objeto de regulamenta?ao por parte das
normas jun'dicas sao todas as a(;6espossweis do homem,
e entendemos per "a<;oes possi'veis" aquelas que nao sao
nem necessarias nem impossiveis, Segue-se, obviamente,
que uma norma que comandasse uma agao necessaria ou
proibisse uma a(;ao impossi'vei seria inuHi, de outro lado,
uma norma que proibisse uma agao necessaria ou ordenasse
uma agao impossi'vei seria inexequwel. Mas, uma vez ex-
cluidas as aijoes necessarias, isto d, aquelas que o homem
executa por necessidade natural e, por consequSncia, in-
dependentemente de sua vontade, e as agoes impossiveis,
isto e, aquelas a?6es que o homem nao esta apto a cum-
prir nao obstante todo o esfonjo da sua vontade, o campo
das a<;6es possiveis e vastfssimo, e isso e comum tanto as
regras juridicas como a todas as outras regras de conduta.
Foram feitas tentativas, e verdade, de separar, no vasto cam
po das agbes possiveis, um campo de agoes reservadas ao
Direito. As duas principais tentativas se valem ora de uma
ora de outra destas duas dlstinfoes:
a) a<;6es internas e aijoes externas;
b) afoes subfetivas e agoes intersubjeiivas.
A parte o fato de que as categorias das agoes externas
e das afoes intersubjeiivas sao extremamente genedcas, e
bastante claro que ambas podem servir para distinguir o
DA NORMA JURIDICA AO ORDENAMENTO JURfOICO 25
Direito da Moral, mas nao das regras do costume que se
referem sempre a a?6es externas e muitas vezes a afoes
intersubjetivas.
3) Falando do criterio do sujeito que poe a norma.
queremos nos referir a teoria que considera jurldicas
as normas postas pelo poder soberano, entendendo-se por
"poder soberano" aquele acima do qual nao existe, num
determinado grupo social, nenhum outro, e que, como tal,
detem o monop61io da forga.
Diante dessa teoria nao podemos mais dizer, como no
caso das duas precedentes, que ela e inconcludente. Que
0 Direito scja aquele conjunto de regras que se fazem va-
ler ainda que pela forga, isto e, urn ordenamento normati-
vo de eficacia reforgada, e a conclusao a que julgamos ter
chegado no livro precedente. Ora, aquele que esta em con-
digoes de exercer a forga para tornar eficazes as normas
6 justamence o poder soberano que detem o monopdlio
do exercicio da forga, Portanio, a teoria do Direito como
regra coativa e a teoria do Direito como emanagao do po
der soberano sao convergentes.
O que essa teoria da soberania convida a observar, an
tes de tudo, e que, definido o Direito atraves do poder so
berano, ja se realizou o salto da norma isolada para o or
denamento no seu conjunto. Com a expressao muito ge-
nerica "poder soberano" refere-se aquele conjunto de 6r-
gaos atraves dos quais um ordenamento normativo 6 pos-
10, conservado e se faz aplicar. E quais sao esses drgaos
e o proprio ordenamento que o estabelece. Se e verdade
que um ordenamento jun'dico e definido atraves da sobe
rania, e tambem verdade que a soberania em uma deter-
minada sociedade se define atraves do ordenamento juri-
dico. Poder soberano e ordenamento juridico sao dois con-
ceitos que se referem um ao outro. E, portanto, quando
o Direito e definido atraves do conceito de soberania, o
26 NORBERTO BOBBIO
que vem em primeiro piano nao 6 a norma isolada, mas
o ordenamento; dizer que norma juridica € a emanada do
poder soberano eguivale a-dizer que norma jun'dica 6 aquela
que faz parte de urn determinado ordenamento. A sobera-
nia caracterlza nao uma norma, mas urn ordenamento; ca-
racteriza a norma apenas enquanto ela e considerada co-
mo pane do ordenamento.
4) O criterio do sujeito ao qual a norma € destinada
pode apresentar duas variantes, conforme se considere co-
mo destinatario o sudito ou o juiz. Vejamos isso separa-
damente.
A afirma(;ao pura e simples de que a norma juridica
€ a dirigida aos suditos e inconcludente por sua generali-
dade. Normalmente, ela e especificada com a determina-
?ao da atitude atravds da qual os suditos a recebem: e diz-
se que juridica 6 a norma seguida da convic<;ao ou cren?a
na sua obrigatoriedade (opinio iuris ac necessitatis), co-
mo ]i foi indicado no livro precedente.
Essa opinio iuris ac necessitatis e um ente antes de
mais nada misterioso. Que significa? O unico modo de Ihe
dar um significado t este; observar uma norma com a con-
viccao da sua obrigatoriedade, quer dizer, com a convic-
gao de que, se a violSssemos, iriamos ao encontro da in-
terven^ao do poder judiciario e, muito provavelmente, da
aplicagao de uma sanipao. O sentimento da obrigatorieda
de e em ultima instancia o sentimento de que aquela nor
ma singular faz parte de um organism© mais complexo e
que da percindncia a esse organismo € que vem seu cara-
ter especifico. Mesmo neste caso, portanto, a no<;ao a qual
nos referimos para definir a juridicidade de uma norma en-
contra sua explicagao natural quando procuramos ver, atra-
ves da norma, o ordenamento que a compreende.
A segunda variante do criterio do destinatario e aquela
pela qual as normas juri'dicas sao normas destinadas ao juiz.
DA NORMA JURfDlCA AO ORDENAMENTO JURfOlCO 21
E claro que uma definigao desse gSnero somente sig-
nifica alguma coisa se se define a nofao de juiz, Que e o
juiz? Que se entende por juiz? Mas uma defini?ao de juiz
nao pode ser obtida senao ampliando-se aconsidera?ao a
todo o ordenamento. Dir-se-a que o juiz e aquele ao qual
uma norma do ordenamento atribui o poder e o dever de
estabelecer quern tern razao e quem nao tem, e de tornar
assim possivel a execu^ao de uma san^ao. Mas, desse mo-
do. uma vez mais somos reconduzidos da norma isolada
ao sistema normativo. E percebemos, alem disso, que nao
apenas procuramos tornar conclusiva uma definifao do Di-
reito referida a norma, mas somos constrangidos a deixar
a norma e abragar o ordenamento.
3- A nossa definigdo de Direito
Voltemos, agora, a definigao de Direito a que chega-
mos no livro precedente. Ali determinamos a norma juri-
dica atraves da sangao, e a sangao juridica atraves dos as-
pectos de exterioridade e de institucionalizagdo, donde
a definigao de norma juridica como aquela norma "cuja
execugao e garantida por uma sangao externa e
institucionalizada''.
Essa defmigao e uma confirmagao de tudo quanto su-
blinhamos nos dois primeiros paragrafos, isto e, a necessi-
dade em que se acha o teorico geral do Direito, em certo
ponto de sua pesquisa, de deixar a norma em particular
pelo ordenamento. Se sangao juridica e so a institucionali
zada, isso significa que, para que haja Direito, € necessa-
rio que haja, grande ou pequena, uma organizagao, isto e,
um compieto sistema normativo. Definir o Direito atraves
da nogao de sangao organizada significa procurar o cara-
ter distintivo do Direito nao em um elemento da norina
mas em um complex© organico de norma.s, Em outros ter-
28 NOKBRRTO BOBBIO
mos, poder-se-a dizer que a pesquisa por n6s realizada na
Teoria della norma giuridica e uma prova do caminho
obrigatdrio que o tedrico geral do Direito percorre da parte
ao todo, isto e, do fato de que, mesmo partindo da nor
ma, cliega-se, quando se quer emender o fendmeno do Di
reito, ao ordenamento.
Para maior clareza podemos tambem nos exprimir des-
ce modo; o que comumente chamamos de Direito e mais
uma caracleristica de certos ordenamentos normativos
que de certas normas. Se aceitarmos essa tese, o proble-
ma da definigao do Direito se torna um problema de defi-
nigao de um ordenamento normativo e, conseqiientemente,
diferencia<;ao entre estc tipo de ordenamento normativo
e um outro, nao o do definipo de um tipo de normas. Nesse
caso, para definir a norma juridica basiara dizer que a nor
ma juridica e aqucia que pertence a um ordenamento juri-
dico, transferindo manifestamente o problema da deter-
mina?ao do significado de "jun'dico" da norma para o
ordenamento.
Atraves dessa transferencia demonstra-se que a di-
ficuldade de encontrar uma resposia a pergunta: "O que
se entende por norma juridica?", se resolve ampliando-
se o campo de pesquisa, isto e, colocando uma nova
questao: "O que se entende por ordenamento jurldi-
co?" Se, como parece, so a esta segunda pergunta se
consegue dar uma resposta sensata, isso quer dizer que
o problema da definiqao do Direito encontra sua loca-
lizaijao apropriada na teoria do ordenamento jun'dico
e nao na teoria da norma, E um argumento a favor da
importancia, desde o inlcio anunciada, da teoria do or
denamento, que e o objeto deste novo livro. So em uma
teoria do ordenamento — este era o ponto a que im-
portava chegar — o fenomeno jurldico encontra sua
adequada explicaqao.
Id no livro anterior nos encontramos diante do fe-
DA NORMA JUKIDItA AO ORDENAMENTO JURIDICO 19
nomeno de normas sem sangao. Partindo da considc-
rafao da norma jun'dica tivemos que responder que,
se a sanfao faz parte do caracer essencial das normas
jun'dicas, as normas sem sangao nao sao normas jun'di-
cas. Acreditavamos, ao inves disso, dever responder que
"quando se fala de uma san^ao organizada como ele-
mento constitutivo do Direito nos referimos nao as nor
mas em particular, mas ao ordenamento normativo to
rnado em seu conjunto, razao pela qual dizer que a san-
?ao organizada distingue o ordenamento juridico de
qualquer outro tipo de ordenamento nao implica que
todas as normas daquele sistema sejam sancionadas, mas
somente que o sao em sua maioria". Nossa resposta
mostra em concrete que um problema mal resolvido
no piano da norma singular encontra soIu?ao mais sa-
tisfatoria no piano do ordenamento.
O mesmo se diga do problema da ejicdcia. Se con-
sideramos a cficacia como um carater da norma jun'di
ca, encontramo-nos, em cerco ponto, diante da neces-
sidade de negar o carater de norma juridica a normas
que pertencem a um sistema normativo dado (enquanto
legitimamente produzidas). Eias sao validas, mas nao
eficazes, porque jamais foram aplicadas {como e o ca-
so de muitas normas de nossa Constituiqao). A dificul-
dade se resolve, ainda nesse caso, deslocando-se a vi-
sao da norma singular para o ordenamento considera-
do em seu conjunto, e afirmando-se que a eficacia e um
carater constitutivo do Direito, mas so se com a expres-
sao "Direito" for entendido que estamos nos referin-
do nao a norma em particular, mas ao ordenamento.
O problema da validade e da eficacia, que gera dificul-
dades insuperaveis desde que se considere uma norma do
sistema (a qual pode ser valida sem ser eficaz), dlminui se
nos referirmos ao ordenamento juridico, no qua! a efica
cia e o proprio fundamento da validade.
30 NORBERTO BOBBIO
Um outro problema que no piano da norma jurt-
dica deu lugar a infinitas e estereis controversias e o
do Direito consuetudinario. Como e sabido, o princi
pal problema de uma teoria do costume e determinar
em que ponto uma norma consuetudinarla jurfdica dis-
tingue-se de uma norma consuetudinarla nao-juridica,
ou seja, em ouiras palavras, atraves de que process© uma
simples norma de costume torna-se uma norma juridi-
ca. Problema insoluvel, talvez porque mal posto. Se e
verdade, como procuramos mostrar ate aqui, que o que
comumente chamamos Direito e um fendmeno muito
complex© cujo ponto de referenda e um sistema nor-
mativo inteiro, e inutil procurar o element© distintivo
de um costume juridico a respeito da regra do costu
me na norma consuetudinaria em particular. Dever-se-
i responder, de preferSncia, que uma norma consue
tudinarla torna-se juridica quando vem a fazer parte de
um ordenamento juridico. Mas, desse mod©, o proble
ma nao e mais o da tradicional teoria do costume: "Qual
e o carater distintivo de uma norma juridica consuetu
dinarla, com relaQao a uma regra do costume?", mas
este outro; "Quais sao os procedimentos atraves dos
quais uma norma consuetudinaria vem a fazer parte de
um ordenamento juridico?"
Concluindo, essa posigao proeminente que se da
ao ordenamento juridico conduz a uma transmuta^ao
da perspectiva no tratamento de alguns problemas da
teoria geral do Direito. Essa transmuta^ao pode ser as-
sim expressa: enquanto, pela teoria tradicional, um or
denamento se compoe de normas juridicas, na nova
perspectiva normas juridicas sao aquelas que venham
a fazer parte de um ordenamento juridico. Em outros
termos, nao existem ordenamentos juridicos porque ha
normas juridicas, mas existem normas juridicas porque
h'i ordenamentos juridicos distintos dos ordenamentos
DA NORMA JURfDICA AO ORDENAMENTO JURIDICO 31
nao-juridicos. O termo "direito", na mais comum acep-
(jao de Direito objetivo, indica um tipo de sistema nor-
tnativo, nao um tipo de norma.
4. Pluralidade de normas
Uma vez claro que a expressao "Direito" refere-
se a um dado tipo de ordenamento, cabe agora apro-
fundar o conceito de ordenamento. S6 para come<;ar,
partamos de uma definigao muito gerai de ordenamen
to, que iremos passo a passo especificando; o ordena
mento juridico (como todo sistema normativo) e um
conjunto de normas. Essa definifao geral de ordena
mento pressupoe uma unica condigao: que na consti-
tuitao de um ordenamento concorram mais normas (pe-
lo menos duas), e que nao haja ordenamento compos-
to de uma norma s6.
Poderiamos imaginar um ordenamento composto
de uma so norma? Penso que a existdncia de tal orde
namento deva ser excluida. Assim como uma regra de
conduta pode referir-se a todas as a<;6es possiveis do
homem, e a regulamentafao consiste em qualificaruma
agao atraves de uma das trSs modalidades normativas
(ou dednticas) do obrigatdrio, do proibido e do permi-
tido, para se conceber um ordenamento composto de
uma so norma seria preciso imaginar uma norma que
se referisse a todas as a^oes possiveis e as qualificasse
com uma unica modalidade. Postas tais condi?oes, nao
existem senao tres possibilidades de conceber um orde
namento composto de uma norma unica:
1) Tudo 4permitido: mas uma norma de tal gdne-
ro 6 a negatao de qualquer ordenamento juridico, ou,
32 NORBERTO BOBBIO
se quisermos, a defini^ao do estado de natureza que €
a negagao de todo ordenamento civil,
2) Tudo 4proibido: uma norma desse tipo torna-
ria impossi'vel qualquer vida social humana, a qual co-
mega no momento em que o homem, alem das agoes
necessarias, esta em condigoes de realizar algumas das
agoes possiveis; uma norma assim concebida, equipa-
rando agoes possiveis e imposslveis, nao deixaria sub-
siscir senao as agoes necessarias, ou seja, as agoes me-
ramente naturais.
3) Tudo e obrigatorio: tambem uma norma feita
assim torna imposslvel a vida social, porque as agoes
possiveis estao em conflito entre si, e ordenar duas agoes
em conflito significa tornar uma ou outra, ou ambas,
inexeqOiveis.
Sendo inconceblvel um ordenamento que regule
todas as agoes possiveis com uma unica modalidade nor-
mativa, ou, em outras palavras, que abrace todas as
agoes possiveis com um unico juizo de qualificagao,
pode-se conceber um ordenamento que ordene ou proi-
ba uma unica agao, Trata-se de um ordenamento mui-
to simples que considera como condigao para perten-
cer a um decerminado grupo ou associagao apenas uma
obrigagao (por exemplo, um clube de nudistas, ou mes-
mo uma associagao de beberrdes que estabelega como
unica obrigagao beber so vinho, e assim por diante).
Mas um ordenamento assim concebido se pode consi-
derar como um ordenamento composto de uma unica
norma? Diria que nao. Veremos mais adiante que toda
norma particular que regula (ordenando-a ou proibindo-
a) uma agao implica uma norma geral exclusiva, isto e,
uma norma que subtrai daquela regulamentagao parti
cular todas as outras agoes possiveis. A norma que pres-
creve so beber vinho implica a norma que permite fa-
DA NORMA JURfDICA AO ORDENAMENTO JURIDICO 33
zer qualquer outra coisa diversa de beber vinho. Dizen-
do a mesraa coisa atraves de uma formula, poderfamos
afirmar: "X e obrigatorlo" impiica "Nao-X € permiti-
do". Mas assim ve-se que as normas, em realidade, sac
duas, a particular e a geral exclusiva; ainda quando a
expressamente formulada e uma s6. Nesse sentido pode-
se dizer que mesmo o ordenamento mais simples, o que
consiste numa s6 prescrigao de uma agao particular, e
composto de pelo menos duas normas. Seria bom acres-
centar que um ordenamento jun'dico nao e nunca um
ordenamento assim tao simples. Para conceber um or
denamento jun'dico reduzido a uma so norma particu
lar, seria preciso erigir em norma particular a ordem de
nao prejudicar ninguem {neminem laedere). Fenso que
so a ordem de nao causar dano a ninguem poderia set
concebida como aquela a que possa ser reduzido um
ordenamento juridico com uma norma particular uni-
ca. Mas, ainda com essa simplifica^ao, um ordenamen
to juridico compreende nao uma, mas duas normas: a
que prescreve nao causar dano a outrem e a que auto-
riza a fazer tudo o que nao cause dano a outrem.
Ate aqui, falando de normas que compoem um or
denamento juridico. nos referimos a normas de con-
duta. Em todo o ordenamento, ao lado das normas de
coitduta, existe um outro tipo de normas, que costu-
niamos chamar de normas de estrutura ou de compe-
tOncia. Sao aquelas normas que nao prescrevem a con-
duta que se deve ter ou nao ter, mas as conditjoes e os
[■irocedimenros atraves dos quais emanam normas de
conduta validas. Uma norma que prescreve caminhar
pela dircita e uma norma de conduta; uma norma que
prescreve que duas pessoas estao autorizadas a regular
scus inreresses em certo ambiro mediante normas vin-
v iihintes e coati\':is c uma norma de estrutura. na me-
dida em que nao dctermina uma conduta, mas fixa as
54 NORBERTO B08BIO
condifoes e os prpcedimentos para produzir normas
validas de conduta. Vimos ate agora que nao e conce-
bivel um ordenamento jun'dico composto de uma so
norma de conduta. Perguntamos: e concebfvel um or
denamento composto de uma so norma de estrutura?
Um ordenamento desse tipo e concebfvel. Geralmen-
te considera-se tal o ordenamento de uma monarquia
absoluca, em que todas as normas parecem poder ser
condensadas na segulnte; "E obrigatorio tudo aquilo
que o soberano determina". For outro lado, que um tal
ordenamento tenha uma so norma de estrutura nao im-
plica que tambem haja apenas uma norma de conduta. As
normas de conduta sac tantas quantas forem em dado mo-
mento as ordens do soberano. O fate de existir uma s6 nor
ma de estrutura tern por conseqiiencia a extrema variabi-
lidade de normas de conduta no tempo, e nao a exclusao
de sua pluralidade em determinado tempo.
5. Os problemas do ordenamento juridico
Se um ordenamento jun'dico e composto de mais
de uma norma, disso advdm que os principals proble
mas conexos com a existdncia de um ordenamento sao
OS que nascem das relafoes das diversas normas entre si.
Em primeiro lugar se trata de saber se essas nor
mas consticuem uma unidade, e de que modo a cons-
tituem. O problema fundamental que deve ser discuti-
do a esse propdsito e o da hierarquia das normas. A
teoria da unidade do ordenamento jurfdico € dedica-
do o segundo capftuio.
Em segundo lugar trata-se de saber se o ordenamen
to jurfdico constitui, alem da unidade, tambem um sis-
tema. O problema fundamental que e colocado em dis-
cu.ssao a este respeito e o das antinomias jurtdicas. A
DA NORMA JURfDICA AO ORDENAMENTO JURIDICO 35
teoria do sistema juridico sera dedicado o terceiro capi-
culo.
Todo ordenamento juridico, unitario e tendencial-
mente (se nao efetivamente) sistemaiico, pretende
tambem ser completo. O problema fundamental que
aqui e discutido e o das assim chamadas lacunas do Di-
reito. A teoria da plenitude do ordenamento juridico sera
dedicado o quarto capi'tulo.
Finalmente, nao existe entre os homens um so or
denamento, mas muitos e de diversos tipos. Tem rela-
tdes entre si os varies ordenamentos? e de que gdnero
sao tais relagoes? O problema fundamental que aqui de-
vera ser examinado e o do reenvio de um ordenamen
to a outro. A teoria das rela^bes entre ordenamentos
sera dedicado o quinto e ultimo capi'tulo.
Nao pretendemos exaurir desse modo todos os pro-
blemas que nascem da considera<;ao do ordenamento
juridico. Cremos, porem, que estes sejam os problemas
principals, cujo questionamento possa permitir tragar
as linhas gerais de uma teoria do ordenamento juridico des-
tinada a continuar e a integrar, como dissemos logo no ini-
cio do primeiro capi'tulo, a teoria da norma juridica.
CAPITULO 2
A unidade
do ordenamento jun'dico
1. Fontes reconhecidas e fontes delegadas
A hipotese de um ordenamento com uma ou duas
normas, proposca no capitulo anterior, e puramente aca-
demica. Na reaiidade os ordenamentos sao compostos
por uma infinidade de normas, que, como as estrelas
no ceu, jamais alguem consegue contar. Quantas sao
as normas juridicas que compQem o ordenamento ju
n'dico italiano? [ou brasileiro?] Ninguem sabe. Os ju-
ristas queixam-se que sao muitas; mas assim mesmo
criam-se sempre novas, e nao se pode deixar de cria-
las para satisfazer todas as necessidades da sempre mais
variada e incrincada vida social.
A dificuldade de rasirear todas as normas que cons-
tituem um ordenamento depende do fato de geralrnente
essas normas nao derivarem de uma unica fonte. Po-
demos distinguir os ordenamentos jun'dicos em sim
ples e complexos, conforme as normas que os compdem
derivem de uma so fonte ou de mais de uma. Os orde
namentos juridicos, que constituem a nossa experidn-
cia de historiadores e de juristas, sao complexos.
A imagem de um ordenamento, composto somente
por dois personagens,o legislador que coloca as nor
mas e os siiditos que as recebem, e puramente escolas-
tica. O legislador e um personagem imaginario que es-
conde uma reaiidade mais complicada. Tambem um or
denamento restrito, pouco institucionalizado, que re-
cobre um grupo social de poucos membros, como a
38 NORBERTO BOBHIO
familia, e geralmente um ordenamento complexo: nem
sempre a unica fonte das regras de conduta dos mem-
bros do grupo e a autoridade paterna; as vezes o pai
recede regras ja formuladas pelos antepassados, pela tra-
digao familiar ou pela recorrencia a outros grupos fa-
miliares; ̂ vezes delega uma parte (maior ou menor
conforme as varias civilizagoes) do poder normativo a
esposa, ou ao filho mais velho. Nem mesmo em uma
concepgao teol6gica do universo as leis que regem o
cosmos sao derivadas todas de Deus, ou seja, sao leis
divinas; em alguns casos Deus delegou aos homens pro-
duzir leis para regular a sua conduta, quer atraves dos dita
mes da razao (Direito natural), quer atraves da vontade dos
superiorcs {Direito positive).
A complexidade de um ordenamento juridico de-
riva do fato de que a necessidade de regras de conduta
numa sociedade e cao grande que nao existe nenhum
poder (ou orgao) em condigoes de satisfaze-la sozinho.
Para vir ao encontro dessa exigencia, o poder supre
mo recorre geralmente a dois expedientes;
1) A recep0u de normas ja feitas, produzidas por
ordenamentos divcrsos e precedentes.
2) A delega^do do poder de produzir normas ju-
n'dicas a poderes ou orgaos inferiores.
For essas razbes, em cada ordenamento, ao lado
da fonte direta temos fontes indiretas que podem ser
distinguidas nescas duas classes: fontes reconhecidas e
fontes delegadas. A complexidade de um ordenamen
to juridico deriva portanto da mulciplicidade das fon
tes das quais afluem regras de conduta, em ultima ana-
lise, do fato de que essas regras sao de proveniencias
diversas e chegam a exist&ncia (adquirem validade) par-
tindo de pontos os mais diferentes.
Tipico exemplo de recepQdo, e, portanto, de fonte
A UNIDADE DO ORDENAMENTO JURIDICO 59
reconbecida, e o costume nos orden: nientos estatais
modernos, onde a fonte direta e superior e a Lei. Quan-
do o legislador se atem expressamente ao costume nu-
ma situa?ao particular ou se atem expressamente ou ta-
citamente ao costume nas materias nao-reguladas pela
Lei {e o caso do assim chamado consuetudo praeter le-
gem, ou seja, do costume alem da lei), ele acolhe normas
juridicas ja feitas, e enriquece o ordenamento jun'dico em
bloco com um conjunto, que pode set tambem considera-
vel, de normas produzidas em outros ordenamentos, e tal-
vezem tempos anterioresapropriaconstitui^ao do ordena
mento escatal.
Naturalmente, pode-se pensar tambem em lan?ar
mao do costume como uma autorizagao aos cidadaos
para produzir normas juridicas atraves do seu prdprio
comportamento uniforme, quer dizer, considerar tam
bem o costume entre as fontes delegadas, atribuindo-
se aos usuarios a qualifica^ao de orgaos estatais autori-
zados a produzir normas juridicas com seu comporta
mento uniforme,
Entretanto, parece-itie uma construi;ao, embora en-
genhosa, um pouco artificial, que nao leva em conta
uma diferenga: na recepcjao o ordenamento juridico aco
lhe um preceico ja feito; na delegagao, manda faze-lo,
ordenando uma produ^ao futura. O costume assemelha-
se mais a um produto natural; o regulamento, o decre-
to administrativo, a sentenga do magistrado parecem
mais um produto artificial. Fala-se de poder regulamen-
tar, de poder de negociar, para indicar o poder norma-
livo atribuido aos orgaos executives ou aos privados.
Pareceria improprio, ao inves, falar de um poder de pro-
dutjao de normas consuetudinarias, que, entre outras
coisas, nao se saberia nem sequer a quern atribuir.
Tfpico exempio de fonte delegada e o regulamen
to com relagao a Lei. Os regulamentos sao. como as leis.
40 NORBERTO BOBBIO
normas gerais e abstratas, mas, a diferen^a das leis, a
sua produ<;ao e confiada geralmente ao Poder Executi
ve por delegatao do Poder Legislativo, e uma de suas
fungoes e a de integrar leis muito genericas, que con-
t£m somente diretrizes de princi'pio e nao poderiam ser
aplicadas sem serem ulteriormente especificadas. E im-
possivel que o Poder Legislativo formule codas as nor
mas necess^rias para regular a vida social; limita-se en-
tao a formular normas genericas, que contSm somente
diretrizes, e confia aos drgaos executives, que sao muito
mais numerosos, o encargo de torna-las exequi'veis.
A mesma rela^ao existe entre normas consticucionais
e leis ordinarias, as quais podem as vezes ser conside-
radas come os regulamentos executives das diretrizes
de principio contidas na Constitui^ao. Conforme se vai
subindo na hierarquia das fontes, as normas tornam-se
cada vez menos numerosas e mais genericas; descen-
do, ao contrario, as normas tornam-se cada vez mais
numerosas e mais especiTicas.
Outra fonte de normas de um ordenamento juri-
dico e o poder atribufdo aos particulares de regular, me-
diante atos voluntaries, os prdprios interesses: crata-se
do chamado poder de negociagdo. O enquadramento
dessa fonte na classe das fontes reconhecidas ou na das
fences delegadas e menos nitido, Se se coloca em des-
taque a aulonomia privada, entendida come capaci-
dade dos particulares de dar normas a si proprios numa
certa esfera de interesses, e se considerarmos os parti
culares como conscituinces de um ordenamento Jun'di-
co menor, absorvido pelo ordenamento estatal, essa vas-
ta fonte de normas jun'dicas e concebida de preferen-
cia como produtora independence de regras de conduta,
que sao aceitas pelo Estado- Se, ao inves, colocamos
o acento no poder de negociacao como poder delega-
do pelo Estado aos particulares para regular os proprios
A UNIDADE DO ORDENAMENTOJURfDICO 41
interesses num campo estranho ao interesse publico,
a mesma fonte aparece como uma fonte delegada. Trata-
se, em outras palavras, de decidir se a autonomia pri-
vada deve ser considerada como um residuo de um po-
der normativo natural ou privado, antecedente ao Es-
tado, ou como um produto do poder originario do
Esiado.
2. Tipos defontes eformagao histdrica do ordenamento
Essa ultima questao nos mostra que o problema da dis-
tin(;ao entre fontes reconhecidas e fontes delegadas e um
problema cuja solugao depende tambem da concepgao ge-
ral que se assume em rela^ao a forma^ao e a estrutura de
um ordenamento jun'dico.
Em cada ordenamento o ponto de referenda ultimo
de todas as normas e o poder originario, quer dizer, o po
der alem do qual nao existe outro pelo qual se possa justi-
ficar o ordenamento jun'dico. Esse ponto de referencia e
necessario, alem de tudo,' para fundar a unidade do orde
namento. Chamamos esse poder originario de fonte das
fontes. Se todas as normas derivassem diretainente do po
der originario, encontrar-nos-i'amos frente a um ordenamen
to simples. Na realidade nao e assim. A complexidade do
ordenamento, ou seja, o fato de que num ordenamento real
as normas afluem atraves de diversos canals, depende his-
toricamenie de duas razdes fundamentals;
1) Um ordenamento nao nasce num deserto; deixan-
do de lado a metafora, a sociedade civil sobre a qual se
forma um ordenamento juridico, como e, por exemplo,
o do Escado, nao e uma sociedade natural, completamen-
ce privada de leis, mas uma sociedade na qual vigem nor
mas de varios gencros, morals, socials, religiosas, usuais,
42 NORBERTO BOBBIO
consuetudinarias, regras convencionais e assim por dian-
te. O novo ordenamento que surge nao elimina nunca com-
pletamente as estracificatoes normativas que o precederam:
parte daquelas regras v&m a fazer parte, atraves de urn re-
conhecimento expresso ou tacito, do novo ordenamento,
o quai, deste modo, surge limitado pelos ordenamentos
precedentes. Quando falamos de poder originario, enten-
demos originario juridicamente, nao historicamence. Po-
demos falar entao de um limite extemo do poder soberano.
2) O poder originario, uma vez constituido, cria ele
mesmo, para satisfazera necessidade de uma normatiza-
gao sempre atualizada, novas centrais de produgao jun'di-
ca, atribuindo a orgaos executivos o poder de estabeiecer
normas integradoras subordinadas as legislativas (os regu-
lamentos); a entidades territoriais autonomas o poder de
estabeiecer normas adaptadas as necessidades locais (o po
der normative das regioes, das provincias, dos municipios);
a cidadaos particulares o poder de regular os proprios de-
veres atraves de negocios jun'dicos (o poder de negocia-
?ao). A multiplicat^ao das fontes nao deriva aqui, como
nos casos considerados no item 1, de uma limita^ao pro-
veniente do exterior, quer dizer, do cheque com uma rea-
lidade normativa pre-constituida, a qua! tambem o poder
soberano deve prestar contas, mas de uma autoiimita0o
do poder soberano, o qua! subtrai a si prdprio uma parte
do poder normative para da-lo a outros orgaos ou entida
des, de alguma forma dele dependences. Pode-se falar neste
case de limite intemo do poder normative originario.
E interessante observar como esse duplo processo de
formaqao de um ordenamento, atraves da absorqao de
um direito preexistente e da criagao de um direito novo,
e a conseqiiente problemacica da limitagao externa e da li-
mita?ao inierna do poder originario, e refletido fielmente
nas duas principais concep(;'des com as quais os jusnatura-
A UNIDADE DO ORDENAMENTO JURfDlCO 43
listas explicaram a passagem do esrado natural ao estado
civil.
A chamada que fago frequentemente para as teorias
jusnaturalistas vem do fate de que as considero como mo-
delos racionais, uteis a formura<;ao de teorias simples so-
bre problemas mais gerais do Direifo e do Estado.
Segundo o pensamento jusnaiuralista, o poder civil
originario forma-se a partir de urn estado de natureza atra-
ves de procedimento caracteristico do contrato social.
Mas existem duas maneiras de conceber esse contra
to social. Como primeira hipdtese, que podemos chamar
todos OS direitos do.estado natu
ral, limitagao
futura sera uma autollmM^o.
Como segunda hipotese, que podemos chamar^e^ja-
na, o ipSQgPei^l'^^UHdaelo <20mr©^bie.t^')Cl?^»s®egurs|r
eae^titrf%g©zQ,4o&.4irek©s?nacii»is (como a vida, a pro-
priedade, a liberdade) e, portanro, nasce originariamente
limitado por um direito preexistente.
Na primeira hipdtese o Direito natural desaparece com-
pletamente ao dar vida ao Direito posiiivo; na segunda, o.
Direito positivo e o instrumento para a completa atuagao
do preexistente Direito natural.
Ainda: na primeira teoria a soberania civil nasce ab-
soluta, quer dizer, sem limites. Os juristas positivistas que
aceitam essa hipotese serao constrangidos a falar de auto-
limitaQao do Estado para dar uma explica(;ao do fato de
que cambem, num ordenamento centralizado e que se pro-
clama originario, como o Estado moderno, existem pode-
res normativos descentralizados ou suplementares, ou zo-
nas de liberdade, em que esbarra o poder normativo do
Estado.
Na segunda teoria, ao contrario, a soberania nasce ja
limitada, porque o Direito natural originario nao e com-
44 NORBERTO BOBBIO
pletamente suplantado pelo novo Direito positivo, mas con-
serva em pane a sua eficacia no interior do mesmo orde-
namento positivo, como direito aceito.
Nessas duas hipoteses veem-se claramente represen-
tados e racionalizados os dois processes de formagao de
um ordenamento juridico e a estrutura complexa que de
les deriva.
De um lado, o ordenamento positivo e concebido co
mo tabula rasa de todo o direito preexistente, represenia-
do aqui per aquele direito que vige no estado natural; de
ourro, e concebido como emergente de ufn estado jur^i-
c6 mais antigo que continua a subsistir. ' ̂
No primfciro caso cada limite do poder soberano e au-
tolimitagao; no segundo existem limites originaflbs e
externps.
/ Ao falarmos de uma complexidade do ordenamento
juridico, derivada da presenga de fontes reconhecidas e
de fontes delegadas, acolhemos e reunimos numa teoria
unitaria do ordenamento juridico seja a hipotese dos limi
tes externos, seja a hip6tese dos limites internos.
Exemplificando, a aceita^ao de uma normatiza^ao con-
suetudinaria corresponde a hipotese de um ordenamento
que nasce limitado; a atribuitao de um poder regulamen-
tar corresponde a hipotese de um ordenamento que se
autolimita.
Quanto ao poder de negociagao, ele pode ser expli-
cado com ambas as hipbteses, ora como uma especie de
direito do estado natural (a identificagao entre Direito na
tural e Direito privado se encontra, por exemplo, em Kant)
que o Estado reconhece, ora como uma delega?ao.do Es
tado aos cidadaos.
\ UNIDADE DO OROENAMENTO JURIdICO 4$
3. As fontes do Direito
Distinguimos nos dois paragrafos anteriores fontes ori-
ginarias e fontes derivadas; dividimos depois as fontes de-
rivadas em fontes reconhecidas e fontes delegadas; falamos
de uma fonie das fontes. Mas nao dissemos ainda o que
se entende por "fonte".
Podemos aceicar, neste momento, uma definigao que
ja se tornou comumi "fontes do direito'' sao aqueles fatos
ou atos dos quais o ordenamento juridico faz depender a
produ^ao de normas jun'dicas. O conhecimento de um or
denamento juridico (e tambem de um setor particular desse
ordenamento) comega sempre pela enumera<;ao de suas
fontes, Nao e por acaso que o artigo 1? das nossas "Dis-
posigoes Gerais" e constituido pela rela^ao das fontes do
ordenamento juridico italiano vigente, O que nos interes-
sa notar numa teoria geral do ordenamento juridico nao
e tanto quantas e quais sejam as fontes do Direito de um
ordenamento juridico moderno, mas o fato de que, no mes-
mo momento em que se reconhece existirem atos ou fa
tos dos quais se faz depender a produgao de normas juri-
dicas (as fontes de direito), reconhece-se que o ordenamen
to juridico, alem de regular o comportamento das pessoas,
regula tambem a mode pela qual se devem produzir as
regras.
Costuma-se dizer que o ordenamento juridico regula
a propria produ^ao normativa,
Existem normas de comportamento ao lado de nor
mas de esirutura. As normas de estrutura podem tambem
ser consideradas como as normas para a produ?ao juridi-
ca: quer dizer, como as normas que regulam os procedi-
menios de regulamenta(;ao juridica. Bias nao regulam o
comportamento, mas o modo de regular um comportamen
to, ou, mais exatamente, o comportamento que elas regu
lam e o de produzir regras.
46 NORBERTO BOBBIO
Consideremos um ordenamento elementar como o
familiar.
Se o concebermos como um ordenamento simples,
isto 6, como o ordenamento no qua! so existe uma fonte
de produ<;ao normativa, nao existira senao uma regra so-
bre a produgao juridica, a qual pode ser formulada deste
modo: "O pai tern a autoridade de regular a vida da familia".
Mas admitamos que o pai renuncie a regular direta-
mente um setor da vida familiar, como o da vida escolar
dos filhos, e confie a mae o poder de regula-lo. Teremos
nesse ordenamento uma segunda norma sobre a produfao
juridica que podera ser formulada assim: "A mae tern au
toridade, atribuida pelo pai, de regular a vida escolar dos
filhos".
Como se ve, essa norma nao diz nada sobre o modo
como OS filhos devem cumprir suas obrigaijdes escolares;
diz simplesmente a quem cabe estabelecer estes deveres,
isto 6, faz existir uma fonte de direito.
Tomemos agora um ordenamento estatal moderno.
Em cada grau normativo encontraremos normas de
conduta e normas de estrutura, isto e, normas dirigidas di-
retamente a regular a conduta das pessoas e normas desci-
nadas a regular a produ(;ao" de outras normas. Comecemos
pela Constitui^ao. Numa Constitui^ao, como a italiana, ha
normas que atribuem diretamente direitos e deveres aos
cidadaos, como as que dizem respeito aos direitos de ii-
berdade; mas existem outras normas que regulam o pro-
cesso atraves do qual o Parlamento pode funcionar para
cxercer o Poder Legislacivo, e, portanto, nao estabeiecem
nada a respeito das pessoas, limicando-se a estabelecer a
maneira pela qual outras normas dirigidas as pessoas po-
derao ser emanadas.
Quanto as leis ordinarias, tambem elas nao saotodas
diretamente dirigidas aos cidadaos; muitas, como as leis
penais e grande pane das leis de processo, cem a finalida-
A UNIDADE DO ORDENAMENTO JURiOICO 47
de de oferecer aos juizes instrugoes sobre o raodo atraves
do qual eles devem produzir as normas individuals e con-
cretas que sac as sentengas; nao sac normas de conduta,
mas normas para a produ?ao de outras normas.
Basta-nos ter chamado a atenijao sobre esta categoria
de normas para a produgdo de outras normas-. e a pre-
senga e freqiiencia dessas normas que constituem a com-
plexidade do ordenamento juridico; e somente o estudo
do ordenamento juridico nos faz entender a natureza e a
importancia dessas normas. Do ponto de vista formal, a
teoria da norma juridica havia parade na consideraijao das
normas como imperatives, entendendo per imperative a
ordem de fazer ou de nao fazer.
Se levarmos em consideragao tambem as normas pa
ra a produgao de outras normas, devemos colocar, ao la-
do das imperacivas, entendidas como comandos de fazer
ou de nao fazer, e que poderemos chamar intperativas de
primeira instdncia, as imperativas de segunda instdncia,
entendidas como comandos de comandar, etc.
Somente a consideragao do ordenamento no seu con-
junto nos permite aceicar a presen<;a dessas normas de se
gunda instancia.
A classificagao desse tipo de normas e muito mais com-
plexa que a classificagao das normas de primeira instan
cia, para as quais haviamos falado de "triparti^ao" classi-
ca em normas imperativas, proibitivas e permissivas.
Podem-se distinguir nove tipos:
1) Normas que mandam ordenar (por exempio; art.
34, § 2? da Consticui?ao, onde o constituince ordena ao
legislador ordinario formu.iar ieis que tornem obrigatdria
a instrugao)
2) Normas que proibem ordenar (art. 27, § 4? da
Constituifao, onde se proibe ao legislador impor a pena
de morte).
48 NORBERTO BOBBIO
3) Normas que permitem ordenar (em todos os ca
ses em que o constituinte entende nao dever intervir a di-
tar normas sobre certas materias, pode-se dizer que isso
permite ao legislador ordenar, Por exemplo, o art. 32,
§ 2? da Consticui?ao, permite ao legislador ordinario esta-
belecer normas relativas ao tratamento sanitlrio).
4) Normas que mandam proibir (art. 18, § 2? da
Constitui?ao: o constituinte impoe ao legislador ordinario
emanar normas proibltivas contra as associagoes secretas).
5) Normas queprotbemproibir (art. 22 da Constitui-
gao; ninguem pode ser privado por motives poHticos da
capacidade jun'dica, da cidadania, do nome).
6) Normas que permitem proibir (a proposito do art.
40 da Constitui^ao, que sanciona a liberdade de greve, po
de-se observar que nem nele nem em outre se fala em li
berdade de suspensao do trabalho; essa lacuna poderia ser
interpretada come se o constituinte tivesse desejado dei-
xar ao legislador ordinirio a faculdade de proibi-la).
7) Normas que mandam permitir (este case coinci
de com o do numero cinco).
8) Normas que protbem permitir (este case coincide
com o do numero quatro),
9) Normas que permitem permitir (come a permis-
sao e a negagao de uma proibitjao, este e o'caso de uma
lei constitucional que negue a proibifSo de uma lei cons-
titucional anterior).
4. Construfdo escalonada do ordenamento
A complexidade do ordenamefito, sobre a qual cha-
mamos a atengao ate agora, nao exclui sua unidade. Nao
poderiamos falar de ordenamento juridico se nao o tives-
semos considerado algo de unitario, Que seja unitario um
ordenamento simples, isto e, um ordenamento em que to-
A UNIDADE DO ORDENAMENTO JURfOlCO 49
das as normas nascem de uma unica fonte, e facilmente
compreensive!, Que seja unitario urn ordenamento com-
plexo, deve ser explicado. Aceicamos aqui a teoria da cons-
trufao escalonada do ordenamento juridico, elaborada por
Kelsen. Essa teoria serve para dar uma explicagao da unl-
dade de um ordenamento juridico complexo. Seu nucleo
e que as normas de um ordenamento ndo estdo todas no
mesmopiano. Ha normas superiores e normas inferiores.
As inferiores dependem das superiores. Subindo das nor
mas inferiores aquelas que se enconiram mais acima, chega-
se a uma norma suprema, que nao depende de nenhuma
outra norma superior, e sobre a qual repousa a unidade
do ordenamento. Essa norma suprema e a norma funda
mental. Cada ordenamento tem uma norma fundamental,
E essa norma fundamental que da unidade a todas as ou-
tras normas, isto e, faz das normas espalhadas e de vSrias
proveniencias um conjunto unitario que pode ser chama-
do "ordenamento".
A norma fundamental e o termo unificador das nor
mas que compoem um ordenamento juridico. Sem uma
norma fundamental, as normas de que falamos ate agora
constituiriam um amontoado, nao um ordenamento. Em
outras palavras, por mais numerosas que sejam as fontes
dodireito num ordenamento complexo, tal ordenamento
constitui uma unidade pelo fato de que, direta ou indire-
tamente, com voltas mais ou menos tortuosas, todas as fon
tes dodireito podem ser remontadas a uma unica norma.
Devido a presen?a, num ordenamento juridico, de normas
superiores e inferiores, ele tem uma estrutura bierdrqui-
ca. As normas de um ordenamento sao dispostas em or-
dem hierdrquica.
A relevancia dessa ordem hierarquica sera destacada
no capitulo seguinte, quando falarmos das antinomias e da
maneira de resolve-las. Aqui nos limitamos a constata-la e a
ilustra-la. Consideremos qualquer ato com o qual Fulano
50 NORBERTO BOBBIO
executa a obriga^ao contrafda com Sicrano e chamemo-
lo de ato executivo. Esse ato executive e o cumprimento
de uma regra.de conduta derivada do contrato. For sua vez
0 contrato e executado em cumprimento as normas legis-
lativas que disciplinam os contratos, Quanto as normas le-
gislativas, foram formuladas segundo as regras estabeleci-
das pelas ieis constitucionais para a formulagao das leis.
Paremos aqui.
O ato executivo, de que falamos, esta ligado, ainda
que mediatamente, ̂ normas constitucionais, que sao pro-
dutoras, em diversos m'veis, das normas inferiores. Esse ato
executive pertence a um sistema normative dado, na me-
dida em que, de norma em norma, ele pode ter sua refe-
rSncia ultima nas normas constitucionais. O cabo recebe
ordem do sargento, o sargento do tenente, o tenente do
capitao ate o general, e mais ainda; num exercito fala-se
de unidade do comando porque a ordem do cabo pode
ter origem no general. O exercito e um exemplo de estru-
tura hierarquica. Assim e o ordenamento jun'dico.
Chamamos de ato executivo o ato de alguem que exe
cuta um contrato, assim como chamamos de produtoras
das normas inferiores as normas constitucionais. Se obser-
varmos melhor a estrutura hierarquica do ordenamento,
perceberemos que os termos execuqdo e produ<ido sao re-
lativos. Podemos dizer que, como Fulano executa o con
trato, assim Fulano e Sicrano, estipulando o contrato, exe-
cutaram as normas sobre os contratos, e os orgaos legis-
lativos, estabelecendo as leis sobre os contratos, executa-
ram a Constituigao. Por outro lado, se e verdade que as
normas constitucionais produzem as leis ordinarias, e tam-
bem verdade que as leis ordinarias produzem as normas
sobre os contratos, e aqueles que estipulam um contrato
produzem o ato executivo de Fulano. Numa estrutura hie
rarquica, como a do ordenamento juridico, os termos "exe-
cugao" e "produ<;ao" sao relatives, porque a mesma nor-
A UNIDADE DO ORDENAMENTO JURIDICO 51
ma pode ser considerada, ao mesmo tempo, executiva e
produtiva. Executiva com respeito a norma superior, pro-
dutiva com respeito a norma inferior. As leis ordinarias exe-
cutam a Constitui^ao e produzem os regulamentos. Os re-
gulamentos executam as leis ordinarias e produzem os com-
portamentos a eles conformes. Todas as fases de um orde-
namento sao, ao mesmo tempo, execuiivas e produtivas,
a excegao da fase de grau mais alto e da fase de grau mais
baixo. O grau mais baixo e constitui'do pelos atos executi-
vos: esses atos sao meramente executivos e nao produti-
vos. O grau mais alto e constituido pela norma fundamen
tal: essa e somente produtiva e nao

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