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SAÚDE MENTAL E SERVIÇO SOCIAL Fernanda Cristina Kopka Roberta Weber Lunardon G es tã o S A Ú D E M E N T A L E S E R V IÇ O S O C IA L Fe rn an d a C ris tin a K op ka R ob er ta W eb er L un ar d on Curitiba 2021 Fernanda Cristina Kopka Roberta Weber Lunardon Saude Mental e Serviço Social ´ Ficha Catalográfica elaborada pela Editora Fael. K83s Kopka, Fernanda Cristina. Saúde mental e serviço social / Fernanda Cristina Kopka, Roberta Weber Lunardon – Curitiba: Fael, 2021. 212 p. ISBN 978-65-86557-70-1 1. Saúde mental - Brasil I. Lunardon, Roberta Weber II. Título CDD 362.20981 Direitos desta edição reservados à Fael. É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da Fael. FAEL Direção Acadêmica Francisco Carlos Sardo Coordenação Editorial Angela Krainski Dallabona Revisão Editora Coletânea Projeto Gráfico Sandro Niemicz Imagem da Capa Stock.adobe.com/sewcream Arte-Final Hélida Garcia Fraga Sumário Carta ao Aluno | 5 1. Processo histórico da saúde mental | 7 2. Reforma psiquiátrica | 23 3. A Política de Saúde Mental Brasileira | 43 4. As Redes de Apoio Psicossocial (RAPS) e o Matriciamento em Saúde Mental: atuação, serviço e articulação | 57 5. Saúde mental e preconceito na sociedade | 75 6. Serviço Social e Política de Saúde Mental | 97 7. A desinstitucionalização e o serviços do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) como equipamento de saúde e assistência aos usuários | 111 8. Dependência Química e Saúde Mental | 129 9. Interdisciplinaridade: Articulação e Saúde Mental | 149 10. Família, Política Pública e Codependência | 163 Gabarito | 179 Referências | 189 Prezado(a) aluno(a), Neste momento histórico, fomos surpreendidos pela pande- mia da Covid-19 que trouxe inúmeros desafios e preocupações para o campo da saúde e para a sociedade, por se tratar de uma nova doença sem um tratamento específico que desafiou cien- tistas a desenvolver ligeiramente vacinas para proteger a popu- lação. Logo, constatou-se a sua eficácia e a relevância do Sis- tema Único de Saúde - SUS em nosso país, beneficiando toda a população brasileira. Foi um período marcado pela necessidade do cuidado pessoal, higienização das mãos, uso de máscaras e do isolamento social, proporcionando um modo totalmente dife- rente do que estávamos acostumados a relacionar-se. Tal modo que, nos reinventar foi a única opção, e nossos relacionamentos Carta ao Aluno – 6 – Saúde Mental e Serviço Social tornou-se por meio do uso de celulares, internet e etc. Frente a essa reali- dade, o campo da saúde mental também precisou ser revisto na sociedade, conduzindo a novos desafios, uma vez que elevou-se o aumento de casos de pessoas em relação às questões da saúde mental. Tendo em vista esses fatos recentes, nunca se valorizou tanto o debate da importância da saúde mental como nos tempos atuais. Portanto, para esta leitura convidamos a conhecer o contexto sócio-histórico da saúde mental, o progresso e a implantação da Política de Saúde Mental no Brasil e a importância do Serviço Social inserido nesta política. Por meio de revisão bibliográfica e um intenso diálogo entre as áreas do Serviço Social e da Psicologia, construímos esse material com a finalidade de aproximar os(as) alunos(as) neste contexto. Almejamos contribuir para seu crescimento pessoal e inte- lectual, possibilitando novas visões e pensamentos críticos sobre esta área da saúde tão pouco valorizada. É com muito entusiasmo e satisfação, caros leitores, que desejamos bons estudos! Valorize a Saúde Mental! Viva o SUS! 1 Processo histórico da saúde mental Analisar a historicidade do campo da saúde, de imediato, é instigante no nível do conhecimento para a humanidade. Era desse modo que as antigas sociedades, antes de Cristo, aduziam em seus ensinamentos da prática sobre cuidado com o bem-estar do ser humano, buscando alternativas para a cura e tratamentos com base em suas culturas e crenças. Neste capítulo, buscamos contemplar temáticas pertinentes à saúde mental, trazendo características das antigas civilizações entre outros períodos como: Idade Média, Idade Moderna e Con- temporânea. Faremos um breve resgate histórico na perspectiva da busca pelo saber do campo da saúde mental, desde as primiti- vas formas do cuidar da mente até as lutas e enfrentamentos por um reconhecimento digno do cuidado humanizado sob a ótica da saúde mental no mundo. Ao elucidarmos assuntos pertinentes que se referem a ques- tões da insanidade, é implicada a compreensão sobre o contexto da loucura, da saúde, dos distúrbios mentais e a relação disso com as crenças e preconceitos. Afinal, esse conteúdo, sob a ótica Saúde Mental e Serviço Social – 8 – da atual sociedade, enfrenta muitos empecilhos, estereótipos, e a falta de compreensão da temática na coletividade. No entanto, além de complexo, é um elemento importante no contexto sócio-histórico da saúde. Para adentrarmos nessa discussão, trazemos o significado da palavra saúde. Para o dicionário brasileiro da língua portuguesa, Michaelis, saúde é o “Estado do organismo com funções fisiológicas regulares e com carac- terísticas estruturais normais e estáveis, levando-se em consideração a forma de vida e a fase do ciclo vital de cada ser ou indivíduo” e/ou estado de “bem-estar físico, psíquico e social” (s/p). A integralidade envolve a saúde, principalmente no que refere às condições socioeconômicas, cultu- rais e ambientais. Para Servalho (1993, p. 352), “A história das representações de saúde e doença foi sempre pautada pela inter-relação entre os corpos dos seres humanos e as coisas e os demais seres que os cercam”. A humanidade busca por um viver salutar ininterrupto. No entanto, desde os primeiros povos antigos, a batalha por melhores condições de vida permeia até a contemporaneidade. Segundo Scliar (2007, p. 30), “O conceito de saúde reflete a conjuntura social, econômica, política e cultu- ral. Ou seja: saúde não representa a mesma coisa para todas as pessoas. Dependerá da época, do lugar, da classe social”. Na antiga Mesopotâmia, por volta de 2000 a.C., o povo hebreu acre- ditava que “a doença era sinal de desobediência ao mandamento divino’’. (SCLIAR, 2007, p. 30). Os primeiros livros bíblicos do antigo testamento exibem o modo como as primeiras sociedades da Mesopotâmia compreen- diam as causas da loucura, sendo eles: os sumérios, os assírios, os egípcios e os babilônios. O povo hebreu acreditava que “a doença não era necessariamente devida à ação de demônios, ou de maus espíritos, mas representava, de qualquer modo, um sinal da cólera divina, diante dos pecados humanos” (SCLIAR, 2007, p. 30). Nos primeiros escritos bíblicos do antigo testamento, notamos vigorosamente a representatividade das leis divinas em relação às ações humanas, consideradas um pecado associado à doença, como no caso da – 9 – Processo histórico da saúde mental hanseníase, popularmente conhecida como lepra. Segundo Moacyr Scliar (2007, p. 30): O Levítico detém-se longamente na maneira de diagnosticar a lepra, mas não faz uma abordagem similar para o tratamento. Em primeiro lugar, porque tal tratamento não estava disponível; em segundo, porque a lepra podia ser doença. Na civilização hebraica, a doença nem sempre foi foco de espíritos malignos. Eles consideravam, ainda, esse fenômeno, uma forma de puni- ção divina ou comportamento pecaminoso do ser humano, pois era atra- vés do contato físico com outra pessoa a forma de contágio. Todavia, era o caso da doença popularmente conhecida na época como “lepra”¹, por se tratar de uma doença contagiosa e sem recurso à cura naquele perí- odo. A saber, para Sevalho (1993, p. 352): “Entre os povos sem escrita, a doença era vista como o resultado de influências de entidades sobre- naturais, externas, contra as quais a vítima comum, o ser humano não iniciado, pouco ou nada podia fazer”. Além do entendimento das doenças ligadasao sobrenatural, expressavam suas crenças nos elementos da natu- reza (ar, fogo, terra e água), correlacionando-as a motivos como os que expressavam sentimentos de culpa, medo, superstições, que envolvem os elementos citados, absolutamente associados à organização da natureza e ao modo de expressão de doenças, como ao fator de ocorrência de epide- mias, dor e sofrimento, desgaste físico e mental, à visão da deterioração dos corpos e à perspectiva da morte (SERVALHO, 1993). Considerando as informações sobre as doenças mentais nas primeiras civilizações, como foram apresentadas anteriormente, compreende-se que os povos primitivos também acreditavam no poder do sobrenatural con- forme seus costumes sagrados ou mitológicos. As antigas civilizações assemelhavam-se no que conduz a crer nas doenças como alvo do sobrenatural, entre o divino e a mente humana. Ape- sar dos avanços do campo do conhecimento, elucidando os históricos das primeiras civilizações, ainda há procura de explicações ao que se refere à insanidade mental (CASTRO; LANDEIRA-FERNANDES, 2010).1 1 Conhecida atualmente como hanseníase. “Lepra” era considerada uma doença contagiosa crônica causada pelo Mycobacterium leprae, também conhecido como bacilo de Hansen. PINTO, Gabriel Hilu da Rocha. O estigma do pecado: a lepra durante a idade média. Re- vista de Saúde coletiva Physis, Rio de Janeiro, Vol. 5, n. 1, p. 1-14, 1995. disponível em: https://doi.org/10.1590/S0103-73311995000100007. Acesso em: 06/07/2021. Saúde Mental e Serviço Social – 10 – De acordo com Lewoy, Mendes e Silveira (2008), os povos primiti- vos encontravam explicações para a desordem mental de um indivíduo ao acreditar que espíritos malignos habitavam os corpos, devido à alteração do comportamento. Desse modo, no período neolítico, aproximadamente nos anos de 7000 a.C. até 2500 a.C, conhecido, ainda, como período da Pedra Polida, surgem as primeiras configurações primitivas de sociedade que apontam a crença do homem pré-histórico no poder sobrenatural relacionado à saúde, bem como espíritos impuros e punição dos deuses diante de doen- ças. Sendo assim, Valente [s.d] expõe “evidências de que os humanos do período neolítico acreditavam que a abertura de um buraco no crânio permitiria que o espírito maligno, que habitava a cabeça dos enfermos mentais fosse libertado, curando assim suas aflições”. Essas eram técnicas utilizadas no trato para fraturas no crânio, dores de cabeça, e outras enfer- midades que acreditavam ser oriundas do sobrenatural. Destacando a sociedade egípcia, que viveu aproximadamente 3100 anos a.C. é demonstrado o conhecimento no campo da ciência. Nesse con- texto, há evidências históricas sobre a humanidade em relação à saúde, sendo que o escrito mais antigo da palavra cérebro está em destaque em um papiro datado de 1700 a.C. (CASTRO; LANDEIRA-FERNANDEZ, 2010). Seus ensinamentos trouxeram benefícios para a sociedade naquele período, enriqueceram e contribuíram para a área do conhecimento e para a saúde com métodos e técnicas que foram aprimorados, perpassando séculos, sendo reconhecidos pela medicina nos dias atuais. Do mesmo modo, acreditavam, ainda, que, o coração, e não o cérebro, era responsá- vel pelas emoções. Para esse povo, o coração era o centro do organismo, sendo, assim, o órgão que estaria ligado ao sistema nervoso central. As técnicas e habilidades ligadas à medicina, e também a cura men- tal, eram condicionadas às suas crenças em deuses e deusas e no misti- cismo. Castro e Landeira-Fernandez (2010, p. 145): “Deve-se reconhecer, entretanto, que os antigos egípcios demons- traram também a preocupação em descrever algumas doenças de forma exclusivamente racional. Por exemplo, um papiro médico datado de cerca de 1500 a.C (papiro de Ebers) contém a descrição – 11 – Processo histórico da saúde mental de um transtorno emocional que seria mais tarde denominado de histeria2 na Grécia Antiga”. Os egípcios contribuíram para a medicina de modo geral, mas ainda na mesma condição de acreditar que algumas doenças eram associadas a encantos e efeitos de feitiçaria. Acreditavam que espíritos entravam nas pessoas através de seus orifícios como, por exemplo, nariz, boca e ouvido. Ao mesmo tempo, acreditavam na cura mental sob a conexão do transcen- dente e do tratamento terapêutico. Os egípcios, a partir do conhecimento, conseguiram pôr em prática as suas crenças para tratar ferimentos físicos e mentais, tornando-se exemplo no tratamento da alma e do corpo, con- forme destacam Silva e Rufino (2017). Nesse sentido, os estudos no campo da saúde mental advindos das antigas civilizações contribuíram para o despertar da área do conheci- mento e estudos contínuos nessa seara. Ressaltamos, ainda, uma impor- tante civilização que se destacou na antiguidade ao originar saberes no campo biológico e apresentar diferentes formas de reflexões sobre o corpo e a mente, a Grécia. Para os gregos, a loucura era privilégio, sendo reco- nhecida como forma de manifestação e expressão dos deuses. Em contra- partida, para outras sociedades, a doença mental também era vista como causa de possessões diabólicas ou feitiçaria. A partir das reflexões de Sócrates e Platão, que pontuaram sobre a existência de uma forma de loucura, utilizando inclusive a palavra manikê para caracterizar o que é relativo ao divino e ao delírio, esses filósofos percebiam que “era através do delírio que alguns privilegiados podiam ter acesso a verdades divinas”. (BRAGA; SILVEIRA (2005, p. 592). Dessa forma, a civilização Indiana que viveu no período de 3300 a.C. também observa o corpo filosófico-religioso intensamente complexo, ao modo que os conceitos sobre a mente, corpo e universo se misturavam. 2 O termo “histeria” é derivado da palavra grega hystera e significa matriz. No atual Manual de Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento da CID-10, a histeria é cita- da na categoria dos transtornos neuróticos, relacionados ao estresse e somatoformes, mais especificamente na subcategoria transtornos dissociativos (ou conversivos). BELINTANI, Giovani. Histeria. Psic, São Paulo, v. 4, n. 2, p. 56-69, dez. 2003. Disponível em <http:// pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1676-73142003000200008&lng= pt&nrm=iso>. Acesso em 08 jul. 2021. Saúde Mental e Serviço Social – 12 – Essa civilização, sendo uma das mais antigas, também trouxe para área do conhecimento as suas técnicas desenvolvidas sobre teorias da mente, estrutura e função do sistema nervoso, além das funções do cérebro (CAS- TRO; LANDEIRA-FERNANDEZ, 2010). A civilização Chinesa (2200 a.C.) também ofertou seu conhecimento e cultura à humanidade de forma semelhante a outras sociedades anti- gas. Ela considerava o cérebro um órgão peculiar, denominado “mar da medula” (CASTRO; LANDEIRA-FERNANDEZ, 2010). É evidente que os transtornos mentais não passaram despercebidos pelas antigas sociedades. Assim como é irrefutável a influência ideoló- gica e religiosa do entendimento dos conceitos de saúde/doença mental nesta sociedade. Dessa forma, devemos admitir a grande contribuição des- ses pensamentos para a visão mais humanizada de pessoas portadoras de transtorno nos dias de hoje, uma vez que, como divindades, eram vistas de forma positiva e passíveis de relações. Ao adentrar na Idade Média, aproximadamente 500-1500 d.C., e ana- lisar sua conjuntura no campo da saúde, percebe-se a escalada do regime feudal nesse período devido à queda do Império Romano. Conforme Car- los Batistella (2007), fica evidente a redução da cultura urbana e a deca- dência da organização e práticas de saúde pública. Esse período ainda traz consigo a marca da tradição médico-grego-romana, inúmeras epidemias e pestes, que trouxeram sofrimento à população, principalmente aos que viviam na pobreza. Apresenta-se, nessa época, fortes registros do poder da igreja-cristianismo e a junção entre doença e pecado. Assim como nas primeiras antigas sociedades, a Idade Média denotasimilarmente as crenças divinas, ou seja, as doenças eram entendidas como expiação dos pecados, possessão do demônio. Segundo Batistella (2007, p. 34), “Como este mundo representava apenas uma passagem para purificação da alma, as doenças passaram a ser entendidas como castigo de Deus”. A percepção da igreja, naquele período, diante das questões relacio- nadas às doenças, considerava-as como repreensão de Deus à humanidade ou causa do sobrenatural. Da mesma forma, eram julgados os indivíduos que sofriam com transtornos mentais. – 13 – Processo histórico da saúde mental Ao analisar o contexto desse período, marcado por forte influências da igreja católica, Millani e Castro Valente (2008, p. 3) destacam que: Nos tempos da inquisição, a loucura foi entendida como manifesta- ção do sobrenatural, demoníaca e até satânica, e classificada como expressão de bruxaria cujo tratamento caracterizou-se pela perse- guição aos seus portadores, tal como se praticava com os hereges. Dessa forma, as premissas exigidas pelo poder da igreja, no que tange às condutas médicas, deixam de ser realizadas pela fundamentação da medicina como medidas terapêuticas, in loco a igreja assume suas ações do cristianismo, bem como, descreve Batistella (2007, p. 34): “rezas, peni- tências, invocações aos santos, exorcismo, unções ou outros procedimen- tos para purificação da alma [...]”. As circunstâncias desse período foram marcadas pela rigidez, exclu- são social, pré-julgamentos e olhares opressores ao indivíduo em sofri- mento mental, até mesmo sob a ótica da própria família, que se posicionava de forma a desqualificar o indivíduo de sua linhagem familiar, devido ao tamanho estigma lançado pela sociedade. Do mesmo modo, o seio fami- liar apresentou dificuldades nas relações, tendo em vista o reflexo da ins- tabilidade. Esses indivíduos enfrentaram a exclusão social e a fragilidade dos vínculos parentais, sendo a causa a doença mental. Os seios familiares que mantinham pessoas consideradas em sofrimento mental não escon- diam a vergonha. Sendo assim, abandonavam essas pessoas pelas ruas, sem as mínimas condições sociais (VALENTE, [s.d.]). Assim, homens e mulheres excluídos da sociedade e estigmatizados passam a viver confinados em grandes asilos, leprosários, e hospitais des- tinados a pessoas com outros tipos de doenças. As instituições conhecidas popularmente como leprosários, na época, eram instituições que acolhiam pessoas contaminadas pela doença da lepra e outras excluídas da socie- dade. Para Michel Foucault (1972, p. 7), “A partir da alta Idade Média, e até o final das Cruzadas3, os leprosários tinham multiplicado por toda a superfície da Europa suas cidades malditas”. 3 As Cruzadas foram todas as expedições militares organizadas pela Igreja Católica que aconteceram entre os séculos XI e XIII. O objetivo dessas expedições era conquistar a cha- mada Terra Santa (modo como os cristãos referem-se à Palestina) para que fossem criados reinos cristãos na região. Saúde Mental e Serviço Social – 14 – As adversidades sofridas pelos doentes mentais, mediante uma socie- dade movida pela dominação da igreja católica e da classe burguesa, inci- tavam situações desumanas e vexatórias de exposição do sujeito. A res- peito dessa conjuntura, Michel Foucault (1972, p. 15-16) expressa que: Assim é que o acesso às igrejas é proibido aos loucos, enquanto o direito eclesiástico não lhes proíbe o uso dos sacramentos. A Igreja não aplica sanções contra um sacerdote que se torna insano; mas em Nuremberg, em 1421, um padre louco é expulso com uma par- ticular solenidade, como se a impureza se acentuasse pelo caráter sacro da personagem, e a cidade retira de seu orçamento o dinheiro que devia servir-lhe de viático. Acontecia de alguns loucos serem chicoteados publicamente, e que no decorrer de uma espécie de jogo eles fossem a seguir perseguidos numa corrida simulada e escorraçados da cidade a bastonadas. Por sua vez, cidadãos considerados loucos inseridos em leprosários e asilos eram considerados, para a sociedade, ‘violentos’. Eram acorren- tados e a alguns era permitida a saída dessas instituições, porém, esta- vam condicionados a permanecer nas ruas, sujeitos à fome e ao relento (FOUCAULT, 1972). Na literatura europeia do período Renascentista, entre os séculos XV e XVI, os indivíduos considerados loucos eram atirados rio abaixo, como cargas insanas em embarcações que recebiam o nome de Nau dos Loucos4. Essa conotação surge na literatura europeia em uma obra ficcional do século XVI. As Naus de Loucos expressam exatamente a fragilidade da população considerada insana nesse período a partir de práticas desuma- nas, arbitrárias e de exclusão social. Elas existiram nas sociedades euro- peias dos séculos XIV, XV e XVI (JABERT, 2001). Essa práxis utilizada não era universal, pois havia cidades desse período em que eram organiza- dos donativos e pessoas comprometidas mentalmente eram acolhidas para prestar auxílio em necessidades básicas. 4 A Nau de Loucos era um tipo de obra ficcional vinculada a uma tradição literária herdeira do ciclo dos argonautas, que fora revivido pelos escritores renascentistas. JABERT. Alexander. DA NAU DOS LOUCOS AO TREM DE DOIDO: As formas de administração da loucura na Primeira República – o caso do estado do Espírito Santo. (Tese Mestrado em Saúde Pú- blica) - Fundação Oswaldo Cruz , FIOCRUZ, Rio de Janeiro, 2001, p. 1-153.Disponível em: <http://https://teses.icict.fiocruz.br/pdf/jabertam.pdf. Acessado em 23/06/2021 – 15 – Processo histórico da saúde mental Na Europa, buscou-se reorganizar os serviços de assistência após o início do desenvolvimento das cidades e a partir do contágio da lepra, uma vez que todo amparo social foi destinado aos leprosários. Esta organiza- ção passou a influenciar de modo hegemônico a forma de encarceramento e isolamento das pessoas em sofrimento mental, popularmente conhecidas como insanas. Inicia-se, nesse período, o modelo de internação para essas pessoas, o que anteriormente era destinado apenas à população leprosa. Conforme aponta Jabert (2001, p. 8): Gradualmente os loucos passaram a ser recolhidos nas grandes casas de internamento, destinadas anteriormente ao isolamento e à exclusão social dos leprosos. Para Foucault, o ano de 1656 pode servir de referência para essa reorganização da assistência pública. A Revolução Burguesa, no início do século XVI, também apresenta influências para o campo da saúde mental. A medicina passa a dedicar-se, em síntese, às doenças mentais. A saber, o médico Johan Weyer foi quem tentou desmistificar a crença em bruxaria, possessões demoníacas como causas de transtornos mentais, passando a ter um olhar crítico sustentando que a pessoa fora de si tem uma doença (FERREIRA et al., 2016). Além disso, nessa época, inserem-se nesse contexto outras opções de alojamento para o cuidado e atenção às necessidades básicas dos menos favorecidos e mentalmente debilitados, as chamadas Casas de trabalho. Esses alojamen- tos, em paróquias ligadas à igreja, atendiam os mais pobres e aqueles em sofrimento mental em troca de trabalho. A dinâmica das casas de trabalho não foi capaz de atender toda a população com sofrimento mental, sendo necessário estender esses aten- dimentos para a abertura de asilos. O asilo, lugar de liberação dos alie- nados, transformou-se no maior e mais violento espaço da exclusão, de sonegação e mortificação das subjetividades. Não ofereciam as mínimas condições para atender de forma humanizada essa demanda. Sabe-se, ainda, que não era ofertado conforto ou a mínima dignidade, os asilos eram verdadeiros aprisionamentos e cárcere, incluindo, além de pessoas debi- litadas mentalmente, pessoas com outros tipos de doenças, criminosos, entre outros, que, segundo a sociedade, eram marginalizados. (MILLANI; VALENTE, 2008). Saúde Mental e Serviço Social – 16 – Entendemos, então, que essas primeiras instituições não estariam preparadas para o atendimento dosindivíduos considerados “loucos”, uma vez que essas casas e asilos aprisionavam e condicionavam essas pessoas a cárcere privado. A condição exposta para o cuidado com os loucos nas primeiras ins- tituições tinha a característica de cárcere privado, onde eram aprisionadas as pessoas em vulnerabilidade social e doentes mentais. Logo, no século XVIII, no advento do capitalismo, marcado pelo cenário da Revolução Francesa e Industrial, o indivíduo rotulado como “louco” não pertencia a esse espaço. Para aquela sociedade, essa pessoa não possuía a racionali- dade exigida, portanto, passava a ser excluída (FOUCAULT, 1972). Para Amarante (1995, p. 491): No contexto da Revolução Francesa, com o lema “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”, o alienismo veio sugerir uma possí- vel solução para a condição civil e política dos alienados que não poderiam gozar igualmente dos direitos de cidadania, mas que, também, para não contradizer aqueles mesmos lemas, não pode- riam ser simplesmente excluídos. Em 1652, em Paris, é registrado o decreto que fundou o primeiro Hospital Geral, uma forma administrativa de reorganizar as relações da sociedade francesa com os excluídos sem classificação, ou seja, eram inseridos nessa instituição os considerados pela sociedade da época como: criminosos, “mendigos”, “loucos” e os mais pobres (FREITAS, 2004). Sendo assim, outros hospitais gerais construídos eram, em síntese, estabelecimentos de internamento que se dispunham a resolver a questão do tempo ocioso do indivíduo para os considerados desocupados, que eram retirados das ruas como forma higienista. Desse modo, quando o indivíduo estivesse internado na instituição, e para evitar a ociosidade, deveriam ser submetidos a um regime de trabalho dentro do próprio espaço asilar (JABERT, 2001). Em seguida, Souza e Valeirão (2016, p. 12) discorrem sobre o con- texto expondo que: “em poucas palavras, o confinamento tinha mais a ver com o problema econômico do desemprego, da inatividade e da mendi- cância, em síntese, da moralidade burguesa”. As pessoas em sofrimento – 17 – Processo histórico da saúde mental mental, sujeitas a internamento, e que apresentavam condições de cura, foram submetidas ao tratamento na França no Hotel-Dieu (Albergue de Deus) e em Londres, no Bethleen. Segundo Millani e Castro (2008), por meio de banhos, sangrias e purgações em busca de cura. Contudo, no Hotel-Dieu, as pessoas inseridas para internamento eram separadas em alas, feminina e masculina. No entanto, eram abrigadas de forma inadequada, com pouco espaço físico e condições sub-humanas, sendo obrigadas a manter-se aglomeradas. Dentro deste mínimo espaço, institucionalizou-se esses indivíduos tratados como loucos, tornando-os um mundo à parte, privando-os do acesso à liberdade e às relações exte- riores. Valente (s.d) ressalta que, para os doentes considerados perigosos e difíceis, eram oferecidas drogas e, muitas vezes, os funcionários utiliza- vam camisas de força e repressão para conter o indivíduo. Com a revolução burguesa na Europa, entre os anos de 1640 e 1850, aparecem também as crises políticas e econômicas. Para Millani e Valente (2008), nesse contexto, destaca-se que: Com a revolução burguesa e o surgimento de crises políticas, entre- tanto, o internamento sofreu mudanças e passou a ser visto como medida econômica inviável, Pois, além da crítica política, com a crise econômica e a miséria, a sociedade acreditava que quanto menos numerosa uma população, mais pobre ela se tornaria, já que a produção seria mais escassa (p. 8). Esse momento foi marcado pela crise política, econômica e a miséria, caracterizou-se, ainda, pelo modo de acumulação de capital, visto que, valores, associados à mentalidade da era moderna, são fundamentados no trabalho e no capital (VIETTA; KODATO; FURLAN, 2001). Refletindo a partir dessa perspectiva, para a economia, incluir pessoas ao interna- mento era um processo desfavorável. Os mais pobres passaram a ser inse- ridos nesse contexto por questões econômicas, uma vez que já haviam sido excluídos da sociedade. Sendo assim, ser mantido em regime fechado cabia àqueles que apresentavam perigo e risco à sociedade (MILLANI; VALENTE, 2008). Diante da contextualização, foi necessário repensar as políticas públicas e sociais sob a perspectiva da saúde mental. Logo, as refor- Saúde Mental e Serviço Social – 18 – mas políticas e sociais iniciaram no final do século XVIII, sobretudo no século XIX, trazendo novos olhares sob o ponto de vista do sofrimento mental. A área da psiquiatria elaborou uma nova explicação para a lou- cura e a responsabilidade no trato com doença mental passa a ser da medi- cina na sua essência. Destacamos que, em 1792, na Inglaterra, foi fundado um ‘hospício’ na cidade de York, com o intuito de prestar atendimento humanitário e religioso às pessoas em sofrimento mental. Entretanto, o modelo de reforma, de fato, começaria em Paris, com os estudos do Dr. Philippe Pinel, conhecido como ‘pai da psiquiatria’, médico, e desenvol- vedor da tese de que pessoas psicologicamente enfermas precisariam de cuidados gentis para melhorar suas condições de saúde mental, ao contrá- rio da recorrente violência (VALENTE, [s.d.]). Pinel foi pioneiro no tratamento de pessoas com enfermidades men- tais. Em 1786, passou a atender essa população. De acordo com Millani e Castro (2008), ele foi médico no asilo de Bicêtre, quando esse local era destinado ao tratamento de transtornos mentais do sexo masculino, e na cidade de Salpêtriêrie, em um asilo feminino. De fato, observamos as grandes mudanças oriundas do início da reforma da saúde mental. Ademais, o tratamento de Pinel deslocou-se por apresentar outro olhar diante das causas mentais. Passou a basear-se em medidas humanitárias em prol dos doentes. Utilizou-se de estudos e obser- vações para desvincular o tratamento repressor e comum a outros doentes. E, conforme destacam Millani e Castro (2008, p.10): Dessa forma, os transtornos mentais foram considerados como resul- tado das tensões sociais e psicológicas excessivas, de causa hereditárias ou, ainda originadas de acidentes físicos, desprezando a crendice popular de que fossem resultado de possessão demoníaca. Nesse novo olhar, constitui-se o início do rompimento com a aliena- ção, a partir do pressuposto de que há outros tipos de sintomas e sofrimen- tos mentais, bem como alucinações e psicoses, obtendo novas análises e formas de tratamento para o indivíduo. Assim, é introduzido o papel da terapia como forma de contato próximo com o doente mental. Em contra- – 19 – Processo histórico da saúde mental partida, o asilo teve a função homogênea sob o desejo da classe burguesa, conforme aponta Millani e Castro (2008): Por outro lado, a principal função do asilo era homogeneizar a sociedade em nome da vontade burguesa como apenas um local de repressão, condenação, julgamento dos indivíduos, portanto, sem nenhuma prática terapêutica, sua atuação deve ser ressaltada, pois foi em torno do tratamento moral como núcleo da nova prática e do novo saber que seu trabalho foi valorizado (p. 10). A chegada da família real no Brasil deixou registros na história da saúde mental. De uma forma repressora e preconceituosa, os conside- rados ‘loucos’, ou que apresentassem comportamentos agressivos, não eram mais permitidos circulando pelas ruas, principalmente aqueles em situação socioeconômica de extrema pobreza. Essas pessoas eram enca- minhadas aos porões das Santas Casas de Misericórdia, onde permane- ciam amarradas e vivendo sob péssimas condições de higiene e cuidados (OKA; SANTOS E COSTA, 2019). No Brasil, há, nesse período, os primeiros registros da história da saúde mental, como o decreto que criou o primeiro hospício em 1841, nomeado “O Hospício de Pedro II”, além da instauração do regime repu- blicano em 1889, quando o Hospício de Pedro II, antes administrado pela Santa Casa de Misericórdia, foi estatizado e passou a contar com uma direçãoexclusivamente médica conforme explica Jabert (2001). Durante e após a Segunda Guerra Mundial, inicia-se o cenário que receberia os movimentos reformistas na contemporaneidade. Começam a surgir questionamentos quanto ao modelo hospitalocêntrico, seguido do diálogo para a transformação desse modelo para adesão da humani- zação. Ocorreram tentativas de transformar ou extinguir os hospícios. Esse momento evolui para o retorno do crescimento econômico e rear- ranjo social, período de movimentos sociais, intolerâncias com as dife- renças de classes e que traz à tona, conforme destacado, o diálogo para a mudanças de formato do tratamento pacientes com transtornos mentais em hospitais psiquiátricos. Esse diálogo é intensificado de acordo com as manifestações sociopolíticas de cada país e de seu sistema sanitário. Saúde Mental e Serviço Social – 20 – Já os argumentos médicos contemporâneos revelam que o método moral utilizado anteriormente não era funcional como parecia ser estabelecido no tratamento com o doente mental em isolamento. Conforme exposto por Millani e Castro (2008, p. 12): O tratamento moral é visto como “Tudo o que possa agir sobre o cérebro, direta ou indiretamente, e modificar nosso ser pensante, tudo o que possa dominar e dirigir as paixões, será objeto do tra- tamento moral. No decurso do século XX, os psiquiatras passaram a pesquisar e buscar explicações ao que se refere às desordens do comportamento do indivíduo a partir do relato de resultados referentes a conceitos e méto- dos essenciais ao tratamento das doenças físicas e mentais. Salientamos, ainda, que, nesse período contemporâneo, Sigmund Freud contribuiu com suas reflexões e análises diante da conjuntura apresentada. Ele transferiu seus pensamentos sobre a ação moral no campo da saúde mental. Acerca das contribuições para a saúde mental, Freud teve um extenso currículo e piedade para fomentar o assunto. Além de médico neurologista, o austríaco, no período de 1856 a 1939, foi o protagonista da psicanálise5 e da psicologia social. Aos 17 anos de idade, ele ingressou na universidade de medicina e foi pesquisador no campo da histologia do sistema nervoso no período de 1876 a 1882. Trabalhou em uma clínica neurológica para crianças e, devido ao seu trabalho nessa área, destacou-se por descobrir um tipo de paralisia cerebral. Em 1885, obteve o mestrado em neuropa- tologia. No ano de 1897, passou a estudar a natureza sexual dos traumas infantis. Ele foi, portanto, o precursor nas perspectivas para o desenvolvi- mento da psicanálise (FRAZÃO, 2020). Face ao processo sócio-histórico da saúde mental no mundo, desde as antigas civilizações e perpassando pela Idade Média e Moderna, 5 O termo psicanálise é usado para se referir a uma teoria, método de investigação e a uma prática profissional (KOBORI, 2013). – 21 – Processo histórico da saúde mental foram trazidas contribuições no campo da saúde que abriram brechas para desvelar estudos científicos a fim de aprimorar conceitos sobre o sofrimento mental, desmistificando a figura do indivíduo como o sujeito ‘louco’ na sociedade. Ao refletir acerca da saúde mental enquanto doença, abordaremos novos olhares para reformulações sobre o cuidado à pessoa em sofri- mento mental na atualidade. Neste recorte, abordaremos a importância da Reforma Psiquiátrica no Brasil, um movimento iniciado há, aproximada- mente, 30 anos atrás, que visa a compreensão do processo sociopolítico de direito na sociedade, bem como a desinstitucionalização, o cuidado e o tratamento humanizado ao paciente com doença mental. O conteúdo deste capítulo teve como finalidade aproximar o conheci- mento sócio-histórico do processo da saúde mental. Compreende-se que o cuidado, a inclusão, o acolhimento, a cidadania e a superação das práticas de opressão às pessoas com transtorno mental propõem uma reflexão sobre o respeito diante da pessoa na sua individualidade e no contexto social. Atividades 1. Qual era a interpretação das antigas civilizações referente ao com- portamento do indivíduo em relação às doenças mentais? 2. Na Idade Média, a influência da igreja teve fortes influências no campo da saúde. Quais eram as características desse período a res- peito dos cuidados com as pessoas em sofrimento mental? 3. Qual era a função do Hospital Geral na sociedade? 4. Qual a relação dos conceitos pré-existentes sobre o olhar da saúde mental no período histórico? E quais fragmentos restam na atual sociedade? 2 Reforma psiquiátrica Contexto da reforma psiquiátrica no Brasil e seus avanços na sociedade. 2.1 Introdução sobre a reforma psiquiátrica Antes de adentrar o tema propriamente dito, faz-se neces- sária uma breve incursão histórica para que tenhamos a compre- ensão das condições políticas, econômicas, sociais e religiosas que serviram como pano de fundo para a convivência da socie- dade com os portadores de doenças mentais ou psicológicas no passado, bem como os motivos que ensejaram a reforma, cujo significado está indelevelmente atrelado à mudança, transfor- mação, evolução. Saúde Mental e Serviço Social – 24 – A loucura sempre teve no mundo um lugar de mistério e de dúvida em relação ao seu pertencimento. Como em qualquer ramo do saber, das correntes de pensamento e da evolução da própria ciência, os distúrbios mentais, os métodos de sua observação e tratamento também sofreram agudas modificações ao longo das eras e séculos. Da mesma forma, a saúde mental nem sempre foi assim denominada. Existiam, antigamente, os insanos, qualificados como os anormais, lou- cos, transtornados e, depois, os alienados. As enfermidades mentais estiveram, durante a história da civilização ocidental, pelo menos, impregnadas dos valores sociais, antropológicos e éticos vigorantes em determinados períodos temporais e espaciais. Por- tanto, o seu conceito não está imune a essas mutações. Por exemplo, sabemos que, na Idade Média, que vai do século V até o século XV, o ocidente vivia sob o predomínio da religião que tudo liderava, inclusive o Estado. Deus e natureza eram as coisas de que se tinha conhe- cimento, por isso, embasavam o comportamento e a observação dos grupos que compunham a civilização à época (MARVIN, 2002, p. 153-154). A insanidade era vista como uma expressão da natureza. Sendo assim, aquelas pessoas, de qualquer sexo ou idade, que tivessem manifestações de discursos delirantes ou expressões fora de algo comum, passavam a ser excluídas e não pertencentes. Isso abrangia a modalidade de loucura, na qual eram intituladas de “bruxarias” as atitudes que contrariassem os postulados impostos pelo catolicismo, o que também caracterizou a Idade das Trevas como era de perseguição e inquisição aos que revelassem pos- sessão por espíritos malignos. O isolamento dos “doentes” era tido como a única maneira de sal- vaguardar a sociedade de seus arroubos e comportamentos endemonia- dos. Assim, por todo esse tempo, os estabelecimentos que os recolhiam eram, em tudo, semelhantes às prisões e masmorras, em condições sub-humanas, em que eram tratados como verdadeiras “bestas enfure- cidas”, sujas, mal alimentadas e acorrentadas. O tratamento incluía a segregação, a privação e a restrição, para que fosse obtido bom compor- tamento (CUNHA, S. d., p. 341). – 25 – Reforma psiquiátrica Não era raro, nos primórdios dessa era, antes de serem instalados os primeiros hospitais psiquiátricos, que os familiares de pessoas tidas como “loucas” escondessem essa condição de toda a sociedade para evitar ver- gonha e humilhação, por vezes, escondendo-os em seus sótãos e porões, ou mesmo deixando-os vagar pelas ruas como andarilhos. Como consequência desses fatos e atos, o doente que apresentasse com- portamento disconforme com os padrões sociais e fosse caracterizado como demente seria para sempre banido e exilado do convívio com os demais. Essa característica de exclusão vigorou por muitos e muitos anos. Aliás, a palavra “demente”, que foi popularizada a partirde então, expressa, em sua origem latina, a circunstância de “fora ou afastado da mente”. Tratava-se do isolamento com toda a sua força representado pelos leprosários, depois pelos abrigos e asilos, antes mesmo do apareci- mento dos nosocômios (estabelecimento hospitalar para retiro dos lou- cos) ou hospícios. Esse estigma foi tão intenso e tão interligado com os dogmas e sím- bolos religiosos que os doentes mentais, em qualquer medida ou expres- são, foram incompreendidos e considerados párias por muito tempo, pois a visão de mundo, seja dos cientistas, seja dos filósofos, não permitiria a compreensão ou o trato mais humanizado. Não se pode responsabilizar ou culpar os atores desse cenário então posto, que agiam de acordo com os parâmetros de racionalidade conheci- dos e vigentes, isto é, somente com a evolução dos conhecimentos cientí- ficos, psiquiátricos, psicológicos e até mesmo éticos o panorama poderia ser modificado. Sob forte influência do racionalismo1 (ARRUDA; PIRES, 2003, p. 134) e do iluminismo2 (PERRY, 2002, p. 314), uma centelha de alteração no conhe- cimento e na abordagem das doenças mentais foi se instalando. 1 Corrente que se inicia por volta do Século XVII como sistema de pensamento e conheci- mento dos fenômenos, limitando o ser humano ao âmbito da razão. 2 Iluminismo ou renascimento, época histórica de novas perspectivas científicas, po- líticas e filosóficas, instaurada no Século XVIII, onde é afirmada a capacidade do ser humano em pensar de maneira independente da autoridade, livrando-o das amarras da ignorância e superstição. Saúde Mental e Serviço Social – 26 – Até quase o final do século XVIII, pela visão mercantilista, em que pessoas trazem lucro, progresso, e pessoas “loucas” não os trazem, man- tém-se ainda mais a visão isolacionista. O marco apontado como divisor de águas em torno do assunto vem com o movimento iniciado por Phillippe Pinel (1745-1826), propondo alguma mudança de rumo: “É com a reforma psiquiátrica de sua inspiração que o tratamento dos alienados segue outro rumo. Em 1794, Pinel inicia o movi- mento “no-restraint”, em que ele retira as correntes dos alienados em Paris. Assim, começa a contestar as terríveis condições dos manicômios (Pessotti, 1996).” (TOCCHETTO; BOHMGAHREN, 2007) (grifo nosso, significa “não encarcerar”)3 O estudioso é chamado “fundador da clínica psiquiátrica”. Suas teo- rias eram muito avançadas para a época, portanto, nem sempre tiveram plena aceitação. Isso porque, com seus métodos, contrapunha-se aos valo- res anteriormente adotados para tratamento dos “alienados”, absorvendo os ideais igualitários da Revolução Francesa, fazendo com que se per- mitisse aos loucos a incorporação à nascente sociedade burguesa (LOU- REIRO, 2019). Pode-se dizer que o médico, em seu tratado sobre a alienação men- tal, inaugurou o saber psiquiátrico com a análise da institucionalização da loucura, revelando uma outra face, a possibilidade da emergência de um saber, a partir do individual que se confunde com formas de existência. Até o advento de Pinel, a chamada loucura era perceptível pelo método explicativo. Confundia-se a própria observação com os fenômenos, orde- nando-os e classificando-os em função de suas analogias e diferenças, recebendo, com isso, o nome que lhes dava a ciência. Daí para frente, o psiquiatra francês estabeleceu uma distância metodológica entre obser- vação e explicação, constituindo a clínica como um método consistente e sistemático (SOUZA, 2000). Há, por consequência, com esse movimento, uma evolução evidente no trato ou mesmo na observação e convivência do científico com a saúde mental, pois, apesar da categorização e agrupamento segundo semelhan- 3 Michaelis. Dicionário Escolar Inglês- Português. São Paulo: Melhoramentos, 2001, p. 248. – 27 – Reforma psiquiátrica ças e diferenças da realidade, já é possível antever uma visão individua- lista do ser que, mesmo “louco”, pode pensar e falar. Tal individualismo encontra suas fontes em premissas cartesianas em torno da possibilidade da busca da verdade primeira, convertendo a dúvida em método, inaugu- rando a corrente moderna de pensamento (DESCARTES, 2005) em subs- tituição, por exemplo, ao nominalismo (SOUZA, 2015) em voga na Idade Média, quando todas as coisas e seres seriam particulares, inclusive as ideias, negando-se a existência dos “universais”. Não obstante as contestações científicas resumidamente expostas, foi somente após a segunda guerra mundial (1939-1945) que se começou a ver a questão da loucura com algum viés de doença, tendo em vista o caminho aberto por Pinel. Pinel, em 1793, já no final do século XVIII, inicia o movimento para que os loucos passassem a integrar novamente a sociedade. Reorganizou os espaços hospitalares, reformulando o atendimento que neles era pres- tado, instituiu o tratamento moral, buscando recuperar esses indivíduos e, se isso não fosse possível, deveriam ser tutelados em condições espe- ciais, forjando, além dos modelos espirituais e metafísicos da loucura, um espaço de atuação e atenção científica (TEIXEIRA, 2019). Cite-se, ainda, como embrião da luta antimanicomial, que veio pos- teriormente a se desenvolver com a pós-modernidade, Franco Basaglia (1924-1980), visto que o italiano se mobilizou como cientista e pensador no sentido da desinstitucionalização desses doentes. Foi esse médico psiquiatra italiano que promoveu alterações profun- das na maneira de tratar os pacientes, buscando, por todas as vias, garantir aos loucos a característica de indivíduos, que deveriam, desse modo, con- tinuar pertencendo às famílias e à sociedade. Em 1968, publicou o livro “A instituição negada” detalhando o seu método (FRANCO, 2009). Feitos esses apontamentos, conclui-se que a herança clínica preva- lente e que serviu durante muito tempo como referência institucional psicológico-psiquiátrica foi de enquadrar, digamos assim, a relação médico-paciente em uma classificação ou psicopatia já existente, um “a Saúde Mental e Serviço Social – 28 – priori”, sem considerar meio ambiente, condições sociais e econômicas, bem como características hereditárias, ou seja, verificação dos sintomas acompanhada somente por um receituário de medicamentos. Em outras palavras, diante dessa metodologia, tem-se a “forma” e busca-se pre- encher o seu conteúdo com as evidências postas em foco pelo doente (KANT, 2003).4 Portanto, com a modernidade, período que sucede a Idade Média e se fortalece grandemente no século XVIII (MARIAS, 2004, p. 297), encontravam-se abertas as portas para a crescente humanização do tra- tamento das chamadas doenças mentais na busca da saúde da mente de forma mais ampla. Nesse sentido, iniciando-se na Europa e depois ratificando-se na América do Norte, a “Declaração Universal dos Direitos do Homem”, oriunda da ONU, em 1948, no pós-guerra, normatizada nas constituições de diversos países, foi o solo fértil para o chamado “corte epistemológico” quanto ao tema, iniciando mudanças de paradigma observados pelos cien- tistas médicos, psicólogos, assistentes sociais, antropólogos, entre outras áreas que hoje participam tanto do diagnóstico como do prognóstico na clínica psiquiátrica-psicológica multidisciplinar. Diz-se que, para estabelecimento eficaz de novo paradigma, em qual- quer ramo do conhecimento, opera-se a mudança que carrega em si ele- mentos do saber passado, agregando a ele novos elementos desconhecidos ou não utilizados até então. Não é diferente no que concerne à reforma psi- quiátrica. A equação entre liberdade da pessoa humana, tratamento justo, limpo, tal seja, em boas condições sanitárias, de higiene e humanitárias, aliada à terapêutica resultaram em inúmeras escolas e movimentos psi- quiátricos nas últimas décadas, desencadeando o que viria a ser denomi- nado, no mundo todo, de “Luta antimanicomial”, em complementação à reforma psiquiátrica que, como apontado, já é longeva. 4 Como já foi dito, as ciências biológicas, médicas e sociais tendema seguir as correntes filosóficas estabelecidas espacial e temporalmente, e, no caso, é muito fácil deduzir que o tratamento apriorístico está enraizado nas categorias kantianas, como foi mencionado no corpo do texto, a análise do doente e seu respectivo “enquadramento”, está dentro das classificações de doenças mentais conhecidas. – 29 – Reforma psiquiátrica 2.2 A luta antimanicomial Eram tão extremas as concepções universalmente aceitas no olhar e no tratamento dos doentes mentais, bem como o preconceito em torno da saúde psicológica ou emocional, que o termo luta, mesmo que forte, é adequado para descrever o movimento que se instalou em prol não só da humanização do cárcere a que eram submetidos os doentes, como também em desfavor das internações em manicômios e hospitais psiquiátricos. Trata-se, portanto, de um movimento estabelecido primeiramente na Europa na metade do século XX, com mais força, trazendo uma crí- tica severa à institucionalização dos doentes mentais e, ao mesmo tempo, propondo a humanização, a inclusão e a socialização alinhadas com as demais posologias (FERREIRA, 2016, p. 300)5 e terapias. A discussão desses elementos travou-se em fóruns, encontros, even- tos, slogans, marchas, passeatas para fechamento de abrigos específicos, ações de conselhos médicos e de psicologia etc. Aqui no Brasil, deve ser mencionada a obra de Paulo Amarante, em que é descrito o movimento nas décadas de 70 e 80, com análise e informações inclusive dos bastido- res, tensões e divergências que marcaram a história da luta em nosso país (AMARANTE, 2020). Cita-se, de forma exemplificativa, em 1976, a criação do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES), o Movimento de Renovação Médica (REME), o Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental, o V Congresso Brasileiro de Psiquiatria, em outubro de 1978, a Conferência Nacional de Saúde Mental, o II Congresso Nacional do Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental, em 1993, o I Encontro Nacional da Luta Antimanicomial em Salvador, BA, e, já em 2003, a constituição da Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial, entre outros (Lüchmann; Rodrigues, 2007). Certamente, todas essas manifestações aconteceram dentro do con- texto de abertura da sociedade para repugnar qualquer tipo de violência 5 A posologia é um termo médico que significa medicação, preparado, produto químico ou farmacêutico, remédio. Saúde Mental e Serviço Social – 30 – que pudesse ser dirigida aos que não portassem saúde mental condizente com os parâmetros vigentes. Destaca-se, também, que foi no século XX que se ampliaram os males ou as desordens de nível psicológico ou psiquiátrico, seja diante da dinâmica das relações sociais, econômicas e familiares que se altera- ram em velocidade até então não vista, seja porque as pessoas passaram a transmitir – tornar público – o que ocorria nas suas mentes ou no interior dos seus lares (Andrade, 1999). Por tais motivos, em que o cenário é tanto a revolução industrial quanto tecnológica e de ambiente, passaram a ser vistos ao revelar distúr- bios em sua saúde mental também os portadores de depressão, síndromes ou condições referentes à alteração de humor e, o que até os séculos passa- dos era improvável, os dependentes químicos, os alcoólatras e os adictos. Trata-se de um processo, não um fato isolado e, por se tratar de um processo, não é estático, é um processo histórico que não se deu de uma hora para outra com alteração de paradigmas em busca da verdadeira cida- dania para todos, inclusive para aqueles que estão em sofrimento psíquico, que, de forma alguma, poderiam obter melhoras se estivessem vivendo o caos da miséria humana. De qualquer modo, o centro das controvérsias reside na liberdade “versus” clausura, com embasamento em diversas escolas e suas formu- lações, cabendo citar o organodinamismo6 da escola francesa, a psiquia- tria democrática italiana, o conceito de “transtorno mental”, que vem da psiquiatria americana, encimados pela temática da liberdade da pessoa humana que foi assumida para a saúde mental, a do constitucionalismo e 6 Em 1946, no período pós Segunda Guerra Mundial, o “Colóquio de Bonneval”, rea- lizado na França, contou com a Conferência de Henry Ey expondo sua teoria segundo a qual as funções psíquicas alteradas teriam origem em aspectos orgânicos, biológicos, infecciosos, endocrinológicos ou traumáticos, acreditando, por outro lado, na relação entre psiquismo e moral, o que seria denominado como “teoria da hierarquia estrutural”. Em Nassif, Lilian Erichsen. Origens e desenvolvimento da Psicopatologia do Trabalho na França (século XX): uma abordagem histórica. Memorandum: Memória e História em Psicologia, v. 8, 79-87. Disponível em: https://periodicos.ufmg.br/index.php/memo- randum/article/view/6764. – 31 – Reforma psiquiátrica dos primados da liberação humana codificada em Declaração Universal da ONU (SOUZA, 2000). Sendo assim, esse movimento enfrentou o dilema de que só a huma- nização no tratamento não bastaria, tornando-se necessário banir a inter- nação, o trancafiar, a exclusão em prol da liberdade. A luta veio antes dos psiquiatras e psicólogos, significando desinsti- tucionalizar ou deslocar o trato da saúde mental da instituição, hospital, hospício ou manicômio para comunidade. O termo desinstitucionalização significa mover o centro da atenção da instituição para a comunidade, distrito, território. Esse termo tem sua origem no movimento italiano de reforma psiquiátrica. “Para Rotelli e colaboradores, o mal obscuro da psiquiatria está em haver separado um objeto fictício, a “ doença”, da “ existên- cia global complexa e concreta” dos pacientes e do corpo social. Sobre esta separação artificial se constrói um conjunto de apa- ratos científicos, legisladores, administrativos (precisamente a “ instituição”), todos referidos à “doença”. A desinstitucionaliza- ção tem uma conotação muito mais ampla do que simplesmente deslocar o centro da atenção do hospício, do manicômio, para a comunidade. Enquanto este existir como realidade concreta, as ações perpassarão, necessariamente, por desmontar este aparato, mas não acabam aí. Para o autor acima referido e também ator do processo, é o conjunto que é necessário desmontar (desinstitucio- nalizar) para o contato efetivo com o paciente na sua existência” doente”. (HIRDES, 2009) Segundo as mesmas autoras, Rotelli e seus colaboradores evidenciaram que o problema não seria o de curar para obter uma vida produtiva, mas sim produzir vida no sentido da sociabilidade, da convivência, ou seja, deveriam ser diferenciadas, porque são diferentes quanto aos métodos e efeitos as categorias de desinstitucionalização: uma como desospitalização, e outra como desassistência ou mesmo como desconstrução, sendo que somente a compreensão dessas medidas poderia determinar a forma prática e teórica de lidar com a abertura do enclausuramento (HIRDES, 2009). É muito interessante citar os desdobramentos ou noções que estão implicadas na desinstitucionalização ou na perspectiva de uma reforma psiquiátrica dessa natureza na modernidade e na pós-modernidade, ou Saúde Mental e Serviço Social – 32 – seja: i) a desinstitucionalização como desospitalização, que tem sua matriz nos projetos de psiquiatria preventiva e comunitária, surgida nos Estados Unidos no governo Kennedy, trazendo em seu bojo a redução dos custos dessa assistência aos cofres públicos; ii) a desinstitucionalização como desassistência, que significaria, em última análise, abandonar os doentes à própria sorte, variável aceita pelos grupos ultraconservadores e contrá- rios aos direitos básicos de outros grupos minoritário; iii) a desinstitucio- nalização como desconstrução, cuja tendência se apoia no que dissemos anteriormente em torno da crise epistemológica ao saber médico vigorante para a psiquiatria (HIRDES, 2009). Como a luta ou movimento se instalou mundialmente, incluindo o Brasil, não temos como estabelecer um marcoinicial das controvérsias, difusas em territórios de diversas nações. Por outro lado, a própria socie- dade se viu convidada a voltar seus olhos para o problema, incitada pela literatura e pelo cinema. À semelhança do que ocorre com outros assuntos que necessitam, para a sua verossimilhança e aceitação, uma boa carga de divulgação para que a mensagem chegue aos receptores sociais, a inteligência e a classe artística também tiveram um papel determinante na modificação do ambiente e do sistema dominante nas respectivas épocas, no intuito de sensibilizar as pessoas para o mal que os manicômios, com a privação absoluta de liberdade dos doentes mentais, poderiam causar. A luta antimanicomial assumiu, em nosso meio, uma característica de movimento social, chegando ao patamar da popularidade por ser coletiva, na defesa de interesses difusos, uma vez que foram expostos os problemas enfrentados pelos doentes nos hospitais psiquiátricos, alcançando a sensi- bilidade humanitária das pessoas e gerando questionamentos e indignação quanto aos tratamentos impostos, na maioria das vezes, em flagrante con- traposição ao conceito de cidadania. Dessa forma, especialmente conside- rando, no Brasil, a promulgação da Constituição de 1988, quando foram criteriosamente adotados os preceitos e garantias do homem e do cida- dão, tornou-se, então, necessário rever o arcabouço normativo até então vigente para a inclusão desses doentes no seio da comunidade.7 7 https://site.cfp.org.br/tag/luta-antimanicomial, postado no “site” do Conselho Nacional de Psicologia em 8 de fevereiro de 2019. – 33 – Reforma psiquiátrica Nesse sentido, a luta ou movimento antimanicomial teve grande alcance, bastando integrar a busca por artigos científicos com as palavras de ordem bastante criativas que surgiram de maneira popular em prol da liberdade e integração dos chamados doentes mentais: “TRANCAR NÃO É TRATAR”8, “NOSSA LOUCURA É MAIS LÚCIDA QUE SEU PRECONCEITO”9, “LIBERDADE É O ESPAÇO QUE A FELICIDADE PRECISA”10, “LIBERDADE É O MELHOR CUIDADO”11, “SAÚDE NÃO SE VENDE, LOUCURA NÃO SE PRENDE”12, “EU CUIDO, NÃO PRENDO”13, entre outros dizeres que mostram a posição dos ativis- tas para o Dia Nacional da Luta Antimanicomial, em 18 de maio. “18 de maio foi instituído como Dia Nacional da Luta Antima- nicomial no Brasil em homenagem à luta dos profissionais de saúde por um tratamento mais humano aos usuários do sistema de saúde mental. Uma luta que ganhou força no contexto da abertura da ditadura militar, quando surgiram as primeiras manifestações no setor de saúde. No bojo destas, surge o Movimento dos Tra- balhadores de Saúde Mental, que logo assumiria um importante papel na crítica da política de assistência psiquiátrica da ditadura: suas reivindicações incluíam o fim do uso do eletrochoque e de outras práticas de “tratamento” – que se assemelhavam às torturas comuns nos porões da ditadura –, melhores condições de assistên- cia à população e pela humanização dos serviços. Este movimento dá início a uma greve (durante oito meses no ano de 1978) que alcança importante repercussão na imprensa à época.14 8 http://www.saude.ufpr.br/portal/terapiaocupacional/informativo/dia-da-luta-antimanico- mial/ 18 de maio: Dia da Luta Antimanicomial - Curitiba Resiste por uma Sociedade sem Manicômios! 9 Liga Acadêmica de Saúde Mental em Enfermagem e Psicologia -UFRR, publicado em 19 de maio de 2021. Disponível em: https://www.facebook.com/LASMEPUFRR/ 10 Semana nacional da luta antimanicomial, Conselho Federal de Psicologia, 15 de maio de 2017, utilizando como lema a frase de Fernando Sabino. Disponível em: https://site.cfp. org.br/semana-nacional-da-luta-antimanicomial- 11 https://redehumanizasus.net/trancar-nao-e-tratar-a-liberdade-e-o-melhor-cuidado. 12 https://www.facebook.com/watch/?v=426129362145884, Conselho Regional de Psico- logia de São Paulo, publicado em16 de dezembro de 2020. 13 https://blog.cenatcursos.com.br/frases-da-luta-antimanicomial- 14 https://www.bn.gov.br/acontece/noticias/2020/05/18-maio-dia-luta-antimanicomial- -Bibblioteca Nacional Saúde Mental e Serviço Social – 34 – Para se ter uma ideia de como a humanização e uma verdadeira guerra se estabeleceram contra os tratamentos violentos e abusivos nos nosocômios e hospitais psiquiátricos do país, até um bloco de carnaval foi criado em 2000 na cidade de Ouro Preto, em Minas Gerais, chamado “Os conspirados”. O bloco tinha como um dos objetivos apagar o histórico da exclusão e do isolamento das pessoas com transtornos mentais.15 Certamente, após todas essas intervenções, teorias e modificações do estado de aspectos diante dos transtornos mentais e psicológicos, que eram cada vez mais frequentes já na pós-modernidade, com a velocidade em que os relacionamentos e o conhecimento em si circula, já não se podia voltar ao passado. Nesse sentido, as instituições psiquiátricas de qualquer categoria, envergadura ou linha de tratamento, deverão caminhar no sentido de total humanização, caso não sigam o caminho mais radical da inclusão direta no seio social. Os tratamentos deverão sempre trazer em si abordagens que considerem o doente (ou o doente dependente) como uma pessoa, isto é, um sujeito de direitos capaz de transmitir, mesmo que em mínimas doses, as suas angústias e de traduzir ao terapeuta, desde que induzido de forma competente, quais são as questões que o colocam na situação mental problemática, sem que isso signifique, de modo algum, descar- tar os métodos mais tradicionais de abordagem, bem como as prescrições medicamentosas adequadas. Cada vez mais, toda atuação dos profissionais em tais estabelecimentos é sujeita a diversos controles, seja da própria sociedade, seja do Estado, mediante atuação do Ministério da Saúde ou dos próprios Ministérios Públicos, Federal e Estaduais, o que será visto com mais detalhes no tópico seguinte. 2.3 Aspectos gerais da saúde mental no Brasil Para a análise da saúde pública no Brasil e, especialmente, da saúde mental, não é possível desconsiderar fatores territoriais, sociais, econô- micos e políticos. Perder de mente a extrema desigualdade em que vive a 15 https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2021/05/17/interna_gerais,1267504/o-carna- val-de-ouro-preto-e-o-exemplo-na-luta-antimanicomial.shtml, Jornal o Estado de Minas, Nívea Machado, 17/05/2021. – 35 – Reforma psiquiátrica nossa população, seria ingenuidade e, possivelmente, irresponsabilidade, a respeito de um tema tão delicado que envolve sobretudo a educação de determinado povo. Já salientamos e reiteramos os aspectos da reforma psiquiátrica com vetores chegados de outras partes do mundo, fazendo com que, também, em terras brasileiras, o cuidado com a saúde mental se tornasse uma pre- ocupação, além de uma política pública com ênfase no seu acolhimento pelos postulados da Constituição Federal de 1988 e, depois disso, no esta- belecimento do Sistema Único de Saúde. Nos artigos 196, 197, 198, 199 e 200 da Constituição Federal de 1988, encontraremos a obrigação do Estado de prover o acesso às ações e serviços de saúde, como o sistema deve ser organizado, as diretrizes, a participação complementar da rede privada e algumas das atribuições do Sistema Único de Saúde. É a partir daqui que a saúde passa a ser inclu- dente, ou seja, aqui nasce o SUS e sua Lei Orgânica. Mais especificamente, trata-se da legislação federal que diz respeito à saúde mental. Com base no Art. 5º da Constituição federal de 1988, que assegura igualdade perante a lei, tem-se como corolário a isonomia com o doente mental, considerando, justamente, as suas diferenças, o que se pretendeu com a Lei 10.216, de 6 de abril de 2001. Essa lei dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portado- ras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental em busca de inclusão. Muito pode ser dito sobre essa legislação, mas o primordial de seus mandamentos é a garantia de direitos, bem como a internação com caráter deexcepcionalidade, segundo rígidos parâmetros que vêm sendo aprimorados mediante outros atos normati- vos governamentais. A leitura atenta de tais normas é suficiente para alcançar o signifi- cado que os legisladores deram aos problemas médico-sociais em busca da saúde mental. A lei federal dita normas gerais, indica a necessidade do estabelecimento de políticas públicas especiais de alta com reabilitação psicossocial para pacientes com longo termo de hospitalização ou grave dependência institucional decorrente de seu quadro clínico, estabelece os critérios para internação voluntária, involuntária, bem como a internação Saúde Mental e Serviço Social – 36 – compulsória, com respectivos prazos de duração acompanhada de comu- nicação e monitoramento do Ministério Público Estadual, em hipóteses que independam da vontade do doente. Além disso, trata da participação ativa judicial quanto às medidas mais drásticas, no caso, o recolhimento compulsório aos hospitais ou unidades psiquiátricas. Essa legislação tem aplicabilidade para todas as esferas de governo e está complementada por um grande número de outros diplomas normati- vos de menor envergadura, como Resoluções e Portarias.16 Assim, a reforma psiquiátrica foi um marco estabelecedor de um novo protocolo, encarando, agora, aqueles que tinham pertencimento a um grupo segregado como cidadãos. Pelo menos nos patamares abstratos das categorias jurídicas, os direitos dos portadores de males mentais estariam salvaguardados de maneira satisfatória. Isso não quer dizer que haja, de fato, dentro desse intrincado sis- tema de abordagem, tratamento, internação e mesmo fiscalização pelo Ministério Público e Judiciário, uma solução perfeita e adequada para um problema tão complexo. Da mesma forma, na prática, com a reforma psiquiátrica, não se pode afirmar que todas as arestas desse assunto foram solucionadas. Ao mesmo tempo em que a saúde mental passa a ter novos patamares e horizontes, respeitando e cuidando do ser humano como um todo e não mais a simples patologia, ainda há a necessidade de um olhar mais atento para as reais necessidades, seja quanto aos sistemas públicos e particulares que se encarregam da saúde mental, seja quanto ao paciente. Ao partir dessa observância, é indispensável obter fiscalizações cons- tantes dos tratamentos ofertados, bem como investir em capacitação, reno- vando-se os movimentos sociais para que esse âmbito da saúde mental seja desmistificado cada vez mais e despido dos preconceitos que o cercam. Por tais motivos, subsistem questionamentos que, novamente, leva- rão à revisão do atual modelo sempre visando aperfeiçoá-lo e torná-lo, no 16 http://conselho.saude.gov.br/biblioteca/livros/legislacaosaudemental2002completa.pdf Pode ser consultado o inteiro teor da lei referida em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ leis/leis_2001/l10216.htm. – 37 – Reforma psiquiátrica caso do Brasil, multifacetado, ou seja, coerente com as nossas diferenças abissais, especialmente a desigualdade econômica e social entre comuni- dades e famílias. Como acentua Desviat (2015), após as medidas políticas e econômi- cas que enchem de incerteza o futuro dos serviços sanitários e sociais, a globalização da economia, as mudanças nos modos de produção, a preca- riedade do emprego e o aumento planetário da exclusão social, é preciso questionar a continuidade dos movimentos solidários iniciados depois da devastação da Segunda Guerra Mundial (DESVIAT, 2015). Segundo o autor, se a sociedade não dispõe de equipamentos sociais competentes para o trato dos egressos das instituições, ou daqueles que nem chegaram à hospitalização, não basta apenas transferir a responsabi- lidade para as famílias, confinando os portadores dos males psicológicos e psiquiátricos em casa. Espera-se o resgate da cidadania, da singularidade e da subjetividade, sem a única ideia da cura como horizonte. Assinala que os diversos percursos da reforma psiquiátrica, pelo menos em solo brasi- leiro, evidenciam a fragilidade do sistema de saúde para oferecer outros tipos de intervenção com exceção daquela centrada no leito hospitalar. Assim, mediante a leitura dessas conclusões, torna-se muito evidente a necessidade de encontrar vias complementares para o trato do intrincado problema descrito (GONÇALVES; SENA, 2001). Aliam-se a essas cautelas e preocupações a dificuldade enfrentada no país para leitos hospitalares dirigidos ao internamento dos acometidos pelas várias doenças mentais e psicológicas, incluindo os dependentes de álcool e outras drogas. Desse modo, a Federação dos Hospitais, em fevereiro de 2018, já alertava para a necessidade de ser complementada a chamada reforma psiquiátrica, justamente por conta do olhar estatístico e das dificuldades enfrentadas pelo setor a partir da vigência da lei promulgada em 2001. Naquele ano, a entidade paulista contabilizou 36.387 leitos psi- quiátricos, sendo 25.097 ligados ao Sistema Único de Saúde, em 159 hospitais e 11.290 privados, com grande percentual concentrado no Estado de São Paulo. Esses números estariam muito aquém ao reco- mendado pela OMS (Organização Mundial de Saúde), no patamar de Saúde Mental e Serviço Social – 38 – 90 mil leitos para 200 milhões de habitantes, tendo como consequência a desassistência e o abandono, assim como a falta de resolutividade no atendimento dessas enfermidades. Ainda segundo os integrantes da Federação, o movimento anti- manicomial que se instalou no país nos anos 70 causou a extinção dos hospitais especializados, gerando uma lacuna, ao optar pela aborda- gem extra-hospitalar. Em substituição aos leitos extintos, o Ministério da Saúde criou os CAPS (Centros de Atenção Psicossocial) e as residências terapêuticas, mas a realidade mostrou que não houve equivalência nessa mudança de enfoque, concluindo que: “as mudanças no sistema nacional de saúde mental são imprescin- díveis para garantir dignidade e qualidade assistencial ao paciente psiquiátrico. “Importante a criação do atendimento ambulatorial com enfoque multidisciplinar, qualificação e financiamento mais apropriado de hospitais especializados. E, ao invés de fechar leitos, a nova polí- tica quer qualificar esses leitos para o tratamento de pacientes com quadros agudos e programas de prevenção ao uso de álcool e dro- gas e prevenção de suicídio. E ainda criação de CAPS (Centros de Atenção Psicossocial) especial 24 horas para áreas de grave con- sumo de crack e outras drogas também chamadas Cracolândias”.17 Após toda a luta antimanicomial e reforma, que ainda não se comple- tou de forma adequada, de fato, para aqueles que tratam da saúde mental em amplo sentido, o lugar da loucura e daqueles que sofrem de doenças mentais não é evidente. Persiste muita dificuldade de toda a sociedade para compreender esses comportamentos, bem como inclui-los nos pro- cessos de tratamento, quanto mais no convívio da comunidade. É ainda menor a condição de colocá-los em situação de igual- dade para que possam participar das mesmas esferas sociais, culturais e econômicas, lugar que, para as pessoas tidas como “normais”, é algo natural e inquestionável. 17 https://www.segs.com.br/saude/104311, “Faltam-leitos-de-psiquiatria-no-pais-alerta- -federacao-dos-hospitais” – 39 – Reforma psiquiátrica Sabemos que a realidade anterior de enclausurar, excluir e retirar da sociedade os doentes mentais não é o caminho ideal, principalmente quando ouvimos os relatos daqueles que participaram dos dispositivos anteriores de tratamento dessa natureza com espaços inadequados, escu- ros e, muitas vezes, tendo como o tratamento apenas punição e isola- mento social. No entanto, esse outro modelo instituído, formalmente estabelecido na legislação e numa imensa gama de normas infralegais, é ainda insu- ficiente, em especial para aqueles que realmente necessitam de ajuda nesse âmbito. Essa constatação pode ser feita pelos que vivenciam, na prática, a necessidade dos pacientes, quando se mostraimpossível eliminar a assis- tência hospitalar, principalmente em casos graves de tentativas de suicí- dio, bem como quando existe a necessidade de romper drasticamente com o ciclo de uso de substâncias psicoativas. Além disso, verificam que não houve efetividade na implantação de leitos de psiquiatria em hospitais, seja pela falta de especialização das equipes, seja pela falta de estrutura física para possibilitar o tratamento desse tipo de patologia. Os CAPS, em tese, são aptos para cumprir suas funções, mas não conseguem suprir a demanda nem quantitativa nem qualitativa desses casos específicos aqui mencionados. Existe a necessidade de avaliações especializadas, realizadas por médicos psiquiatras, psicólogos e demais profissionais que atuem com saúde mental e consigam ter a clareza de qual é a rede de assistência possível e qual a melhor forma de atendimento para o paciente naquele momento. Assim, cada caso deve ser realmente encaminhado para o melhor cuidado do sujeito como um todo. Muitas vezes, em momento de crise extrema ou intoxicação pelo uso de substância psicoativa, quando parar de usá-la não está mais somente no campo do desejo, já trazendo em si muitos outros elementos, é indis- pensável que haja uma intervenção maior. No entanto, o que vemos, no cotidiano, é que, com a extinção dos leitos psiquiátricos, chegamos a uma verdadeira desproteção, desamparo, que, por sua vez, leva à corrida para Saúde Mental e Serviço Social – 40 – vagas nos lugares onde ainda há leitos para aqueles que precisam de uma assistência mais especializada. É primordial uma triagem feita por esses profissionais especializados e bem treinados para que cada caso seja verdadeiramente encaminhado para o lugar adequado, que atenda a patologia, o desvio ou o compor- tamento. Além disso, em segundo lugar, é de extrema importância que a conduta dos profissionais, da equipe e dos estabelecimentos hospitala- res, clínicas, centros de atendimento e ambulatórios sejam fiscalizados e tenham bases sólidas de tratamento para que possam atender às necessida- des do indivíduo-cidadão. Saiba mais 1. Já em Machado de Assis, aqui no Brasil, encontramos, no auge do século XX, mais precisamente em 1882, a publicação do livro “O alienista”. A obra é uma ácida crítica tanto aos diagnósticos quanto aos tratamentos vivenciados nas instituições psiquiátri- cas. No conto ou novela, o Dr. Bacamarte, o alienista, psiquiatra, convencido de que a infertilidade de sua mulher está diretamente ligada a questões mentais, ao tentar provar sua teoria, cria a Casa Verde, local destinado ao estudo dos dementes, que ele acabou encontrando em quase toda a vila onde morava, a Vila Itaguaí. Ao final, ele alcança 75% da população, encarceramento tão numeroso que o levou a rever várias e várias vezes os seus méto- dos de observação e experimentos, acabando por perder-se em sua própria loucura sozinho na Casa Verde (ASSIS 2014). 2. Filmografia sugerida sobre o tema em que é exposta, de uma forma muito realista, até mesmo cruel, a realidade vivida pelos internos nessas instituições: “O estranho no ninho”, lançado no Brasil em maio de 1976, sendo Milos Forman o diretor; “Bicho de sete Cabeças”, filme baseado no livro autobiográfico; “Canto dos Malditos”, de Austregésilo Bueno; “O Holocausto Brasileiro, documentário lançado em 2016 dirigido por Daniela Arbex e Armando Mendz, baseado no livro homônimo de Daniela Arbex. – 41 – Reforma psiquiátrica O documentário mostra o genocídio cometido no Hospital Colô- nia em Barbacena (MG) enquanto discute questões relativas ao papel dos manicômios; o documentário “Saúde Mental e Dig- nidade Humana”, produzido pelo Centro de Memória da OAB, resgata a história do tratamento dispensado aos doentes mentais pelo sistema judiciário no Brasil; “Nise – O coração da loucura”, em que a psiquiatra Nise da Silveira enfrenta tudo e todos pelo bem dos pacientes do Hospital Psiquiátrico Pedro II, no Rio de Janeiro; “Dos loucos e das rosas”, produzido pela TV NBR, docu- mentário que trata sobre transtornos mentais, narrado por um artista plástico que mostra o cotidiano de pacientes no hospital psiquiátrico em Barbacena (MG), entre inúmeros outros. Atividades 1. Em relação à história da saúde mental e seus acontecimentos, em alguns momentos, os portadores de transtornos mentais foram excluídos da sociedade. Como você entendeu esse momento his- tórico e em qual época isso se deu? 2. Em qual época se inicia o movimento da reforma psiquiatra? Cite alguns autores que fizeram, de forma mais efetiva, esse movimento com suas obras ou marcos. 3. Em relação a todo movimento e esforços feitos para a extinção dos leitos psiquiátricos, qual foi a proposta de dispositivos subs- titutivos da rede? 4. De forma geral, sabemos que o processo de construção de polí- ticas em saúde mental e a sua execução ainda estão longe de serem finalizados em um modelo assistencial adequado. Em sua opinião, como seria um caminho para essa construção? 3 A Política de Saúde Mental Brasileira Ao adentrarmos a política de saúde mental, não há como desvinculá-la da análise da saúde pública brasileira, cuja trajetó- ria perpetuou juntamente aos aspectos sócio-históricos de caráter social, econômico e político. A partir da Reforma Psiquiátrica evidenciada nos anos 70, inicia-se o processo de mudanças no modelo de atenção e gestão em saúde. No final de 1978, surge o início do movimento social frente à luta pela garantia de direitos dos pacientes psiquiátricos no Brasil com o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM). Acima de tudo, esse movimento foi protagonista de vários segmentos de lutas, constituído por trabalhadores inte- grantes do movimento sanitário, associações de familiares, sin- dicalistas, profissionais e pessoas com histórico de internações psiquiátricas. Nesse sentido, os constantes enfrentamentos na saúde mental visam garantir a dignidade e o respeito às pessoas com transtornos mentais, e passam a surgir fluxos de denúncias sobre violações dos direitos nas instituições nomeadas nesse período como “manicômios”, conforme exposto pelo Ministério da Saúde (BRASIL, 2005). Saúde Mental e Serviço Social – 44 – Nos anos 80, discute-se a necessidade de desenvolver uma política nacional de saúde mental com a finalidade de buscar melhores diretrizes sob a ótica do olhar do cuidado e do respeito ao indivíduo acometido de doenças mentais. Essa questão gera destaque internacional, de modo que o Brasil, ao ter sido um dos primeiros países a organizar uma política de saúde mental, não estava inserido no grupo de países desenvolvidos. Para tanto, a partir de uma construção coletiva e construtiva visando as questões da saúde mental com críticas intransigentes ao modelo hos- pitalocêntrico, na cidade de Bauru/SP, em 1987, acontece o II Congresso Nacional do MTSM, que defende o lema “Por uma sociedade sem mani- cômios”, e também a I Conferência Nacional de Saúde Mental no Estado do Rio de Janeiro (BRASIL, 2005). Almeida (2019, p. 2) destaca as primeiras manifestações da prática da reforma na saúde mental no estado de São Paulo, uma vez que tiveram um papel decisivo no desenvolvimento e na implementação de suas espe- cificidades nesse momento. No contexto da desinstitucionalização da psiquiatria no país, foram tomadas como referência as experiências realizadas na Itália com a crítica e a radicalização às instituições psiquiátricas de regime fechado, articu- lando a ruptura com o antigo padrão de atendimento às pessoas em tra- tamento mental. Conforme o Ministério da Saúde (BRASIL 2005), há exemplos claros da institucionalização precarizada no país, como foi o caso da Colônia Juliano Moreira, um grande asilo com mais de 2 mil inter- nos no início dos anos 80, no Rio de Janeiro. Trata-se de um dos moti- vos que ressalta o lema do II Congresso Nacional do MTSM conforme já citado anteriormente. Em 1987, foi instituído o primeiro
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