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AntropologiA FilosóFicA e sociológicA 2012 Prof. Arnildo Pommer Copyright © UNIASSELVI 2012 Elaboração: Prof. Arnildo Pommer Revisão, Diagramação e Produção: Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri UNIASSELVI – Indaial. 301.81 P787aPommer, Arildo Antropologia filosófica e sociológica / Arildo Pommer. Indaial : Uniasselvi, 2012. 256 p. : il ISBN 978-85-7830- 640-3 1. Antropologia - Civilização. 2. Antropologia - Filosofia – Sociologia. I. Centro Universitário Leonardo da Vinci. III ApresentAção Antropologia Filosófica e Sociológica, no contexto cientificista contemporâneo, é uma disciplina preparada especialmente para que você tenha uma compreensão introdutória deste vasto campo da reflexão contemporânea: o que é o humano. Ou seja, o que é o anthropos, de um ponto de vista filosófico e sociológico. Eu não pretendo afirmar de modo categórico que o anthropos (o ser humano de modo genérico) seja isto ou aquilo, pois aquele que tem uma pretensão destas pode cometer os erros mais elementares e expressar meras opiniões sem qualquer sustentação filosófica ou científica. O que eu pretendo é apenas, a partir de uma ampla bibliografia adequada, sugerir roteiros de estudo mais específicos, razão pela qual, desde a introdução do Tópico 1, convido você, caro(a) acadêmico(a) a realizar uma viagem, uma excursão, para a descoberta do país do anthropos. Escrevo na primeira pessoa do singular por três motivos: 1) porque sou um indivíduo real, existente e me dirijo a você que também é uma pessoal real, existente e, portanto não somos nem eu e nem você um “nós” sem identidade; 2) porque assumo a responsabilidade pela autoria dos acertos e dos eventuais erros dos textos apresentados neste Caderno de Estudos; 3) porque faço alguns comentários de autoria própria e, consequentemente, assumo as possibilidades de método e de crítica que eles implicam. Mas método e crítica em sentido estrito, isto é, a partir de pressupostos já consagrados na tradição do pensamento ocidental como, por exemplo, na definição da própria palavra crítica. A palavra crítica é muito utilizada no senso comum e em trabalhos acadêmicos. Mas, quase sempre como se significasse falar bem ou mal de algum feito, fato ou pessoa, porém, isso é apenas a manifestação de uma opinião sobre algo ou alguém, podendo ser uma opinião perversa ou inocente, porém quase sempre no interior de um discurso cujo escopo é a retórica de convencimento. A palavra crítica é originária da língua grega e indica a capacidade de discernir, separar, decidir e julgar. Na sua etimologia, também se encontra a origem da expressão crise que significa ato ou fato em julgamento, em avaliação radical. No senso comum, que é o conhecimento prático do dia a dia, o termo crise é utilizado, no entanto, para expressar que os negócios ou os casamentos vão mal, mas eu a utilizo em sentido mais próximo de sua origem etimológica: superar uma crise é criticar, é perguntar pelas causas de um determinado problema e não apenas falar bem ou mal de suas consequências. IV Assim sendo, criticar é alcançar qualquer assunto pela sua raiz, separá- lo em partes, analisá-lo, julgá-lo a partir de um critério racional e publicamente justificável quando se trata de questões políticas e de pessoas, ou através de método pertinente quando se trata de questões filosóficas ou científicas. O método, porém, não dispensa a necessidade de demonstração e de justificação. Jamais se faz crítica apenas com opiniões. Jamais um problema é superado apenas com retóricas de convencimento. E este é o suposto deste meu texto: buscar no desvelamento do que se oculta por detrás do uso de alguns métodos de investigação científicos ou filosóficos, por intermédio de argumentos racionais publicamente justificáveis. Ou seja, de argumentos que possam ser justificados diante de outras racionalidades, aquilo que se apresenta como verdadeiro. Porém, não pretendo afirmar nada como certo e verdadeiro a priori, isto é, por antecipação ou preconceito. Mesmo assim, quem escreve ou fala corre riscos, porque uma justificação meramente operativa de pouco serve. Uma eventual justificação meramente operativa apenas indica um modo de operar, de intervir no mundo e por isso subverte ou esconde o principal: a transcendência do anthropos. Transcendência não quer dizer que nossas ações, ideais, anseios ou atividades estejam a ocorrer fora do tempo (história) e fora do espaço (lugar), mas que o anthropos é mais do que um ser (algo que existe) que trabalha, estuda, reproduz, come, dorme e excreta ou algo que possa ter uma essência qualquer. O problema está em saber o que seja este algo mais, sem cair na tentação de aludir ao que se chama de essência do humano. Também não se trata de uma perspectiva escatológica, isto é, de um tratado dos fins últimos do anthropos. Trata-se tão somente de deixar registrado que tanto de um ponto de vista biopsíquico, quanto cultural e social o anthropos tem uma vida, cujo valor não pode ser negligenciado por nenhum sistema econômico ou administrativo. A contingência do existir, num mundo, no qual facilmente os sistemas são privilegiados em detrimento da vida não pode ofuscar o nosso discernimento. Os sistemas precisam funcionar, é claro. Imagine o sistema de distribuição de energia elétrica entrar em colapso, por exemplo. A maioria das pessoas diria que o fim do mundo estaria próximo. Mas o funcionamento dos sistemas, de todos eles, não pode se sobrepor ao anthropos, não pode se sobrepor ao político, que é a forma como os muitos seres humanos cuidam da própria vida e da vida dos outros. Não se trata apenas de que a vida humana seja mais complexa do que o mais complexo dos sistemas, isso é retórica, discurso falacioso. A vida tem valor em si, não havendo, portanto, um sistema ou uma hierarquia de valores capaz de determinar o seu valor de fora para dentro. Isto é, nenhuma taxionomia é válida para quantificar ou qualificar o valor da vida humana num eventual sistema de classificações. V O cientificismo contemporâneo tende exageradamente a criar modelos classificatórios e valorativos, a partir de uma taxionomia necessária ao mundo das coisas, mas não ao mundo humano de um ponto de vista econômico, social e cultural. O que não se pode imaginar é a aplicação de modelos classificatórios de valor para determinar o valor da vida humana. No entanto, todos os dias nós lemos, vemos e ouvimos mais ou menos o seguinte: as classes sociais A, B, C, D, E formam uma pirâmide social injusta, com a predominância das classes A e B sobre as demais, as que constituem a maioria, a base da pirâmide. Ou seja, o valor da vida do anthropos foi transformado em valores numéricos quantificáveis, tendo como parâmetro de mensuração, de ser medido, a sua renda ou o que ele pode comprar e, principalmente, pagar. Daí se conclui que a pirâmide social é injusta. O que pretendo mostrar nesta disciplina, a partir de sua ementa (que é o seu programa básico), é como o ocultamento do valor da vida pode decorrer de métodos e modelos de investigação filosóficos e científicos comprometidos com taxionomias, com modelos classificatórios, transportados do mundo das coisas para o mundo da vida humana, causando a sua alienação à ideologia dominante em voga num determinado momento histórico. Por último, quero destacar que pretendo utilizar uma linguagem acessível, mas quando isto não for possível, apresentarei sinônimos e exemplos. Espero que a leitura não fique truncada, mas considerando que os termos técnicos precisam ser esclarecidos farei algumas notas, semprecom a finalidade de facilitar a sua compreensão. Mesmo assim, se ainda houver dificuldade com alguns termos, sugiro o recurso dos dicionários. Eles são ótimos, aliás, não se pode escrever profissionalmente sem estar munido de bons dicionários. Prof. Arnildo Pommer VI Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há novidades em nosso material. Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura. O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo. Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente, apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador. Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto em questão. Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa continuar seus estudos com um material de qualidade. Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes – ENADE. Bons estudos! NOTA VII VIII IX UNIDADE 1 – É POSSÍVEL ENTENDER O SER HUMANO? ..................................................... 1 TÓPICO 1 – ANTROPOLOGIA: DEFINIÇÃO PRELIMINAR DOS TERMOS........................ 3 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................... 3 2 ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA .................................................................................................... 4 3 ANTROPOLOGIA CIENTÍFICA ..................................................................................................... 8 4 ANTROPOLOGIA SOCIOLÓGICA ............................................................................................... 9 5 ANTROPOLOGIA CULTURAL ......................................................................................................12 6 A CIÊNCIA E O CIENTIFICISMO ..................................................................................................14 RESUMO DO TÓPICO 1......................................................................................................................19 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................20 TÓPICO 2 – EXISTE UMA NATUREZA HUMANA? ....................................................................21 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................21 2 EXPLICAÇÃO RELIGIOSA ..............................................................................................................22 3 EXPLICAÇÃO FILOSÓFICA ............................................................................................................29 4 EXPLICAÇÃO DA SOCIOLOGIA ..................................................................................................34 5 EXPLICAÇÃO CIENTÍFICA ............................................................................................................36 RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................................41 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................42 TÓPICO 3 – AS DIVERSAS IDADES DO HOMEM ......................................................................43 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................43 2 DO NADA AO SER ............................................................................................................................44 3 O HOMEM NO MUNDO ANTIGO ...............................................................................................54 4 O HOMEM NO MUNDO MEDIEVAL ..........................................................................................64 5 O HOMEM MODERNO....................................................................................................................71 6 O HOMEM CONTEMPORÂNEO ...................................................................................................81 LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................84 RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................86 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................88 UNIDADE 2 – O HOMEM ENQUANTO SUJEITO E OBJETO DE ESTUDO ..........................89 TÓPICO 1 – AS DIVERSAS ANTROPOLOGIAS...........................................................................91 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................91 2 E NASCE A ANTROPOLOGIA CIENTÍFICA ..............................................................................93 3 OS OBJETOS E MÉTODOS DA ANTROPOLOGIA CIENTÍFICA .........................................101 4 OS OBJETOS E OS MÉTODOS DA ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA .................................110 5 OS OBJETOS E OS MÉTODOS DA ANTROPOLOGIA SOCIAL ...........................................120 RESUMO DO TÓPICO 1......................................................................................................................127 AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................128 sumário X TÓPICO 2 – ANTROPOLOGIA CULTURAL ................................................................................. 129 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 129 2 PARA UM CONCEITO DE CULTURA ......................................................................................... 130 3 CARACTERÍSTICAS DA ANTROPOLOGIA CULTURAL ...................................................... 134 4 A PARTE E O TODO NA ANTROPOLOGIA CULTURAL ...................................................... 142 5 OS MITOS, AS LENDAS E AS ARTES ......................................................................................... 146 RESUMO DO TÓPICO 2..................................................................................................................... 153 AUTOATIVIDADE .............................................................................................................................. 154 TÓPICO 3 – O QUE O HOMEM É?................................................................................................... 155 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 155 2 TODO HOMEM É UM FILÓSOFO? .............................................................................................. 156 3 O HOMEMÉ UM SER CULTURAL? ............................................................................................. 158 4 O HOMEM É UM SER SOCIAL? ................................................................................................... 163 5 O HOMEM É UM SER BIOLÓGICO? ........................................................................................... 168 6 O HOMO FABER COMO EMBLEMA DO CONCEITO MODERNO DE HOMEM ............ 172 LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................ 181 RESUMO DO TÓPICO 3..................................................................................................................... 184 AUTOATIVIDADE .............................................................................................................................. 185 UNIDADE 3 – O SER SE DIZ DE VÁRIOS MODOS: O HUMANO TAMBÉM ..................... 187 TÓPICO 1 – OS MODOS DE SER DO HUMANO ........................................................................ 189 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 189 2 A ONTOLOGIA OU O ESTUDO DO SER (DAQUILO QUE EXISTE) .................................. 190 3 O SER ALMA OU PSYCHÊ ............................................................................................................. 198 4 O SER DO CORPO, DA RAZÃO E DA VONTADE ................................................................... 203 5 O SER DO LIVRE .............................................................................................................................. 211 6 O SER DO AMOR, DO BEM E DO MAL ..................................................................................... 215 RESUMO DO TÓPICO 1..................................................................................................................... 218 AUTOATIVIDADE .............................................................................................................................. 219 TÓPICO 2 – OS MODOS DE SER DO TEMPO HUMANO ........................................................ 221 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 221 2 O SER DO TEMPO ............................................................................................................................ 221 3 O SER DA FINITUDE ....................................................................................................................... 224 4 O SER DA MORTE ............................................................................................................................ 225 RESUMO DO TÓPICO 2..................................................................................................................... 229 AUTOATIVIDADE .............................................................................................................................. 230 TÓPICO 3 – O SER DO HOMEM DITO EM RELAÇÃO ............................................................. 231 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 231 2 A RELIGIOSIDADE .......................................................................................................................... 231 3 A NATUREZA ..................................................................................................................................... 238 4 A TÉCNICA E A TECNOLOGIA .................................................................................................... 240 5 AS FORMAS DE COMUNICAÇÃO CONTEMPORÂNEAS ................................................... 242 LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................ 245 RESUMO DO TÓPICO 3..................................................................................................................... 248 AUTOATIVIDADE .............................................................................................................................. 249 REFERÊNCIAS ...................................................................................................................................... 251 1 UNIDADE 1 É POSSÍVEL ENTENDER O SER HUMANO? OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS A partir desta unidade, você será capaz de: • entender os objetivos e conteúdos desta disciplina para, a partir deles, de- senvolver a sua própria capacidade de compreender a si e aos outros no mundo; • perceber identidades e diferenças com as quais convivemos enquanto se- res humanos dotados de: razão, sentimentos, crenças e capacidade de agir individual e coletivamente; • refletir sobre como filósofos, antropólogos e sociólogos pensam, trabalham e comunicam o resultado de seus pensamentos e trabalhos aos outros; • descobrir que a atividade de todos nós, professores e estudantes, terá va- lor (ético) somente se for desenvolvida com os outros e não apenas para os outros, ou ainda pior, contra os outros. O Livro Didático desta disciplina está dividido em três unidades. Cada unidade está dividida em tópicos e cada tópico em itens, visando facilitar a separação dos assuntos. No final de cada tópico, você encontrará o seu respectivo resumo e autoatividade. Os resumos e as autoatividades têm a finalidade de ajudar a você a fixar os conhecimentos aqui expostos. Haverá, igualmente, a indicação de filmes para você assistir a eles e discuti-los com os colegas, bem como a indicação de leitura para quem quiser se aprofundar em determinado tema. No final das três unidades, apresento a bibliografia completa utilizada. Assim, comecemos pela Unidade 1. TÓPICO 1 – ANTROPOLOGIA: DEFINIÇÃO PRELIMINAR DOS TERMOS TÓPICO 2 – EXISTE UMA NATUREZA HUMANA? TÓPICO 3 – AS DIVERSAS IDADES DO HOMEM 2 3 TÓPICO 1 UNIDADE 1 ANTROPOLOGIA: DEFINIÇÃO PRELIMINAR DOS TERMOS 1 INTRODUÇÃO Prezado(a) acadêmico(a)! Para que você entenda com facilidade o que eu escrevo, vou escrever como se tivesse contando a história de uma viagem. Melhor, vou deixar a história por conta da sua inteligência e imaginação. Além disso, para ganhar tempo e não tirar o prazer de descobrir o que lhe interessa, vou contar como se faz uma viagem ao mundo de um saber que nos é muito caro: o saber sobre os seres humanos, para conhecer o que já se aprendeu e escreveu, historicamente, sobre nós mesmos. Vou tentar explicar como se estivesse falando, como se planeja e se organiza uma viagem. Portanto, eu apresento um roteiro e você escolhe a história, ou seja, o ponto de partida e o de chegada. Explicarei, na Unidade 2, que a este roteiro denominamos método. É claro que não há método sem conteúdo. Logo, o roteiro que estou apresentando terá algumas alternativas previamente determinadas, mas você continua livre para inventar outro roteiro. A nossa viagem começa justamente pelas definições preliminares. Aliás, elas sempre são preliminares, isto é, toda definição é necessariamente anterior a qualquer caminho a ser percorrido. Mas, fato curioso, somente quem já percorreu o caminho pode saber o que é anterior ao depois. Por isso, a definição não consegue antecipar a experiência do percurso, do trajeto a ser percorrido. Não consegue antecipar o prazer da chegada ao destino. Mas, por que então definir os termos de modo preliminar? Porque é preciso que tenhamos uma direção, um rumo, ou seja, precisamos conhecer com antecedência o dia e o ponto de partida, o ponto de chegada e os objetivos da viagem. Programar o GPS é o primeiro passo, o primeiro movimento, mas para sabermos se o GPS é dos bons, é preciso iniciar e concluir a viagem. Pois somenteassim você terá a experiência da viagem. A sua experiência será muito mais rica, porque você adicionou ao meu roteiro a história de sua escolha, que por sinal é a história da sua vida. A nossa disciplina denomina-se Antropologia Filosófica e Sociológica, no contexto cientificista contemporâneo. Portanto, o primeiro termo a ser definido é Antropologia, a partir da pergunta inicial desta unidade: é possível entender o ser humano? UNIDADE 1 | É POSSÍVEL ENTENDER O SER HUMANO? 4 Trata-se de uma pergunta feita propositadamente com duplo sentido. Ou seja, seria entender ou explicar que é o humano? O duplo sentido também está nas respostas possíveis: a resposta do senso comum, isto é, aquela que não precisamos definir, pois a conhecemos na prática e sempre a expressamos deste modo: “eu não consigo entender você”. Com este tipo de resposta não vamos nos preocupar, porque ela é comum a todos e, por ser comum a todos, é por todos conhecida. Todos operam com ela nas suas relações pessoais. O que interessa aqui é o outro sentido ou significado: entender o ser humano de um ponto de vista filosófico, científico e sociológico. Isto é, de um ponto de vista teórico e prático. Assim, teremos o senso comum como ponto de partida e a totalidade da práxis humana como ponto de chegada. Isto é, não abandonamos ou desprezamos o nosso conhecimento operativo do dia a dia, pois dele precisamos para agir no mundo, mas acrescentamos à nossa experiência outro, mais rico e profundo, o chamado conhecimento científico. Esta viagem vale o preço da passagem, porque não cansa, dá prazer e alimenta o nosso precioso ser humano com aquela palavra bonita que escrevi acima: a totalidade da práxis humana, que é na verdade o casamento perfeito entre teoria e prática, historicamente festejado por todos. NOTA É importante que você perceba desde agora, que o conhecimento meramente operativo, meww632289056wsmo o mais completo conhecimento filosófico ou científico, não dá conta de toda a complexidade da vida humana. 2 ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA Muitos são os autores que definem a Antropologia Filosófica, e é bom que seja assim, pois nada é mais útil na Filosofia e nas Ciências Humanas do que a discussão pública dos seus fundamentos. É isso mesmo, na Filosofia e nas Ciências Humanas é preciso que se discuta muito, mas sempre a partir de critérios publicamente justificáveis. Isto significa o seguinte: a Filosofia e as Ciências Humanas precisam ser praticadas com os outros. Essa afirmação ou assertiva, fazer com os outros, virou jargão publicitário, mas nem por isso ela perdeu a sua importância no âmbito do estudo das coisas humanas. Isto ocorre porque cada autor ou pensador, quando publica um livro, mesmo que ele o faça com a intenção explícita de convencer os outros de sua verdade, todos nós sabemos que se trata da verdade na perspectiva ou visão de uma pessoa, por mais sábia que ela seja. TÓPICO 1 | ANTROPOLOGIA: DEFINIÇÃO PRELIMINAR DOS TERMOS 5 Consequentemente, as suas ideias, tendo sido publicadas, estão sujeitas à crítica, e são as críticas que fazem com que possa ocorrer a revisão de pontos de vista equivocados, pois ninguém é infalível. Ao ser criticado, o autor terá a oportunidade de justificar o que escreveu, e assim sucessivamente. É por isso que muitas vezes ouvimos o seguinte: nem os filósofos se entendem. Esta expressão do senso comum apresenta um problema, porque o que ocorre é exatamente o contrário. É porque os filósofos, antropólogos, historiadores e outros pensadores se entendem que eles discutem. Se eles não se entendessem, a discussão seria impossível e o conhecimento ou deixaria de ser produzido ou se tornaria um dogma, uma religião, não uma ciência. Diante do exposto, passo a definir Antropologia. De acordo com Castoriadis (1992, p. 83), “dizer que vamos falar do ser humano significa que nos ocuparemos da antropologia. [...]. Antropologia é o logos que diz respeito ao antropos, ou seja, o discurso que diz respeito ao ser humano”. FIGURA 1 – CORNÉLIUS CASTORIADIS (1922-1997) FONTE: Disponível em: <pt.www.wikipédia.org/11/11/2012>. Acesso em: 20 out. 2012 Cornelius Castoriadis é um filósofo contemporâneo que nasceu na Grécia, por isso tomamos as suas explicações etimológicas como referência. Ele explica a diferença entre os termos anthropos e homem em várias línguas, como segue: [...] em grego se diz antropos, que é muito diferente de anere [homem] e gounet [mulher], como em latim se dizia homo, que é outra coisa que vir [homem] e femina [mulher], Homo [e] antropos é o ser genérico, o ser humano. Mas, infelizmente, em francês, inglês e português, se diz homem, tanto para o ser genérico, quanto para o ser masculino. [...] Antropologia, pois, discurso sobre o homem, reflexão, interrogação, que dizem respeito àquilo que é o homem. (CASTORIADIS, 1992, p. 83). O resumo citado indica a origem da palavra antropologia, que provém da junção de duas palavras gregas: anthropos e logos. Anthropos significa homem enquanto espécie humana, o que inclui, obviamente, mulheres e crianças. Logos UNIDADE 1 | É POSSÍVEL ENTENDER O SER HUMANO? 6 significa discurso racional organizado, dentre muitos outros sentidos. De onde se conclui que a Antropologia é uma ciência que procura apresentar um discurso coerente sobre a espécie humana historicamente constituída. O outro termo que é necessário definir é a expressão Filosofia, pois se trata de explicar o que é Antropologia Filosófica. Escolhi, para tanto, uma citação simples e resumida, mas que atende a esta finalidade e permite que eu faça algumas observações etimológicas que são de grande valia quando se quer entender alguma coisa a partir de sua origem ou quando se pretende ter instrumentos de análise do que podemos ou não levar a sério, no que diz respeito às publicações tanto na internet quanto nos livros. Por isso, utilizo uma citação extraída da Wikipédia: Filosofia (do grego Φιλοσοφία, literalmente «amor à sabedoria») é o estudo de problemas fundamentais relacionados à existência, ao conhecimento, à verdade, aos valores morais e estéticos, à mente e à linguagem. Ao abordar esses problemas, a filosofia se distingue da mitologia e da religião por sua ênfase em argumentos racionais; por outro lado, diferencia-se das pesquisas científicas por geralmente não recorrer a procedimentos empíricos em suas investigações. Entre seus métodos estão a argumentação lógica, a análise conceptual, as experiências de pensamento e outros métodos a priori. (WIKIPÉDIA, 2012). Trata-se, como afirmei acima, de uma definição simples, mas ela também é bastante concisa. A Filosofia é um campo de conhecimento específico: não é mitologia, não é religião e se utiliza de argumentos racionais. Mesmo utilizando-se exclusivamente de argumentos racionais, ela também não é ciência nos moldes das demais Ciências Humanas e da Natureza. Isso quer dizer que ela não tem, por exemplo, como provar matematicamente o que afirma, porque não é uma ciência exata. Mas pode criar muitos problemas no âmbito desta importante disciplina, quando o filósofo for capaz de fazer as perguntas certas aos cientistas. Como Filosofia, não tem como provar o que afirma, ela precisa justificar os seus argumentos a partir da linguagem mesmo. Isto é, aquilo que ela explica não pode ir além da compreensão humana. A Filosofia limita-se ao que é humano. Por outro lado, a Teologia, embora também se utilize de um discurso racional, não precisa justificar o que afirma, pois ela trata de crenças religiosas, da existência de divindades e de um plano que não é o humano, racional e temporal, mas daquilo que não estaria ao alcance do humano e que seria anistórico, quer dizer, fora do tempo histórico. Apresento, agora, o comentário etimológico ou mesmo filológico, isto é, de onde vêm aspalavras e o que significam. Você leu na citação que Filosofia significa “literalmente amor à sabedoria”. TÓPICO 1 | ANTROPOLOGIA: DEFINIÇÃO PRELIMINAR DOS TERMOS 7 FIGURA 2 – EROS. DEUS DO AMOR DA MITOLOGIA GREGA FONTE: Disponível em: <portalsaofrancisco.com.br>. Acesso em: 20 out. 2012. Eu prefiro utilizar outra expressão, embora a expressão “amor à sabedoria” possa ser utilizada em sentido figurado para definir o que vem a ser a palavra Filosofia. Eu prefiro utilizar a palavra amizade (philia) em vez de amor, porque amizade é uma palavra que está mais próxima etimologicamente de philos. Ser amigo do saber é estar envolvido amistosamente com ele sem ficar cego, diante das forças poderosas de Eros, o deus do amor da mitologia grega. Isto é, o amor, às vezes, nos deixa cegos, a amizade não, pois amigo é aquele que, quando for preciso, abre os nossos olhos com a força de sua crítica. A tradução de philos por amor não pode ser considerada literal, pois philia, que significa literalmente amizade, é o primeiro termo na composição da palavra Filosofia. Amor traduz-se por Eros. E nós não temos como saber com certeza qual é o grau de exatidão do que os filólogos chamam de estabelecimento dos textos gregos. NOTA Os filósofos gregos não escreviam de próprio punho, pois naquela época não era costume um homem culto escrever, por isso eles ditavam os seus textos para os escravos. Não havia livros como nós os conhecemos. Muitos textos estão perdidos para sempre e outros podem, eventualmente, ser ainda encontrados por intermédio da pesquisa arqueológica. Os textos que nós conhecemos são o resultado de estabelecimentos tardios, muitos dos quais no século XIX, isto é, mais de dois mil anos depois de sua composição. E estes estabelecimentos, ou seja, agrupamento de textos, tradução e atribuição de autoria, podem estar profundamente impregnados de crença religiosa, daí, por exemplo, utilizar-se “amor” em vez de “amizade” na tradução, pois o termo amor aproximaria mais os filósofos ditos pagãos à doutrina cristã. Philia é uma palavra marcada pela política grega, por isso não era e nem é muito apreciada pelas doutrinas religiosas. As doutrinas religiosas herdeiras da tradição abraâmica seguem mais a perspectiva política monárquica, ao contrário das tradições grega e romana do período anterior à nossa era, ou seja, a. C. UNIDADE 1 | É POSSÍVEL ENTENDER O SER HUMANO? 8 A partir da concepção de que Antropologia é a disciplina que estuda a espécie humana em sua práxis fundante e a Filosofia como o estudo das preocupações existenciais humanas, conclui-se que a Antropologia Filosófica é o estudo filosófico daquilo que pertence à espécie humana. Portanto, não é uma interpretação científica e nem teológica, mas uma interpretação humana das coisas humanas, cujos resultados são expressos de modo racional e precisam ser justificados. 3 ANTROPOLOGIA CIENTÍFICA A definição de Antropologia é a mesma do item anterior. Porém, a adjetivação (científica) feita é que precisa ser explicitada. Assim como afirmei que muitos autores escreveram e escrevem sobre a Antropologia Filosófica, também da Antropologia Científica se pode afirmar o mesmo: muitos escritores investem tempo e energia para mostrar que os seus argumentos são verdadeiros. Porém, ao contrário da Antropologia Filosófica, a Antropologia dita científica primeiro precisou ser reconhecida como ciência. A Filosofia, como já foi visto, não é ciência e, por isso, não precisa provar os seus argumentos, mas justificá-los. Isso significa que não se pode escrever qualquer coisa e afirmar que esta coisa qualquer seja filosófica. Muito pelo contrário, a Filosofia também tem métodos de investigação e normas muito rígidas de exposição argumentativa. FIGURA 3 – PLATÃO. FILÓSOFO GREGO (428/27-348/7 A.C.) FONTE: Disponível em: <pt.wikipedia.org/wiki/ Platão/12/11/2012>. Acesso em: 20 out. 2012. A Filosofia é uma disciplina que existe há pelo menos dois mil e quinhentos anos. E neste período passou por várias modificações. Alcançou seu ponto mais alto com Platão e Aristóteles no século IV a. C., entrando posteriormente em declínio, tendo sido, inclusive, declarada, por teólogos cristãos, escrava da Teologia. TÓPICO 1 | ANTROPOLOGIA: DEFINIÇÃO PRELIMINAR DOS TERMOS 9 Ela começou a libertar-se da Teologia a partir do Renascimento, sendo hoje uma disciplina autônoma e consolidada, muito embora seja severamente criticada tanto por cientistas quanto por instituições ou pessoas que defendem alguma doutrina esotérica. Os cientistas que criticam a Filosofia, normalmente, são aqueles que não a compreendem, e os esotéricos são aqueles que ganham dinheiro explorando a credulidade ingênua de pessoas que, por um motivo ou outro, não conseguiram formar opinião crítica própria. A Antropologia é uma ciência recente e precisou provar primeiro que é uma ciência e, depois, que as suas afirmações eram ou são científicas. Trata-se, portanto, de uma tarefa gigantesca enfrentada pelos antropólogos. Talvez seja por isso, que a Antropologia apresente ainda alguns problemas de método, de objeto e de estatuto epistemológico. Para que você não se assuste com este palavreado técnico, eu explico: método é o como se faz uma pesquisa, o objeto é o tema, assunto a ser estudado, pesquisado, e estatuto epistemológico diz do tipo de ciência que a Antropologia quer ser. Pois episteme, em grego, significa ciência, e logos, como já vimos, discurso racionalmente organizado. Da junção de episteme e logos advém epistemologia, que significa, portanto, o discurso, a explicação que se tem da ciência. Destarte, a antropologia científica enquanto ciência deve ter um método de investigação e um objeto bem definidos. Além de tudo, precisa provar as suas afirmações através de argumentos racionais. E isso significa utilizar argumentos não contraditórios, da mesma maneira que as outras ciências o fazem, a fim de estabelecer certas leis gerais que permitam a compreensão do homem em sua práxis fundante. 4 ANTROPOLOGIA SOCIOLÓGICA Aqui se torna necessário retomar o título de nossa disciplina, antes de avançar a definição de Antropologia Sociológica, pois me parece necessário estabelecer um critério de abordagem do problema. UNI Explico: vou retomar o título da disciplina porque nele se encontra algo muito importante para discutir, antes de explicar o que podemos entender por Antropologia Sociológica. UNIDADE 1 | É POSSÍVEL ENTENDER O SER HUMANO? 10 É que o título apresenta a conjunção e: Antropologia Filosófica e Sociológica no contexto cientificista contemporâneo. A conjunção e entre os termos que implicam Filosofia e Sociologia pode sugerir que estejamos tratando de tudo e nada ao mesmo tempo, sem um critério de pretensão de verdade e sem um método de análise, mas não é bem assim. Ao discutir a questão da universidade contemporânea, Paulo R. Schneider (2001, p. 223-242) afirma que “a linguagem humana oferece uma possibilidade de explicar as coisas de modo compreensível e claro, sendo necessário, para tanto, apenas a decisão de assim o fazer”. Ele explica isso a partir dos dois tipos de genitivo que estão presentes na linguagem: o genitivo subjetivo e o genitivo objetivo. “O genitivo subjetivo indica a posse de algo que alguém afirma” (2002, p. 234). Ocorre que a posse não é critério de qualificação filosófica e ou científica, “pelo fato de não se constituir em descrição de estudo, pesquisa e extensão, enfim, em interesse na continuidade da argumentação crítico-analítica, dialética e hermenêutico-dialógica entre pontos de vista diversos”. (SCHNEIDER, 2002, p. 234). O que está contido no genitivo subjetivo é que as coisas devem ser deixadas como estão, pois o sujeito que detém a posse de um determinado saber ou objeto é do que possui o seusenhor em termos absolutos. Quanto ao genitivo objetivo a questão se inverte, pois: o genitivo objetivo nomeia em seu segundo termo o objeto necessário e constituído por todos os métodos [mencionados no caso do genitivo subjetivo], enquanto que o primeiro [termo] assume o ponto de vista a partir do qual se constitui a objetividade, que um determinado ponto de vista instaura como possibilidade de interlocução o interesse por, o estudo sobre, a tematização a partir de uma perspectiva, que só se alcança pelo diálogo, pela escuta, pergunta e resposta. (SCHNEIDER, 2002, p. 235). “Esta perspectiva implica a utilização de métodos e critérios de verdade contra a banalização, contra o diletantismo e contra absurdos semânticos possíveis no âmbito do genitivo subjetivo”. (SCHNEIDER, 2002, p. 236). O terceiro aspecto deste problema da delimitação do lugar de onde se situam professores, alunos, pesquisadores, enquanto sujeitos que apreendem um objeto de estudo, é o caso da conjunção e, presente no título da nossa disciplina. Ainda de acordo com Schneider, títulos que utilizam a conjunção e podem induzir a equívocos: A conjunção é a própria possibilidade do universo superposto, ou contraposto, ou gradualizado, ou a pretensão de tudo e nada ao mesmo tempo. A conjunção não consegue explicitar a clareza da perspectiva de análise, aliás, nunca nomeada, nem constituir objetividade capaz de interlocução pelos métodos instaurados para esse fim. (2002, p. 236). TÓPICO 1 | ANTROPOLOGIA: DEFINIÇÃO PRELIMINAR DOS TERMOS 11 UNI Caro(a) acadêmico(a)! Fui obrigado a utilizar estes conceitos técnicos um pouco mais complexos para mostrar que a nossa disciplina não apresenta os problemas acima mencionados, embora utilize a conjunção e no seu título. Não os apresenta porque métodos e objetos estão definidos e a conjunção aqui utilizada diz somente de que se trata de dois aspectos de um mesmo problema: o estudo do homem (anthropos) de um ponto de vista filosófico e de um ponto de vista sociológico. No caso, o homem é sujeito e objeto de estudo. Isto é, somos estudantes e estudados ao mesmo tempo, tanto de um ponto de vista filosófico, quanto de um ponto de vista sociológico. Relativamente ao caso de sermos sujeito e objeto ao mesmo tempo, não quer dizer que todos sejamos antropólogos em sentido estrito, mas que existem antropólogos (sujeitos da ação de estudar) os quais, necessariamente, pertencem à espécie humana e que estudam humanos (objetos da ação de estudar). UNI Estas questões, por serem técnicas e complexas, são explicadas na Unidade 2, com mais detalhes. Não se trata, igualmente, de misturar as perspectivas filosófica e sociológica de tal sorte que tenhamos “tudo e nada ao mesmo tempo”. No nosso caso, a antropologia será estudada do ponto de vista filosófico e sociológico, sem descuidar, portanto, daquilo que é próprio da Filosofia e nem daquilo que é próprio da Sociologia. É por esta razão que separamos todos os tópicos e itens de acordo com a especificidade de método e objeto de cada aspecto da Antropologia a ser estudado. De um ponto de vista científico, os antropólogos dividem a sua disciplina em vários campos específicos, como a Antropologia Cultural, Biológica e Social. Os filósofos estudam a Antropologia de um ponto de vista filosófico. A diferença entre a Antropologia Científica e a Filosófica é a de que, no primeiro caso, é necessário e indispensável que os antropólogos realizem minuciosa pesquisa de campo, isto é, façam a coleta de materiais, de dados sobre práticas e costumes, ou seja, obtenham o máximo de dados empíricos. UNIDADE 1 | É POSSÍVEL ENTENDER O SER HUMANO? 12 5 ANTROPOLOGIA CULTURAL Este campo da Antropologia foi desenvolvido mais especificamente nos Estados Unidos e, por isso, sofre influência do modo de pensar americano. Porém, para o nosso interesse, visto que já definimos Antropologia, parece importante definir razoavelmente o que significa cultura. UNI Caro(a) acadêmico(a)! Para tanto, vou proceder do mesmo modo que nas definições anteriores, vou citar uma definição simples e preliminar, a fim de utilizá-la para realizar os meus comentários. Cultura (do latim colere, que significa cultivar) é um conceito de várias acepções, sendo a mais corrente a definição genérica formulada por Edward B. Tylor, segundo a qual cultura é “aquele todo complexo que inclui o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, a lei, os costumes e todos os outros hábitos e aptidões adquiridos pelo homem como membro da sociedade”. Em Roma, na língua latina, seu antepassado etimológico tinha o sentido de “agricultura” (significado que a palavra mantém ainda hoje em determinados contextos), como empregado por Varrão, por exemplo. Cultura é também associada, comumente, a altas formas de manifestação artística e/ No segundo caso, a pesquisa de campo não é necessária, porque a Filosofia trabalha com conceitos e não com dados empíricos. Esta diferença é muito importante. No campo da Antropologia Social é necessária a pesquisa das relações sociais que se estabelecem no interior de uma determinada sociedade. No caso da Antropologia Filosófica, trabalhamos com os conceitos ou com as conclusões das outras ciências, perguntando sobre o seu valor de verdade. Assim sendo, no nosso caso, no fundo iremos realizar uma abordagem filosófica do sociológico, porque a Antropologia Filosófica não tem como fazer pesquisa de campo. Não quer dizer, contudo, que o filósofo possa abandonar ou distanciar-se da realidade. E, assim fazendo, a partir de algum absoluto metafísico deduzir consequências logicamente necessárias, as quais poderão ser corretas de acordo com a lógica formal, mas erradas quanto ao seu conteúdo. TÓPICO 1 | ANTROPOLOGIA: DEFINIÇÃO PRELIMINAR DOS TERMOS 13 ou técnica da humanidade, como a música erudita europeia (o termo alemão “Kultur” – cultura – se aproxima mais desta definição). Definições de cultura foram realizadas por Ralph Linton, Leslie White, Clifford Geertz, Franz Boas, Malinowski e outros cientistas sociais. Em um estudo aprofundado, Alfred Kroeber e Clyde Kluckhohn encontraram pelo menos 167 definições diferentes para o termo cultura. Por ter sido fortemente associada ao conceito de civilização no século XVIII, a cultura muitas vezes se confunde com noções de: desenvolvimento, educação, bons costumes, etiqueta e comportamentos de elite. Essa confusão entre cultura e civilização foi comum, sobretudo, na França e na Inglaterra dos séculos XVIII e XIX, onde cultura se referia a um ideal [da classe dominante]. Ela possibilitou o surgimento da dicotomia (e, eventualmente, hierarquização) entre “cultura erudita” e “cultura popular”, melhor representada nos textos de Matthew Arnold, ainda fortemente presente no imaginário das sociedades ocidentais. FONTE: Disponível em: <pt.wikipedia.org/>. Acesso em: 20 jul. 2012. Como se observa, as definições de cultura oferecem um prato cheio para ser degustado lentamente. Sim, porque quando estamos viajando precisamos parar em algum ponto para nos alimentarmos. Por certo, estas definições estão marcadas profundamente por posições ideológicas as mais diversas, e não cabe aqui desvendá-las. Porém, como se observa, quase todas as definições foram escritas por antropólogos, o que indica que estamos bem próximos do nosso campo de estudo. Consequentemente, vou comentar apenas o que considero o cerne da questão. Ou seja, a definição primeira de cultura: “aquele todo complexo que inclui o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, a lei, os costumes e todos os outros hábitos e aptidões adquiridos pelo homem como membro da sociedade”, formulada por Edward B. Tylor. A primeira parte de sua definição pode ser aceita tranquilamente, isto é, a noção de todo complexo de conhecimento: crenças, arte,moral, leis, costumes e hábitos. A segunda parte é que apresenta problemas. O autor afirma que tudo isso foi “adquirido pelo homem como membro da sociedade”. A não ser que haja problemas de tradução, o que é pouco provável, não se trata de mera aquisição que os seres humanos fizeram como membros da sociedade humana, pois isso supõe situar a cultura e a sociedade como exteriores e anteriores ao humano. UNIDADE 1 | É POSSÍVEL ENTENDER O SER HUMANO? 14 UNI Explico: a cultura e a sociedade são produções exclusivamente humanas, são criações humanas, isto é, nem a cultura e nem a sociedade estavam prontas antes que o trabalho humano as fizesse existir. É claro que todos os dias nascem crianças dentro de culturas e sociedades existentes e, para elas, é como se tudo já estivesse pronto. Mas isto que para a criança parece estar pronto foi historicamente produzido por todas as pessoas, que já existiram há pelo menos quatro milhões de anos! De qualquer modo, a Antropologia Cultural que, muitas vezes, se confunde com a Antropologia Social, trata dos fenômenos culturais das sociedades humanas como um todo. É isso que pretendemos explicar na Unidade 2, no Tópico 2. 6 A CIÊNCIA E O CIENTIFICISMO Este assunto é bastante adequado para que se possa perceber o lugar do Anthropos no mundo contemporâneo. A cultura humana é produto do trabalho humano. Portanto, aquilo que produzimos social e culturalmente é de nossa inteira responsabilidade. Mas você pode se perguntar: o que eu tenho a ver com o fato de o presidente Harry S. Truman ter ordenado um ataque com bombas nucleares contra as cidades japonesas de Nagasaki e Hiroshima em 1945? Enquanto indivíduo isolado, você não pode ser responsabilizado pelo que já aconteceu e nem por muita coisa que irá ainda acontecer, assim como não somos responsáveis pelos erros de nossos pais e avós, por exemplo. No entanto, somos herdeiros de tudo o que aconteceu para o bem e para o mal. Isto é, o bem e o mal são produtos humanos e não dois princípios absolutos que governam o mundo, como postulava o profeta persa Maniqueus (216–276 d. C.). Nesse sentido, todos nós somos responsáveis, porque somos herdeiros da nossa cultura. Podemos, contudo, criticá-la e modificá-la, bem como responsabilizar as pessoas que praticam atos monstruosos ou mesmo pequenos delitos, mas é muito mais fácil perceber os pequenos delitos do que criticar os atos monstruosos. Os pequenos delitos estão mais perto de nós e são mais visíveis e perceptíveis. NOTA No item 2.5 explicarei com mais detalhes e a partir da ciência, que as noções de bem e mal têm implicações mais complexas. TÓPICO 1 | ANTROPOLOGIA: DEFINIÇÃO PRELIMINAR DOS TERMOS 15 O que isso tem a ver com ciência e cientificismo? A bomba nuclear é um típico produto da ciência mais avançada do mundo. No entanto, ela, assim como outros produtos da ciência, serviu para a destruição em massa. Isso também é mais fácil de perceber. O que não é fácil perceber é o bem que a ciência produz. UNI Outra coisa difícil é encontrar uma definição satisfatória de ciência, razão pela qual vou tentar escrever uma definição razoável. Como a maioria de nossas palavras tem origem no grego e no latim, a palavra ciência também. Pelo lado grego é episteme, que significa experiência, de onde vem epistemologia, discurso sobre a ciência. Pelo latim, scientia, palavra mais próxima nossa. A ciência é uma atividade racional, meticulosa e metódica, que busca compreender como a natureza das coisas funciona e o que se pode fazer com esse funcionamento. Portanto, é uma atividade e um trabalho. A ciência pretende conhecer uma determinada realidade por intermédio de um método, o qual precisa ser adequado ao objeto, que é a realidade que se quer conhecer. Como tudo, a ciência também teve um desenvolvimento, nem sempre linear e cumulativo, mas no conjunto, o acúmulo de conhecimentos científicos permite que os cientistas conheçam cada vez mais realidades. Ou seja, cada vez mais a natureza das coisas, tanto do ponto de vista particular quanto geral. Praticamente não há nada que não possa ser investigado, o que não quer dizer que não haja nada que não possa ser conhecido. Há muita coisa que desconhecemos. As ciências se dividem em Ciências Humanas e Ciências da Natureza. Além destas modalidades científicas, existe a Filosofia, que não pode ser qualificada como ciência, mesmo que, por vezes, ela seja incluída entre as Ciências Humanas. Aliás, hoje a Filosofia virou o alvo preferido da maioria das pessoas que quer falar mal de alguma coisa: a culpa sempre é dos filósofos e da Filosofia, mesmo que não saibam o que seja a Filosofia. Por outro lado, compreender o que seja um cientista parece mais fácil. E até poderíamos brincar com a definição: o cientista é o que faz ciência. Na verdade, o cientista não “faz ciência” no sentido de fabricá-la. Ele investiga teorias, métodos, produz equipamentos para as experimentações, faz experimentações e assim por diante. O conjunto destas atividades é de fato um “fazer científico” que depende exclusivamente do trabalho humano, dos cientistas e dos não cientistas. É claro, UNIDADE 1 | É POSSÍVEL ENTENDER O SER HUMANO? 16 pois o trabalho é sempre uma atividade social, muito embora a capacidade e a decisão de se tornar cientista sejam individuais. Mesmo assim, um cientista não é nenhum gênio maluco que trabalha isolado. Ao contrário, os cientistas, hoje em dia, trabalham em ampla conexão e discussão uns com os outros. Ciência, na verdade, é apenas uma palavra como muitas outras. Ela somente ganha significado a partir da atividade de cientistas. UNI Acredito que, em relação às definições de ciência e de cientista, não haja muita discussão. O contrário ocorre no campo do cientificismo ou cientismo. Aí o bicho pega, pois, no afã de combater dogmas metafísicos e o idealismo romântico, muitos cientistas que seguiam o método empirista passaram a criticar com certa veemência também os filósofos e os cientistas sociais. De modo idêntico, alguns cientistas, digamos, mais especulativos, também foram criticados. Desse modo, acabou sendo criada a convicção de que a única ciência possível era aquela que primasse pela experimentação empírica, conforme a citação a seguir: Cientificismo ou cientismo é um termo forjado na França durante a segunda metade do século XIX (scientisme) para designar a escola de pensamento que aceita apenas a ciência empiricamente verificável como fonte de explicação de tudo o que existe. Assim, o termo tem sido aplicado para descrever a visão de que as ciências formais e naturais têm primazia sobre outros campos de pesquisa, tais como: as ciências sociais ou humanas. Além de seu significado original, a palavra também é usada muitas vezes como um termo pejorativo contra explicações racionais dadas pelas ciências empíricas, com destaque para as ciências naturais, a fim de tentar desacreditar explicações científicas plenamente válidas que contrastam com argumentos de caráter filosófico, religioso, mítico, espiritual, humanístico ou pseudocientífico. FONTE: Disponível em: <pt.wikipédia.org>. Acesso em: 20 jul. 2012. Como você acabou de ler, este é um tema que precisa ser tratado com cuidado devido à sua complexidade, relativamente à ética e à própria noção de ciência. Não se trata, pois, de questionar as crenças individuais, mas de colocar as coisas em seus devidos lugares. TÓPICO 1 | ANTROPOLOGIA: DEFINIÇÃO PRELIMINAR DOS TERMOS 17 UNI Explico: de acordo com a definição de ciência acima apresentada, não se pode misturar as coisas. Existem fenômenos que são passíveis de tratamento científico e existem crenças que não podem ser estudadas cientificamente nem filosoficamente. Isto é, dar à Ciência o que é da Ciência, dar à Filosofia o que é da Filosofiae dar à Teologia o que é da Teologia. O que pode ser estudado tanto científica quanto filosoficamente é tão somente a existência de crenças religiosas ou não. Mas nem sempre o conteúdo das crenças pode ser explicado de modo científico ou filosófico. A crença de que a Ciência livraria todas as pessoas de todos os males é ilusória. Estudar esta ilusão é algo complexo, mesmo no campo da antropologia. Estudar a existência da crença de que a Ciência pode livrar a humanidade de todos os males é factível do ponto de vista da Filosofia e da Ciência, mas não do ponto de vista da Teologia, pois a Teologia trata da crença na existência de divindades. Como você está percebendo, o cientificismo não é um campo do conhecimento, uma disciplina científica, mas é um posicionamento ideológico frente à ciência. Só admitir como ciência aquilo que é empiricamente verificável é Tão ideológico quanto dizer o contrário. É claro que a possibilidade de verificação empírica, isto é, de fazer experiências para inferir leis gerais, é uma postura epistemológica importante, mas quem verifica o quê? Nos folhetins novelescos e na publicidade, ouvimos com frequência alusão a pesquisas científicas em sentido nitidamente depreciativo, tanto da inteligência das pessoas em geral, quanto da dos cientistas. Por exemplo, vidas passadas são pesquisadas pela Psicologia para provar que o amor eterno existe. Ora, a licença para inventar fábulas é facultada ao escritor de novelas, ao romancista e ao poeta. Porém, mesmo com esta licença não é moralmente aceitável que um escritor desqualifique o estatuto de ciência da psicologia. Por que em vez de um psicólogo ele não põe como personagem simplesmente um iluminado qualquer? Se nas novelas a coisa é grave, imagine na publicidade, quando ouvimos a clássica afirmação: “Cientistas provam” que a casca da árvore da vida cura reumatismo e mais uma dúzia de doenças. Tome chá de casca da árvore da vida, três vezes por dia e adeus hemorroidas! Ora, quem são estes pretensos cientistas? Ninguém jamais saberá. Portanto, afirmações como estas são pejorativas, isto é, desqualificam a ciência, mesmo que não intencionalmente. UNIDADE 1 | É POSSÍVEL ENTENDER O SER HUMANO? 18 Os exemplos acima são tirados do dia a dia. Eles são apenas um ponto de partida para que se possa pensar sobre este tema. A ciência é uma atividade que envolve questões econômicas, políticas, éticas e sociais. Nosso mundo seria impensável sem ela. Mesmo assim, não se pode afirmar que a ciência possa explicar ou resolver tudo. O mundo humano é mais complexo do que a própria ciência. Por isso mesmo, não podemos fazer afirmações que não possam ser justificadas, como, por exemplo, colocar no mesmo nível argumentativo ou ontológico coisas diferentes, como afirmar que existem duas teorias capazes de explicar a origem do mundo e a existência dos humanos na Terra. A evolução e o criacionismo. A primeira é uma teoria científica que até pode falhar em muitos aspectos, mas é a teoria de que a ciência dispõe. A segunda hipótese é uma doutrina religiosa que afirma a criação do mundo a partir do nada, na qual as pessoas podem acreditar ou não. A primeira precisa ser estudada e levada a sério, até para que possa ser criticada, pois não podemos criticar aquilo que não conhecemos. A segunda possibilidade implica em crença religiosa e depende da liberdade de cada um nela acreditar ou não. A atitude de criticar o que não se conhece é a mesma do que a de dizer de um livro o seguinte: não o li e não gostei, ou não li o livro porque não gosto dele. O exemplo do livro não lido é típico da atitude do cientificismo contemporâneo. 19 Neste tópico você viu que: • Que o nosso ponto de partida foi a definição de todos os termos constituintes do nome de nossa disciplina, a partir da pergunta: É possível entender o ser humano? Na resposta, fomos do senso comum ao conhecimento científico ou filosófico. Não abandonamos o conhecimento operativo do dia a dia, pois dele precisamos para agir no mundo. • Que a Antropologia estuda a espécie humana em sua práxis fundante e a Filosofia, o estudo das preocupações existenciais humanas. Conclusão: a Antropologia Filosófica é o estudo filosófico daquilo que pertence à espécie humana, não sendo interpretação científica ou teológica, mas interpretação humana das coisas humanas, cujos resultados são expressos de modo racional e precisam ser justificados. • Que a Antropologia Científica deve ter um método de investigação e um objeto bem definidos. Ela precisa provar as suas afirmações através de argumentos racionais, não contraditórios, da mesma maneira que as outras ciências o fazem, a fim de estabelecer certas leis gerais que permitam a compreensão do homem em sua práxis fundante. • Que a Antropologia Social precisa fazer pesquisa de campo das relações sociais que se estabelecem no interior de uma determinada sociedade; que no caso da Antropologia Filosófica trabalhamos com conceitos ou conclusões das outras ciências, perguntando sobre o seu valor de verdade. No fundo se faz uma abordagem filosófica do sociológico. O Filósofo não pode, porém, abandonar a realidade. Não pode partir de algum absoluto metafísico e deduzir dele consequências logicamente necessárias, pois elas poderão ser formalmente corretas, mas erradas quanto ao seu conteúdo. • Que a Antropologia Cultural, que, muitas vezes, se confunde com a Antropologia Social, trata dos fenômenos culturais das sociedades humanas como um todo. • Que a Ciência é uma atividade racional, meticulosa, metódica e busca compreender como a natureza das coisas funciona e o que se pode fazer com esse funcionamento. É uma atividade, um trabalho, portanto. O cientificismo é uma postura ideológica frente a ciência que a supõe como a única detentora da verdade. RESUMO DO TÓPICO 1 20 A partir das definições preliminares, quais são as diferenças entre os vários campos temáticos das antropologias filosófica e científica? AUTOATIVIDADE 21 TÓPICO 2 EXISTE UMA NATUREZA HUMANA? UNIDADE 1 1 INTRODUÇÃO Neste tópico vou responder à pergunta formulada, a partir de vários pontos de vista. Isto não implica que eu não tenha uma posição filosófica e/ou científica a respeito, mas por questões didáticas é melhor mostrar algumas das posições existentes. No meu modo de entender, a questão da existência ou não de uma natureza humana é relevante para que possamos entender o lugar dos seres humanos no mundo contemporâneo. Por aludir a lugar, é bom lembrar que o antropólogo francês Marc Augé publicou em Paris, em 1992, um livro denominado “Não lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade”, traduzido para o português em 1994, que trata do próximo e do distante, do lugar antropológico e da complicada questão dos que vão dos lugares aos não lugares e destes aos mais diversos lugares. Mas, o que este livro tem a ver com a existência ou não de uma natureza humana? Em princípio, muito pouco, mas se pensarmos que o não lugar é o lugar da impessoalidade e da não sociabilidade, teremos, com certeza, um ponto de tangência muito forte com a ideia de natureza humana. UNI Os pontos de vista que vou apresentar serão as explicações da Religião Cristã, da Filosofia, da Sociologia e da Biologia Evolutiva, tendo como plano de fundo a Antropologia. Seguirei, em alguns aspectos, o livro “Tábula Rasa: a negação contemporânea da natureza humana”, de Steven Pinker, publicado nos Estados Unidos em 2002. A tradução brasileira é de 2004, sendo, portanto, um livro recente, que apresenta algumas das descobertas científicas no âmbito da biologia humana que são significativas para a discussão sobre a existência ou não de uma natureza humana. Para defender o seu ponto de vista, o autor faz um apanhado histórico do pensamento ocidental.Não concordo com a totalidade dos seus comentários, mas, cientificamente, Pinker levanta questões justas, razão suficiente para tomar o seu livro como um dos pontos de partida na realização de nossa tarefa no restante deste livro-texto. Em princípio, portanto, natureza humana é aquilo que é bioculturalmente universal para o anthropos. UNIDADE 1 | É POSSÍVEL ENTENDER O SER HUMANO? 22 2 EXPLICAÇÃO RELIGIOSA UNI Afirmei na introdução que a explicação religiosa da natureza humana será dada a partir da doutrina cristã. Embora existam outras religiões importantes no mundo, a cultura ocidental foi e é influenciada pelo cristianismo. Veja na citação a seguir o resultado de uma pesquisa realizada em 2005 pela Enciclopédia Britânica sobre a prevalência das principais religiões. As principais religiões do mundo e tradições espirituais podem ser classificadas em um número menor de grupos maiores ou religiões mundiais. De acordo com uma pesquisa realizada em 2005 pela Encyclopædia Britannica, a maioria vasta de aderentes religiosos e espirituais seguia o cristianismo (33,06% da população mundial), islã (21%), hinduísmo (13,33%), religião tradicional chinesa (6,27%) ou budismo (5,87%). A irreligiosidade e o ateísmo respondem por 14,27% e 3,97% da população mundial. (WIKIPEDIA, 2012). Trata-se de informações que habitualmente não se tem acesso. Por isso é importante comentá-las, pois o articulista exagera em seu desejo de apregoar a supremacia do cristianismo como religião mundial. A marca de 33,06% corresponde a um terço da população e não “a maioria vasta”. Há ainda que se considerar que existem diferenças entre os cristãos: existem os católicos romanos, os ortodoxos e os protestantes que se dividem numa infinidade de comunidades religiosas. Contudo, um terço da população é uma marca considerável. Além de nomear as principais religiões, a referida pesquisa revela outro dado importante: os não religiosos e os ateus perfazem, hoje, mais ou menos 19% da população mundial. Isso significa que praticamente um quinto da população mundial ou não tem religião ou se declara ateia. Parte deste grupo populacional também está localizada no Ocidente. Leia na citação seguinte, da mesma fonte, outro aspecto importante das religiões ou “tradições espirituais” que é o do seu agrupamento doutrinário: Estas tradições espirituais podem ser também combinadas em grupos maiores, ou separadas em subdenominações menores. O cristianismo, islão e o judaísmo (e às vezes a Fé Bahá'í) podem ser unidos como religiões abraâmicas. O hinduísmo, budismo, sikhismo e jainismo são classificados como religiões indianas (ou dármicas). A religião tradicional chinesa, confucionismo, taoísmo e shinto são classificados como religiões da Ásia Oriental. (WIKIPEDIA, 2012). TÓPICO 2 | EXISTE UMA NATUREZA HUMANA? 23 As informações apresentadas também são importantes para que você tenha uma noção da distribuição das doutrinas religiosas pelo mundo. Além disso, é possível verificar na filiação das chamadas tradições espirituais o caráter patriarcal das principais religiões, pois a maioria se diz herdeira do personagem bíblico chamado de Abraão. Conforme o Gênesis, Abraão seria o fundador do monoteísmo judaico, do qual se originam o judaísmo tradicional, o cristianismo e o islamismo. É, pois, desta origem que emana a noção de natureza humana destas religiões. UNI Caro(a) acadêmico(a)! Antes de apresentar a noção cristã de natureza humana, farei uma breve exposição da origem das religiões a partir da história da ciência. A humanidade, em seu alvorecer, não tinha um corpo sistemático de explicações como nós temos depois do advento da Filosofia e das Ciências. Além disso, se explicar o conhecido é difícil, imagine você explicar o desconhecido. Aos poucos, porém, especialmente depois do advento da linguagem falada, as explicações começaram a ser formuladas, sendo as primeiras delas as mágicas, as míticas e as religiosas. Podemos considerar este começo como sendo uma aventura da razão humana, aliás, como escrevi em 1998 na minha dissertação de mestrado: “A grande aventura da razão começa com a magia”. O caminho da magia divide o mundo entre as coisas visíveis, os entes, e as coisas invisíveis, o mundo dos espíritos, que por não serem visíveis, mas apenas perceptíveis, como as forças psíquicas, por exemplo, ganham aos poucos um estatuto ôntico relevante. Estes seres invisíveis possuem um poder sobre-humano e precisam ser bem tratados para que interfiram em favor dos homens. Esse bom tratamento é dado pelos primeiros sacerdotes, que têm a responsabilidade de prover a subsistência para a sobrevivência da espécie. Nesse momento da história das mais diversas civilizações, a dança da chuva implica certo grau de conhecimento científico, não muito diferente do conhecimento de que dispomos hoje em termos de ciência. O sacerdote sabe que precisa fazer chover para que a espécie sobreviva, e isso se consegue com danças e poções mágicas. Nesse mister, ele descobre algo extremamente precioso, a relação entre a chuva, que é uma manifestação da natureza, e a sobrevivência da espécie. Trata-se de um conhecimento prático de UNIDADE 1 | É POSSÍVEL ENTENDER O SER HUMANO? 24 capital importância, pois se o sacerdote não conseguir que chova, com certeza fará a sua tribo procurar um local mais apropriado de sobrevivência e encontrar nas plantas alimento e fonte de saúde. Vejamos o que diz Colin A. Ronan sobre essa forma de magia: É impossível examinar a história ou a teoria da ciência sem se defrontar com a magia. Esta era um complexo amálgama de espiritismo e arcano. Para quem não tenda imaginar a ciência moderna meramente como uma taumaturgia, a própria menção da magia, neste contexto, pode parecer estranha ou até inaceitável. Contudo, aquilo que aparentemente constitui abordagens totalmente disparatadas da natureza contém, na verdade, muitos fatores comuns. A magia foi um modo legítimo de expressar uma síntese do mundo natural e do seu relacionamento com o homem. Quando, numa sociedade primitiva, o mago, impostor ou curandeiro se propõe provocar chuva por meios artificiais, ele expressa sua compreensão de uma ligação entre a chuva e o crescimento das plantações, entre um e outro aspecto da natureza e sua estimativa de que a sobrevivência do homem depende do comportamento do mundo natural [...]. A magia exprimiu o que, de um modo geral, era uma visão anímica da natureza. O mundo era povoado por espíritos e forças espirituais ocultas, que habitavam talvez os animais, ou as árvores, ou o mar e o vento, e a função do mago consistia em submeter estas forças ao seu objetivo, persuadir os espíritos a cooperar. [...] E quando passou a adotar processos mais realistas a fim de obter o seu bem-estar, com a construção, por exemplo, de sistemas de irrigação, o homem começou, consciente ou inconscientemente, a relegar os poderes do mundo dos espíritos a um papel mais de cooperação que de intervenção direta. Durante milhares de anos, as duas formas de abordagem coexistiram lado a lado, num estado de relativa trégua, e, à medida que as técnicas de controle da natureza do homem se tornaram mais eficientes, o mundo dos espíritos foi forçado a redefinir o seu papel (RONAN, 1987, p. 12). Da magia primitiva aos poucos se constituíram as religiões que se tornaram formas mais complexas e racionais de explicar o mundo. É por isso que o conhecimento primitivo era tido como sagrado, especialmente aqueles conhecimentos ligados à prática da guerra, às técnicas políticas, à administração de cidades, à arquitetura, irrigação e fundição de metais. Trata-se, portanto, do desenvolvimento paralelo entre os princípios religiosos e aquilo a que chamamos hoje de ciência e técnica. NOTA Na citação existem palavras de difícil compreensão,como, por exemplo, “arcano”, que significa segredo ou mistério, e “taumaturgia”, que significa fazer milagres. Caso você encontre outras palavras desconhecidas, uma boa técnica para conhecê-las é a consulta a um dicionário. TÓPICO 2 | EXISTE UMA NATUREZA HUMANA? 25 O cristianismo, como já foi visto, é uma das religiões abraâmicas. Assim sendo, os cristãos tomam da religião israelita boa parte de seu corpo doutrinário, constante do chamado Antigo Testamento. Aquela foi a primeira religião monoteísta da época. Continha o seu fundamento na ideia de um deus único e criador. A criação do mundo se dá a partir do nada, como explica Hooykaas (1988, p. 25): “o Deus de Israel, por sua palavra, cria todas as coisas do nada”. Pela palavra- ato daquele Deus também são criados o homem e a mulher e todas as coisas que existem. O que interessa aqui “é a criação dos humanos e do estabelecimento da relação entre eles e o criador, pois é isso que define por milênios, como ensina Pinker (2002, p. 20), a principal noção de natureza humana”. NOTA Steve Pinker (1954-) é professor de psicologia em Harvard, foi professor assistente da Universidade de Stanford e diretor do Centro de Neurociência Cognitiva do MIT. Trata-se de um cientista e escritor respeitado e respeitável, de modo que as suas afirmações científicas podem ser levadas a sério, muito embora alguns de seus comentários relativamente aos filósofos, bem como a Freud e a Marx, sejam passíveis de crítica. Os seus comentários relativamente aos antropólogos também parecem adequados. Saliento ainda que ele utiliza indiscriminadamente a palavra teoria, ou seja, utiliza o termo teoria tanto para definir o criacionismo quanto para o evolucionismo. A fim de não criar confusão, eu utilizo a palavra doutrina para definir enunciados religiosos e teoria para enunciados científicos ou filosóficos. Pinker afirma (2002, p. 20) que: a tradição bíblica é muito popular especialmente nos Estados Unidos, onde praticamente 80% da população acreditam nela. Apenas 15% acreditam na teoria da evolução de Darwin. Esta estatística também é importante, porque sendo os Estados Unidos o grande divulgador de produtos ideológicos por intermédio do cinema, da televisão e dos folhetins literários, essas crenças são disseminadas pelo mundo. No Brasil, de acordo com o IBGE, cujos dados foram extraídos da Wikipédia, encontramos a seguinte situação: O censo demográfico realizado em 2010, pelo IBGE, apontou a seguinte composição religiosa no Brasil: 64,6% dos brasileiros (cerca de 123 milhões) declaram-se católicos; 22,2% (cerca de 42,3 milhões) declaram-se protestantes (evangélicos tradicionais, pentecostais e neopentecostais); 8,0% (cerca de 15,3 milhões) declaram-se irreligiosos: ateus, agnósticos, ou deístas; 2,0% (cerca de 3,8 milhões) declaram-se espíritas; 0,7% (1,4 milhão) declaram-se as testemunhas de Jeová; 0,5% (1 milhão) declaram-se os Santos dos Últimos Dias ou mórmons; 0,3% UNIDADE 1 | É POSSÍVEL ENTENDER O SER HUMANO? 26 (588 mil) declaram-se seguidores do animismo afro-brasileiro como o Candomblé, o Tambor-de-mina, além da Umbanda; 1,6% (3,1 milhões) declaram-se seguidores de outras religiões, tais como: os islâmicos (300 mil), os budistas (243 mil), os judeus (196 mil), os messiânicos (103 mil), os esotéricos (74 mil), os espiritualistas (62 mil) e os hoasqueiros (35 mil). (WIKIPEDIA, 2012). Estes dados indicam, no entanto, quantas pessoas seguem uma determinada religião, mas não esclarecem quanto à crença no criacionismo ou na teoria da evolução. A este respeito não parece haver estatísticas confiáveis. Contudo, a julgar pela quantidade de pessoas que se dizem religiosas, também deve ser elevado o número de pessoas que acreditam no criacionismo, visto que apenas 8% se declaram ateus ou não religiosos, no Brasil. UNI Destaco o seguinte: estas informações são relevantes do ponto de vista antropológico, pois mostram a preocupação das pessoas com a sua origem enquanto espécie, bem como quanto ao seu bem-estar psíquico (de psychê). Ou seja, existe uma preocupação latente com o lugar que as pessoas ocupam na Terra. O bem-estar da psychê tem consequências existenciais profundas, pois é a partir de eventuais sofrimentos desta ordem que muitas pessoas tendem a cometer os maiores desatinos. O cuidado com o estado psíquico resulta em qualidade de vida incomum. Utilizo a expressão psychê, de onde psíquico, porque ela é etimologicamente mais correta do que alma ou espírito. Embora as etimologias mais conhecidas insistam na correlação entre psychê e alma, como as citadas a seguir: Na origem sânscrito-grego: a palavra grega [psyché] aparece como deverbal do verbo [psýchein], «soprar, emitir um sopro». O verbo [psýcho], «eu sopro, eu deixo escapar o ar» tem provavelmente como origem a forma não sufixada [psýo], que representa a raiz bhes-, soprar, atestada no sânscrito bhas- tra, fole, e no sânscrito-védico, da qual originou sua raiz, [á-psu]: sem sopro, sem força. Este termo significou o sopro, a respiração, o hálito, a força vital, a vida sentida como sopro, daí alma do ser vivo, sede de seus pensamentos, emoções e desejos, donde o próprio ser, a individualidade pessoal, a pessoa, a parte imaterial e imortal do ser. FONTE: Disponível em: <http://lualfavenus.blogspot.com.br/2012/03/alma-e-espirito.html>. Acesso em: 20 dez. 2012. TÓPICO 2 | EXISTE UMA NATUREZA HUMANA? 27 O problema está na última frase da citação: “Este termo significou o sopro, a respiração, o hálito, a força vital, a vida sentida como sopro, daí alma do ser vivo, sede de seus pensamentos, emoções e desejos, donde o próprio ser, a individualidade pessoal, a pessoa, a parte imaterial e imortal do ser”. Esta conclusão não consta das definições gregas. Esta é uma conclusão cristã, com base nos teólogos cristãos. Aliás, os gregos sequer tinham a palavra “eu” como nós a conhecemos. A descoberta da expressão “eu” pode ser atribuída a Agostinho de Hipona. FIGURA 4 – AGOSTINHO DE HIPONA (354-430) FONTE: Disponível em: <portalsaofrancisco.com.br>. Acesso em: 20 out. 2012. UNI Feitos estes esclarecimentos, passo a citar Pinker, que resume de maneira muito precisa a concepção religiosa de natureza humana. Esta concepção de natureza humana será de muita utilidade para entendermos as diferenças entre as várias explicações dadas por filósofos, antropólogos, teólogos, biólogos e psicólogos. UNIDADE 1 | É POSSÍVEL ENTENDER O SER HUMANO? 28 FIGURA 5 – STEVEN PINKER FONTE: Disponível em: <pt.www.wikipedia.org/>. Acesso em: 11 nov. 2012. Por milênios as principais teorias da natureza humana vieram da religião. A tradição judaico-cristã, por exemplo, oferece explicações para boa parte dos assuntos hoje em estudo pela biologia e psicologia, Os seres humanos são feitos à imagem de Deus e não têm parentesco com os animais. As mulheres derivam dos homens e destinam-se a ser governadas por eles. A mente é uma substância imaterial; tem poderes que nenhuma estrutura puramente física possui, e pode continuar a existir quando o corpo morre. A mente é constituída por diversos componentes, incluindo senso moral, capacidade de amar, capacidade de raciocínio que reconhece se um ato condiz com ideais de bondade, e faculdade de decisão que escolhe o modo de se comportar. Embora a faculdade de decisão não seja limitada pelas leis de causa e efeito, possui tendência inata a escolher o pecado. Nossas faculdades cognitivas e perceptivas funcionam com precisão porque Deus implantou nelas ideias que correspondem à realidade e porque ele coordena seu funcionamento com o mundo exterior. A saúde mental provém de reconhecer o propósito de Deus, escolhendo o bem e arrependendo-se do pecado, e amando a Deus e aos semelhantes em consideração a Deus. (PINKER, 2002, p. 20). Esta
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