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ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO Fabiola dos Santos Kucybala A psicogênese da língua escrita Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Reconhecer a psicogênese da língua escrita não como um método, mas como um processo de aquisição da língua escrita. Analisar as hipóteses de escrita (pré-silábica, silábica, silábico-alfabética, alfabética e ortográfica). Identificar o “erro” como construtivo no processo de alfabetização. Introdução O processo de aquisição da língua escrita pelas crianças é uma temá- tica muito discutida no campo da educação, principalmente a partir dos estudos de Emília Ferreiro e Ana Teberosky (1985) a respeito da psicogênese da língua escrita. Tais estudos apontam que as crianças constroem diferentes hipóteses sobre a escrita, resolvem situações- -problema, buscam conhecimentos e elaboram, analisam e refletem sobre aquilo que escrevem. Neste capítulo, você vai reconhecer a psicogênese não como um método pronto a ser seguido para se atingir uma aprendizagem sig- nificativa, e sim como um processo de aquisição da língua escrita em que o sujeito constrói suas ideias e conhecimentos a partir de diferentes hipóteses. Essas hipóteses e níveis de escrita, mais especificamente a pré-silábica, a silábica, a silábico-alfabética, a alfabética e a ortográfica, também serão analisados ao longo do texto. Além disso, você vai ver que o erro pode ser encarado como um processo construtivo no pe- ríodo de alfabetização, o que permite à criança aprender a partir da experimentação e percorrer caminhos que a auxiliem a alcançar níveis mais elevados de escrita. C04_Psicogenese.indd 1 28/05/2018 15:47:25 Psicogênese da língua escrita: um processo de aquisição da língua escrita Em meados de 1980, a educação começou a deixar de lado os métodos analíticos e sintéticos, voltados à repetição e à memorização de cartilhas com conteúdos artifi ciais e pouco interessantes. Tais conteúdos, como você deve imaginar, eram direcionados à aprendizagem da leitura e da escrita de forma mecânica e técnica. Nesse período, despontou uma nova concep- ção de alfabetização e surgiram os estudos e pesquisas da psicolinguista Emília Ferreiro e da pedagoga Ana Teberosky (1985). Essas autoras apre- sentam a psicogênese da língua escrita como um processo de aprendizado da criança que leva em consideração a compreensão da natureza da escrita e sua organização. Esses estudos surgiram a partir dos altos índices de fracasso escolar na área da alfabetização e passaram a ter relação com o construtivismo, campo analisado por Jean Piaget. A teoria de Piaget parte do conhecimento centrado no desenvolvimento natural da criança e na construção de situações de apren- dizagem. Ou seja, a criança é vista como um agente da sua compreensão, na medida em que constrói os conhecimentos vinculados aos contextos sociais em que está inserida. Desse modo, do ponto de vista da alfabetização, é importante criar opor- tunidades de interação em que a criança esteja em contato, desde muito cedo, com diversas formas e gêneros da linguagem oral e escrita, de maneira que aprenda, envolva-se, produza e construa respostas às situações-problema apresentadas ao longo do processo de aprendizagem. Teberosky e Colomer (2003, p. 79) destacam que: “A maneira como as crianças aprendem, o papel dos professores e o significado que dão à sua experiência pedagógica, am- plamente ignorados pela perspectiva reducionista, encontram-se no centro da perspectiva construtivista”. Nessa perspectiva construtivista, o professor assume um papel-chave no aprendizado: pensar em um ensino que atenda à diversidade presente em sala de aula, criando um ambiente acolhedor de construção de saberes que provoque novos aprendizados e crie desafios passíveis de serem resolvidos. Tal ambiente também deve atender às necessidades e características dos alunos, valorizar seus diferentes posicionamentos e ideias e promover a autonomia, a postura investigativa, a troca entre os pares e o respeito ao educando. A psicogênese da língua escrita2 C04_Psicogenese.indd 2 28/05/2018 15:47:26 O professor alfabetizador não é um mero reprodutor de métodos cujo objetivo é o domínio do código escrito. Pelo contrário, ele precisa ter clareza sobre qual concepção de alfabetização quer alicerçar em seu trabalho. Isso é possível a partir da constante formação e da reflexão mais aprofundada sobre a própria prática docente. Diante dos apontamentos levantados, por que dizer então que a psicogênese não é um método e sim um processo de aquisição da língua escrita? Em primeiro lugar, é importante conceituar a palavra “método”. Segundo o dicionário da língua portuguesa Priberam (MÉTODO, 2018, documento on-line), entre tantos significados, método seria “[...] o processo racional para chegar a determinado fim, conhecimento ou demonstração de verdade”. Diante disso, na perspectiva da educação, você pode considerar que um método é uma forma, um modelo que norteia os estudos e o trabalho do professor, determinando como esse trabalho deve ser realizado. Em segundo lugar, conforme relata Albuquerque (2012), a psicogênese se diferencia dos métodos tradicionais que priorizavam atividades de memori- zação, percepção, coordenação motora e repetição de palavras simples e de textos prontos e desconectados da realidade da criança. A psicogênese nasce a partir da alfabetização como apropriação das funções sociais da escrita e do aprendizado gradual com foco em como o aluno se alfabetiza. Aqui, o sujeito não é um mero objeto no processo de aprendizagem, mas um indivíduo capaz de produzir o próprio conhecimento e de procurar ativamente compreender e reconstruir a linguagem. É preciso, portanto, fugir da concepção de que a aprendizagem ocorre sem lógica e que se dá a partir de atividades motoras e de percepção, bem como da noção de que a memória serve apenas como depósito de informações. Nesse sentido, Albuquerque (2012) destaca que, após o início dos traba- lhos acerca da psicogênese da língua escrita, iniciaram-se muitas discussões contrárias aos métodos tradicionais para se alfabetizar, e a palavra método foi sendo substituída por práticas sociais de leitura e escrita. Portanto, é correto afirmar que não existem métodos e manuais a serem seguidos para se atingir a aprendizagem, tampouco algo que determine o que está certo ou errado na hora de alfabetizar. A aquisição da leitura e da escrita depende da relação da 3A psicogênese da língua escrita C04_Psicogenese.indd 3 28/05/2018 15:47:26 criança com a cultura escrita antes mesmo de ingressar na escola, sendo um trabalho que tem continuidade no início da alfabetização, a partir da com- preensão de que a leitura não consiste em decodificar, mas em compreender as diferentes formas e unidades linguísticas. Segundo essa teoria, o analfabetismo e, consequentemente, o fracasso escolar são problemas de proporção social e não uma consequência individual do sujeito que não tem capacidade de aprender. Pelo contrário, ele é responsável por buscar constantemente soluções para os problemas propostos. A criança, nesse sentido, não é impedida de avançar e ter contato com diferentes tipos de materiais escritos por não ter adquirido ainda o domínio e a capacidade de realizar a leitura de palavras isoladas. Longe disso: cada vez mais cedo, a criança tem a oportunidade de manusear, explorar e descobrir novas apren- dizagens a partir da compreensão da função social da escrita. Esse trabalho é potencializado por meio da inserção e do uso de textos atuais, contos, livros, histórias, poesias, jornais, revistas, o que possibilita que a criança esteja inserida em um ambiente alfabetizador. Você deve lembrar-se de que a qualidade do material ao qual a criança estará exposta influenciará a construção desse conhecimento. Além disso, o ambiente, tanto material quanto social, contribuirá para o levantamento de hipóteses e para o desenvolvimentode habilidades e competências de leitura. O ambiente alfabetizador deve ser aconchegante, rico em aprendizados e descobertas. Nele, a criança deve aprender a partir do manuseio de materiais didáticos que estejam ao seu alcance e que permitam que ela se sinta inserida em um processo alfabetizador. É importante você notar que um ambiente alfabetizador não se resume à decoração da sala de aula. Esse ambiente deve ser um local em que as crianças sejam capazes de manipular, tocar, explorar, experimentar e participar de novas vivências de leitura e escrita. E isso a partir de objetos produzidos por elas mesmas, que tenham significado e relação com o que está sendo desenvolvido em aula. Esse é um processo construtivo que só será alcançado se for relevante para a criança. A aquisição da língua escrita com base nesse pressuposto tem como eixo o processo vivenciado pelos alunos para aprender a ler e a escrever. Ela tam- bém se relaciona aos níveis em que eles se encontram a cada momento do ano letivo e a como se dá o processo de envolvimento entre corpo docente e corpo discente para a construção de saberes voltados à realidade em que a escola está inserida. A psicogênese da língua escrita4 C04_Psicogenese.indd 4 28/05/2018 15:47:26 Outro ponto importante é que a criança aprende na interação, no envol- vimento e na troca com os colegas que se encontram em níveis diferentes de escrita que o seu. Por isso, o professor deve conhecer como ocorrem essa aprendizagem e esse envolvimento para planejar e organizar os trabalhos em sala de aula. Do ponto de vista da prática pedagógica, é importante você refletir que a criança pensa sobre a escrita antes mesmo de entrar na escola e que esse processo independe da autorização ou do consentimento do professor para que tenha início. Para que a alfabetização se torne um processo construtivo, é necessário que o professor faça um movimento no sentido de reconhecer a importância da interação, da reflexão e da elaboração de desafios que envolvam a criança de forma prazerosa em situações-problema. Além disso, ele deve viabilizar a formação de um sujeito que pratique e exerça a escrita em diferentes situações sociais que lhe são oferecidas, adquirindo habilidades que lhe permitirão fazer o emprego concreto e significativo do ato de ler e escrever. Análise das hipóteses de escrita A discussão a seguir se inicia com as contribuições de Ferreiro e Tebe- rosky (1985) acerca das hipóteses de escrita que a criança elabora. Mesmo antes de se apropriar do sistema de escrita, a criança, à medida que tem oportunidades e contato com situações de leitura e escrita, vai construindo hipóteses, avançando na aquisição da base alfabética e pensando em como se escrevem as palavras. Para isso, é necessário que o professor, por meio de um diagnóstico ou de uma sondagem inicial realizada no início do ano letivo, acompanhe atentamente as dificuldades e evoluções presentes nesse processo. Essa sondagem possibilita detectar o nível de compreensão da criança em relação ao sistema alfabético, identificar as hipóteses e conhecimentos que faz a respeito do que lê e escreve e determinar como cada aluno se depara com o mundo da escrita. Além disso, ela auxilia o professor no planejamento de suas aulas conforme as necessidades de aprendizagem de cada aluno. Dessa forma, ele pode organizar intervenções adequadas à diversidade de saberes da turma. A sondagem caracteriza um momento em que a criança 5A psicogênese da língua escrita C04_Psicogenese.indd 5 28/05/2018 15:47:26 tem a possibilidade de refletir sobre o que está escrevendo, tornando o processo mais significativo. O indivíduo, para aprender a ler e escrever, necessita conhecer o sistema de escrita, e esse processo acontece de forma gradativa e em momentos diferen- ciados. À medida que constrói e reconstrói hipóteses, ele passa por diferentes etapas até chegar à escrita. Para compreender melhor como acontece o processo de desenvolvimento da leitura e da escrita, é importante que você conheça quais são as hipóteses que cada criança apresenta ao longo do seu período de apropriação do sistema de escrita. Ferreiro e Teberosky (1985) destacam que, para compreender o funciona- mento da língua, a criança passa por quatro níveis de hipóteses para a escrita alfabética — e você vai conhecer e ver exemplos de todas elas ao longo deste capítulo. São elas: pré-silábica, silábica, silábico-alfabética e alfabética, até finalmente chegar à hipótese ortográfica. Para entender melhor cada nível e as diferenças existentes em cada etapa, você vai ver a nomeação e a classificação de outros subníveis, cada qual com suas características peculiares na fase de evolução da criança. Além disso, você vai conhecer algumas estratégias e propostas de intervenção por parte do educador para que cada nível de aprendizagem avance na língua escrita. No entanto, antes de vê-las, é importante que você saiba como realizar a sondagem. A investigação a partir do teste da psicogênese deve acontecer individualmente. A criança deverá escrever quatro palavras do mesmo campo semântico (animais, frutas, objetos) ditadas pelo professor. A primeira palavra deve ser polissílaba, seguida de uma trissílaba, uma dissílaba e, por fim, uma monossílaba. Após a listagem das palavras, a última etapa é a escrita de uma frase que contenha uma das palavras citadas. Na Figura 1, a seguir, há uma lista com sugestões de palavras e frases, de acordo com diferentes campos semânticos, que o professor pode utilizar para realizar as testagens durante o diagnóstico com os alunos. A psicogênese da língua escrita6 C04_Psicogenese.indd 6 28/05/2018 15:47:26 Figura 1. Exemplos para a sondagem com os alunos. Fonte: Lopes (2013) Partes do corpo Sobrancelha Cabeça ou orelha Dedo ou unha Pé ou mão O menino machucou... Alimentos Espaguete Açúçar Leite Sal O menino gosta de leite. Higiene Sabonete Escova Gel A escova é azul. Temperos Cebolinha Pimenta Alho Sal A comida tem sal. Brinquedos Escorregador Boneca Bola Pá A bola é azul. Bebidas Vitamina Refresco Café Chá A vitamina é de uva. Sentimentos Alegria Carinho Amor Paz Hoje estou em paz. Ferramentas Furadeira Martelo Chave Pá O martelo quebrou. Festa junina Bandeirinha Pipoca Doce Som A bandeirinha é azul. Doces Gelatina, brigadeiro Paçoca Pudim Bis Eu comi gelatina de uva. Material escolar Lapiseira ou apontador Caderno ou caneta Livro ou lápis Giz O giz é branco. Animais Dinossauro Formiga ou coelho Cão ou rã A rã pulou no rio. As hipóteses descritas e analisadas a seguir foram fundamentadas a partir da Psicogênese da Língua Escrita, de Ferreiro e Teberosky (1985), contando com as contribuições de Grossi (1990a, 1990b, 1990c) e Morais e Leite (2012). Hipótese pré-silábica A hipótese pré-silábica é característica do período em que a criança não percebe a escrita como representação do que é falado, não havendo assim vínculos entre a linguagem oral e o que está sendo escrito. Essa hipótese pode ser dividida em dois níveis, o pré-silábico I e o pré-silábico II. 7A psicogênese da língua escrita C04_Psicogenese.indd 7 28/05/2018 15:47:27 Algumas características do nível pré-silábico I: a escrita não é formada por grafias convencionais, utilizando grafismos primitivos, predominando garatujas e pseudoletras, desenhos, símbolos e números; na escrita convencional, a criança não possui controle da quantidade, fazendo sucessões de grafias que só são interrompidas pelo limite da folha; há letras e números aleatórios; a criança pensa que, quando alguém lê para ela, está fazendo a leitura das figuras, portanto ela acredita que a escrita é outra maneira de desenhar algo. No exemplo da Figura 2, ambas as crianças que participaram da testa- gem encontram-se no nível pré-silábico I, mas apresentam diferentes formas de caracterizar a escrita. No primeiro quadro, a menina utiliza rabiscos ou garatujas para representar. Já nosegundo, o menino faz a representação por meio de desenhos. Figura 2. Nível pré-silábico I. Fonte: Costa (2009). A psicogênese da língua escrita8 C04_Psicogenese.indd 8 28/05/2018 15:47:27 O nível pré-silábico II é caracterizado pelo processo em que: a criança conhece poucas letras e normalmente utiliza as letras do seu nome para escrever palavras; as letras são colocadas aleatoriamente na palavra, não havendo relação entre o som apresentado e a letra escrita; a criança pensa que existe uma quantidade mínima de letras para es- crever e parte de dois princípios, o primeiro de que as letras não podem ser repetidas, e o segundo de que deve utilizar as mesmas letras na palavra, apenas variando a sua ordem. há realismo nominal, ou seja, a capacidade de a quantidade de letras corresponder ao tamanho do objeto — se o objeto for grande, precisa de muitas letras, se for pequeno, de poucas letras. No exemplo da Figura 3, Bruno utiliza na escrita das palavras letras ale- atórias, sem relação com o som original. Maria, por sua vez, utiliza as letras do próprio nome para representar a escrita. Além disso, revela a presença do realismo nominal e a dificuldade de pensar a palavra independentemente do seu significado. Nesse caso, Maria, por acreditar que o elefante é grande, necessita utilizar mais letras para escrever essa palavra. Da mesma forma, ao escrever “formiga”, emprega poucas letras por ser um animal pequeno. Figura 3. Nível pré-silábico II. Fonte: Costa (2009). 9A psicogênese da língua escrita C04_Psicogenese.indd 9 28/05/2018 15:47:28 Para que esse aluno pré-silábico avance, é necessário que ele conheça as letras e o seu valor sonoro e que represente, na forma escrita, o papel das letras por meio da expressão da fala. Para isso, é preciso pensar em algumas estratégias e propostas didáticas importantes de trabalho com esse aluno. Entre elas, você pode considerar as listadas a seguir. Oportunizar contato com todas as letras, palavras e textos significativos que façam parte do cotidiano da criança. Trabalhar com as palavras contextualizadas e na sua totalidade (sílabas soltas não possuem muito sentido). Promover atividades de consciência fonológica em que a criança possa fazer uma análise da palavra de acordo com a sua dimensão sonora (quantidade de letras, sílaba inicial, sílaba final, tamanho e posição das letras nas palavras, etc.). Propiciar situações que levem os alunos a compreender as funções da escrita e a fazer relações do objeto com a palavra escrita. Utilizar jogos, brincadeiras, leituras, músicas, assim como a criação de histórias orais, a confecção de livros ilustrados e outros recursos para enriquecer o processo. Hipótese silábica A hipótese silábica caracteriza-se pela tentativa da criança de vincular a linguagem oral com a escrita. Essa hipótese é necessária e é um processo de construção original de cada alfabetizando, pois é o período em que a criança começa a encontrar uma regra para a escrita e a fortalecer sua capacidade de explicar de que forma está utilizando as letras nas palavras. Isso lhe dá segurança e lhe prepara para enfrentar novos desafi os. Essa escrita também se divide em dois níveis: silábico sem valor so- noro e silábico com valor sonoro. No primeiro, a criança representa, para cada sílaba, uma letra qualquer que não possui relação com o som que a palavra representa. Na Figura 4, a seguir, você pode ver um exemplo do nível silábico. A psicogênese da língua escrita10 C04_Psicogenese.indd 10 28/05/2018 15:47:28 Figura 4. Hipótese silábica sem valor sonoro. Fonte: Maria (2011). No exemplo da Figura 4, há a correspondência quantitativa entre a pronúncia oral das palavras e os sinais gráficos. Ou seja, a criança fez a seguinte relação: cada vez que abre a boca para pronunciar uma palavra, precisa utilizar uma letra. Se for escrever uma palavra com quatro sílabas, no caso, “brigadeiro”, deve utilizar quatro letras, mesmo que estas ainda não correspondam ao som original. Já no nível silábico com valor sonoro, a criança continua utilizando uma letra para cada sílaba, porém está iniciando o processo de relação entre a letra, o fonema e o som. As palavras podem ser expressas de forma vocálica (que inicia a escrita a partir de vogais) ou consonantal (a partir de consoantes). Nessa hipótese, a criança já supõe que a menor unidade seja a sílaba e tenta fonetizar a escrita, dando valor sonoro às letras. Ao escrever frases, pode utilizar uma letra para cada palavra. Na Figura 5, a seguir, nas duas testagens, as crianças representam as síla- bas por letras. No primeiro quadro, Gabriel escreve utilizando as vogais; no segundo, Júlia representa por meio das consoantes. Ambas possuem relação com o som das sílabas. 11A psicogênese da língua escrita C04_Psicogenese.indd 11 28/05/2018 15:47:28 Figura 5. Hipótese silábica com valor sonoro. Fonte: Hipóteses... (2013). Na hipótese silábica, para que a criança avance, é necessário que ela atri- bua valor sonoro a todas as letras. Para isso, o professor deve proporcionar atividades didáticas de reconhecimento da forma das letras e de associação grafema-fonema, assim como dar ênfase à primeira e à segunda letras na sílaba inicial da palavra, como forma de provocar dúvidas nas crianças sobre o número de letras necessárias para formar uma sílaba. Entre algumas sugestões, você deve estar atento à importância de: trabalhar com gravuras, desenhos e listas de palavras significativas para que a criança reconheça a letra inicial, a quantidade de sílabas, a classificação das palavras, a sílaba inicial e a sílaba final. analisar frases para contar o número de palavras, os espaços entre elas, o número de letras de cada palavra e o número de sílabas. trabalhar com letras e alfabeto móvel para que a criança possa ordenar, agrupar, montar e completar palavras. Hipótese silábico-alfabética Nessa hipótese intermediária, a criança começa a perceber que é necessário escrever mais de uma letra para formar uma sílaba. Ela entende o quanto se torna difícil ler uma palavra escrita silabicamente, da mesma forma que realizar a leitura de algo escrito pelos já alfabetizados. Inicia-se então a utilização e a A psicogênese da língua escrita12 C04_Psicogenese.indd 12 28/05/2018 15:47:29 combinação de vogais e consoantes numa mesma palavra. Aqui a criança está em transição entre as hipóteses silábica e alfabética e a sua escrita oscila, pois às vezes utiliza somente uma letra para cada sílaba e outras vezes representa as unidades menores, as sílabas e os fonemas. Na Figura 6, a seguir, você pode ver um exemplo da hipótese silábico-alfabética. Figura 6. Hipótese silábico-alfabética. Fonte: Hipóteses... (2013). É importante continuar investindo nas atividades propostas para o nível silábico, de maneira que a criança possa formular e resolver situações-problema de acordo com palavras significativas para o contexto em que está inserida, da mesma forma que possa representar os fonemas com as letras a fim de atingir a hipótese seguinte, a alfabética. É também fundamental o trabalho simultâ- neo de letras, sílabas, palavras e textos para que a criança possa relacionar e compreender as unidades linguísticas. Hipótese alfabética Na hipótese alfabética, a criança já compreende o sistema de escrita e sua função social. Nessa fase, a criança percebe que é necessário escrever mais de uma letra para formar a sílaba e tenta adequar a escrita à fala. Além disso, 13A psicogênese da língua escrita C04_Psicogenese.indd 13 28/05/2018 15:47:29 conhece o valor sonoro de quase todas as letras e consegue realizar a leitura do que escreve, porém ainda há a omissão de algumas letras e a necessidade de intervenções ortográfi cas. Na Figura 7, a seguir, você pode ver um exemplo da hipótese alfabética. Figura 7. Hipótese alfabética. Fonte: Flores (2015). Conforme a criança vai avançando em suas hipóteses, elavai começando a compreender que é necessário separar as palavras ao escrever frases e peque- nos textos. Além disso, ela entende que precisa se preocupar com as questões ortográficas da língua, assim como refletir sobre a forma com que se escrevem as palavras. Por exemplo, ao escrever “cachorro”, se questiona se a palavra é escrita com X ou CH, com R ou RR. Por isso, é importante que o professor promova atividades voltadas à produção e à leitura de textos do cotidiano, de forma a aprofundar o estudo de palavras nas mais diferentes complexidades, a fim de proporcionar a compreensão de como a escrita se fundamenta. Por fim, o último nível que a criança atinge é o ortográfico, no qual ela supera as hipóteses anteriores e segue as determinações ortográficas. Você deve notar que não são necessariamente todos os alunos que atingirão o nível esperado ao mesmo tempo. Além disso, não se pode dizer que as atividades A psicogênese da língua escrita14 C04_Psicogenese.indd 14 28/05/2018 15:47:29 propostas deverão ser as mesmas independentemente da hipótese em que a criança está. Pelo contrário, o professor deverá traçar estratégias e agrupar os alunos para que possam variar entre o trabalho com colegas do mesmo nível de escrita e com colegas que estão em níveis diferentes, de forma que sejam estimulados a serem colaboradores e auxiliem-se no decorrer das atividades. No vídeo disponível no link a seguir, você vai ver que o processo de alfabetização e letramento ocorre a partir de três desenvolvimentos que acontecem articuladamente: o desenvolvimento psicogenético, o conhecimento das letras e a consciência fonológica. Magda Soares, professora especialista na temática alfabetização e letramento, aponta que o percurso que a criança traça ao longo do processo de alfabetização é um caminho de descoberta e construção do conhecimento da língua escrita. O professor tem o papel fundamental de orientar esse processo de forma sistemática e planejada. A partir de algumas situações de aprendizagem apresentadas no vídeo, é possível compreender e ter maior clareza sobre como cada fase acontece e sobre como são as intervenções do professor nesse trabalho. https://goo.gl/Ha4XhY Identificação do “erro” como construtivo no processo de alfabetização O processo de alfabetização é caracterizado pela construção de diferentes hipóteses elaboradas pela criança para chegar à escrita das palavras. Essa construção passa por um longo caminho em que o aluno analisa, experimenta e refl ete sobre o sistema de escrita alfabética, de maneira que, a partir de erros e acertos, vai formulando seus conhecimentos, organizando suas ideias até, fi nalmente, avançar em sua aprendizagem. Nessa perspectiva de construção do conhecimento, como o erro é visto no processo de alfabetização? É importante, em primeiro lugar, descrever o erro antes dos estudos da psicogênese. Até meados de 1980, quando a alfabetização era concebida a partir dos métodos sintéticos e analíticos, as práticas de leitura e escrita eram muito sucintas. Da mesma forma, a avaliação realizada pelo professor era excludente e não levava em consideração os conhecimentos da criança. Pelo contrário, visava à mensuração de resultados e tinha como 15A psicogênese da língua escrita C04_Psicogenese.indd 15 28/05/2018 15:47:29 objetivo principal medir a aprendizagem do aluno, tornando-o apto ou não a progredir para o ano seguinte. Na concepção tradicional, as crianças chegavam ao ensino fundamental sem muitos conhecimentos relacionados à leitura e à escrita. Para que avançassem em seus estudos e desenvolvessem a maturidade para aprender, era necessário que adquirissem determinadas habilidades motoras e de prontidão. Para o processo formal, essas habilidades deveriam ser iniciadas já na pré-escola, que nos dias atuais corresponde à segunda etapa da educação infantil. Quando a criança ingressasse no ensino fundamental, deveria ser possível iniciar ime- diatamente o processo de memorização e conhecimento do código alfabético. A avaliação, nessa concepção, era vista como indispensável, pois era ela que indicaria se o aluno estava aprendendo ou não as unidades ensinadas pelo professor, sendo preciso garantir que a criança cometesse o menor número de erros para que prosseguisse em seus estudos. O erro, nesse sentido, era o indicador de que a criança não havia aprendido ou memorizado o conteúdo e era visto como algo que deveria ser evitado. A postura do educador frente ao erro despertava no aluno desânimo, baixa autoestima e desinteresse, o que contribuía para os crescentes casos de reprovação. O fracasso escolar e as repetidas retenções começaram a ser relacionados à forma tradicional que as escolas assumiam, da mesma maneira que o ensino e o modo de avaliar começaram a ser discutidos e aprofundados a partir dos estudos de Emília Ferreiro e Ana Teberosky (1985) acerca da psicogênese da língua escrita. A avaliação passa a ser vista sob um novo enfoque, em que as escritas não convencionais que as crianças elaboram servem como indicadores de que o aluno está refletindo sobre o que está escrevendo e formando diferentes hipóteses. Consequentemente, o erro assume uma proposta construtivista, segundo a qual a criança terá a possibilidade de aprender, interagir com outras formas de escrita e buscar lógicas para escrever livremente, sem se preocupar se a escrita está correta ou não. Ferreiro e Teberosky (1985, p. 30) fazem alguns apontamentos para o erro construtivo a partir das ideias de Piaget: [...] Para uma psicologia (e uma pedagogia) associacionista, todos os erros se pare- cem. Para a psicologia piagetiana, é chave o poder distinguir entre os erros aqueles que constituem pré-requisitos necessários para a obtenção da resposta correta. Nesse sentido, os erros cometidos pela criança devem ser considerados construtivos, visto que eles não devem ser impedidos, e sim permitidos a partir da possibilidade de acesso à resposta correta. A psicogênese da língua escrita16 C04_Psicogenese.indd 16 28/05/2018 15:47:29 Na proposta construtivista, as crianças são avaliadas a partir das conquistas e possibilidades potencializadas durante todo o ano letivo. Essa proposta leva em consideração o erro como forma de analisar o que o estudante pensa sobre os conteúdos trabalhados em sala de aula. Em detrimento da avaliação que visava à medição dos conhecimentos, agora os professores utilizam diferentes tipos de instrumentos avaliativos, tanto no âmbito individual quanto no coletivo, para identificar o que cada criança já desenvolveu, auxiliando-a a avançar em sua aprendizagem. A avaliação passa a ser contínua e processual e visa a incluir os alunos e contemplar os diferentes saberes existentes dentro da sala de aula. Alguns objetivos precisam ser analisados pelo professor antes de pensar na avaliação, sendo o principal deles a sondagem e a identificação dos conhe- cimentos que já foram construídos pela criança. A partir desse diagnóstico, é possível pensar no que já foi desenvolvido e no que ainda é necessário resgatar e trabalhar, utilizando diferentes alternativas e estratégias para verificar o percurso de aprendizagem percorrido pela criança ao longo do ano letivo. Diante desse pressuposto, a prática docente também assume o importante papel de proporcionar e favorecer diferentes oportunidades de aprendizagem para as crianças, com vistas a possibilitar que cada indivíduo, ao seu tempo, possa livremente testar suas hipóteses. Por isso, é fundamental o professor conhecer bem cada etapa e cada nível de escrita pelo qual a criança passa para, a partir daí, planejar atividades que lhe permita avançar em suas hipóteses. Identificar os conhecimentos de cada um acerca do sistema de escrita alfabética também é essencial, assim como compreender que os erros são necessários para que o sujeito evolua e, consequentemente, para que o processo se concretize. A partir desse trabalho, os professores podem fazeras intervenções ne- cessárias adequando-as a cada aluno e à diversidade de saberes existentes. O respeito a essa diversidade e a essa heterogeneidade de saberes vinculado ao planejamento de atividades significativas de acordo com a realidade da turma é que possibilitará que a aula se torne mais rica, dinâmica e participativa. Essas estratégias didáticas vêm ao encontro da concepção de avaliação de Ferreiro e Teberosky (1985), cujos objetivos estão voltados à progressão dos alunos em seus conhecimentos, levando em consideração as hipóteses que elaboram durante esse processo. No entanto, é preciso que a escola deixe claro também para as famílias que a forma de avaliação e a concepção de erro passaram por grandes mudanças ao longo das décadas. Assim, não é porque uma criança escreve, por exemplo, a palavra “rato” apenas com as letras “ao” que ela deve ser considerada errada. Pelo contrário, essa criança está em processo de construção da aprendizagem da língua escrita e esse é um passo importante que ela está vivenciando para que 17A psicogênese da língua escrita C04_Psicogenese.indd 17 28/05/2018 15:47:29 consiga avançar para a hipótese seguinte. Porém, é necessário que o professor retome constantemente a escrita correta das palavras e faça as intervenções necessárias para que a criança compreenda e reflita a partir de seus erros o que precisa ser modificado. Isso não significa que a professora irá dar as respostas prontas ou tampouco que vá dizer que a escrita está errada. Ela vai indicar caminhos, propor atividades e buscar outras maneiras de fazer com que os alunos compreendam esse processo. É importante quebrar alguns paradigmas, reconhecer e aceitar que o erro faz parte do processo de aprendizagem, principalmente no período de alfabetização. Da mesma forma, é preciso promover discussões também entre as escolas e as famílias, com o objetivo de esclarecer como acontece a aprendizagem inicial da língua escrita, qual o papel do professor frente ao erro e como este possibilitará que a criança reflita e avance em seus conhecimentos. Somente dessa maneira, por meio da parceria entre escola e família e da compreensão de como a criança constrói a sua aprendizagem, é que a avaliação na alfabetização poderá ser vista como um processo de conquistas. Nesse processo, serão identificadas as hipóteses e as possibilidades de cada educando, a fim de auxiliá-lo a compreender e se apropriar do sistema de escrita alfabética e, consequentemente, avançar na aprendizagem. ALBUQUERQUE, E. B. C. de. Concepções de alfabetização: o que ensinar no ciclo de alfabetização. In: BRASIL. Secretaria de Educação Básica. Pacto nacional pela alfabe- tização na idade certa: currículo na alfabetização: concepções e princípios: ano 1: unidade 1. 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