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http://groups-beta.google.com/group/digitalsource TEORIA DO DISCURSO Fundamentos Semióticos USP - UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO Reitor. Adolpho José Melfi Vice-Reitor: Prof. Dr. hélio Nogueira da Cruz FFLCH - FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS Diretor: Prof. Dr. Francis Henrik Aubert Vice-Diretor: Prof. Dr. Renato da Silva Queiroz CONSELHO EDITORIAL DA HUMANITAS Presidente Prof., Dr. Milton Meira do Nascimento (Filosofia) Membros Profa. Dra, Lourdes Sola (Ciências Sociais) Prof. Dr. Carlos Alberto Ribeiro de Moura (Filosofia) Profa. Dra. Sueli Angelo Furlan (Geografia) Prof. Dr. Elias Thomé Saliba (História) Profa. Dra. Beth Brait detras) Vendas Livrarias Humanitas-Discurso Av. Prof. Luciano Gualberto, 315 — Cid. Universitária 05508-900 — São Paulo — SP — Brasil Tel.: 3091-3728/ 3091-3796 Humanitas – distribuição Rua do Lago, 717 05508-900 — São Paulo — SP – Brasil Telefax: 3091-4589 e-mail: pubfflch@edu.usp.br http//www.fflch.usp.br/hunianitas Humanitas FFLCH/USP março 2002 Diana Luz Pessoa de Barros. TEORIA DO DISCURSO Fundamentos Semióticos 3ª. edição São Paulo, 2002 UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO • FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS Copyright 2002 da Humanitas FFLCH/USP É proibida a reprodução parcial ou integral, sem autorização prévia dos detentores do Copyright. Serviço de Biblioteca e Documentação da FFLCH/USP Ficha catalográfica: Márcia Elisa Garcia de Grandi — CRB 3608 ____________________________________________________________ B276 Barros, Diana Luz Pessoa de Teoria do discurso: Fundamentos semióticos / Diana Luz pessoa de Barros. — 3. ed. – São Paulo : Humanitas / FLLCH / USP, 2001 172p. ISBN 85-7506-059-7 1. Análise do discurso 2. Lingüística 3. Semiótica 1. I Título CDD 410 HUMANITAS FFLCH/USP e-mail: editflch@edu.usp.br Telefax: 309 1-4593 Editor Responsável Prof. Dr. Milton Meira do Nascimento Coordenação Editorial Mª. Helena G. Rodrigues — MTb n. 28.840 Composição Diarte Composição e Arte Gráfica Emendas Selma Mª. Consoli Jacintho — MTb n. 28.839 Capa Diana Oliveira dos Santos Revisão de emendas Simone D’Alevedo [página 4] SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................... 1 Teoria do discurso ......................................................................... 1 Plano do livro ................................................................................ 6 I — NARRATIVIDADE: À PROCURA DE VALORES ................... 7 Considerações iniciais ................................................................... 7 Estruturas sintático-semânticas subjacentes .................................. 8 A gramática de casos de Fillmore ....................................... 8 Análise estrutural da narrativa ............................................ 10 A gramática sêmio-narrativa ........................................................ 12 Uma proposta semiótica ...................................................... 13 Análise interna .......................................................... 14 Análise imanente ...................................................... 14 Percurso gerativo ...................................................... 15 Gramática fundamental ................................................................. 20 Sintaxe fundamental ............................................................ 20 Semântica fundamental ....................................................... 24 Conversão das estruturas fundamentais em estruturas narrativas ....................................................... 27 Gramática narrativa ....................................................................... 28 Sintaxe narrativa .................................................................. 28 Enunciado elementar ................................................. 29 Sintagma elementar: programa narrativo .................................................................... 31 Percurso narrativo ..................................................... 35 Esquema narrativo canônico ..................................... 41 Estratégia narrativa ................................................... 43 Intencionalidade narrativa ........................................ 44 Semântica narrativa ............................................................ 45 Modalização e modalidades ..................................... 49 Paixões e apaixonados ............................................. 60 Notas ...................................................................................................... 70 II — DISCURSO: A ASSUNÇÃO DE VALORES ............................. 72 Considerações iniciais .................................................................. 72 Sintaxe discursiva ......................................................................... 73 Projeções da enunciação ..................................................... 73 Desembreagem e embreagem actancial e teorias do foco narrativo ........................................ 74 Temporalização e espacialização ............................. 88 Relações entre enunciador e enunciatário .......................... 92 Contrato de veridicção e verdade discursiva ................................................................. 92 Argumentação .......................................................... 95 Semântica discursiva .................................................................... 113 Elementos de semântica estrutural ..................................... 113 Tematização e figurativização ............................................ 115 Isotopia ............................................................................... 124 Coerência textual ................................................................ 131 Notas ............................................................................................ 132 III — ENUNCIAÇÃO: A MANIPULAÇÃO DE VALORES ............................................................................. 135 Considerações iniciais .................................................................. 135 Estruturas narrativas e discursivas da enunciação ............................................................................... 136 Tema de comunicação ........................................................ 137 Tema de produção .............................................................. 139 Intertextual idade .......................................................................... 142 Discurso e classes sociais ............................................................. 146 Discurso e ideologia ..................................................................... 148 Texto e problemas de expressão ................................................... 152 Notas ............................................................................................ 155 BIBLIOGRAFIA .................................................................................... 157 ÍNDICE ANALÍTICO ............................................................................ 165 À Mariana que descobrea escrita. À Flávia que aprende a falar. INTRODUÇÃO Este livro retoma, com algumas adaptações, a primeira parte da tese de livre-docência A festa do discurso. Teoria do discurso e análise de redações de vestibulandos, apresentada e defendida na Universidade de São Paulo, em 1985. Propôs-se, no trabalho, costurar e dar forma a um texto que apresentasse uma visão de conjunto da teoria semiótica de análise do discurso e que servisse a pós-graduandos de lingüística e a todos os que pelo discurso se interessam. Em segundo lugar, tencionou-se contribuir para o desenvolvimento da teoria, de cujo projeto temos participado de vários modos. Finalmente, deu-se destaque ao objetivo de conciliar as análises externa e interna do texto, em um mesmo quadro teórico. TEORIA DO DISCURSO Situemos, como primeiro passo, os objetivos e interesses deste trabalho, no contexto das atuais preocupações lingüísticas. A lingüística, a partir de Saussure e, sobretudo, com a teoria distribucional, toma a língua como seu objeto, quase sempre sem ultrapassar a dimensão da frase. Alguns lingüistas estabeleceram claramente esse limite, outros não o determinaram com igual clareza, outros ainda reconheceram a necessidade de se ir além da frase, mas não o puderam ou souberam fazer. O interesse pelo texto como um todo, principalmente com o desenvolvimento dos estudos de semântica, e a aceitação do fato de o texto não ser, como já se sabe há muito, a sim- [página 1] ples soma de frases, tornou necessária uma lingüística do texto ou do discurso. As tão discutidas dicotomias saussurianas, de reconhecida importância para situar a lingüística entre as ciências humanas, para estabelecer seu objeto, limitaram, por outro lado — por má interpretação do mestre, dizem alguns, por necessidade do momento histórico em que se transformavam os estudos da linguagem, afirmam outros, ou por razões ideológicas, consideradas as condições de produção do texto de Saussure, acreditam terceiros —, o campo de possível interesse do lingüista, preocupado em ser objetivo em suas abordagens. Língua e fala, lingüístico e extralingüístico fizeram da lingüística a ciência da língua — “social, essencial, tesouro depositado pela prática da fala em todos os indivíduos pertencentes à mesma comunidade” (SAUSSURE, 1969, p. 21) —, relegando ao extralingüístico a fala — “acessória e mais ou menos acidental, ato individual de vontade e inteligência” (p. 22) — e suas relações com a “etimologia”, com a “história política”, com “instituições de toda espécie, a Igreja, a escola, etc.” (p. 29). A lingüística do discurso pode ser, assim, considerada como uma tentativa de ruptura de duas barreiras: a que impede a passagem da frase ao discurso e a que separa a língua da fala, ou melhor, dos fatores sócio- históricos que a envolvem. Harris (1969), por exemplo, sem fugir dos pressupostos epistemológicos da teoria distribucional, tenta derrubar a primeira barreira, propondo um processo de estruturação global do texto pela integração das frases em unidades maiores. Já outros lingüistas do texto, como Pêcheux, Verón, Slakta, Ducrot, estão mais interessados em vencer a segunda fronteira e retomar ao extralingüístico elementos situacionais indispensáveis à construção do sentido do texto lingüístico. Estabelecidas, em grandes linhas, a necessidade e as pretensões de uma lingüística do discurso, reconhece-se que, nesse projeto, não é fácil delimitar o que é da alçada da lingüística. Constata-se, facilmente, quando se examina o discurso, sua localização na encruzilhada entre preocupações da lingüística e das demais ciências humanas (MAINGUENEAU, 1976, p. 19). Ao deixar a proteção das limitações de uma lingüística pura e lançar- se no caos do extralingüístico, sente-se a lingüística um tanto atordoada, pois ora se vê fortemente solicitada por aqueles que exigem que ela lhes ensine a ler textos como meio de acesso ao homem, ora é confrontada com ofertas diversas, do historiador, do psicólogo, do sociólogo, que sugerem a sua leitura do discurso. [página 2] A primeira preocupação é a de estabelecer um denominador comum às varias definições do termo discurso, bastante polissêmico, segundo Maingueneau (1976, p. 7), e muito usado em textos sobre a linguagem. O ponto de interseção pode ser encontrado na remissão que diferentes teóricos da linguagem fazem à enunciação ou às condições de produção do discurso. E preciso distinguir, com a clareza possível, as variadas colocações a respeito das relações mantidas pelo discurso com seu quadro enunciativo ou com as condições de sua produção. Mesmo assim, pretende- se tomá-las, enunciação e condições de produção, reunidas, como elemento comum, caracterizador do discurso nas várias abordagens. Para Benveniste (1966, p. 253-66) é no discurso que a língua, sistema social, é assumida por uma instância individual, sem, porém, se dispersar em infinitas falas particulares. O autor caracteriza o discurso pelas relações que se estabelecem entre indicadores de pessoa, tempo, espaço do enunciado e a instância de sua enunciação. Ducrot (1980) distingue o texto, abstrato, do discurso, realizado, cabendo à enunciação transformar o texto em discurso e por ele se responsabilizar. Para a análise automática do discurso, de Pêcheux, as formações discursivas são componentes de formações ideológicas, por sua vez relacionadas a condições de produção específicas (PECHEUX & FUCHS, 1975, p. 11), que englobam o mecanismo de colocação dos protagonistas e do objeto do discurso e as características múltiplas de uma situação concreta. Guespin (1971) considera que um olhar lançado a um texto do ponto de vista de sua estruturação em língua faz dele um enunciado e que o estudo das suas condições de produção o torna um discurso. Segundo Greimas, enunciação é a instância de mediação que produz o discurso, ou seja, que realiza a passagem das estruturas semióticas narrativas às estruturas discursivas (GREIMAS & COURTÉS, s.d.). Outros autores poderiam ser aqui arrolados, mas, das citações transcritas, se extraem já três pontos decisivos para a concepção de discurso e sua análise: a relação do discurso com a enunciação e com as condições de produção e de recepção; o discurso como lugar, ao mesmo tempo, do social e do individual; a articulação entre narrativa e discurso, isto é, o discurso constituído sobre estruturas narrativas que o sustentam. As estruturas narrativas, entendidas como suporte sintático-semântico das estruturas discursivas, de qualquer tipo de discurso, serão examinadas no capítulo 1. [página 3] Antes de se focalizar a questão central da enunciação, algumas observações devem ser feitas sobre o caráter individual e social do discurso. Há dois modos distintos de encarar o problema. Lingüistas como Benveniste, Ducrot ou Greimas acatam as dicotomias social vs. individual, lingüístico vs. retórico, competência vs. performance, que, mesmo não recobrindo a oposição língua vs. fala, podem ser a ela referidas. Para Benveniste, por exemplo, coexistem no discurso o sistema da língua e as marcas da opção individual de sua realização que, muito apropriadamente, denominou subjetividade na língua. A segunda forma de abordar a questão está bem colocada por Robin, que não aceita a liberdade discursiva individual do sujeito “sem inconsciente, sem pertencer a uma classe, sem ideologia, que fala, que se fala” (1977, p. 41). Afirma a autora que “esta liberdade atribuída ao domínio da fala inscrevia-se numa Filosofia do sujeito neutro, transparente a si próprio (uma Filosofia de antes da descoberta freudiana), e naquela de um sujeito sem determinações sócio-ideológicas (uma Filosofia de antes de Marx)” (p. 25). Cabe retomar,nessa perspectiva, o problema da co-presença do social e do individual no discurso, afirmando que, nele, coexistem a invariável sistêmica social e as variáveis, também sociais, de realização, forjadas pelas determinações sócio-ideológicas. Se a significação nasce da variação, como propuseram Barthes (1964 e 1966) e Greimas (1966), é da relação entre a invariante do sistema e a variação social que surge o sentido do discurso. A articulação do discurso com a formação social não é, por conseguinte, fortuita e ocasional ou secundária e acessória. Poucos são os teóricos do discurso que deixam de reconhecer a estreita vinculação existente entre discurso e enunciação. Harris é um deles, pois, com método puramente formal, prescinde do conteúdo na análise do discurso. Os estudiosos, que, de alguma forma, atentam para o sentido, se vêem obrigados a recuperar elementos da enunciação, sem o que deixarão de lado muitos aspectos da significação do discurso ou estarão até mesmo impossibilitados de construí-la. Não se pretende invalidar análises realizadas de fatias do sentido, pois se reconhecem as dificuldades de apreendê-lo todo. E preciso, porém, concordar com Ducrot, quando afirma que cabe à análise lingüística, atualmente, fornecer pistas, dar instruções, ser uma fonte de hipóteses pala os analistas do discurso (1980, p. 12). [página 4] A mudança de objete dos estudos lingüísticos, graças ao problema da enunciação, ocorre pouco a pouco na reflexão lingüística que, genericamente, se pode denominar semântica da enunciação. Rotulam-se assim orientações diversas como a teoria semântica intencional de Ducrot, os projetos da pragmática conversacional de Grice e da teoria dos atos de linguagem de Austin e Searle, as propostas para uma teoria da argumentação e os esforços da semiótica de Greimas na construção de uma sintaxe e de uma semântica da enunciação. Essas reflexões, mais lingüísticas em sentido restrito, consideram apenas a enunciação pressuposta no discurso, seu objeto-resultante. Distinguem-se, portanto, de orientações que tentam recuperar para a análise do discurso não apenas os elementos da instância enunciativa implícita, mas também as variáveis sócio-históricas ou condições de produção, que engendram, com as lingüísticas, o sentido do discurso. Reconhecendo a pertinência da dimensão histórica para a análise do discurso, mas também as muitas dificuldades encontradas na determinação das relações entre formações sócio-ideológicas e formações discursivas, propõe-se, neste trabalho, a hipótese, conciliatória entre os dois grupos, de que essas relações podem e devem ser estabelecidas pela mediação lingüística da enunciação. Tenta-se, assim, definir enunciação pelo duplo papel de mediação ao converter as estruturas narrativas em estruturas discursivas e ao relacionar o texto com as condições sócio-históricas de sua produção e de sua recepção. O objetivo é integrar, por meio da enunciação, uma abordagem interna do texto, indispensável para que se reconheçam os mecanismos e regras de engendramento do discurso, com a análise externa do contexto sócio-histórico, em que o texto se insere e de que, em última instância, cobra sentido. Para tanto, parte-se da teoria semiótica desenvolvida pelo grupo de investigações sêmio-lingüísticas, sob a direção de Greimas, por razões que, embora aqui resumidas, serão lembradas e mais bem sentidas no decorrer do trabalho. Em síntese, são três os motivos da escolha: a teoria sêmio-lingüística de análise do discurso está suficientemente avançada para oferecer princípios, métodos e técnicas adequados de análise interna do discurso, apreendido em níveis diferentes de geração e de abstração, que serão examinados nos capítulos 1 e 2; ela constitui, no momento atual, um dos poucos e mais completos modelos de abordagem das estruturas narrativas; embora a semiótica não tenha tratado ainda, satisfatoriamente, [página 5] das relações entre discurso e contexto, acredita-se que, sem contradições teóricas, o projeto avance nessa direção, já que a enunciação, mediadora entre formações sociais e discursivas, encontrou, há muito, espaço na proposta semiótica. Tenciona-se, dessa forma, promover a conciliação complementar das análises interna e externa do texto, no quadro epistemo-metodológico da semiótica, recorrendo sempre que possível e necessário a outras propostas e estudos que, sem incoerências teóricas ou contradições, ajudem a construir o sentido do discurso, tal qual foi aqui entendido. Não se pode esquecer o caráter fronteiriço do discurso, entre as ciências humanas, mas tampouco se pode desconhecer o princípio de que não se somam técnicas ignorando as teorias que implicam. PLANO DO LIVRO O livro divide-se em três capítulos: o primeiro, para estudo das estruturas narrativas, o segundo, das organizações discursivas, e o terceiro, da enunciação e das relações intertextuais. No primeiro capítulo serão examinados os princípios fundamentais da teoria semiótica e a sintaxe e a semântica narrativas, com ênfase no caráter modal da sintaxe e na definição passional da semântica. O segundo capítulo será dedicado à sintaxe e à semântica do discurso. A sintaxe tratará das relações que se estabelecem entre a instância da enunciação e o discurso enunciado e para sua elaboração serão retomadas as teorias do foco narrativo e os estudos de semântica da enunciação sobre questões de argumentação, pressuposição e atos de linguagem. No exame da semântica serão abordados os aspectos de tematização e figurativização do discurso. Tenciona-se verificar quais os procedimentos discursivos que se empregam para criar ilusões de enunciação e de realidade e, a partir daí, efeitos de verdade do discurso. Caberá ao terceiro capítulo a tarefa de rever a enunciação como articuladora entre formações discursivas e sociais e de efetuar a integração das análises interna e externa, conciliação apontada como a finalidade principal deste trabalho. A inserção contextual será considerada a partir das relações de intertextualidade e serão distinguidos os contextos situacional, interno e externo. [página 6] I — NARRATIVIDADE: À PROCURA DE VALORES CONSIDERAÇÕES INICIAIS Duas razões levaram-nos a tratar a narratividade, de maneira sistemática, neste trabalho. A primeira delas foi a concepção de discurso assumida e apresentada na Introdução: o discurso caracteriza-se por estruturas sintático-semânticas narrativas que o sustentam e organizam. Em segundo lugar, ainda que não pretendêssemos atribuir papel privilegiado à organização narrativa na teoria do discurso, seríamos obrigados a reconhecer que os modelos de descrição e explicação da narrativa são marcos fundamentais na história da análise do discurso. Procurou-se ressaltar inicialmente, neste capítulo, a necessidade de dar atenção às estruturas sintático-semânticas narrativas, tanto na análise lingüística da frase quanto no exame de discursos, e apresentar, de forma sucinta, algumas propostas precursoras. Em seguida, tratou-se de firmar posição em certos pontos da semiótica narrativa, considerados imprescindíveis para a explicação da narratividade. Optou-se por não apresentar exaustivamente a teoria greimasiana de análise narrativa, a respeito de que há muitos textos publicados, e restringiu-se a exposição a uma apreciação de conjunto da teoria. [página 7] ESTRUTURAS SINTÁTICO-SEMÂNTICAS SUBJACENTES A gramática de casos de Fillmore1 Examinaram-se, para o nível da frase, as elaborações da gramática de casos de Fillmore (1968). Não interessa retomar a proposta de Fillmore em sua totalidade, mas fazer ver que é forçoso reconhecer, o que nemsempre aceitam as teorias lingüísticas, a existência de estruturas profundas mais distanciadas da estrutura de superfície, em que se definem papéis sintático-semânticos. Em nossa tese de doutoramento (1976), apresentamos e discutimos a gramática de casos, tentando pôr em evidência sobretudo as diferenças básicas encontradas entre o modelo de Fillmore e o de Chomsky, já que Fillmore se declarava então, explicitamente, um seguidor da teoria gerativa. A principal divergência entre eles consiste no fato de Chomsky desenvolver uma gramática de “sujeito-predicado”, enquanto Fillmore exclui do componente de base as noções funcionais de sujeito e de objeto direto e propõe colocar em seu lugar as relações casuais, concebidas como relações sintáticas, semanticamente relevantes, que envolvem os nomes e as estruturas que os contêm. O autor reconhece, dessa forma, um suporte sintático-semântico subjacente à organização da frase, num modelo gerador de frases. As relações casuais, ou casos, formam um conjunto de conceitos universais, provavelmente inatos e correspondentes a certos julgamentos que os homens fazem sobre os acontecimentos: Quem fez isso? Com o quê? A quem isso aconteceu? Em que lugar? Na análise de uma frase, como “João joga bola”, importa determinar, no componente de base, que João manifesta o caso agentivo e bola o objetivo e, só após transformações e já em nível intermediário entre estrutura profunda e de superfície, definir suas funções de sujeito e de objeto direto. Essas observações têm a finalidade de mostrar que, ao lado das semânticas lógicas, das semânticas formais, preocupadas com os valores de verdade e de falsidade das proposições, a lingüística pratica, no quadro da semântica gerativa, uma semântica de caráter antropológico, para muitos mais ingênua, capaz de explicar os recortes semânticos culturais. A análise semântica da frase, assim concebida, aproxima-se da dos mitos, da dos contos populares e da dos textos em geral, bastando pensar nas propostas de Lévi-Strauss, de Propp ou dos formalistas russos. [página 8] Em 1977, em resposta a uma serie de criticas e de sugestões feitas à gramática de casos, Fillmore publica ‘The case for case reopened’, onde firma dois pontos fundamentais da teoria, já implícitos em seus textos anteriores. Um deles é a concepção do sentido relativizado em cenas ou, como preferimos, em um espetáculo. O reconhecimento da dimensão espetacular da sintaxe (ou da sintaxe-semântica), que ocorre também em Tesnière (1959), vem corroborar as convergências acima apontadas e constitui a maior atração de sua teoria, para este trabalho. Os papéis sintático-semânticos casuais, que simulam o espetáculo do homem no mundo, constituem, já no nível da frase, organizações “narrativas” e fazem a ponte entre as estruturas oracionais e as textuais, ou narrativas propriamente ditas. Apreendida a organização sintático-semântica profunda, o autor desenvolve jogos de perspectivas e pontos de vista sobre a cena, que permitem caracterizar recortes culturais e sócio-históricos da língua e de seu uso. As objeções que podem ser feitas à gramática de casos não se aplicam ao nível geral de interesses e objetivos em que aqui nos colocamos. Uma única observação é cabível: como a gramática de casos procura explicar, no nível da oração, o espetáculo do homem agindo no mundo, não deve esquecer que tal espetáculo é visto, através da língua, no texto, ou seja, uma teoria que examina os papéis sintático-semânticos oracionais precisa pressupor uma teoria do texto, no interior da qual encontre seu lugar. O segundo esclarecimento do texto de 1977 é o de que a gramática de casos, apesar do nome, não é um modelo de gramática e sim uma proposta de descrição e explicação sintático-semântica de um nível da geração da oração, tornando-se necessário examinar a gramática em que tal instância se insere. A intenção do autor é localizá-la na gramática gerativa. Halliday (1974, 1976) e Slakta (l971a, 1971b e 1974) discordam, de certa forma, de Fillmore quanto à gramática em que são reconhecidos os papéis sintático-semânticos. Halliday parte da hipótese de que o funcionamento social da língua está refletido na estrutura lingüística e determina três funções, das quais derivam as estruturas constitutivas da oração: função ideacional (vs. estrutura da transitividade), função interpessoal (vs. estrutura do modo) e função textual (vs. estrutura temática e, indiretamente, estrutura da informação). A primeira das funções compara-se facilmente com o nível sintático-semântico dos casos, pois expressa o sentido cognitivo, a experiência que o falante tem do mundo, através do sistema da transitividade. As demais funções acrescentam à [página 9] proposta de Fillmore variáveis da instância da enunciação função interpessoal, manifestada pelas distinções de modo, de topicalização — e da organização textual — função textual, marcada sobretudo pela entoação. Slakta interessa-se pela gramática de casos porque tal teoria pensa, ao mesmo tempo, sintaxe e semântica, e julga que, embora Fillmore não o reconheça, o discurso e seu verdadeiro campo de aplicação. O único reparo que faz a gramática de casos deve-se ao fato de ela não levar em conta o social, ou melhor, as relações do texto com os elementos sócio- históricos de produção e de recepção, ainda que preencha as condições mínimas necessárias seu caráter sintático-semântico — para atingir tais objetivos mais amplos. Prevê a análise do discurso em três níveis: o nível teórico-abstrato, que explicita regras especificamente lingüísticas por meio da gramática de casos, o nível das realizações concretas e o nível retórico, que dizem respeito, ambos, a competência ideológica e para cuja explicação recorre a teoria das ideologias de Althusser. Tanto Slakta quanto Halliday consideram a gramática de casos como uma das etapas da análise do discurso ou da frase — instância de explicação sintático-semântica a que devem ser somados níveis que examinem, de outro ponto de vista e com novos elementos, as relações entre discurso e enunciação, entre texto e contexto. Deixam de ter sentido as objeções que, a respeito de contexto, se podem fazer a gramática de casos, desde que a concebamos como uma etapa no interior de proposta mais ampla, a de Halliday ou a de Slakta, entre outras. Não cremos, e nesse ponto discordamos de Slakta, que a gramática de casos, como foi proposta, explicitamente o nível da oração, seja o modelo mais adequado, atualmente, para explicar o suporte sintático- semântico narrativo do texto. Há, para o texto, modelos mais desenvolvidos de análise narrativa, que prescindem de todo um trabalho de adaptação de propostas localizadas, como a de Fillmore, e que serão examinados nos próximos itens. Análise estrutural da narrativa Para a análise da narrativa propriamente dita, diferentes caminhos podem ser seguidos. Escolher se o da gramática narrativa estrutural, principal fonte da semiótica narratológica.2 A gramática narrativa, além de herdar da lingüística, mais especificamente da semântica, Schnaiderman chama consciência semiótica ou estrutural, dois veios de ori- [página 10] gem bem marcados: os estudos dos formalistas russos, sobretudo sobre o folclore, e os trabalhos de Propp, de um lado, e as abordagens das mitologias, essencialmente na perspectiva de Lévi-Strauss, do outro. Os textos precursores dos formalistas russos trouxeram para a análise narrativa a preocupação, em primeiro lugar, com a análise imanente do texto, ao mostrarem a necessidade de compreender as estruturas objetivas da obra, interrogada em si mesma. Seria, no entanto, no mínimo um engano não reconhecer que os formalistas, além de terem aos poucos alargado suas perspectivas, não chegaram nunca a eliminar os falos sociais da compreensão lingüística.Propp, folclorista e etnólogo, não pertenceu ao grupo dos formalistas, mas seus trabalhos têm muito em comum com os estudos dos elementos dessa escola. A morfologia do conto de Propp é, sem sombra de dúvida, uma das obras sobre as quais repousa a análise estrutural da narrativa, representada, nos Estados Unidos, pelos estudos do folclore e, na França, pelos trabalhos de Bremond, Todorov, Barthes e Greimas. Ao conceber invariantes narrativas, como as funções e as esferas de ação, distinguindo, por exemplo, o doador do objeto mágico do pássaro que oferece uma pena ao herói, do peixe que lhe dá uma escama ou do velho que lhe cede um bastão que bate, Propp revelou as regularidades subjacentes à variedade dos contos maravilhosos russos. Os métodos e técnicas propostos foram, posteriormente, estendidos a outros tipos de textos3: os da “grande literatura”, os não-figurativos, como os discursos políticos e científicos, os não-verbais. Se Propp apreendeu unidades sintagmáticas constantes sob a diversidade do texto, coube à antropologia, de visão estrutural, desenvolver as pesquisas taxionômicas, como por exemplo a descrição das terminologias do parentesco. A elaboração metodológica das etnotaxionomias e as análises paradigmáticas, de Lévi-Strauss sobretudo, procuraram explicar as regularidades estruturais subjacentes e são comparáveis ao modelo lógico-conceptual constituído por Greimas para a representação das estruturas profundas. Aos esforços precursores dos formalistas russos e dos antropólogos seguem-se, principalmente na França, trabalhos que marcaram época nos estudos da narratividade, como a ‘Introdução à análise estrutural da narrativa’, de Barthes. Este, a partir de Benveniste (1974), reconhece níveis de descrição lingüística e mostra que a distribuição, ou relação de mesmo nível, não basta para a construção do sentido do texto, sendo necessário considerar também as relações que inte- [página 11] gram níveis hierarquicamente diferentes. Distingue assim, pela primeira vez, funções distribucionais, que foram desenvolvidas por Bremond (1966, 1973), ao deduzir regras dos possíveis narrativos, e funções integrativas, como os indícios e os informantes. Essa distinção teve larga aceitação entre os estudiosos da narrativa, O texto instigante de Barthes, de 1966, levantou muitos problemas, em sua maioria já resolvidos, ao menos provisoriamente, pelas pesquisas que a ele se seguiram. A unidade sintagmática da função, por exemplo, foi reformulada em termos de enunciado narrativo, caracterizado pela relação entre actantes, o que permitiu a construção de uma sintaxe narrativa. Entre os trabalhos sobre a narratividade, não podem ser ignoradas as contribuições de Bremond, ainda bastante presas à etnoliteratura, de Todorov, no campo dos estudos literários, e dos semioticistas da Escola de Tartu4. A vinculação entre os formalistas e os atuais semioticistas russos é motivo de controvérsias. Enquanto alguns estabelecem uma relação de continuidade direta entre formalistas (período de 1914 a 1930) e semioticistas (a partir de 1960), para outros, como Lévi-Strauss, a ruptura é completa. Schnaiderman não acredita em nenhuma das colocações extremistas e mostra “marcos essenciais no desenvolvimento de uma consciência semiótica” na URSS — um dos quais seria o formalismo —, responsáveis pelo aparecimento da semiótica de Tartu (SCHNAIDERMAN, 1979, p. 26). São principalmente os textos de semiótica da literatura que fazem a ponte entre os formalistas, poetas em sua maioria, e os semioticistas, lingüistas e cibernéticos. A apresentação que se acabou de fazer teve por objetivo, em primeiro lugar, ressaltar a necessidade de explicar a estrutura sintático- semântica subjacente ao texto, seja no quadro da frase, seja na instância do discurso. Em segundo lugar, pretendeu-se, ao tratar da gramática narrativa estrutural, expor alguns elementos — a ênfase formalista na análise interna e imanente do texto; as unidades sintagmáticas constantes ou invariantes narrativas de Propp; as regularidades paradigmáticas subjacentes da antropologia estrutural; as relações distribucionais e integrativas e a questão dos níveis de descrição textual — cuja contribuição foi inegável para a elaboração de uma teoria semiótica da narratividade. A GRAMÁTICA SÊMIO-NARRATIVA A opção feita neste trabalho pela abordagem sêmio-lingüística5 do discurso deve-se, essencialmente, conforme foi [página 12] apresentado na Introdução, à concepção de discurso que, a partir de vários autores, discutimos e fizemos nossa: tal enfoque descreve e explica satisfatoriamente o componente narrativo do discurso; é, sem dúvida alguma, a proposta mais desenvolvida, atualmente, de análise interna e imanente do texto; acredita-se, finalmente, que tal modelo permita, pela mediação da enunciação, articular o discurso com suas condições de produção. Ao conceber um sistema de regras capaz de explicar, com os mesmos princípios epistemo-metodológicos, tanto as estruturas narrativas quanto as discursivas, a semiótica deu já os primeiros passos para a construção de um modelo que, sem abandonar a análise do texto, examine também sua inserção no contexto. Pretende-se, portanto, fazer o projeto avançar nessa direção, sem contradições teóricas, pois a enunciação, que se tomará como elemento mediador entre formações discursivas e sociais, tem já lugar na proposta semiótica. Uma proposta semiótica A semiótica, como a vê Greimas, tenta determinar as condições em que um objeto se torna objeto significante para o homem. Herdeira de Saussure e de Hjelmslev, não toma a linguagem como sistema de signos e sim como sistema de significações, ou melhor, de relações, pois a significação decorre da relação. Falar da significação é falar do sentido negativo decorrente do postulado saussuriano da “diferença”. Uma grandeza semiótica qualquer é, por conseguinte, uma rede de relações e nunca um termo isolado. A teoria semiótica caracteriza-se por: a) construir métodos e técnicas adequadas de análise interna, procurando chegar ao sujeito por meio do texto; b) propor uma análise imanente, ao reconhecer o objeto textual como uma máscara, sob a qual é preciso procurar as leis que regem o discurso; c) considerar o trabalho de construção do sentido, da imanência à aparência, como um percurso gerativo, que vai do mais simples e abstrato ao mais complexo e concreto, em que cada nível de profundidade é passível de descrições autônomas; d) entender o percurso gerativo como um percurso do conteúdo, independente da manifestação, lingüística ou não, e anterior a ela. [página 13] Análise interna O enfoque semiótico procura organizar o texto como uma totalidade de sentido e determinar o modo de produção desse sentido, isto é, como o texto diz o que diz (GROUPE D’ENTREVERNES, 1979, p. 7). Para atingir tais objetivos, a semiótica tem-se esforçado por elaborar procedimentos operatórios e por construir modelos adequados à análise interna. A crença na necessidade de análise interna, ou seja, de descrição e explicação dos mecanismos e regras que engendram o texto, constitui uma das razões da escolha teórica feita. Como foi bem salientado na Introdução, não se acredita, porém, que termine aí a construção do sentido do discurso. Pretende-se, assim, cobrar da semiótica a explicação dos mecanismos de produção do sentido, produção que não se fecha no texto, mas vai do texto à cultura, ao mesmo tempo que dela depende. Análise imanente Hoje, na lingüística, da frase ou do discurso, poucos são os enfoques que não distinguem a imanência da aparência, ou estruturas profundas de estruturas de superfície, ou ainda macroestruturas de estruturas textuais, O texto, objeto da enunciação, é uma ilusão — referencial e enunciativa— e, para ser explicado, precisa ser desbastado dos efeitos de sentido aparentes. Sob a aparência, busca-se a imanência do discurso; sob a máscara, as leis que o produzem. Depois de cumpridos os procedimentos de abstração, é necessário efetuar o percurso inverso e reconstruir, a partir de estruturas imanentes, as estruturas aparentes da manifestação. Imanência e aparência são níveis diferentes de abstração e dependem, portanto, da perspectiva adotada, o que dificulta ou mesmo impede a tarefa de precisar o que são instância profunda e instância de superfície. Construções metalingüísticas, estrutura profunda e estrutura de superfície designam os pontos de partida e de chegada de uma cadeia de transformações (GREIMAS & COURTÉS, s.d., p. 352), tendo assim caráter puramente operatório. A título de exemplo, podem-se comparar as concepções de estrutura profunda em Fillmore e em Chomsky: a estrutura profunda em Fillmore, com seus papéis sintático-semânticos ou casos, é “mais profunda” que a estrutura profunda em Chomsky, ou melhor, está mais distante da manifestação. São as estruturas intermediárias, em Fillmore, resultantes de transformações ao menos de subjetivação e objetivação, que podem ser comparadas, por se encon- [página 14] trarem no mesmo nível de descrição, com a estrutura profunda em Chomsky. Em semiótica, as estruturas profundas são as estruturas mais simples que geram as estruturas mais complexas. A maior complexidade deve ser entendida também como uma “complementação” ou um “enriquecimento” do sentido, já que novas articulações são introduzidas em cada etapa do percurso e a significação nada mais é que articulação. Considera-se, portanto, o trabalho de construção do sentido, da imanência à aparência, como um percurso gerativo. Percurso gerativo O discurso é encarado pela semiótica como uma superposição de níveis de profundidade diferente, que se articulam segundo um percurso “que vai do mais simples ao mais complexo, do mais abstrato ao mais concreto” (GREIMAS & COURTÉS, s.d., p. 206). A noção de percurso gerativo é fundamental para a teoria semiótica. Prevê-se a apreensão do texto em diferentes instâncias de abstração e, em decorrência, determinam-se etapas entre a imanência e a aparência e elaboram-se descrições autônomas de cada um dos patamares de profundidade estabelecidos no percurso gerativo. As razões que levaram à escolha de certas etapas e não de outras, igualmente possíveis, resultam da concepção de discurso e de construção de sentido assumidas e serão percebidas, mais claramente, na explicação de cada patamar. O nível propriamente semiótico, imanente, compreende o percurso gerativo todo e distingue-se do nível lingüístico (ou pictórico, gestual, etc.) aparente, que se situa fora do percurso gerativo e em que se reconhecem as estruturas textuais. O nível semiótico comporta três etapas julgadas necessárias para a clareza da explicação do percurso: a das estruturas fundamentais, instância mais profunda, em que são determinadas as estruturas elementares do discurso, a das estruturas narrativas, nível sintático-semântico intermediário, e a das estruturas discursivas, mais próximas da manifestação textual. São lugares diferentes de articulação do sentido, que pedem a construção, no interior da gramática semiótica, de três gramáticas — fundamental, narrativa e discursiva —, cada qual com dois componentes, ou seja, uma sintaxe e uma semântica. A sintaxe e a semântica complementam-se na gramática semiótica. A sintaxe semiótica deve ser considerada uma sintaxe conceptual, em que as relações, ainda que reconhecidamente abstratas, são significantes, e a semântica, uma semân- [página 15] tica gerativa — ‘concebida sob a forma de investimentos sucessivos, dos mais abstratos aos mais concretos e figurativos” —, sintagmática, e não apenas taxionômica, e geral (GREIMAS & COURTÉS, s.d., p. 431 e 396). No nível das estruturas fundamentais, uma sintaxe explica as primeiras articulações da substância semântica e das operações sobre elas efetuadas e uma semântica surge como um inventário de categorias sêmicas com representação sintagmática assegurada pela sintaxe; na instância das estruturas narrativas, uma sintaxe regulamenta o fazer — simulacro do fazer do homem no mundo e das suas relações com os outros homens — e uma semântica atribui estatuto de valor aos objetos do fazer; na etapa mais superficial das estruturas discursivas, uma sintaxe organiza as relações entre enunciação e discurso e uma semântica estabelece percursos temáticos e reveste figurativamente os conteúdos da semântica narrativa. Passa-se, assim, do lógico-conceptual ao narrativo graças à ação do homem, sujeito do fazer, e do narrativo ao discursivo pela intervenção do sujeito da enunciação. Texto da imagem: Tomando-se o texto de João Cabral de Melo Neto ‘O vento no canavial’, em análise de rápidas pinceladas, pode-se entender melhor a noção de percurso gerativo. O vento no canavial Não se vê no canavial É como um grande lençol nenhuma planta com nome, sem dobras e sem bainha; nenhuma planta maria, penugem de moça ao sol, planta com nome de homem. roupa lavada estendida. É anônimo o canavial, Contudo há no canavial sem feições, como a campina; oculta fisionomia: é como um mar sem navios, como em pulso de relógio papel em branco de escrita. há possível melodia. [página 16] ou como de um avião É solta sua simetria: a paisagem se organiza, como a das ondas na areia ou há finos desenhos nas ou as ondas da multidão pedras da praça vazia. lutando na praça cheia. Se venta no canavial Então, é da praça cheia estendido sob o sol que o canavial é a imagem: seu tecido inanimado vêem-se as mesmas correntes faz-se sensível lençol, que se fazem e desfazem, Gramática semiótica Sintaxe Semântica Gramática fundamental (lógico-conceptual) Sintaxe fundamental Semântica fundamental Gramática narrativa (antropomórfica) Sintaxe narrativa Semântica narrativa Gramática discursiva (da enunciação) Sintaxe discursiva Semântica discursiva se muda em bandeira viva, voragens que se desatam, de cor verde sobre verde, redemoinhos iguais, com estrelas verdes que estrelas iguais àquelas no verde nascem, se perdem. que o povo na praça faz. Não lembra o canavial (MELO NETO, 1975, p. 148-9) então, as praças vazias: não tem, como têm as pedras, disciplina de milícias. Os conceitos empregados, nesse rápido exercício, estarão mais bem desenvolvidos no corpo do trabalho. Não serão distinguidos, com nitidez, os fatos sintáticos dos semânticos. No nível das estruturas fundamentais, primeira etapa na geração do sentido, as categorias semânticas /anônimo vs. com nome/, /em branco vs. Escrito/, /sem feições vs. com cara/, podem-se reduzir à relação fundamental /não marcado vs. Marcado/ ou /continuo vs. descontínuo/. Lembrando a lição da semântica de que o sentido nasce da descontinuidade, da ruptura, da percepção da diferença, tem-se a oposição entre a significação da marca, do nome, da feição, do traço e a ausência de significação do anonimato, da diluição, da continuidade ou, em última instância, entre o sentido da vida (“sensível lençol”, “bandeira viva”, “no verde nascem”) e o sem-sentido da morte (“tecido inanimado”)6. Acrescente-se a relação de /estaticidade vs. dinamicidade/ ou /conservação—manutenção vs. mudança—transformação/ ou /ordem vs. desordem/ e, muito provavelmente, estarão arroladas as categorias semânticas sobre as quais se constrói o poema. Ainda no patamar das estruturas fundamentais, cabe explicação das operações sintáticas que põem em movimento as [página 17] relações acima estabelecidas.As operações lógicas de negação e de asserção determinam os seguintes percursos: 1 2 3 continuidade descontinuidade ruptura morte (sem-sentido) não-morte vida (sentido) estaticidade (conservação) não-estaticidade dinamicidade cujas etapas (1, 2 e 3) podem ser reconhecidas no texto: 1: anônimo; sem feições; mar sem navios; papel em branco de escrita; lençol sem dobras e sem bainha; tecido inanimado; 2: oculta fisionomia; possível melodia; a paisagem se organiza; finos desenhos nas pedras da praça vazia; sensível lençol; estrelas verdes que no verde nascem; não lembra as praças vazias; não tem disciplina de milícias; 3: ondas da multidão; praça cheia; mesmas correntes que se fazem e desfazem; voragens que se desatam; redemoinhos que o povo na praça faz. O texto trata, portanto, do surgimento da vida, do movimento, da transformação, da ruptura ou do aparecimento da tensão entre estados de distensão e de relaxamento. No segundo patamar do percurso gerativo, o das estruturas narrativas, é preciso reconhecer sujeitos humanos que realizam as mudanças descritas como operações lógicas, no nível fundamental. No poema, há um sujeito que transforma estados, ou seja, que altera a relação de outros sujeitos com os objetos-valor. Nesse caso específico, transforma- se a competência do sujeito para a ação: o sujeito sem nome, feições ou marcas, que nada quer, sabe ou pode fazer, torna-se um sujeito determinado ou “qualificado”, que aspira às mudanças (faz “estrelas”), é capaz de operá- las e, finalmente, age (“correntes que se fazem e desfazem”; “que o povo na praça faz”). O sujeito responsável pela alteração das qualidades do sujeito da ação é denominado, na teoria semiótica, destinador. Destinador é aquele que determina a competência e os valores do sujeito que age, aquele que, em suma, estabelece as regras do jogo. No texto em exame, o destinador aparece sob a figura do vento que muda o canavial, que lhe dá voz e vez, O canavial, graças ao vento, coloca-se como sujeito operador das mudanças de estado e como sujeito “apaixonado”, que espera, que confia e desconfia, que se desilude e se aflige, que não se conforma e se revolta. A terceira e última etapa do percurso gerativo, a mais próxima da manifestação, é a das estruturas discursivas. Exa- [página 18] mina-se o texto como resultado da enunciação, como discurso, enfim. Retomam-se as estruturas narrativas na perspectiva da instância de enunciação que as assume. Instala-se, no poema, um observador, sujeito cognitivo delegado do sujeito da enunciação, que “filtra”, que conduz o discurso. Nada mais justo, portanto, que nesse texto a dimensão do saber esteja figurativizada pela visão (“não se vê no canavial”; “oculta fisionomia”; “o canavial é a imagem”; etc.) e que seja claro o jogo de veridicção entre o ser e o parecer: o canavial mente, pois parece, mas não é estático e sem feições, e esconde segredos, pois, embora não pareça, tem “fisionomia”. O observador, ao assumir diferentes posições e perspectivas, ao fazer variar o ponto de vista, conhece ou reconhece as voragens ocultas, os redemoinhos escondidos, a melodia possível. Sendo o observador (e não o narrador) o condutor do discurso, aparecem fortes recursos de aspectualização, que garantem a passagem das transformações narrativas a processos com começo, meio e fim. A descontinuidade aspectual rompe a duratividade do “papel em branco”, da “campina” ou do “grande lençol” e o aspecto incoativo da mudança dá início a uma nova duratividade. Também no nível do discurso, a semiótica examina os temas e as figuras que os recobrem. As relações e operações elementares do nível fundamental, já retomadas como transformações, valores e paixões narrativas, apresentam-se, no nível discursivo, como percursos temáticos e figurativos. Em ‘O vento no canavial’, várias linhas temático-figurativas podem ser estabelecidas. Uma primeira leitura é, sem dúvida, a do vento que mexe com o canavial. Outras são possíveis e não se pensa em esgotá- las aqui: a) leitura sócio-política das transformações sociais, com a presença de elemento desencadeador das mudanças operadas pelo povo “lutando na praça” (não se pode esquecer do papel transformador da praça, muito bem reconhecido pelos antropólogos); b) leitura sócio-econômica do anonimato e do conformismo do homem do Nordeste, submetido às injunções da política econômica e à natureza e com ela confundido, mas que, se soprar o “vento forte”, pode mudar-se em “bandeira viva”; c) leitura existencial e cíclica da vida, da fecundação e do nas cimento. A apreensão vertical dessas linhas temáticas (e figurativas) cria metáforas: o povo, o Nordeste, o homem confundem-se com o canavial; o líder, o herói, o fecundador misturam-se com o vento; os movimentos da cana balançada pelo vento [página 19] equivalem, na leitura vertical, ao nascimento ou às lutas na praça cheia. Percorridas, rapidamente, as etapas de geração do sentido propostas pela semiótica, resta, ainda, a possibilidade de considerar o texto nas suas relações com o significante — lingüístico, visual, etc. —, já fora do percurso gerativo. Cabe lembrar que, a partir de Hjelmslev, a semiótica condiciona a construção de uma metalinguagem descritiva à separação dos planos da expressão e do conteúdo, sem que isso signifique deixar de reconhecer a implicação mútua que os define. Entende-se o percurso gerativo, portanto, como um percurso do conteúdo, independente de sua manifestação e anterior a ela. A manifestação tem implicações diversas, como a linearidade e a organização no espaço, a escolha lexical, as marcas estilísticas, de que a semiótica não se ocupa. No caso da manifestação verbal, o nível textual desdobra-se, por sua vez, em instância das estruturas de superfície e instância das estruturas profundas, estudadas pela lingüística. GRAMÁTICA FUNDAMENTAL A sintaxe e a semântica fundamentais constituem o nível profundo da gramática sêmio-narrativa, a instância ab quo do percurso de geração do sentido de um discurso (GREIMAS & COURTÉS, s.d., p. 432-3). Sintaxe fundamental A sintaxe fundamental articula-se nos subcomponentes taxionômico ou morfológico e operacional ou sintático. Em decorrência do caráter relacional da sintaxe semiótica, os termos do subcomponente taxionômico são interseções ou redes de relações e as operações do subcomponente sintático, stricto sensu, “atos que estabelecem relações” (GREIMAS & COURTÉS, s.d., p. 433). O subcomponente taxionômico ou morfológico descreve e explica o modo de existência da significação como um microssistema relacional não orientado, ou melhor, como estrutura elementar. Com a noção de estrutura elementar, procurou-se dotar a semiótica de uma definição de estrutura capai de incluir relações que “constituem o essencial da herança Sobre a qual repousa o cálculo lingüístico desde 1827” (GREI- [página 20] MAS, 1981a, p 44). Organização estrutural mínima, a estrutura elementar define- se, em primeiro lugar, corno a relação que se estabelece entre dois termos- objetos — um só termo não significa —, devendo a relação manifestar sua dupla natureza de conjunção e de disjunção. Tal estrutura necessita, porém, ser precisada e interpretada por um modelo lógico que traduza bem suas relações em oposições de contradição, contrariedade e complementaridade, e que a torne operatória, no plano metodológico. O quadrado semiótico foi concebido como a representação lógica, “tão simples quanto possível” (RICOEUR, 1980, p. 6), da estrutura elementar7. S�1 S�2 S2 S1 relação de contrariedade relação de contradição relação de complementaridadeOs termos da categoria elementar s1 e s2, mantêm entre si relação de oposição por contraste, no interior de um mesmo eixo semântico, e podem, cada um deles, projetar, por uma operação de negação, um novo termo, seu contraditório (s�1 e s�2). Só é possível pensar em estrutura elementar quando s1 e s2 forem termos polares de uma mesma categoria semântica. Retoma-se, como ilustração, o texto ‘O vento no canavial’, já utilizado no item sobre o percurso gerativo, para melhor situar os conceitos da gramática fundamental. Investindo o quadrado semiótico com as categorias semânticas do poema citado, tem-se: Texto da imagem: S1 S2 continuidade ruptura morte vida estaticidade dinamicidade S�2 S�1 não-ruptura descontinuidade não-vida não-morte não-dinamicidade não-estaticidade [página 21] Percebe-se facilmente que /continuidade vs. ruptura/, /morte vs. vida/, /estaticidade vs. dinamicidade/ são termos de uma mesma categoria semântica: temporal, existencial e de movimento, respectivamente. Além das relações categoriais (s1 vs. s2 e s�2 vs. s�1 são contrários; s1 vs. s�1 e s2 vs. s�2 são contraditórios; s�1 vs. s1 e s�2 vs. s1 são complementares), o modelo acima define seis dimensões: dois eixos: s1 + s2 e s�1 + s�2 dois esquemas: s1 + s�1 e s2 + s�2 duas dêixis: s1+ s�2 e s2 + s�1 Os termos categoriais (s1, s2, s�1, e s�2) resultam de urna primeira geração de termos, graças às operações de negação e asserção. O quadrado semiótico permite ainda uma segunda geração, em que são obtidos os metatermos contraditórios e contrários, e uma terceira geração que produz os termos complexo e neutro. Os metatermos contraditórios são dois esquemas (s1 + s�1 e s2 + s�2) que contraem relação de contradição (por exemplo, imanência e manifestação, no quadrado das modalidades veridictórias)8 e os metatermos contrários, duas dêixis (s1 + s�2 e s2 + s�1) que mantêm entre si relação de contrariedade (como a mentira e o segredo, no mesmo quadrado das modalidades veridictórias). Os termos complexo e neutro caracterizam-se, respectivamente, pela reunião dos termos do eixo dos contrários (S (sexualidade) = s1 (macho) + s2 (fêmea)) e dos termos do eixo dos subcontrários (S� (assexualidade) = s�1 (não-macho) + s�2 (não- fêmea)). Com esse modelo, traduz-se estaticamente a organização relacional do conteúdo, a taxionomia do subcomponente morfológico. Enquanto o subcomponente morfológico ocupa-se do modo de existência da significação, cabe ao subcomponente operatório ou sintático descrever e explicar o seu modo de funcionamento. A dinamização do modelo taxionômico da estrutura elementar — as relações são tratadas como operações orientadas — permite passar ao ponto de vista sintático. A orientação rias relações é a primeira condição da narratividade e pressupõe já um sujeito produtor do sentido. Reúnem-se aí — relações da estrutura elementar da significação e seqüência ordenada de operações sintáticas — as condições mínimas de ou discurso (GREIMAS, 1981a, p. 42-6). O quadrado semiótico, por meio da reformulação das ralações em operações, responde também pela representação dinâmica da estrutura elementar. [página 22] * ** ** * (texto da imagem: * asserção; ** negação) As operações são de dois tipos: a negação e a asserção. A operação de negação, efetuada sobre s1 ou sobre s2, considerados como termos primitivos, produz seus contraditórios, respectivamente s�1 e s�2; a operação de asserção aplica-se aos termos s�1 e s�2 e faz aparecer os termos primitivos afirmativos, s1 e s2. as se rç ão asserção As operações realizadas no quadrado semiótico negam um conteúdo e afirmam outro, engendrando a significação e tornando-a, como vimos, passível de narrativização. No poema de Cabral que se está usando como exemplo, a dinamização das relações fundamentais em percursos orientados resulta no esquema abaixo: s1 s2 continuidade ruptura morte ** vida estaticidade * dinamicidade s�1 descontinuidade não-morte não-estaticidade (texto da imagem: * asserção; ** negação) Nega-se a /continuidade/, a /morte/ e a /estaticidade/ e afirma-se a /ruptura/, a /vida/, a /dinamicidade/. Duas tarefas, entre outras, foram confiadas ao modelo quaternário que acabamos de definir: a primeira é a de modelo constitucional, ponto de partida do percurso de geração de todo discurso, lingüístico ou não; a segunda, que de certa forma incluiria a primeira, é a de representar as relações semânticas em sua dimensão paradigmática e propiciar-lhes a sintagmatização pelas operações orientadas, em qualquer etapa de descrição. O quadrado semiótico pertence ao nível metalingüístico da semiótica. Ressalte-se, ainda, qualquer que seja a tarefa cumprida, a eficácia heurística do quadrado, enquanto modelo de previsibilidade. [página 23] Resumiu-se, em grandes linhas, a sintaxe fundamental. Foram apresentados apenas os elementos de consenso entre os estudiosos da semiótica. No item sobre a semântica fundamental, serão analisadas algumas reformulações possíveis, sobretudo a partir do trabalho de Zilberberg (1981). Semântica fundamental A semântica fundamental define-se por seu caráter abstrato e constitui, com a sintaxe fundamental, o ponto inicial da geração do discurso. as se rç ão Todo semantismo articula-se em categorias semânticas que, representadas pelo quadrado semiótico, se tornam operatórias e adquirem estatuto lógico-semântico (GREIMAS, 1979b, p. 9). Em princípio, uma única categoria é suficiente para produzir um microuniverso semântico, mas prevêem-se também, em sua geração, categorias hierarquizadas. Esse inventário ou taxionomia de categorias semânticas é sintagmatizado pelas operações sintáticas descritas. As categorias semânticas podem ser axiologizadas na instância das estruturas fundamentais pela projeção, sobre o quadrado que as articula, da categoria tímica /euforia/ X /disforia/. “Trata-se de uma categoria ‘primitiva’, dita também proprioceptiva, com a qual se procura formular, muito sumariamente, o modo como todo ser vivo, inscrito em um contexto, ‘se sente’ e reage a seu meio, considerado o ser vivo como ‘um sistema de atrações e repulsões’.” (GREIMAS, l979b, p. 9). Eufórica é a relação de conformidade do ser vivo com o meio ambiente, e disfórica, sua não-conformidade. Os termos da categoria semântica assim investidos são ditos valores axiológicos, e não apenas valores descritivos, e surgem, em relação à semântica narrativa, como valores virtuais, ou seja, não relacionados ainda a um sujeito. A atualização só ocorre na instância superior da semântica narrativa, quando tais valores são assumidos por um sujeito. Em ‘O vento no canavial’, as categorias semânticas geradoras do poema são axiologizadas: a /continuidade/, a /morte/ e a /estaticidade/ são disfóricas e opõem-se à euforia da /ruptura/, da /vida/, da /dinamicidade/. Passa-se, portanto, da disforia à euforia, em texto euforizante. [página 24] Texto da imagem: s1 s2 continuidade ruptura disforia morte vida euforia estaticidade dinamicidade s�1 descontinuidade não-morte não-disforia não-estaticidade A aplicação do tímico sobre o descritivo e os valores axiológicos resultantes, além de constituírem sistemas de valores virtuais a serem explorados pelo sujeito da enunciação, têm especial interesse para explicarem-se, na instância narrativa, as articulações modo-passionais queregem as relações entre os sujeitos e os objetos. A categoria tímica /euforia/ vs. /disforia/, para Greimas (1979b), está por detrás, ou melhor, de acordo com a metáfora do percurso gerativo, por baixo das organizações modais que definem as paixões. Zilberberg (1981) sugere mudanças nas relações entre o tímico e o passional e alterações no próprio percurso gerativo “clássico”, de forma geral mantido neste trabalho. Não se discutirão aqui o interesse e o alcance de todas as sugestões de Zilberberg, mas serão retomados alguns pontos de sua proposta que se acredita poderem contribuir para melhor explicar o modo de produção do sentido. O ponto de partida das inovações de Zilberberg é a categoria /tensão/ vs. /relaxamento/, apresentada como oposição-matriz, correspondente à oposição /elevado/ vs. /reduzido/ do modelo fonológico acústico, e que instalaria a descontinuidade na unidade contínua do sema. “Em outras palavras, se o sema é mantido, para satisfazer o princípio da continuidade, como compacto ou contínuo, é preciso, para satisfazer agora o princípio da descontinuidade, instalar nessa continuidade uma ‘descontinuidade sistêmica’. Esta última manterá o sema como unidade, mas, ao mesmo tempo, o esvaziará, o escavará, roerá sua substância para conservar-lhe apenas a forma ou, melhor ainda e segundo a bela expressão de Valéry, ‘a figura da forma’.” (ZILBERBERG, 1981, p. 6). Cada sema tem, nessa perspectiva, dupla definição, em relaxamento e em tensão, ou seja, o sema varia entre um estado tenso e outro relaxado. Os percursos de tensão e de relaxamento são denominados modalidades tensivas. [página 25] Texto da imagem: tensão (t) relaxamento (r) intensão (r�) distensão (t�) Zilberberg ilustra bastante bem sua proposta: o operador ou, por exemplo, engloba tanto o ou tenso das oposições quanto o ou relaxado das analogias; em La Rochefoucauld, a distinção entre avareza e economia é uma variação de intensidade e não de qualidade, ao contrário do que ocorre com avareza e prodigalidade, ambos termos tensos que se separam por “qualidade semântica”; os universos semânticos também se determinam pela tensividade: o de Baudelaire, tenso, o de Verlaine, relaxado (ZILBERBERG, 1981, p. 22-3). Se as modalidades tensivas subjazem a toda unidade de sentido, podem ser consideradas como termos de uma categoria que modaliza as categorias semânticas, no nível das estruturas fundamentais, papel que Greimas atribui à categoria tímica. Neste trabalho, pretende-se empregar a categoria da tensividade, articulada em tensão e relaxamento, mesmo sem acompanhar as demais contribuições de Zilberberg à semiótica. A categoria da tensividade poderá levar a melhor caracterizar a categoria tímica /euforia/ vs. /disforia/, responsável, como foi visto, pela axiologização das categorias semânticas fundamentais. A categoria tímica será redefinida como categoria fá rica. A troca de nomes, de timia para foria, explicita o caráter articulador da categoria, a ser entendida, a partir daí, não só pela oposição tímica de /bem, benéfico (eu-)/ vs. /mal, maléfico (dis-)/, mas também pela relação de /tenso/ vs. /relaxado/. A euforia define-se, assim, como uma tensão decrescente e um relaxamento crescente; a disforia, como aumento de tensão e diminuição de relaxamento. A tensividade, para Zilberberg, é uma propriedade do ser vivo ou, mais exatamente, do encontro do ser vivo com o não-vivo, concepção que lhe permite homologar a forja ao princípio do prazer de Freud, à pulsão. Retoma-se, uma vez mais e indiretamente, a categoria tímica, tal qual a propôs Greimas, como a categoria que articula as reações do ser vivo a seu contexto. Pode-se concluir que a tensividade, ou melhor, a variação e a conservação tensiva organizam os conteúdos no nível das estruturas fundamentais e correspondem à metacategoria semântica, tímica ou fórica, que determina o descritivo e o torna valor axiológico. Metacategoria definidora das catego- [página 26] rias semânticas ou relação sintática responsável pela organização, conservação ou redução das diferenças semânticas, como prefere Zilberberg, a tensividade tem, inegavelmente, um papel a cumprir na instância fundamental do percurso de geração do sentido, além de iluminar um pouco as obscuras regras de passagem de um nível semiótico a outro. Conversão das estruturas fundamentais em estruturas narrativas Caracterizada a gramática Fundamental, Cumpre tratar da conversão das estruturas profundas em estruturas narrativas, etapa imediatamente superior no percurso gerativo. O problema colocado pela passagem de um nível a outro, quaisquer que sejam eles, não encontrou ainda real solução. O reconhecimento dos procedimentos de conversão e o estabelecimento de suas regras estão apenas começando. Sabe-se, no momento, que a conversão9 diz respeito à manutenção e não à ruptura, introduzindo a continuidade na descontinuidade das etapas. A equivalência ao modelo inicial deve ser mantida, ao mesmo tempo que a estrutura se torna mais complexa e o sentido mais “rico”. Quanto à passagem específica do nível fundamental ao narrativo, é possível reconhecer certos elementos. As operações da sintaxe fundamental convertem-se, na sintaxe narrativa e graças ao sujeito do fazer, em enunciados do fazer que regem enunciados de estado. Pode-se dizer que a conversão das operações lógicas em transformações narrativas é uma antropomorfização, em que a sintaxe narrativa, de caráter antropomórfico, substitui as operações lógicas da sintaxe fundamental por sujeitos do fazer e define sujeitos de estado pela junção com objetos-valor, formulando, portanto, sintaticamente, a relação básica do homem com o mundo. Há semioticistas, como Zilberberg, que, em lugar de definirem a narrativa pela antropomorfização das operações lógicas fundamentais, preferem determiná-la pela intencionalidade. Entende-se a intencionalidade como a tensividade fundamental com um começo e um fim. Em outras palavras, a intencionalidade narrativa decorre da aspectualização10 da variação e da conservação tensiva das estruturas fundamentais. Pela conversão semântica, os valores virtuais, isto é, ainda não assumidos por uru sujeito na instância fundamental, são selecionados e atualizados na instância narrativa. A atualização realiza-se em duas etapas: inscrição dos valores em objetos, que se tornam objetos-valor, e junção dos objetos-valor com os sujeitos. Os valores axiológicos virtuais conver- [página 27] tem-se, dessa forma, em valores ideológicos, entendidos como valores assumidos por um sujeito, a partir de seleção no interior dos sistemas axiológicos. GRAMÁTICA NARRATIVA A gramática narrativa descreve e explica o modo de existência e de funcionamento das estruturas narrativas ou superficiais que constituem a etapa imediatamente superior, no percurso de geração do sentido, à das estruturas fundamentais. Sintaxe narrativa Retomando a concepção espetacular da sintaxe, entende-se a sintaxe narrativa como o simulacro do fazer do homem que transforma o mundo. Desvendar a organização narrativa consiste, portanto, em descrever e explicar as relações e funções do espetáculo, assim como em determinar seus participantes. Para tanto, a análise narrativa procura utilizar o quadro geral e rigoroso da teoria semiótica, buscando mostrar e analisar a especificidade de cada texto e não, como acreditam alguns criar uma camisa-de-força, uma fôrma, em que devam obrigatoriamente entrar os mais diversos discursos. A proposição de modelos de enunciados narrativos, de programas, de percursos e mesmo de um esquema narrativo canônico, que serão vistos em seguida, só tem sentido se tais modelos forem entendidos como instrumentos deanálise e de previsão, que facilitam a decomposição do discurso e a explicação coerente das transformações e dos estados e que possibilitam a comparação, por exemplo, de narrativas diferentes. Enquanto instrumentos de previsão, permitem reconhecer, por catálise — explicitação dos pressupostos —, elementos narrativos implícitos. Parte-se de duas concepções complementares de narratividade: narratividade como transformação de estados, de situações, operada pelo fazer transformador de um sujeito, que age no e sobre o mundo em busca de certos valores investidos objetos; narratividade como sucessão de estabelecimentos e de rupturas de contratos entre um destinador e um destinatário, de que decorrem a comunicação e os conflitos entre sujeitos e a circulação de objetos-valor. Em outros termos, as estruturas narrativas simulam a história da busca de valores, da procura de sentido. [página 28] Enunciado elementar O enunciado elementar da sintaxe narrativa será definido pela relação-função entre pelo menos dois actantes. Função está sendo tomada no sentido lógico-matemático de relação entre duas variáveis. Com base nessa concepção de sintaxe relacional, deve-se rever a noção de actante de Tesnière, pois, para a semiótica, actante é o termo-resultante da relação- função ou, em outras palavras, a relação-função é constitutiva dos actantes, seus funtivos. A relação que caracteriza o enunciado elementar é a de transitividade — relação que comporta um investimento semântico mínimo —, e os actantes, definidos por tal relação, são o actante sujeito e o actante objeto. A relação transitiva entre sujeito e objeto dá-lhes existência. Investimentos semânticos complementares à relação de transitividade permitem estabelecer distinção entre duas diferentes funções, a junção e a transformação, e entre duas formas canônicas de enunciados elementares. A fábula ‘A Galinha dos ovos de ouro’, de Millôr Fernandes, será utilizada para ilustrar os diferentes tipos de enunciados e outros conceitos da gramática narrativa. A Galinha dos ovos de ouro Era uma vez um homem que tinha uma Galinha. Subitamente, em dia inesperado, a Galinha pôs um ovo de ouro. Ouro! Outro dia, outro ovo. Outro ovo de ouro! O homem mal podia dormir. Esperava todas as manhãs pelo ovo de ouro — clara, gema, gala, tudo de ouro! — que o tirava da miséria aos poucos, e aos poucos o ia guindando ao milionarismo. O fato, que antigamente poderia passar despercebido, na data de hoje atraía verdadeiras multidões.: E não só multidões. Rádios, jornais, televisão, tudo entrevistava o homem, pedindo-lhe impressões, querendo saber detalhes de como acontecera o espantoso acontecimento. E a Galinha, também, ia dando aqui e ali seus shows diante dos jornais, câmaras, microfones. Certa vez até, num esforço de reportagem, conseguiu pôr um ovo diante da câmara da TV Tupi. Porém o tempo passou e muito antes que o homem conseguisse ficar rico, a Galinha deixou de botar ovos de ouro. Desesperado, o homem foi ocultando o fato, até que, certo dia, não se contendo mais, abriu a galinha para apanhar os ovos que ela tivesse lá dentro. Para sua decepção não havia mais nenhum. [página 29] Então o homem — espírito bem moderno — resolveu explorar o nome que lhe ficara do acontecimento e abriu um enorme restaurante, com o sugestivo nome de Aos Ovos de Ouro. E isso lhe deu muito mais dinheiro do que a Galinha propriamente dita. MORAL: CRIA GALINHAS E DEITA-TE NO NINHO. (FERNANDES, 1975, p. 99) As duas formas canônicas de enunciados elementares, definidas pelas funções de junção e de transformação, são: enunciado de estado.... F junção (S,O) Ex.: “Era uma vez um homem que tinha uma Galinha” enunciado de fazer.... F transformação (S,O) Ex.: “Subitamente, em dia inesperado, a Galinha pôs um ovo de ouro”. A junção é a relação que determina o “estado” do sujeito em relação a um objeto qualquer. Articula-se em conjunção e disjunção: enunciado de estado conjuntivo....S ⋂ O Ex.: O homem tinha a Galinha dos ovos de ouro. enunciado de estado disjuntivo....S ⋃ O Ex.: O homem não tinha mais a Galinha dos ovos de ouro. Os enunciados de fazer operam a passagem de uni estado a outro, ou seja, de um estado conjuntivo a um estado disjuntivo e vice-versa. O objeto da transformação e, portanto, um enunciado de estado. Na fábula, ao matar a galinha (enunciado de fazer) o sujeito do fazer “homem” muda seu estado de conjunção com o objeto “galinha e ovos de ouro” em estado de disjunção. Retomando a definição de actantes, pode-se dizer que o sujeito não existe nem semântica nem semioticamente se não for determinado pela relação transitiva com um objeto. Se a relação que os liga for de disjunção, serão chamados de sujeitos (e objetos) atualizados, se de conjunção,serão ditos realizados. Anteriormente à junção, os sujeitos serão virtuais. A natureza da função constitutiva do enunciado permite, ainda, distinguir sujeitos e objetos do estado, de sujeitos e objetos [página 30] do lazer. O objeto, enquanto objeto sintático, caracteriza-se como uma posição actancial que pode receber investimentos de projetos do sujeito (objeto do fazer) e de suas determinações (objeto do estado) (GREIMAS & COURTÉS, s.d., p. 313). Tais investimentos fazem do objeto um objeto- valor. No texto-exemplo, o sujeito (homem) define-se pela relação transitiva com o objeto (ovos de ouro, dinheiro), que, investido pelos projetos e pelas determinações do sujeito (em busca de dinheiro, fama e prestígio), torna-se um objeto-valor. O sujeito apresenta-se ora como sujeito virtual (antes de a galinha botar ovos de ouro, não mantém relação juntiva com o objeto), ora como sujeito realizado (quando “sua” galinha põe ovos de ouro, o sujeito passa a estar em conjunção com o objeto), ora como sujeito atualizado (quando a galinha deixa de botar ovos de ouro e é morta, o sujeito se relaciona por disjunção com o objeto). Conclui-se, a partir da apresentação das duas formas de enunciados elementares, que a sintaxe narrativa não é uma sintaxe de sujeito- predicado, como as da gramática gerativa ou da sintaxe distribucional, mas uma sintaxe semelhante à de Tesnière ou Fillmore, em que o núcleo é o “verbo”, que define a relação entre actantes. Os dois tipos de enunciados marcam no discurso a diferença entre estado e transformação, cujo reconhecimento e distinção constituem o primeiro trabalho da análise narrativa. A narratividade deve ser entendida como a sucessão de estados e de transformações, responsável, nessa instância, pela produção do sentido. Em ‘A Galinha dos ovos de ouro’, seguem-se estados de disjunção e de conjunção do sujeito com o objeto-valor (ovos de ouro, dinheiro), sendo as mudanças ocasionadas por transformações (enunciados de fazer): a galinha começa a botar ovos de ouro; a galinha deixa de pôr ovos de ouro e é morta; o homem abre um restaurante que lhe dá muito dinheiro. Sintagma elementar: programa narrativo O sintagma elementar da sintaxe narrativa é denominado programa narrativo. O programa narrativo constitui-se de um enunciado de fazer que rege um enunciado de estado. Ao integrar os estados e as transformações, o programa narrativo, e não o enunciado, deve ser considerado a unidade operatória elementar da sintaxe narrativa. [página 31] No programa narrativo abaixo representado, o enunciado de estado é o enunciado resultante da transformação, a partir do qual se pode reconstituir o estado inicial. F = função → = transformação S1 = sujeito do fazer S2 = sujeito do estado ⋂ = conjunção ⋃ = disjunção Ov = objeto-valor Pelo fato de transformar estados, o sujeito do fazer altera a junção do sujeito do estado com os valores e, portanto,
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