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MULHERES NA LITERATURA LUSÓFONA 1 – INTRODUÇÃO Apesar de as mulheres estarem publicando mais livros nos dias de hoje, houve um tempo em que a voz feminina era quase inexistente na Literatura. Mas por que existiam poucas escritoras no passado? Para entender um pouco, tomemos como exemplo a história de Soror Juana Inés de La Cruz, uma das primeiras escritoras da América Latina. Apesar de ela ser uma escritora mexicana e sua obra ser escrita em espanhol, sua biografia ajuda a entender um pouco da situação feminina na América Colonial, o que inclui o Brasil. Soror Juana recebeu inúmeras propostas de casamento, já que era dama de companhia da vice-rainha da Espanha. Mas ela preferiu seguir a vida religiosa para poder continuar os seus estudos com liberdade e sem as obrigações do casamento. Este é um dos motivos para a pouca presença feminina nos primórdios de nossa literatura: as mulheres eram educadas para serem boas esposas e donas de casa. Quase não havia escolas e as poucas que existiam eram exclusivas para os homens. As poucas mulheres que recebiam educação formal eram de famílias ricas que podiam pagar um tutor, uma espécie de professor particular. A ideia comum, porém, era a de que mulheres deveriam aprender apenas serviços domésticos. Por isso, poucas sabiam ler e escrever. Além disso, a sociedade patriarcal impunha uma inferioridade às mulheres quanto à participação na vida social e política. Assim, as ideias das mulheres não eram expressadas ou, quando eram, acabavam negligenciadas pelos homens. Isso reflete no pequeno número de livros publicados por mulheres até a metade do século XX, principalmente no Brasil. Assim, mesmo que houvesse mais mulheres produzindo literatura nos tempos coloniais, seus manuscritos acabaram se perdendo com o passar do tempo. 2 – PIONEIRAS DA LITERATURA BRASILEIRA As mulheres só aparecem na Literatura Brasileira no período do Romantismo, que abrange a primeira metade do século XIX. A primeira mulher brasileira a ter um livro de ficção publicado foi a gaúcha Ana Eurídice Eufrosina de Barandas, ou simplesmente Ana de Barandas. Ela também foi pioneira na utilização de uma obra de ficção para discutir ideias feministas. A obra “Diálogos” é considerada por alguns críticos literários como um Todos direitos reservados www.seliganessahistoria.com.br Página 1 texto de explícita desobediência aos “mais velhos” da família e de defesa da participação política da mulher nas questões nacionais e foi publicada em 1845. Dois anos depois, em 1847, Nísia Floresta, escritora nascida em Papari (RN), publicou “Fany ou o modelo das donzelas”, obra de ficção que também trazia ideias feministas. Antes disso, porém, já havia publicado o manifesto “Direitos das Mulheres e Injustiças dos Homens”, que trazia à tona as imposições que as mulheres sofriam no ambiente familiar. Nísia, que travou contatos com grandes escritores como Augusto Comte, pai do positivismo, e Alexandre Dumas, fundou ainda uma escola para moças no Rio de Janeiro. Apesar do pioneirismo, as ideias feministas defendidas pela escritora soariam um tanto repressoras para os dias de hoje, pois eram baseadas no catolicismo, na ausência de vaidade e na obediência aos pais. 2 – MARIA FIRMINA DOS REIS Embora o pioneirismo de Ana de Barandas e Nísia Floresta seja indiscutível, ambas eram de famílias ricas que tiveram condições de oferecer uma educação formal às duas. Por isso, uma outra mulher da época, pobre, preta e filha de mãe solteira, merece destaque entre as pioneiras da literatura brasileira. Eu estou falando de Maria Firmina dos Reis. Nascida em São Luis do Maranhão em 1822, Maria Firmina só foi registrada três anos depois. Em seus documentos não consta o nome do pai. Sua mãe morreu quando ela tinha 5 anos e quem terminou de criar a menina foi uma tia que tinha melhores condições financeiras, o que também garantiu que Maria Firmina pudesse estudar. Ela nunca se casou. Formou-se professora e passou em um concurso público para lecionar na cidade de Guimarães, também no Maranhão, lugar onde morreu, cega e pobre, em 1917. Mas Maria Firmina não veio ao mundo para ser somente professora. Ela participou ativamente da imprensa maranhense de sua época, escrevendo crônicas, ficções curtas, poesias e até mesmo charadas e enigmas. Lutou pela abolição da escravatura e pela igualdade de direitos. Depois que se aposentou do magistério público, em 1880, fundou a primeira escola mista (para moças e rapazes) e com ensino gratuito do Brasil. Só que a ideia de misturar pessoas de sexos diferentes no mesmo ambiente escolar não agradou a sociedade da época, levando ao fechamento da escola depois de dois anos de funcionamento. Todos direitos reservados www.seliganessahistoria.com.br Página 2 Na literatura, Maria Firmina dos Reis publicou três obras. O folhetim “Gupeva”, com temática indianista; o conto abolicionista “A Escrava” e aquele que é o primeiro romance abolicionista da Literatura Brasileira e o primeiro romance publicado por uma mulher negra em toda a América Latina: “Úrsula”, de 1859. Apesar de ter uma protagonista branca nos moldes das heroínas do Romantismo, a obra apresenta personagens negros que debatem com propriedade a situação dos escravos no Brasil daquela época. A história de Úrsula é basicamente uma tragédia romântica que envolve o triângulo amoroso formado pela protagonista, pelo jovem Tancredo e pelo tio dela, que é o vilão da história. A narrativa segue o modelo das obras românticas, com longas descrições de paisagens e das características físicas das personagens, além do maniqueísmo que deixa bem claras as diferenças entre personagens bons e maus. Mas são as tramas paralelas de Túlio, Mãe Suzana e Antero – três personagens negros – que apresentam um retrato bem fiel da realidade da população de afrodescendentes no Brasil daquela época. É na voz desses personagens que são feitas profundas reflexões sobre a escravidão e as consequências da abolição. São personagens coadjuvantes à trama principal, mas cujas histórias crescem em importância no decorrer da obra. O tom político de “Úrsula” é um ótimo exemplo de como a ficção pode servir de pano de fundo para a discussão de temas sociais. E é essa característica que torna Maria Firmina dos Reis uma pioneira da Literatura Brasileira. 3 – ESCRITORAS DO SÉCULO XX. Na transição do século XIX para o século XX, o mundo estava passando por profundas mudanças de pensamento, e as mulheres começam a ganhar mais destaque no mundo das Letras. A carioca Narcisa Amália foi a primeira jornalista profissional do Brasil e atuou muito no combate à escravidão e à opressão feminina. Na literatura, porém, não deu vazão às ideias feministas, tendo publicado apenas um livro de poesias nacionalista, nos moldes do Romantismo. Merece muito ser lembrada como pioneira a escritora Júlia Lopes de Almeida, que foi a primeira autora a publicar textos infantis. Mas o que chama mais a atenção na biografia dela é que a autora estava entre o grupo de escritores que idealizou a “Academia Brasileira de Letras”, e seu nome estava na lista dos primeiros 40 membros. Porém, o nome de Júlia Lopes de Almeida foi excluído na primeira reunião da Academia, porque os fundadores preferiram manter o grupo exclusivamente masculino, do mesmo modo que era a Academia Francesa de Letras que serviu de modelo para os brasileiros. Todos direitos reservados www.seliganessahistoria.com.br Página 3 No início do século XX, dentro do movimento Simbolista (que buscava despertar as sensações por meio dos versos), a carioca Gilka Machado foi a primeira mulher a escrever poesia erótica no Brasil, o que, do ponto de vista feminino, significava uma grande libertação do conservadorismo sexual que era contra, por exemplo, a mulher sentir prazer no sexo. Gilka Machado também lutou pela igualdade de direitos políticos, sendo atuante no movimento que defendia odireito das mulheres de votar em eleições públicas. E já que estamos falando de mulheres na literatura lusófona, merece destaque também nesse período a poeta portuguesa Florbela Espanca, que produziu uma obra carregada de erotização, feminismo e, rompendo com a tradição judaico-cristã, carregada também de panteísmo. Outra escritora portuguesa de grande destaque no século XX é Sophia Mello-Breyner Andresen, primeira mulher a receber o Prêmio Camões, o mais importante da Literatura em Língua Portuguesa, e uma das mais brilhantes pesquisadoras e tradutoras da Literatura Clássica. Apesar de as pintoras Tarsila do Amaral e Anita Malfatti terem sido protagonistas da Semana de Arte Moderna, nenhuma mulher participou da parte literária do evento, em 1922. Apesar disso, é impossível não associar a figura de Patrícia Galvão, a Pagu, aos modernistas da primeira geração. Pagu não participou da programação da Semana de Arte Moderna, porque em 1922 tinha apenas 12 anos de idade. Mas aos 18 anos, depois que terminou o Curso Normal (que formava professoras na época), Pagu aderiu ao Movimento Antropofágico. Ela foi a segunda mulher do escritor Oswald Andrade, que era casado antes com Tarsila do Amaral. Escritora, poeta e multiartista, Pagu foi uma militante engajada nas causas sociais, principalmente aquelas ligadas às mulheres. Chegou a ser presa por fazer parte do Partido Comunista, que era proibido durante a Era Vargas. Na literatura, suas principais obras são a coletânea de contos policiais “Safra Macabra” e “Parque Industrial”, considerado o primeiro romance proletariado do Brasil. Com o Modernismo consolidado em nossa literatura, as gerações seguintes de escritores modernistas sempre contaram com representantes femininas. Na prosa, um dos grandes destaques é Rachel de Queirós, primeira mulher a ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras. Nascida no Ceará, foi uma das representantes do chamado Neorealismo que, por meio do regionalismo, mostrava a dura realidade das classes menos favorecidas. Aos 20 anos publicou seu primeiro livro, “O Quinze”, que retratava um grande seca que assolou o nordeste brasileiro em 1915. Todos direitos reservados www.seliganessahistoria.com.br Página 4 Embora tenha nascido na Ucrânia, Clarice Lispector se naturalizou brasileira e se tornou uma das principais expressões da nossa literatura em todos os tempos. Ela inovou na estética das obras e nós vamos falar muito dela em outras aulas. Outra importante escritora do modernismo brasileiro é Lygia Fagundes Telles, que foi a primeira mulher brasileira a ser indicada para o Prêmio Nobel de Literatura. Na poesia modernista, Cecília Meireles é um dos nomes de maior destaque, tendo sido considerada durante muito tempo como a primeira grande escritora brasileira. Mas, como já vimos, o pioneirismo não foi o grande mérito de Cecília. Só que isso não a impediu de ter uma vasta produção literária, tanto na poesia como em outros gêneros. Outras mulheres poetas que se destacaram no modernismo brasileiro foram a goiana Cora Coralina que, embora tenha começado a escrever na adolescência, só publicou seu primeiro livro aos 76 anos de idade; a mineira Adélia Prado, que trouxe de volta a valorização do feminino para a poesia; e a premiadíssima Hilda Hilst, nascida em Campinas, interior de São Paulo, que além de ter se destacado na poesia, também escreveu peças de teatro e ficção. 4 – MULHERES NA LITERATURA AFRICANA Nos países africanos de Língua Portuguesa, a representatividade das mulheres na literatura é também bastante pequena, fato que chega a ser surpreendente, já que a Literatura Africana Lusófona é muito inspirada nas lutas pela independência das colônias europeias, movimento que contou com a participação maciça de mulheres. Mesmo assim, a África tem revelado grandes talentos femininos para a literatura lusófona. Dina Salústio é a representante de Cabo Verde nessa lista de escritoras africanas lusófonas. Seu livro “Mornas eram as noites”, uma coletânea de contos e crônicas, é muito aclamado por fazer um duro retrato da sociedade Caboverdiana, principalmente no que diz respeito a problemas como desigualdade, marginalidade social, miséria e fome. Em Moçambique se destaca Paulina Chiziani, nascida na periferia da capital Maputo e que lutou ativamente para a independência do país, que utilizou a sua obra para combater práticas como a poligamia, que era permitida por lá até pouco tempo. Outra moçambicana de destaque na literatura é Noémia de Souza, que estudou aqui no Brasil, e cuja poesia é um retrato alarmante da violência vivida pelo país durante as lutas pela independência. De Angola vêm as escritoras Djaimilia Pereira de Almeida e Ana Paula Tavares. Nascida na metade do século XX, Ana Paula Tavares também é historiadora e, em sua Todos direitos reservados www.seliganessahistoria.com.br Página 5 obra, é possível perceber a forte influência que recebeu de poetas brasileiros como Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e João Cabral de Melo Neto. Já Djaimília é naturalizada portuguesa, embora tenha nascido em Luanda. A vida de uma mulher negra em uma sociedade predominantemente branca é a inspiração para seus contos e crônicas e do romance “Esse Cabelo”. 5 – LITERATURA FEMININA NA VIRADA DO SÉCULO A participação de mulheres na literatura contemporânea é bem maior que no passado. Mesmo assim, uma pesquisa realizada pela Universidade de Brasília indica que, até o ano de 2014, as mulheres representavam apenas 30% dos autores com livros publicados no Brasil. Mesmo assim, algumas autoras contemporâneas escreveram importantes obras que ajudaram a combater as grandes diferenças de direitos entre homens e mulheres. A carioca Ana Cristina César, ou Ana C. como era conhecida, fez parte do movimento conhecido por literatura marginal ou geração do mimeógrafo. Embora suas publicações tenham sido feitas em meios alternativos, Ana C. deixa uma obra carregada de críticas aos padrões de comportamento impostos às mulheres na década de 1970. Em sua mistura de poesia com outros gêneros, a autora fala abertamente do seu corpo e de sua sexualidade. Carolina Maria de Jesus era catadora de materiais recicláveis e viveu durante muitos anos em uma favela na região do Canindé, em São Paulo. Durante os anos de 1955 a 1960, Carolina fez várias anotações em cadernos que encontrava nas lixeiras. Essas anotações deram origem ao livro “Quarto de Despejo – Diário de uma favelada”, que alçou a autora à categoria de grande representante das mulheres negras do Brasil. Nascida em uma favela da zona Sul de Belo Horizonte, Conceição Evaristo teve que conciliar seus estudos com o trabalho de empregada doméstica até ser formar professora. Passou em um concurso público no Rio de Janeiro, onde estudou Letras na Universidade Federal Fluminense. Suas obras são um retrato da discriminação racial, de gênero e de classe. 6 – OBRAS INDICADAS PARA APROFUNDAMENTO 6.1 – Conto Os três reis do Oriente, de Sophia Mello-Breyner Andresen: releitura da universal história dos três reis magos que teriam visitado o Menino Jesus, em Belém. Porém, a Todos direitos reservados www.seliganessahistoria.com.br Página 6 autora foge da religiosidade tradicional e impõe forte crítica social à história. (Disponível em: https://www.voltimum.pt/sites/www.voltimum.pt/files/pdflibrary/09_os_tres_reis_do.pdf 6.2 – Música Pagu, de Rita Lee: Um verdadeiro manifesto feminista, foi gravada em parceria com Zélia Duncan. Vale a pena ouvir, e ouvir, e ouvir... 6.3 – Série de TV The Handsmaid’s Tale (O Conto da Aia): inspirada no livro de Margareth Atwood, conta a história de Offred, uma “aia”, espécie de escrava reprodutora, que vive em um Estado totalitário e teocrático. Disponível na plataforma Goboplay. 6.4 – Palestra Todos devemos ser feministas, de Chimamanda Ngozi Adichie: Uma das escritoras mais conhecidas da atualidade, anigeriana fala da sua experiência sofrendo preconceito de gênero em seu país. Disponível em: https://www.ted.com/talks/chimamanda_ngozi_adichie_we_should_all_be_feminists? language=pt-br#t-80202 Todos direitos reservados www.seliganessahistoria.com.br Página 7 7 – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CEREJA, William. Literatura Brasileira e diálogo com outras literaturas e outras linguagens. 5.ed. São Paulo: Atual, 2013. MOISÉS, Massaud. A Literatura Brasileira através dos textos. 2.ed. São Paulo: Cultrix, 2007. NUNES, Aparecida Maria. A mulher na literatura. Caminhar além das receitas de cozinha. Mogi News, Mogi das Cruzes - SP., 30 jan. 1983. NUNES, Aparecida Maria. Um Retrato Disforme: A Imagem da Mulher nas Publicações Populares. In: Geysa Silva; Luiz Fernando Matos Rocha. (Org.). Discurso e Cultura (ISBN: 8560005021). Juiz de Fora-MG: Feme, 2006, v. 1, p. 35-48. NUNES, Aparecida Maria. Uma Voz Diferente: Apontamentos Sobre a Imagem da Mulher na História. Revista Santa Marta: Visão e Ação, São Lourenço - MG, v. 1, p. 17-25, 1998. Todos direitos reservados www.seliganessahistoria.com.br Página 8