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����������� �������� ���������� R545e Ridley, Mark Evolução [recurso eletrônico] / Mark Ridley ; tradução Henrique Ferreira, Luciane Passaglia, Rivo Fischer. – 3. ed. – Dados eletrônicos. – Porto Alegre : Artmed, 2007. Editado também como livro impresso em 2006. ISBN 978-85-363-0863-0 1. Biologia – Evolução. I. Título. CDU 575.8 Catalogação na publicação: Juliana Lagôas Coelho – CRB 10/1798 Department of Zoology, University of Oxford, UK Tradução: Henrique Bunselmeyer Ferreira Professor Adjunto, Departamento de Biologia Molecular e Biotecnologia e Centro de Biotecnologia, UFRGS. Doutor em Genética e Biologia Molecular, UFRGS. Luciane Passaglia Professora Adjunta, Departamento de Genética, UFRGS. Doutora em Genética e Biologia Molecular, UFRGS. Rivo Fischer Licenciado em História Natural. Mestre em Genética. Doutor em Ciências. Professor Adjunto Aposentado, Instituto de Biociências, UFRGS. Professor Colaborador Convidado, Departamento de Genética, UFRGS. Consultoria, supervisão e revisão técnica desta edição: Aldo Mellender de Araújo Professor Titular, Departamento de Genética, UFRGS. Doutor em Genética. 2007 ����������� �������� ���������� Versão impressa desta obra: 2006 Obra originalmente publicada sob o título Evolution, Third Edition ISBN 1405103450 © 2004 by Blackwell Science Ltd, a Blackwell Publishing Company. This edition is published by arrangement with Blackwell Publishing Ltd, Oxford. Translated by Artmed Editora SA from the original English language version. Responsibility of the accuracy of the translation rests solely with the Artmed Editora SA and is not responsibility of Blackwell Publishing Ltd. Capa: Mário Röhnelt Imagem da capa: mariposa esfi ngídea (Xanthopan morgani) polinizando uma orquídea (Angraecum sesquipedale), em Madagascar. Fotografi a cortesia de Dr. I.T. Wasserthal. Preparação do original: Bianca Pasqualini Leitura fi nal: Bianca Zanini Supervisão editorial: Letícia Bispo de Lima Editoração eletrônica: Laser House Reservados todos os direitos de publicação, em língua portuguesa, à ARTMED EDITORA LTDA., uma empresa do GRUPO A EDUCAÇÃO S.A. Av. Jerônimo de Ornelas, 670 – Santana 90040-340 – Porto Alegre – RS Fone: (51) 3027-7000 Fax: (51) 3027-7070 É proibida a duplicação ou reprodução deste volume, no todo ou em parte, sob quaisquer formas ou por quaisquer meios (eletrônico, mecânico, gravação, fotocópia, distribuição na Web e outros), sem permissão expressa da Editora. Unidade São Paulo Av. Embaixador Macedo Soares, 10.735 – Pavilhão 5 – Cond. Espace Center Vila Anastácio – 05095-035 – São Paulo – SP Fone: (11) 3665-1100 Fax: (11) 3667-1333 SAC 0800 703-3444 – www.grupoa.com.br IMPRESSO NO BRASIL PRINTED IN BRAZIL Evolução | 281 Adaptação e Seleção Natural Os três capítulos desta Parte tratam de adaptação – a adequação dos organis-mos à vida em seus ambientes. Iniciaremos com um capítulo conceitual. A adaptação já era conhecida bem antes do tempo de Darwin, e pensadores pré-darwinianos haviam tentado explicar sua existência. O Capítulo 10, entretanto, sustenta que somente a seleção natural consegue explicá-la. Algumas características, especialmente moleculares, evoluíram por outros processos que não a seleção natu- ral, mas elas não são adaptações. Nem toda evolução ocorre por seleção natural, mas toda evolução adaptativa, sim. O capítulo também contempla o “gradualismo” na teoria de Darwin – ele considera o modo como novas adaptações evoluem por modi- fi cações de partes preexistentes e a magnitude das mudanças genéticas que ocorrem durante a evolução adaptativa. Discute ainda o grau de perfeição das adaptações das espécies existentes e quais as limitações encontradas nessa perfeição adaptativa. O capítulo se encerra com considerações sobre várias defi nições de adaptação. No Capítulo 11, passamos a investigar qual é a entidade que se benefi cia com a evolução das adaptações. A evolução por seleção natural ocorre porque as adapta- ções benefi ciam algo, mas o que é, exatamente, esse algo – os genes, os genomas inteiros, organismos individuais, grupos de organismos, a espécie, ou o quê? A ques- tão é “Qual é a unidade da seleção?”. Conforme sugere o capítulo, as adaptações geralmente benefi ciam os organismos, mas há um critério mais profundo, que pode ser usado para entender as exceções tanto quanto a regra: mais fundamentalmente, as adaptações evoluem para o benefício dos genes. Somente eles têm duração longa o sufi ciente para permitir que a seleção natural possa ajustar suas freqüências ao longo do tempo evolutivo. O que resulta, em geral, são as adaptações dos organis- mos porque a reprodução dos genes se vincula mais intimamente com a reprodução dos organismos do que com qualquer outra entidade, e a reprodução dos genes fi ca maximizada se as adaptações ocorrerem no nível dos organismos. O Capítulo 12 utiliza três exemplos da reprodução sexuada para ilustrar o estu- do prático da adaptação. O problema mais profundo – do porquê da existência do sexo – ainda está, em grande parte, na fase de desenvolvimento de uma hipótese. A teoria da seleção sexual está bem-desenvolvida, e o trabalho empírico, crucial, está começando. Na teoria das proporções sexuais há uma boa concordância entre as previsões teóricas e os testes empíricos. A própria existência do sexo é um dos maio- res problemas biológicos não-resolvidos. O problema das proporções sexuais não só está resolvido como também proporciona um “sistema-modelo” poderoso para a análise da adaptação. Parte 3 Esta página foi deixada em branco intencionalmente. Este capítulo aborda uma série de pontos sobre adaptação, muitos deles objeto de controvérsia na literatura especia- lizada. Este capítulo pretende explicar as principais posições nessas controvérsias e proporcionar uma base para seu en- tendimento. Primeiro, examinaremos a argumentação que demonstra que a seleção natural é a única explicação conhe- cida para a adaptação e, depois, analisaremos como a seleção natural pode explicar todas as adaptações, inclusive de órgãos complexos como o olho. Daí nos dedicaremos à genética da adaptação, especialmente ao modelo de Fisher, que sugere que as adaptações evoluem por meio de muitos passos genéticos pequenos. Examinaremos rapidamente os principais métodos de estudo de adaptação: a relação entre a forma prevista e a forma observada de um caráter, os experimentos e as compa- rações interespecífi cas. A maior parte do restante do capítulo refere-se aos vários motivos pelos quais as adaptações podem ser imperfeitas. Elas podem estar ultrapassadas ou limitadas pela genética, por mecanismos de desenvolvimento, por ori- gens históricas ou por intercâmbios entre múltiplas funções. Para fi nalizar, são examinadas as defi nições de adaptação. Uma Explicação Adaptativa 284 | Mark Ridley 10.1 A seleção natural é a única explicação conhecida para a adaptação O fato de os seres vivos estarem adaptados para a vida na Terra é tão óbvio que os fi lósofos não precisaram esperar por Darwin para destacá-lo. Na Seção 1.2 (p. 29) examinamos um exemplo clássico de adaptação, o bico do pica-pau. Em capítulos posteriores encontramos muitos outros exemplos, como a camufl agem das mariposas, o mimetismo das borboletas e a resistência do HIV a fármacos. As criaturas vivas são bem-ajustadas, de muitos modos, para viver em seus ambientes naturais. A adaptação foi um conceito crucial na teologia natural – uma escola de pensamento que teve grande infl uência desde o século XVIII até a época de Darwin. Os teólogos naturais explicavam teologicamente as propriedades da natureza, inclusive as adaptações (isto é, pela ação direta de Deus). John Ray e William Paley eram dois importantes pensadores desse tipo. Atualmente, as idéias da teologia natural continuam a ser utilizadas por certos tipos de criacionistas modernos. O próprio Darwin foi muito infl uenciado por exemplos de adaptação, tais como o olho dos vertebrados, discutido porPaley. Este explicava a adaptação na natureza pela ação cria- tiva de Deus: quando Deus, miraculosamente, criou o mundo e as criaturas nele viventes, Ele, ou Ela, miraculosamente criou também as adaptações. A teologia natural foi infl uente como modo de entendimento das adaptações na natureza, mas sua principal infl uência – ultrapassando a biologia – era um argumento para demonstrar a existência de Deus, deno- minado “argumento do planejamento”. Este é um dos vários argumentos fi losófi cos clássicos sobre a existência de Deus. A razão de a teoria de Darwin ter sido tão controversa foi, em parte, por ter destruído o que (na época) era um dos argumentos mais populares a favor da existência de Deus. A diferença fundamental entre a teologia natural e o darwinismo é que a primeira explica a adaptação por meio de ação sobrenatural e a segunda por meio de seleção natural. A teologia natural e a seleção natural não são as únicas explicações utilizadas para a adaptação. A herança dos caracteres adquiridos (“lamarckismo”) sugere que o processo he- reditário produz adaptações automaticamente. Outras teorias sugerem que o próprio meca- nismo hereditário produz mutações planejadas ou dirigidas, cuja conseqüência é a adaptação. Essas teorias diferem do darwinismo. No darwinismo, a variação não está direcionada para o melhoramento da adaptação. Ao contrário, a mutação não é dirigida, e a seleção é que pro- porciona a direção adaptativa na evolução (Seção 4.8, p. 118). Uma das reivindicações mais fundamentais da teoria darwiniana de evolução é a de que a seleção natural é a única explicação para a adaptação. Portanto, cabe ao darwinista demons- trar que as alternativas à seleção natural não funcionam ou são cientifi camente inaceitáveis. Primeiramente, consideremos a explicação sobrenatural da teologia natural. É aceitável que um agente sobrenatural onipotente tenha criado coisas viventes bem-adaptadas: nesse as- pecto, a explicação funciona. Entretanto, ela tem dois defeitos. Um é o fato de que, em ciência, não se usam explicações sobrenaturais para fenômenos naturais (Seção 3.13, p. 89). O segundo é que um Criador sobrenatural não é explicativo. O problema é explicar a exis- tência de adaptação no mundo, mas o Criador sobrenatural já possui essa propriedade. Seres onipotentes são, por si, entidades bem-projetadas e adaptativamente complexas. A coisa que queremos explicar foi construída na explicação. Introduzir um Deus implica a questão de como tal coisa altamente adaptativa e bem-projetada teria, por sua vez, começado a existir. Portanto, a teologia natural é inequivocamente não-explicativa, e o uso que ela faz de causas sobrenaturais é anticientífi co. Antes de Darwin, a adaptação era explica- da teologi- camente... ...ou por variação dirigida Essas al- ternativas podem ser eliminadas fi losófi ca,... Evolução | 285 A teoria “lamarckiana” – a herança de caracteres adquiridos – não é anticientífi ca.1 Ela inclui um mecanismo hereditário que pode ser testado e que poderia ter dado origem às adap- tações. Em geral, os biólogos rejeitam o lamarckismo por duas razões. Uma é factual. Desde Weismann, em fi ns do século XIX, tem sido aceito que, na verdade, os caracteres adquiridos não são herdados. Mais de um século de genética se passou desde que Weismann defendeu essa idéia. (São conhecidas umas poucas e mínimas exceções, mas elas não desafi am o prin- cípio geral.) A segunda objeção é teórica. O lamarckismo não consegue, por si mesmo, explicar a evo- lução da adaptação. Consideremos as adaptações das zebras para escapar dos leões. As zebras ancestrais correriam o mais rápido que pudessem para fugir deles. Ao fazê-lo, elas exercita- riam e reforçariam os músculos usados para correr. Pernas mais fortes são adaptativas, além de serem um caráter adquirido individualmente. Se o caráter adquirido fosse hereditário, a adaptação seria perpetuada. Superfi cialmente isso se assemelha a uma explicação, cujo único defeito é de que os caracteres adquiridos não são herdados. Imaginemos agora (para fi ns de argumentação) que os caracteres adquiridos são herdados e olhemos a explicação mais de perto. A adaptação surge porque as zebras, ao longo de suas vidas, tornaram-se melhores corredores. Entretanto, os músculos exercitados não se tornam mais fortes por um processo físico automático. Eles bem que poderiam tornar-se mais fracos por estarem desgastados. O fortalecimento dos músculos de uma determinada zebra exige uma explicação, e não uma suposição. Os músculos, quando exercitados, tornam-se mais fortes por causa de um mecanismo preexistente, que é adaptativo para o organismo. Mas, de onde pro- veio esse mecanismo adaptativo? O defeito teórico do lamarckismo é que ele não oferece uma boa resposta para essa pergunta. Para ter uma explicação completa para a adaptação ele teria de recorrer a outra teoria como a de Deus ou a da seleção natural. No primeiro caso, cairíamos nas difi culdades já discutidas anteriormente. No segundo caso, é a seleção natural, e não o la- marckismo, que está proporcionando a explicação fundamental da adaptação. O lamarckismo só poderia funcionar como mecanismo subsidiário; ele só poderia trazer adaptação ao longo de uma existência desde que a seleção natural já houvesse programado o organismo com um conjunto de respostas adaptativas. O lamarckismo, por si mesmo, não explica a adaptação. Todas as teorias sobre mutações dirigidas ou planejadas têm o mesmo problema. Para que uma teoria de mutação dirigida possa ser uma alternativa verdadeira à seleção natural, ela precisa oferecer um mecanismo de mudança adaptativa que não se baseie fundamentalmente na seleção natural para proporcionar a informação adaptativa. A maioria das alternativas à seleção natural não explica a adaptação. Por exemplo, no inicio do século XX alguns paleon- tólogos, como Osborn, impressionaram-se com o direcionamento no documentário fóssil. Os titanotérios são um exemplo clássico. Eles são um grupo extinto de perissodáctilos (a ordem dos mamíferos que inclui os cavalos) do Eoceno e do Oligoceno. Em várias linhagens, as formas mais antigas não tinham chifres, enquanto as mais recentes os tinham desenvolvido (Figura 10.1). Osborn e outros acreditavam que a tendência era ortogenética: isto é, não sur- gira devido à seleção natural entre mutações ao acaso, mas porque os titanotérios estavam mutando na direção da tendência. 1 “Lamarckiana” está entre aspas porque, como vimos no Capítulo 1, a herança dos caracteres adquiridos não era especialmente importante para a própria teoria de Lamarck, nem ele inventou a idéia. Entretanto, de modo geral, a herança dos caracteres adquiridos passou a ser chamada de lamarckismo, e nós, por conveniência, estamos seguindo o uso corrente, alheios à pura discussão histórica. factual... ...ou teorica- mente A variação dirigida presume a adaptação, em vez de explicá-la O docu- mentário fóssil mostra algumas tra- jetórias apa- rentemente dirigidas... 286 | Mark Ridley A mutação dirigida poderia explicar uma tendência adaptativa indiferente e simples. Se um titanotério estivesse igualmente bem-adaptado, qualquer que fosse o tamanho de seus chifres, uma tendência dirigida a chifres maiores bem que poderia originar-se por mutação diri- gida. Na verdade, supõe-se que os chifres são adaptativos, e isso torna a mutação dirigida uma explicação implausível. A mutação é aleatória em relação à adaptação (Seção 4.8, p. 118). Se a mutação é dirigida, é de forma não-adaptativa. Desse modo, se alguém explica uma tendência por ortogênese (ou mutação dirigida), podemos perguntar como as mutações “ortogenéticas” poderiam continuar a ocorrer na direção de um melhoramento adaptativo. Se a resposta for que a variação simplesmente é daquele jeito, então a adaptação está sendo explicada por acaso – e, quase por defi nição, o acaso, por si só, não consegue explicar a adaptação. Essa objeção nem é tão rigorosa assim para os chifresde titanotério porque sua função adaptativa é pouco conhecida. As tendências podem ter-se tornado possíveis por simples aumentos de tamanho. Entretanto, para outras tendências conhecidas no documentário fóssil, tais como a evolução dos mamíferos a partir de répteis semelhantes a mamíferos (Seção 18.6.2, p. 563), a objeção é muito mais poderosa. Os mamíferos evoluíram ao longo de cerca de 100 milhões de anos, durante os quais ocorreram mudanças nos dentes, nas mandíbulas, na locomoção e na fi siologia. Quase todas as características dos animais foram alteradas, de forma integrada. Seria altamente improvável que a mutação dirigida, sozinha, fosse capaz de direcionar uma tendência adaptativa complexa e com múltiplas caracterís- ticas desse tipo. Sozinho, um processo aleatório não explicará a adaptação. Por essa razão, do mesmo modo que o lamarckismo, a mutação dirigida, por si só, está descartada como explicação para a adaptação. Oligoceno antigo (a maior parte das formas tem grandes chifres) Eoceno recente (surgimento de pequenos chifres em vários grupos diferentes) Eoceno antigo (sem chifres) Dolichorhinus Megacerops Protitanotherium Eotitanops Brontotherium Figura 10.1 Duas linhagens de titanotérios traçando um paralelo entre o aumento do tamanho do corpo e a evolução de chifres. Apenas duas de muitas linhagens são ilustradas. Reproduzida de Simpson (1949), com a permissão da editora. ...mas é improvável que elas tenham sido traçadas por variação dirigida Evolução | 287 Em conclusão, pode-se usar uma forte argumentação de que a seleção natural é a única teoria atualmente disponível para a adaptação. As alternativas baseiam-se no acaso, em cau- sas não-científi cas e em processos que, de fato, não funcionam ou não são explicativas. 10.2 O pluralismo é adequado ao estudo da evolução, não ao da adaptação Sendo assim, a seleção natural é nossa única explicação para a adaptação. Essa afi rmati- va, porém, aplica-se apenas à adaptação, e não à evolução como um todo. Biólogos como Gould e Lewontin (1979) destacaram que o próprio Darwin não se restringia exclusiva- mente à seleção natural, mas também admitia outros processos, e eles mesmos propunham que deveríamos aceitar um “pluralismo” de processos evolutivos, em vez de dependermos exclusivamente da seleção natural. Para a evolução como um todo, essa idéia é sensata. No Capítulo 7, por exemplo, vimos que muitas mudanças evolutivas em moléculas podem ocorrer por deriva genética. As seqüências moleculares em que a deriva ocorre não são adaptações diferentes. Elas são variantes diferentes de uma adaptação, e a seleção natural não explica por que um organismo tem determinada variante de seqüência e outro orga- nismo tem outra. Para uma teoria evolutiva completa, precisamos da deriva tanto quanto da seleção. O fato de que outros processos, além da seleção natural, podem causar mudanças evolu- tivas não altera a argumentação da Seção 10.1. Isso apenas demonstra que nem toda a evo- lução precisa ser adaptativa. Assim, devemos ser pluralistas quanto à evolução; mas quando estivermos estudando adaptação, o sensato é nos concentrarmos na seleção natural. 10.3 Em princípio, a seleção natural pode explicar todas as adaptações conhecidas Até aqui a argumentação foi negativa: descartamos alternativas à seleção natural, mas não apresentamos um caso positivo de seleção natural. Anteriormente, vimos (Capítulo 4) que a seleção natural pode explicar a adaptação, mas também podemos fazer uma pergunta mais incisiva: ela pode explicar todas as adaptações conhecidas? A pergunta é historicamente importante e com freqüência ressurge em discussões po- pulares sobre evolução. O caso contra a seleção funcionaria mais ou menos como segue. Não há dúvida de que a seleção natural explica algumas adaptações, como a camufl agem. Entretanto, as adaptações, nesse caso, bem como em outros exemplos famosos de seleção natural, são todas simples. Na mariposa sarapintada, é apenas uma questão de ajustar sua coloração externa ao meio. O problema surge em características complexas, que estão adap- tadas ao ambiente em muitos aspectos interdependentes. A explicação de Darwin para as adaptações complexas era de que elas evoluíam por meio de muitos passos pequenos, cada um deles análogo à evolução simples na mariposa sarapintada; era isso que Darwin queria dizer quando chamou a evolução de gradual. A evolução tem de ser gradual porque seria necessário um milagre para que um órgão complexo, exigindo mutações em várias partes, evoluísse em um único passo. Se cada mutação surgiu separadamente, em diferentes orga- nismos, em ocasiões diferentes, o processo geral torna-se mais provável (voltaremos a isso na Seção 10.5). O requisito “gradualista” de Darwin é uma propriedade fundamental da teoria evolutiva. O darwinista precisa demonstrar que qualquer órgão poderia, pelo menos em princípio, ter evoluído ao longo de muitos passos pequenos, sendo cada um deles vantajoso. Se houver Nem toda a evolução é adaptativa Na teoria de Darwin, as adaptações complexas evoluem em vários pequenos passos 288 | Mark Ridley exceções, a teoria fi ca abalada. Nas palavras de Darwin (1859), “se fosse possível demonstrar a existência de qualquer órgão complexo que não pudesse ter sido formado por meio de nume- rosas pequenas modifi cações sucessivas, minha teoria desmoronaria completamente”. Darwin postulava que todos os órgãos conhecidos poderiam ter evoluído em pequenos passos. Ele tomou exemplos de adaptações complexas e demonstrou como elas poderiam ter evoluído ao longo de etapas intermediárias. Em alguns casos, como o do olho (Figura 10.2), esses intermediários podem ser ilustrados por analogias com espécies existentes; em outros casos, eles só podem ser imaginados. Darwin só precisava demonstrar que os intermediários poderiam ter existido. Seus críticos tinham a tarefa mais difícil de demons- trar que os intermediários não poderiam ter existido. É muito difícil provar afi rmações negativas. Entretanto, em relação a várias adaptações, muitos críticos sugeriram que a seleção natural não podia ser a responsável por elas. Esses tipos de adaptações podem ser considerados sob dois títulos. Coadaptações Aqui, coadaptação refere-se a adaptações complexas, cuja evolução teria exigido mudanças mutuamente ajustadas em mais de uma de suas partes. (Coadaptação é uma palavra popu- lar: ela já foi usada, com um sentido diferente, no Capítulo 8 e será usada com um terceiro sentido no Capítulo 20!) Em uma disputa histórica, na década de 1890, Herbert Spencer e August Weismann discutiram o exemplo do pescoço da girafa. Spencer supunha que nervos, veias, ossos e músculos do pescoço estavam, cada um, sob um controle genético separado. Qualquer mudança no comprimento do pescoço exigiria mudanças simultâneas, independen- tes e de magnitude correta em todas essas partes. Uma mudança no comprimento dos ossos do pescoço não seria funcional sem uma mudança equivalente no comprimento das veias, e a evolução de uma parte de cada vez, por seleção natural, seria impossível. Atualmente esse exemplo não é convincente, por causa da réplica óbvia de que os comprimentos de todas as partes poderiam estar sob um controle genético comum. O outro exemplo típico de coadaptação complexa é o olho. Quando uma parte do olho, como a distância da retina à córnea, muda durante a evolução, mudanças simultâneas seriam necessárias (segundo se diz) em outras partes, tais como a forma do cristalino. Devido à im- probabilidade de mutações simultâneas corretas em ambas as partes ao mesmo tempo, um instrumento com uma engenharia complexa, fi namente ajustado como o olho, não poderia ter evoluído por seleção natural. A réplica darwiniana (ilustrada na Figura 10.2) é de que diferentes partes poderiam ter evoluído independentemente em pequenos passos: não é ne- cessário que todas as partes de um olho mudem ao mesmo tempo na evolução. Um estudo de um modelo em computador,feito por Nilsson e Pelger (1994), ilustra o poder do argumento de Darwin. Embora os olhos de um vertebrado ou de um octópode pare- çam tão complexos a ponto de ser difícil acreditar que tenham evoluído por seleção natural, os órgãos fotossensíveis (nem todos eles complexos), na verdade, evoluíram de 40 a 60 vezes em vários grupos de invertebrados – o que sugere que ou a explicação darwiniana encara um problema 40 a 60 vezes mais difícil do que a representada somente pelo olho dos vertebrados, ou que, afi nal, evoluir pode não ser assim tão difícil. Nilsson e Pelger simularam um modelo de olho para verifi car quão difícil a evolução real- mente é. A simulação começou com um órgão fotossensível rudimentar consistindo em uma camada de células fotossensíveis sobreposta a uma camada de células escurecidas e recobertas com uma camada de células protetoras transparentes (Figura 10.3). Portanto, a simulação não abrange a evolução completa de um olho. Ela inicia considerando as células fotossen- síveis como já existentes (o que é um pressuposto importante, mas não absurdo, visto que Os críticos sugerem que os órgãos complexos não podem evoluir por seleção na- tural Uma simula- ção sugere que o olho poderia ter evoluído facilmente em etapas graduais vantajosas... Evolução | 289 muitos pigmentos são infl uenciados pela luz) e, no fi nal, ignora a evolução da capacidade de percepção avançada (que é mais uma questão de evolução do cérebro do que do olho). Ela se concentra mais na evolução da forma do olho e do cristalino; esse é o problema que os críticos de Darwin mais freqüentemente destacaram, por acreditar que ele exige o ajuste simultâneo de várias partes intricadamente relacionadas. A partir do estágio inicial simples, Nilsson e Pelger fi zeram com que o formato do olho- modelo mudasse ao acaso, em passos com, no máximo, 1% de mudança cada um. Um por cento é uma mudança pequena e adapta-se à idéia de que a evolução adaptativa avança em pequenas etapas graduais. Mesmo assim, o modelo evoluiu no computador e cada nova geração apresentava as formas de olhos que haviam se revelado opticamente superiores na geração anterior; as mudanças que pioravam a óptica eram rejeitadas, exatamente como a seleção as rejeitaria na natureza. Os critérios ópticos específi cos utilizados foram a acuidade visual ou a habilidade de loca- lizar objetos no espaço. Na simulação, a acuidade visual de cada olho era calculada por méto- dos de física óptica. O olho é especialmente bem-adequado para esse tipo de estudo porque as qualidades ópticas podem ser facilmente quantifi cadas: é possível demonstrar objetivamente que um modelo de olho teria melhor acuidade do que outro. (Não é tão fácil imaginar como medir a qualidade de outros órgãos como um fígado ou uma espinha dorsal.) O olho simula- do melhorou consistentemente ao longo do tempo, e a Figura 10.3 mostra algumas fases ao longo da trajetória. Após uns mil passos, ele tinha evoluído para algo como uma câmara com um orifício (a Figura 10.2c mostra um exemplo real). Daí em diante, o cristalino começou a evoluir para um aumento do índice de refração da camada que, inicialmente, era uma simples proteção transparente. O cristalino inicial tinha qualidades ópticas ruins, mas sua distância focal foi melhorando até igualar o diâmetro do olho, ponto em que era capaz de formar uma imagem bem-focada. Células pigmentadas Células epiteliais Fibras nervosas Fluido celular Fibras nervosas Células pigmentadas Retina Retina Córnea Cristalino Cristalino Córnea Nervo óptico Íris Cavidade cheia d’água Camada pigmentada (retina) Epitélio Nervo óptico (c)(a) (b) (e)(d) (f) Figura 10.2 Etapas da evolução do olho, ilustradas por espécies de moluscos. (a) Uma mancha simples de células pigmentadas. (b) Uma região de células pigmentadas com uma dobra, o que aumenta o número de células sensíveis por unidade de área. (c) Um olho em câmara com um orifício, como o encontrado em Nautilus. (d) Uma cavidade ocular preenchida com um fl uido celular em vez de água. (e) Um olho protegido pela adição de uma cobertura de pele transparente e com parte do fl uido celular diferenciado em um cristalino. (f) Um olho complexo e completo como o encontrado no polvo e na lula. Redesenhada de Strickberger (1990), com permissão da editora. 290 | Mark Ridley Quanto tempo levou isso? A evolução completa de um olho como o de um vertebrado ou de um octópode precisou de cerca de 2 mil passos. O que antes parecia uma impossibi- lidade, hoje se demonstra viável em um curto intervalo de tempo. Nilsson e Pelger (1994) usaram estimativas de herdabilidade e de intensidade de seleção (Seção 9.7, p. 264) para calcular quanto tempo a mudança levaria; a resposta foi cerca de 400 mil gerações. Com uma geração por ano, a evolução de um olho desde um inicial rudimentar levaria menos de meio milhão de anos. O modelo mostra que, em vez de difícil, evoluir é relativamente fácil. O trabalho também mostra o valor da construção de modelos para testar nossas intuições. O próprio Darwin referiu que a evolução de órgãos complexos, por seleção natural, constituía um problema para a imaginação, e não para a razão. O estudo de Nilsson e Pelger em compu- tador confi rma essa observação. Etapas rudimentares desvantajosas ou não-funcionais Para ser produzido por seleção natural, um órgão precisa ser vantajoso para seu possuidor em todas as fases de sua evolução. Diz-se que algumas adaptações, embora sejam indubitavel- mente vantajosas em suas formas fi nais, poderiam não tê-lo sido na forma rudimentar: “Qual seria a utilidade de meia asa?” é um exemplo comum. Em seu The Genesis of Species (1871), o anatomista St George Jackson Mivart destacou particularmente esse argumento. A resposta darwiniana foi sugerir modos pelos quais o caráter pudesse ser vantajoso em sua forma ru- dimentar. No caso da asa, asas parciais poderiam diminuir o choque em uma queda de uma árvore ou aves protoaladas poderiam planar do alto de rochedos ou por entre árvores – muitos animais, como certos morcegos, fazem isso atualmente. Essas etapas primitivas não necessi- tariam da estrutura muscular de uma asa completa, defi nitiva. O conceito de pré-adaptação (ver adiante) proporciona outra solução para o problema. Às vezes os biólogos evolucionistas são desafi ados com argumentos sobre etapas rudi- mentares não-funcionais ou sobre a impossibilidade de uma evolução adaptativa complexa. Alguém sempre irá insistir no fato de que é impossível imaginar que este ou aquele caráter 3 7 4= 1d = 4,56d = 1,23d = 1,95d = 2,83d 176 passos 362 passos 270 passos 225 passos 296 passos306 passos192 passos = 4,56d = 3f P = 4,73d = 2f P 8 = 4,1d =f P Figura 10.3 Oito etapas na evolução do olho em um modelo de computador. O estágio inicial tem uma camada de células transparentes, uma camada de células fotossensíveis e uma camada basal com células de pigmento escuro. Primeiramente, as propriedades ópticas são melhoradas por uma invaginação (até as etapas 4-5); na etapa 5 ele corresponde, aproximadamente, ao olho em câmara com um orifício (ver Figura 10.2c). A partir daí ele melhora por evolução de um cristalino (etapa 6). O formato do cristalino modifi ca-se e a íris achata-se para melhorar as propriedades de foco. f é a distância focal do cristalino; as propriedades ópticas são máximas quando f é igual à distância do cristalino até a retina (P): essa característica aperfeiçoa-se gradualmente nas três fases fi nais (etapas 6 – 8). d indica mudança de forma e é o diâmetro normalizado do olho. Redesenhada de Nilsson e Pelger (1994), com permissão da editora. ...em menos de meio milhão de gerações Alguns críticos su- gerem que as etapas iniciais de um caráter seriam des- vantajosas Evolução | 291 possa ter evoluído em pequenos passos vantajosos. O biólogo evolucionista pode oferecer, em resposta, uma série de etapas possíveis por meio das quais o caráter poderia ter evoluí-do. Nesse caso, é preciso ter em mente o status do argumento do biólogo evolucionista. Em alguns casos, a série de etapas pode não ser especialmente plausível ou bem-sustentada por evidências, mas a argumentação é exposta exclusivamente para refutar a sugestão de que não é possível imaginar como o caráter poderia ter evoluído. Um segundo grupo de críticos pode deter-se nesse ponto da discussão para acusar os evolucionistas de fazerem sugestões especulativas, e até fantasiosas, sobre como as adaptações individuais poderiam ter evoluído. Mas esses críticos esquecem o ponto de partida da dis- cussão. As especulações não são a melhor parte da análise evolutiva. Não se está afi rmando que uma série é particularmente profunda ou realista ou mesmo muito provável. Conhecido o resultado, a longa história evolutiva que precedeu qualquer adaptação complexa atual pa- recerá uma série improvável de acidentes: o mesmo ponto é tão verdadeiro para a história da humanidade quanto para a evolução. Em nosso estágio de conhecimentos sobre o tempo evolutivo, podemos reconstruir as etapas evolutivas de alguns caracteres com alguma precisão (Capítulo 15), mas as de outros não – para estes, só é possível fazer conjecturas para ilustrar possibilidades, mas não se pode realizar uma investigação científi ca cuidadosa. É razoável concluir que não existem adaptações conhecidas que não possam ter evoluído por seleção natural. Ou (se a dupla negação é confusa!), podemos concluir que todas as adap- tações conhecidas são, em princípio, explicáveis por seleção natural. 10.4 Novas adaptações evoluem a partir de adaptações preexistentes em etapas contínuas, mas a continuidade assume várias formas 10.4.1 Na teoria de Darwin, não há um processo especial para produzir novidades evolutivas Na seção anterior, vimos que a teoria da adaptação de Darwin é “gradualista”. As novas adap- tações evoluem em pequenos passos, a partir de órgãos, padrões de comportamento, células ou moléculas preexistentes. Um outro modo de dizer isso é dizer que há continuidade entre todas as formas de adaptação que se vêem no mundo atualmente. Essa visão de continuidade contrasta, por exemplo, com a visão criacionista da vida, em que as adaptações das diferentes espécies se originaram separadamente e não há continuidade entre elas. A continuidade da evolução adaptativa pode desafi ar nosso entendimento sobre novida- des. Durante a evolução surgem órgãos que podem ser descritos como novidades evolutivas. O olho dos vertebrados, por exemplo, existe nos vertebrados, inclusive em nós mesmos, mas não é encontrado em todos os seres vivos. Em certo sentido ele é algo novo, que evoluiu com a origem dos vertebrados. Eventualmente ele é reconhecível como uma estrutura nova, an- teriormente inexistente. Entretanto, como vimos na seção anterior, ele evoluiu em pequenas etapas contínuas desde células ancestrais fotorreceptoras, localizadas na superfície do corpo. Não há uma etapa distinta em que “o olho”, súbita e caracteristicamente, tenha começado a existir. Evolutivamente, o olho dos vertebrados desponta em múltiplas etapas ancestrais. Assim, pode surgir algo que reconhecemos como novidade, mesmo que tenha evoluído por modifi cações de estruturas preexistentes. Na teoria de Darwin não existe qualquer processo evolutivo especial para criar novas estruturas. É o mesmo processo evolutivo de adaptação ao ambiente local que atua o tempo todo. O efeito cumulativo de muitas modifi cações pequenas pode ser tal que faça surgir algo “novo”. (Nem todos os biólogos concordam com tal interpretação sobre a novidade evoluti- va. Alguns argumentam que a novidade evolutiva é um processo especial: estes, entretanto, provavelmente concordariam que o ponto de vista deles é minoritário.) Mudanças graduais produzem novidades 292 | Mark Ridley 10.4.2 A função de uma adaptação pode mudar com uma pequena modifi cação em sua forma Durante a evolução do olho, a função do órgão permaneceu relativamente constante o tempo todo. Desde as simples células fotorreceptoras até os olhos completos, ele sempre foi um órgão sensorial – sensível à luz. Provavelmente muitos órgãos evoluem dessa maneira, por evolução gradual de uma estrutura que tem uma função constante. Em outros casos, os órgãos podem mudar sua função com mudanças relativamente pequenas em sua estrutura. Evidências con- tundentes em fósseis recentemente escavados na China sugerem que as penas são um exem- plo disso. Elas são encontradas nas aves modernas e funcionam principalmente para o vôo. É provável que as aves tenham evoluído de um grupo de dinossauros, e os fósseis de dinossauros, tipicamente, não têm penas. Assim, poderíamos inferir que as penas evoluíram junto com o vôo, durante a origem das aves. Entretanto, nos últimos cinco anos, mais ou menos, foi descrita uma série de fósseis da China (Prum e Brush, 2002). Esses fósseis são descritos como dinossauros não-aviários, mas têm penas ou penas rudimentares. É provável que originalmente essas penas tivessem evoluído para uma função diferente do vôo – talvez de termorregulação ou de exibição. Mais tarde, o vôo evoluiu e as penas tornaram-se úteis aerodinamicamente. Foi aí que elas assumiram sua função moderna. (As penas ainda são usadas para exibição e para termorre- gulação e, por isso, seria mais exato dizer que a função foi acrescentada, em vez de mudada. Poderíamos dizer também que a função de vôo e exibição é uma mudança da função de exibição apenas.) O termo darwiniano clássico para um caso como o das penas em dinossauros não-aviários é pré-adaptação. Esta é uma estrutura capaz de dar origem a alguma nova função, com uma pequena mudança estrutural. Um segundo exemplo são as pernas dos tetrápodos. Os peixes não têm pernas, que evoluíram durante a evolução dos anfíbios e que agora são usadas para deambulação em terra. A evidência fóssil, como a de Acanthostega, sugere que, originalmente, as pernas surgiram para nadar sob a água. A estrutura óssea das nadadeiras em um grupo de criaturas acabou tornando-se apropriada para deambular em terra. (A Seção 18.6.1, p. 561, descreve a transição peixes-anfíbios.) Muitos outros exemplos de pré-adaptação estão sendo descobertos em evolução molecu- lar, e o Quadro 10.1 fornece um exemplo. 10.4.3 Uma nova adaptação pode evoluir pela combinação de partes não- relacionadas Até agora, vimos como novas adaptações podem evoluir por mudanças em estruturas que têm uma função constante, ou por mudanças na função de uma estrutura. Uma terceira possibilidade é de que possa surgir uma novidade quando duas partes preexistentes são combinadas. Por exemplo, a utilização do leite para alimentar as crias é uma característica restrita aos mamíferos. Os mamíferos evoluíram dos répteis, que não produzem leite. A história completa da evolução da lactação tem muitos componentes. Um deles é a evolu- ção do maquinário enzimático para sintetizar leite. Este contém grandes quantidades de um açúcar, a lactose, e os mamíferos desenvolveram uma nova enzima – a lactose sinte- tase – para produzi-lo. A lactose sintetase catalisa a conversão da glicose em lactose e é composta de duas enzimas preexistentes, a galactosil transferase e a α-lactoalbumina. A galactosil transferase funciona no aparelho de Golgi de todas as células eucarióticas, e a Na evolução das aves, as penas prece- dem o vôo Uma enzima usada na síntese do leite evoluiu de duas enzimas não-relacio- nadas Evolução | 293 α-lactoalbumina está relacionada com a enzima lisozima, que todos os vertebrados usam em suas defesas antibacterianas. Nesse exemplo, uma novidade evolutiva resultou da com- binação de duas partes preexistentes, com funções não-relacionadas. A enzima produtora de lactose evoluiu pela combinação de uma enzima do complexo de Golgi com uma enzima antibacteriana. A evolução da digestão do leite é um exemplo molecular em que uma nova enzima evoluiu pela combinação de duas enzimas preexistentes. Um processorelacionado atua em um nível mais elevado, quando duas espécies inteiras se juntam por simbiose e evoluem para uma nova espécie, com uma nova fi siologia combinada. Por exemplo, as mitocôndrias e os cloroplastos originaram-se quando uma célula bacteriana englobou outra. No caso das mitocôndrias, a célula combinada era capaz (ou logo se tornou capaz) de queimar carboidratos em oxigênio – um processo que libera mais energia do que a respiração ana- eróbia. A nova célula tinha um metabolismo mais completo do que cada uma das células ancestrais. A evolução por simbiose ou pela combinação de vários genes em novos genes compos- tos pode violar o discurso, mas não o espírito, do gradualismo darwiniano. Por exigência do Quadro 10.1 Co-opção Molecular O termo co-opção é usado freqüentemente para descrever o processo evolutivo em que uma molécula assume uma nova função, mas com mudança mínima em sua estrutura. Conceitualmente, co-opção é o mesmo que pré-adaptação. Um termo (co-opção) é mais usado para moléculas, e o outro (pré-adaptação), para a morfologia. As cristalinas são um exemplo claro. Elas são as moléculas que constituem o cristalino, a lente do olho. Várias proteínas diferentes parecem adequadas para funcionar como proteínas da lente, e a molécula exata que é encontrada nos cristalinos pode ser diferente ao longo da evolução. O cristalino do olho humano, assim como o de muitos vertebrados, contém a α-cristalina, que é muito semelhante à proteína do choque térmico e provavelmente evoluiu por duplicação de um gene que codifi cava essa proteína do choque térmico. Os cristalinos de alguns outros táxons de vertebrados contêm outras cristalinas, que não têm relação com a proteína de choque térmico. Umas poucas aves e os crocodilos utilizam a ε-cristalina, que tem muito da seqüência da (e, sem dúvida, é) lactato desidrogenase. A cristalina mais comum nas aves e nos répteis é a δ-cristalina, que é a arginino succinatoliase. Outras cristalinas singulares são encontradas em táxons restritos, como o mussaranho- elefante. Aparentemente, basta uma molécula ter uma forma globular para que sirva como cristalina. Muitas enzimas preenchem esse requisito, e, durante a evolução, as moléculas que foram utilizadas como proteínas do cristalino foram clivadas e modifi cadas, enquanto a lente, em si, permaneceu praticamente a mesma. (As cristalinas constituem um caso interessante nos estudos da homologia.) O cristalino do olho humano é homólogo ao do olho do crocodilo. As moléculas que o formam não são. (Veja mais sobre homologia na Seção 15.3, p. 450.) A questão emergente da “evo-devo” (Capítulo 20) está registrando muitos exemplos de co-opção molecular. No desenvolvimento embrionário, certos genes reguladores codifi cam sub-rotinas que podem ser úteis em várias circunstâncias. Um gene que regula o quanto um membro deve crescer até que o pé comece a se desenvolver também pode se mostrar útil na regulação do tamanho do padrão da “fi gura de um olho” na asa de uma borboleta. Em ambos os casos, algum processo embrionário precisa atuar por um certo tempo ou em determinado espaço e, depois, parar. As mesmas instruções genéticas podem ser capazes de controlar o desenvolvimento das pernas e o das manchas em forma de olho. Leitura adicional: Raff (1996), Carroll et al. (2001), Gould (2002b). A evolução pode ocorrer por simbiose 294 | Mark Ridley gradualismo, as novas adaptações evoluem em muitas etapas, pequenas e contínuas. Quando duas células se juntam, pode haver uma transição relativamente súbita para uma nova adap- tação, em um grande passo. Entretanto, nenhum princípio importante do darwinismo é vio- lado porque a informação adaptativa proveniente de cada célula ancestral foi construída em etapas graduais. 10.5 A genética da adaptação 10.5.1 Fisher propôs um modelo e uma analogia com o microscópio para explicar por que as mudanças genéticas na evolução adaptativa serão pequenas Os biólogos evolucionistas fazem uma distinção entre os conceitos “fi sheriano” e “golds- chmidtiano” dos passos genéticos pelos quais as adaptações evoluem. Goldschmidt (1940) argumentava que as novas adaptações e as novas espécies evoluem por macromutações (ou “monstros esperançosos”). Uma macromutação é uma mutação com um efeito fenotípico tão grande que faz com que seu portador fi que fora dos limites da variação normal de sua população (Figura 1.7, p. 38). Fisher duvidava que as macromutações contribuíssem muito para a evolução, argumentando que a evolução adaptativa geralmente se faz por vários passos pequenos. As mutações que contribuem para a evolução adaptativa têm efeitos fe- notípicos pequenos. A argumentação de Fisher começava pela percepção de que os seres vivos estão bastan- te bem-adaptados aos seus ambientes. Eles precisam estar razoavelmente bem-ajustados, do contrário, morreriam. Em seguida, Fisher assume que a maior parte dos caracteres se encontra em um estado adaptativo ótimo. Se o caráter é maior ou menor do que o ótimo, a viabilidade do organismo diminui (Figura 10.4a). Como os seres vivos estão, no mínimo, bastante bem- adaptados, eles se encontram em algum lugar próximo ao pico da Figura 10.4a. Agora vamos assumir que a direção das mutações é aleatória e que uma mutação tem 50% de chance de aumentar um caráter e 50% de chance de diminuí-lo. Uma pequena mutação tem, portanto, 50% de chance de melhorar a adaptação. Uma grande mutação, porém, piorará as coisas de qualquer maneira. Ou ele se distanciará ainda mais para aquém do ótimo, ou ultrapassará o ótimo e se afastará dele para o outro lado (Figura 10.4a). Assumindo que um organismo está próximo ao pico adaptativo, Fisher calculou que uma mutação indefi nidamente pequena tem um meio de chance de melhorar a adaptação e que a chance de melhoramento diminui à medida que aumenta o efeito fenotípico da mutação (Figura 10.4b). Uma macromutação tem probabilidade zero de ser vantajosa. A argumentação de Fisher pode ser explicada com menos formalidade. Para qualquer máquina bem-adaptada, é mais provável que ela seja melhorada por sintonia fi na do que por trancos bruscos. Se o seu rádio estiver fora de sintonia, você poderá retornar à estação por um pequeno ajuste no sintonizador. Muito provavelmente, usar um martelo contra a máquina será muito menos útil. Fisher usou uma analogia com a focalização de um micros- cópio. Se ele já está focando bem o objeto, a maior parte dos movimentos de focalização será pequena, com ajustes fi nos, movimentando a lente para cima e para baixo aos poucos. É improvável que um empurrão em qualquer parte do microscópio, escolhida ao acaso, vá melhorar o foco. Há suges- tões de que as adaptações evoluem em poucos grandes passos ge- néticos ou em vários pequenos passos A analogia de Fisher com o mi- croscópio Evolução | 295 O principal pressuposto da argumentação de Fisher é de que o organismo está próximo de seu ótimo adaptativo. Devemos levar em conta um segundo pressuposto relacionado, o de que a adaptação tem um pico único. Se a Figura 10.4a tivesse vários picos, separados por vales, uma macromutação poderia ter alguma chance de melhorar algo conduzindo o orga- nismo para outro pico. Na Seção 8.13 (p. 244), vimos que superfícies de valor adaptativo com múltiplos picos eram a base da teoria de evolução por equilíbrio deslocante de Wright. A teoria de Wright é, assim como a de Goldschmidt, uma segunda alternativa à de Fisher. Wright não invocava macromutações. Ele argumentava que a evolução adaptativa era fa- cilitada pela deriva aleatória em populações pequenas e subdivididas. Como vimos, Fisher duvidava que verdadeiras superfícies adaptativas tivessem múltiplos picos e julgava desne- cessário o processo de equilíbrio deslocante de Wright. Contudo, se superfícies adaptativas reais têm múltiplos picos às vezes, isso poderia complicar os detalhes dos cálculos de Fisher. Entretanto, o ponto-chave de Fisher, de que mudanças amplasem sistemas bem-ajustados geralmente são para pior, continua válido. A evolução adaptativa geralmente é uma reforma lenta, não uma revolução. Va lo r a da pt at iv o Caráter (x) Mutação pequena Mutação grande (a) (b) 0,5 0,4 0,3 0,2 0,1 0 0 1,0 2,0 3,0 Magnitude da mudança Pr ob ab ilid ad e de m el ho ra m en to Figura 10.4 (a) Um modelo geral de adaptação. Dado um traço (x), a adaptação de um indivíduo é ideal em um certo valor de x e, fora desse ponto, diminui. Então, há um monte de valores adaptativos. Uma mutação que muda o valor de x também muda o valor adaptativo de seus portadores. Uma mutação de pequeno efeito tem mais probabilidade de melhorar o valor do portador dela se este está próximo ao pico adaptativo. (b) Os cálculos de Fisher sobre a chance de que uma mutação melhore o valor adaptativo, dependendo da magnitude do efeito fenotípico dessa mutação. As unidades do eixo y referem-se a esse modelo, mas a forma geral do gráfi co será a mesma em qualquer modelo como (a). A teoria do equilíbrio deslocante de Wright é outra alter- nativa 296 | Mark Ridley 10.5.2 Quando um organismo não está próximo de um pico adaptativo, é necessária uma teoria ampliada É possível que o pressuposto de Fisher, de que os seres vivos estão próximos de seu ótimo adaptativo, nem sempre se realize. Nesse caso, as mutações com grande efeito fenotípico têm mais chance de melhorar a adaptação. As mutações pequenas continuam tendo maior proba- bilidade de trazer melhorias do que as grandes, mas Kimura (1983) destacou que isso pode ser sobrepujado por um segundo fator. Quando uma mutação grande é vantajosa, sua vantagem seletiva pode ser maior do que a de uma mutação pequena, porque ela se aproxima mais do pico (Figura 10.4a). A contribuição total de qualquer classe de mutações (por exemplo, a classe das mutações com pequeno efeito fenotípico ou a classe de mutações com grande efeito fenotípico) depende de três fatores: Probabilidade probabilidade probabilidade vantagem de substituição = de surgimento x de as mutações x seletiva das de mutações de mutações serem vantajosas mutações (Essa equação não é matematicamente correta. Por exemplo, vimos na Seção 7.5.2 [p. 201] que a chance de uma mutação seletivamente vantajosa ser fi xada é de cerca de 2s, sen- do s a vantagem seletiva. O terceiro termo da equação deveria ser 2s e não, simplesmente, s. Entretanto, a equação identifi ca os três fatores atuantes e os três são aproximadamente multiplicativos.) Para verifi carmos a contribuição relativa de mutações grandes e pequenas para a evolu- ção adaptativa, precisamos saber os tamanhos relativos dos três fatores nas duas classes de mutações. A argumentação de Fisher só considera o segundo fator. Não há resultados rigorosos disponíveis sobre o primeiro fator, mas tanto a teoria quan- to as evidências indicam que as mutações de pequeno efeito são mais freqüentes do que as de grande efeito. Orr (1998) considerou, matematicamente, o segundo e o terceiro fatores em conjunto, combinando o argumento de Fisher e a conjectura de Kimura. No modelo de Orr, as mutações que foram substituídas mostravam uma certa distribuição de freqüências de efeitos fenotípicos (exponencial negativa, para ser exato). Inicialmente foi substituído um pequeno número de mutações de grande efeito, seguido por um número crescente de mutações com efeitos menores. A razão é que, em uma população distante do pico, inicial- mente são fi xadas algumas mutações de maior tamanho. Então há uma fase de ajustamento fi no, em que muitas mutações pequenas são fi xadas. Por isso, é teoricamente possível que ocorra alguma evolução adaptativa por meio de mutações grandes, sobretudo em popula- ções mal adaptadas. 10.5.3 A genética da adaptação está sendo estudada experimentalmente Até aqui examinamos a teoria. O que nos dizem os fatos sobre a genética da adaptação? Há dois tipos de evidências disponíveis. Uma provém de cruzamentos entre formas diferentes de uma mesma espécie, ou entre espécies intimamente relacionadas. Orr e Coyne (1992) revisaram oito desses cruzamentos, em que as duas formas cruzadas diferiam quanto a um caráter inequivocamente adaptativo. Em cinco ou seis deles, a diferença era controlada por um único gene com efeito grande. Orr e Coyne concluíram que a teoria de Fisher é pouco sustentável. Há uma difi culdade inerente para testar teorias sobre o passado evolutivo usando cruza- mentos genéticos entre formas atuais. Os genes das espécies atuais só podem refl etir o modo como se deu a evolução se não tiverem ocorrido mudanças genéticas desde que as adaptações evoluíram originalmente. A Figura 10.5 ilustra o problema. Duas espécies divergiram através Para popu- lações não muito próxi- mas de seu ótimo adap- tativo... ...três fatores infl uenciam a magnitude de seus passos ge- néticos A evidência genética sustentada na teoria de Fisher... ... é difícil de interpretar Evolução | 297 de vários pequenos passos, mas as espécies atuais diferem em um gene com grande efeito. O problema não invalida a conclusão de Orr e Coyne, de que a evidência a favor da teoria de Fisher é pobre. Entretanto, seria um erro tomar a evidência deles como contrária à teoria de Fisher. Na prática, são necessários cruzamentos genéticos mais extensos. Na borboleta africana Papilio dardanus, por exemplo, um cruzamento inicial sugere que seu polimorfi smo mimético é devido a um único gene de grande efeito. Entretanto, cruzamentos subseqüentes entre formas aparentemente similares de diferentes regiões da África demonstram que há vários genes atuando (Turner 1977, p. 184). Burch e Chao (1999) foram os pioneiros de um segundo tipo de experimento. Eles removeram um bacteriófago de seu pico adaptativo ao permitir que acumulasse mutações deletérias. Então mediram os passos mutacionais por meio dos quais a população do fago evoluiu de volta ao seu nível anterior de adaptação. O resultado dependia do tamanho da população. Em populações pequenas, o fago retornava ao seu pico por meio de vários pequenos passos mutacionais. Em populações grandes, ele retornava parte em passos muta- cionais grandes e parte em passos pequenos. A explicação dos autores é de que as mutações vantajosas grandes são mais raras do que mutações vantajosas pequenas. Em uma popula- ção pequena, as mutações vantajosas grandes podem não surgir e a evolução adaptativa tem continuidade usando as mutações com efeitos pequenos. Em populações grandes, algumas poucas grandes mutações vantajosas podem estar presentes e elas contribuem para a evo- lução adaptativa. Aqui, os resultados de Burch e Chao concordam com a teoria básica das Seções 10.5.1 e 10.5.2 e mostram que o tamanho da população também infl ui. Seu trabalho também demonstra como os sistemas microbianos podem ser usados para testar temas sobre a genética da adaptação. Figura 10.5 Um cruzamento entre as duas espécies atuais mostraria que a diferença de comprimento do bico é controlada por um único gene de grande efeito (A versus A4). Entretanto, a diferença atual evoluiu no passado, por meio de várias pequenas etapas. A evolução fi sheriana é invisível em um cruzamento atual. (0,5 in ≈ 1,25 cm) Alguns tra- balhos expe- rimentais a sustentam e expandem Espécie 1 Espécie 2 Bico de 1 cm genótipo AA Bico de 1,4 cm genótipo A4A4 Presente Bico de 1,3 cm genótipo A3A3 Tempo Bico de 1,2 cm genótipo A2A2 Passado Bico de 1,1 cm genótipo A1A1 Ancestral Bico de 1 cm genótipo AA 298 | Mark Ridley 10.5.4 Conclusão: a genética da adaptação Tomamos conhecimento de quatro teorias sobre as mudanças genéticas que ocorrem durante a evolução adaptativa. A teoria de “Goldschmidt”, de que as adaptações evoluem por macro- mutações, foi recusada por ser teoricamente implausível. As macromutações quase sempre reduzirão a qualidade da adaptação. A teoria de Wright de que as adaptações evoluem por um processo de equilíbrio deslocante não foi o assunto destaseção, mas deve ser incluído para completá-la. Na Seção 8.13 (p. 244), vimos que a teoria do equilíbrio deslocante continua a inspirar pesquisas, mas até agora ninguém demonstrou sua importância para a evolução. A teoria original de Fisher sugeria que a evolução adaptativa só ocorre por meio de muitos pas- sos mutacionais, cada um com pequeno efeito. Essa teoria nunca foi descartada (ou acolhida) e tem tido grande infl uência. Entretanto, a pesquisa moderna está procurando por uma teoria ampliada, que adicione mais fatores ao modelo básico de Fisher. O trabalho experimental poderá testar qual é a mistura de mutações grandes e pequenas que contribui para a evolução adaptativa conforme as condições ecológicas. 10.6 Para estudar a adaptação, utilizam-se três métodos principais Devemos distinguir duas questões sobre qualquer caráter de um organismo. Uma é o se ele é adaptativo. A outra (se o caráter é uma adaptação) é como ele é uma adaptação. A primeira pergunta é complicada porque a resposta dependerá da defi nição de adaptação que for usa- da. Existem várias defi nições, e os métodos de reconhecimento de uma adaptação variam de acordo com a defi nição. Na Seção 10.8 adiante, retornaremos à questão. Aqui, podemos examinar os métodos usados para estudar as adaptações para avaliar se o atributo em questão é adaptativo. O estudo da adaptação progride em três estágios conceituais. O primeiro é para identi- fi car ou postular que tipos de variantes genéticas o caráter poderia ter. Às vezes, como nas mariposas (Seção 5.7, p. 138), por exemplo, isso é feito empiricamente. Outros caracteres não variam geneticamente, e, para estes, é preciso postular formas mutantes teóricas apropriadas. Por exemplo, quando chegarmos ao Capítulo 12, para ver por que existe o sexo, postularemos formas mutantes que se reproduzam por clones, ou assexuadamente. O segundo estágio é desenvolver uma hipótese ou um modelo sobre a função do órgão ou do caráter. A hipótese original para as mariposas era de que a coloração funcionava como camufl agem. As hipóteses têm qualidade variável, mas podem ser melhoradas à medida que o trabalho prossegue. Como vimos na Seção 5.7 (p. 138), a coloração melânica parece ter alguma outra vantagem, nas mariposas, além da camufl agem em áreas poluídas. Outro exem- plo vem da forma do bico das aves. Neste livro, freqüentemente consideraremos a forma do bico como uma adaptação ao suprimento de alimento. Bicos maiores são melhores para comer itens alimentares maiores e mais duros, como vimos na pesquisa de Grant sobre os tentilhões de Darwin (Seção 9.1, p. 251). Entretanto, os bicos também têm outras funções, inclusive a remoção de piolhos, e o formato do bico também é importante para elas (Clayton e Walther, 2001). Uma boa hipótese é a que prevê exatamente as características de um órgão e que faz previsões testáveis. Em morfologia, essas previsões freqüentemente são deduzidas de um modelo construído. Por exemplo, a hidrodinâmica é usada para compreender a forma dos peixes, enquanto a engenharia civil é usada para entender a espessura da concha em moluscos: os custos de ter uma concha mais pesada precisam ser ponderados com os bene- fícios da redução das quebras por ação das ondas ou dos predadores. Esse tipo de pesquisa “Se” e “como” um caráter está adap- tado são questões diferentes A adaptação pode ser es- tudada... ...por meio de modelos construí- dos... Evolução | 299 pode ser executado em todos os níveis, desde o simples e qualitativo até sofi sticadas mo- delagens algébricas. A terceira etapa consiste em testar as previsões das hipóteses. Há três métodos princi- pais disponíveis. Um é simplesmente verifi car se a forma real de um órgão (ou do caráter investigado) é concordante com a previsão hipotética; se não for, a hipótese tem algum erro. O segundo método é o experimental. Ele só é útil se o órgão, ou o padrão de comporta- mento, pode ser alterado experimentalmente. Quase toda a hipótese sobre adaptação prevê que determinada forma de um órgão permitirá que seu portador sobreviva melhor do que os portadores de algumas outras formas, mas as alternativas nem sempre são exeqüíveis. Por exemplo, não podemos fazer um porco com asas para verifi car se o vôo lhe seria vantajoso. Quando possíveis, os experimentos são um meio poderoso de testar idéias sobre adaptação. A coloração de animais, por exemplo, tem sido estudada dessa maneira. Acredita-se que, em certas espécies de borboletas, os padrões de cores atuam como camufl agem por meio da “quebra” dos contornos da borboleta. Silberglied et al. (1980), trabalhando na Smithsonian Tropical Research Institution, no Panamá, cobriram com tinta, experimentalmente, as lis- tras das asas da borboleta Anartia fatima. As borboletas com as listras encobertas mostravam níveis de danos nas asas (causados por ataques malsucedidos de pássaros) semelhantes ao das borboletas-controle e sobreviviam tão bem quanto elas (Tabela 10.1); portanto, as lis- tras das asas não são, de fato, adaptações para aumentar a sobrevivência. Elas podem ter alguma outra função de sinalização ou reprodutiva, embora fosse necessário testar isso em novos experimentos. O método comparativo é o terceiro método de estudo da adaptação. Ele pode ser usa- do se a hipótese prevê que, em certos tipos de espécies, uma adaptação pode ter formas diferentes das formas dessa adaptação em outros tipos de espécies. O clássico estudo de Darwin sobre a relação entre o dimorfi smo sexual e o sistema de cruzamentos é um exem- plo que discutiremos adiante. Algumas hipóteses prevêem que diferentes tipos de espécies Tabela 10.1 A faixa da asa de certas borboletas foi coberta com tinta e a dos controles foi pintada com uma tinta transparente, que não modifi cava a aparência deles. O número de borboletas com asas intactas foi contado em diferentes ocasiões após o tratamento. As distribuições de freqüências não são signifi cativamente diferentes. De Silbergleid et al. (1980). Idade na captura (em semanas) Borboletas pintadas Controles n % n % 0 81 83,5 88 90,7 1 14 14,4 6 6,2 2 2 2,1 2 2,1 3 0 0 1 1,0 4 0 0 0 0 5 0 0 0 0 ...por experi- mentação,... ...e pelo mé- todo compa- rativo 300 | Mark Ridley terão diferentes tipos de adaptações, outras não. A teoria de Darwin sobre o dimorfi smo sexual prevê isso. Já o modelo de um engenheiro óptico sobre como o olho deveria ser projetado poderá resultar em um único projeto, o de desempenho ótimo, com a implicação de que todos os animais com olhos deveriam ter tal projeto. Nesse caso, o método compa- rativo não seria aplicável. Em resumo, os três métodos de estudo de adaptação são o de comparar a forma prevista para um órgão com aquela encontrada na natureza (e, talvez, também medir a adaptação das diferentes formas de um organismo), o de alterar o órgão experimentalmente e o de comparar a forma de um órgão em diferentes tipos de espécies. 10.7 As adaptações na natureza não são perfeitas A seleção natural fez existirem criaturas que, sob muitos aspectos, são maravilhosamente bem-projetadas. Geralmente, entretanto, os projetos são imperfeitos, por muitas razões. Neste capítulo, examinaremos várias delas. No Capítulo 11 veremos outra razão: a de que pode ser impossível que uma adaptação seja perfeita em todos os níveis de organização simultanea- mente. Por exemplo, o controle da natalidade pode ser bom para a população, mas não para o indivíduo. A maioria dos exemplos conhecidos de adaptação benefi cia o organismo. Por isso, elas serão (na melhor das hipóteses) imperfeitas em outros níveis como o gênico, o celular e o dos grupos. Entretanto, ainda podemos perguntar se as adaptações dos organismos são mesmo perfeitas para o organismo. A qualidade das adaptações melhorará progressivamente, enquanto houver variabilida- de genética disponível. Se algumas variantes genéticas da população produzem adaptação melhor do que outras, a seleção natural fará aumentar suafreqüência. Embora esse processo sempre deva operar em direção ao melhoramento, ele nunca atingiu o estado fi nal de per- feição. Como Maynard Smith (1978) destacou, “se não existissem restrições ao possível, o melhor fenótipo viveria para sempre, seria inatingível pelos predadores, colocaria um número infi nito de ovos e assim por diante”. Quais são as restrições que impedem a evolução de tal tipo de perfeição? 10.7.1 As adaptações podem ser imperfeitas devido aos espaços de tempo Muitas plantas com fl ores produzem frutos para induzir os animais a atuarem como agentes de dispersão. Os frutos das diferentes espécies estão adaptados, de vários modos, aos tipos de ani- mais que os utilizam. Eles precisam ser atraentes ao animal pertinente, mas também proteger a semente contra a destruição pelo sistema digestivo dele; eles também precisam permanecer nos intestinos do animal por um tempo certo para serem dispersos a uma distância apropriada da origem e daí serem adequadamente depositados, o que pode ser conseguido por laxativos no fruto. Conhecem-se muitos detalhes sobre os modos como certos frutos estão adaptados aos hábitos e à fi siologia das espécies dos animais dispersores. Ao longo do tempo evolutivo, as plantas, presumivelmente, adaptaram as formas de seus frutos a quaisquer animais ao seu redor e, quando a fauna mudar, as plantas evoluirão (ou melhor, coevoluirão – ver Capítulo 22) com o tempo, para produzir um novo conjunto de frutos adaptados. Entretanto, a seleção natural demora e, depois de uma grande mudança na fauna, haverá um período em que as adaptações dos frutos fi carão obsoletas e adaptadas a uma forma an- terior de agente de dispersão. Janzen e Martin (1982) argumentaram que os frutos de muitas Os frutos coevoluem com os ani- mais Mas alguns frutos pare- cem adap- tativamente anacrôni- cos... Evolução | 301 das árvores das fl orestas tropicais da América Central são “anacronismos neotropicais” (para o termo geográfi co neotropical, ver Figura 17.2, p. 519). Os frutos são antiquados, adaptados a uma fauna extinta, de grandes herbívoros (Figura 10.6). As Américas do Norte e Central tinham uma fauna de grandes herbívoros em escala comparável à da África atual, até cerca de 10 mil anos atrás. Assim como a África tem ele- fantes, girafas e hipopótamos, na América Central havia preguiças terrestres gigantes, um urso gigante extinto, uma grande espécie extinta de cavalos, mamutes e um grupo de grandes parentes dos mastodontes, chamados gonfotérios. Todos esses mamíferos já desapareceram, mas as espécies de árvores sob as quais eles costumavam passar ainda existem. Nas fl orestas tropicais da Costa Rica, algumas árvores ainda produzem frutos grandes e rijos em grande quantidade. Eles se acumulam e apodrecem na base das árvores e, mesmo os que são movi- mentados por pequenos mamíferos, como cutias, não são levados para longe. Janzen e Martin (1982) descreveram assim a frutifi cação da grande palmeira fl orestal Scheelea rostrata: “em um mês, 5 mil frutos acumulavam-se sob cada pé de Scheelea em frutifi cação. Os primeiros frutos a cair são catados por cutias, pecaris e outros animais, que logo fi cam saciados... O maior volume de sementes perece aos pés do genitor”. Os frutos parecem estar superprotegidos por suas capas externas rijas, ser produzidos em quantidades excessivas e não estar adaptados para a dispersão por pequenos animais como as cutias. Parece um caso de má adaptação: “um desajuste entre o tamanho da safra de sementes e o da equipe de dispersão”. Entretanto, os frutos fazem sentido se forem adaptações anacrônicas aos grandes herbívoros recentemente extintos. O tamanho grande seria compatível com um gonfotério e a capa externa rija teria protegido as sementes contra sua poderosa mastigação. Dez mil anos não foram sufi cientes para que as árvores evoluíssem para frutos apropriados ao tamanho mais modesto dos mamí- feros que agora vivem entre elas. Figura 10.6 Os frutos de (a) Crescentia alata (Bignoniaceae) e (b) Annona purpurea (Annonaceae) são dois exemplos de frutos que provavelmente eram comidos por grandes herbívoros extintos recentemente. Os frutos maiores em (a) medem cerca de 20 cm de comprimento; o fruto em (b) está próximo dos 30 cm de comprimento. Ambas as árvores foram fotografadas no Santa Rosa National Park, na Costa Rica. (Fotos, cortesia de Dan Janzen.) ... como se estivessem adaptados a uma megafauna extinta re- centemente 302 | Mark Ridley O princípio ilustrado pelos frutos dessas plantas centro-americanas é geral. As adapta- ções freqüentemente serão imperfeitas porque a evolução é demorada. Os ambientes de todas as espécies mudam mais ou menos continuamente, por causa dos destinos evolutivos das espécies com as quais elas competem e cooperam. Cada espécie tem de evoluir para manter esses eventos, mas a qualquer momento sua distância até a adaptação ótima ao seu ambiente poderá fi car defasada. A adaptação será imperfeita quando a seleção natural não puder operar com a mesma rapidez com que o ambiente de uma espécie muda. (O Quadro 22.1, p. 643, contém uma discussão adicional sobre a coevolução dos frutos.) 10.7.2 Restrições genéticas podem causar adaptação imperfeita Se, em um loco, o heterozigoto tem uma adaptação maior do que a de qualquer dos homozi- gotos, a população evolui para um equilíbrio em que todos os três genótipos estão presentes (Seção 5.12, p. 153). Por isso, uma proporção dos indivíduos da população deverá ter os ge- nótipos homozigotos deletérios. Esse é um exemplo de restrição genética. Ela surge porque, na herança mendeliana, os heterozigotos não podem produzir somente prole heterozigota: eles não podem “produzir linhagem”. Na medida em que há vantagem dos heterozigotos, alguns membros das populações naturais serão imperfeitamente adaptados. A importância da vanta- gem dos heterozigotos é controversa, mas há exemplos inequívocos, como o da hemoglobina das células falciformes, que é, sem dúvida, uma manifestação prática de adaptação imperfeita devida a uma restrição genética. O sistema de letais balanceados do tritão cristado europeu Triturus cristatus é um exemplo mais dramático. Os membros da espécie têm 12 pares de cromossomos, numerados de 1 a 12, sendo o 1 o mais longo e o 12 o mais curto. Macgregor e Horner (1980) verifi caram que todos os tritões cristados, de ambos os sexos, são “heteromórfi cos” quanto ao cromossomo 1: os dois exemplares do cromossomo 1 de um indivíduo são visivelmente diferentes ao microscópio. Os dois tipos de cromossomo 1 foram denominados 1A e 1B (os mesmos dois tipos são encontra- dos em cada indivíduo). Eles observaram que a meiose é normal, de modo que um indivíduo produz um número igual de gametas com o cromossomo 1A e com o 1B. Também há pouca ou nenhuma recombinação entre esses dois cromossomos. Sugere, então, o seguinte enigma: por que não há tritões cromossomicamente homo- mórfi cos, com dois cromossomos 1A ou dois 1B? MacGregor e Horner realizaram experi- mentos em que cruzavam dois indivíduos normais e contavam a proporção de ovos que eclodiam. Em cada caso, aproximadamente metade da prole morria durante o desenvolvi- mento. É quase certo que os indivíduos que morriam eram os homomórfi cos, só sobreviven- do os heteromórfi cos. O motivo pelo qual metade da prole morre é o seguinte. A população adulta tem dois ti- pos de cromossomos, cada um com uma freqüência de um meio. Se escrevermos a freqüência do cromossomo 1A como p e a de 1B como q, então p = q = 1/2. Por segregação mendeliana normal e pelo princípio de Hardy-Weinberg, as proporções de homozigotos (ou homomór- fi cos) é p2 + q2 = 1/2. Portanto, em cada geração os tritões heterozigotos entrecruzam-se e produzem metade da prole homozigota, e metade heterozigota e, então, todos os homozigotos morrem. O sistema parece incrivelmente inefi ciente porque, em cada geração, metade do esforço reprodutivo dos tritões é desperdiçada; mas o mesmo tipo de ineficiência existe, em certa medida, em qualquer loco gênico com vantagem do heterozigoto. Se, em humanos, surgisse uma nova hemoglobina resistente à malária e viável em dose dupla ou se, no tritão cristado, surgisse um novo cromossomo 1 que fosse viável como homomórfi co, isto deveria se disseminar na população. A inefi ciência é mantida, presumivelmente, por não ter surgido uma mutação melhor. Devido a uma pecu- liaridade ge- nética, 50% da prole do tritão crista- do europeu morre Evolução | 303 Poderia um sistema com vantagem do heterozigoto evoluir facilmente para um genótipo de linhagem pura com o mesmo efeito fenotípico? Provavelmente sim, por duplicação gênica (Seção 2.5, p. 51). Imagine que o gene de uma hemoglobina relevante, duplicado em um indi- víduo Hb+/ Hbs, se tornasse Hb+Hb+ / HbsHbs. A recombinação gênica poderia, então, produ- zir um cromossomo Hb+Hbs que conseguisse alcançar tudo o que um heterozigoto Hb+/ Hbs consegue. O cromossomo, uma vez fi xado, também seria transmitido intacto. Desse modo, poderíamos esperar que o sistema Hb+/ Hbs existente evoluísse para um sistema puro Hb+Hb+ / HbsHbs. Poderia ser necessária alguma “compensação de dose” depois que o gene houvesse duplicado, mas isto não deveria ser difícil porque instrumentos reguladores são comuns no genoma. A aparente facilidade desse escape evolutivo contra a vantagem do heterozigoto e a carga segregacional é uma possível explicação para a (aparente) raridade da vantagem do heterozigoto. Mesmo que assim seja, a existência de alguns casos de vantagem do heterozigoto sugere que as populações naturais podem estar imperfeitamente adaptadas porque não surgiu uma mutação melhor. 10.7.3 Restrições ao desenvolvimento podem causar imperfeição adaptativa Uma discussão sobre restrições ao desenvolvimento (Maynard Smith et al., 1985) produziu a seguinte defi nição: “uma restrição ao desenvolvimento é um desvio na produção de fenóti- pos variantes ou uma limitação na variabilidade fenotípica, causados pela estrutura, caráter, composição ou dinâmica do sistema de desenvolvimento”. A idéia é que diferentes grupos de seres vivos que desenvolveram mecanismos de desenvolvimento diferentes e o modo como um organismo se desenvolve terão infl uência nos tipos de mutação que, provavelmente, serão geradas. Uma planta, por exemplo, pode ter probabilidade de mutar para uma nova forma com mais ramos do que um vertebrado porque é mais fácil produzir tal tipo de mudança no desenvolvimento de uma planta (sem dúvida, sequer é claro o que signifi caria, para vertebra- dos, um novo “ramo” – talvez pudessem ser pernas extras, ou ter duas cabeças). Por isso, as taxas dos diferentes tipos de mutações – ou de “produção de fenótipos variantes” como diz a defi nição colocada entre aspas – diferem entre plantas e vertebrados. Restrições ao desenvolvimento podem surgir por várias razões. Um exemplo é a pleiotropia. Um gene pode infl uenciar o fenótipo de mais de uma parte do corpo. Uma situação comum seria aquela em que genes que infl uenciam o comprimento da perna esquerda, provavelmente também infl uenciariam o comprimento da perna direita. Provavelmente o crescimento das pernas acontece por meio de um mecanismo de crescimento que controla ambas as pernas. Para que exista uma restrição, este não tem de ser o mecanismo obrigatório. Talvez alguns raros mutantes afetem apenas o comprimento da perna direita. Uma restrição ao desenvolvi- mento existe sempre que haja uma tendência de os mutantes (neste exemplo) afetarem ambas as pernas e que essa tendência seja devida à ação de algum mecanismo de desenvolvimento. A pleiotropia existe porque não há uma relação de um-para-um entre as partes de um organismo que são infl uenciadas por um gene e as partes do organismo que chamamos de caracteres. Os genes dividem o corpo de modo diferente do que faz o observador humano. Os genes infl uenciam os processos de desenvolvimento e uma modifi cação no desenvolvimento freqüentemente muda mais de uma parte do fenótipo. Muito desse mesmo raciocínio está por trás de um segundo grupo de restrições ao desenvolvimento. Novas mutações, freqüentemen- te perturbam o desenvolvimento do organismo. Um novo mutante, com um efeito vantajoso, também pode perturbar outras partes do fenótipo e essas perturbações provavelmente serão desvantajosas; porém, se o mutante tem um efeito líquido positivo em adaptação, a seleção natural o favorecerá. Em alguns casos, a perturbação pode ser medida pelo grau de assimetria na forma do organismo. Em uma espécie com simetria bilateral, qualquer desvio dessa sime- A vantagem do hetero- zigoto pode levar à duplicação gênica Os sistemas de desen- volvimento infl uenciam o curso da evolução Mutações novas podem perturbar o desenvolvi- mento... 304 | Mark Ridley tria é uma medida individual de quão bem regulado era seu desenvolvimento. Portanto, as mutações podem causar assimetria de desenvolvimento. A mosca-varejeira de ovelhas australiana Lucilia cuprina é um exemplo. Ela é uma praga e os fazendeiros a pulverizam com inseticidas. Como seria de esperar, a mosca logo responde, desenvolvendo resistência (Seção 5.8, p. 145). Esse padrão evolutivo tem se repetido com vários inseticidas e com genótipos de resistência na mosca e McKenzie estudou vários ca- sos. Quando aparece a primeira mutação resistente, ela causa desenvolvimento assimétrico. Presumivelmente, a perturbação do desenvolvimento é deletéria, embora não a ponto de a mutação sofrer seleção contrária. A vantagem da resistência ao inseticida mais do que supera uma pequena alteração no desenvolvimento. Por isso, a mutação aumenta em freqüência. Então a seleção começa a agir em outros locos, para ali favorecer os genes que reduzem os efeitos colaterais deletérios da nova mutação e manter seu principal efeito vantajoso. Isso signifi ca que a seleção fará com que a nova mutação se harmonize com o mecanismo de de- senvolvimento da varejeira. Os genes dos outros locos, que restauram a simetria de desenvol- vimento ao mesmo tempo em que preservam a resistência ao inseticida, são chamados genes modifi cadores, e esse tipo de seleção é chamado seleção canalizadora. Com o tempo, a mutação resistente na mosca-varejeira de ovelhas foi modifi cada de tal modo que não mais perturba o desenvolvimento (Figura 10.7). McKenzie conseguiu demonstrar que a modifi cação era causada por genes em locos di- ferentes do loco em que ocorria a mutação. (Isso é importante porque, havendo seleção em outros locos para reduzir os efeitos colaterais deletérios da mutação, a seleção nesses locos favorecerá outras mutações que possam produzir resistência a inseticidas sem efeitos colate- rais danosos.) Considerando a extensão das interações gênicas no desenvolvimento, prova- velmente é comum que novas mutações perturbem o padrão de desenvolvimento existente. ...mas, com o passar do tempo, a se- leção reduz o efeito per- turbador (a) Sem modificador (b) Com modificador As sim et ria m éd ia ± e . p . 3 2 1 0 Genótipo modificador +/+ +/+ +/+ M/M M/M M/M Genótipo resistente +/+ + /++/RMa l /RMal RMal +/RMa l /RMal RMal Figura 10.7 Assimetria do desenvolvimento em genótipos da mosca-varejeira de ovelhas australianas (Lucilia cuprina) resistentes e não-resistentes ao inseticida malation. (a) Assimetria de desenvolvimento nos genótipos assim que o gene de resistência RMal apareceu, logo após o início do uso do malation. + é o genótipo não-resistente original. O RMal perturba o desenvolvimento, produzindo uma média maior de assimetria, e é seletivamente desvantajoso em ausência de malation. (b) Assimetria de desenvolvimento das moscas com RMal depois que os modifi cadores (M) evoluíram para reduzir o distúrbio de desenvolvimento; este, agora está reduzido a um nível próximo ao das moscas originais +/+, e o RMal tem pouca desvantagem seletiva em ausência do malation ou é neutro em relação a +. O tamanho da amostra é de 50 moscas
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